aspectos das relações entre o mosaico e a arquitectura no mundo

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ASPECTOS DAS RELAÇÕES ENTRE O MOSAICO E A ARQUITECTURA NO MUNDO ROMANO. ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA DO TEMA DA MURALHA NO MOSAICO ROMANO Francine Alves ___________________________________________________ Tese de Doutoramento em História da Arte da Antiguidade JULHO/2010

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  • ASPECTOS DAS RELAES ENTRE O

    MOSAICO E A ARQUITECTURA NO MUNDO

    ROMANO.

    ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA DO TEMA

    DA MURALHA NO MOSAICO ROMANO

    Francine Alves

    ___________________________________________________

    Tese de Doutoramento em Histria da Arte da Antiguidade

    JULHO/2010

  • ASPECTOS DAS RELAES ENTRE O

    MOSAICO E A ARQUITECTURA NO MUNDO

    ROMANO.

    ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA DO TEMA

    DA MURALHA NO MOSAICO ROMANO

    Francine Alves

    ___________________________________________________

    Tese de Doutoramento em Histria da Arte da Antiguidade

    JULHO/2010

  • AGRADECIMENTO

    Expresso o meu reconhecimento ao Professor Manuel Justino Maciel, pela orientao cientfica, pela disponibilidade e pelo incentivo na

    feitura deste trabalho.

  • RESUMO

    Esta investigao, no mbito das relaes entre o mosaico e a

    arquitectura no mundo romano, tem por objecto a representao do

    tema da muralha no mosaico pavimental.

    Desenvolvido em trs partes, o trabalho incide em factos

    histricos, analisa a gnese do tema e a sua transposio para o

    mosaico.

    Os objectivos do trabalho so a identificao da expresso

    iconogrfica e apreenso do contedo iconolgico da representao do

    tema em romano more.

    Palavras-chave: muro, torre, porta.

    ABSTRACT

    This research about relations between the mosaic and

    architecture in the Roman world, aims to analyze the crenellated

    borders in mosaic pavements.

    Developed in three parts, the work focuses on historical facts,

    analyzes the genesis of the theme and its transposition into the floor

    mosaic.

    The objectives of the study are the identification of iconographic

    expression and the apprehension of iconological content of the images.

    Key-Words: battlement, tower, gate.

  • NDICE

    Introduo..............................................................................

    1

    Parte I - Actium: a convergncia de duas vises do mundo

    1.O muro de Roma, o mos maiorum e o legado etrusco...........

    6

    2.A divergncia nos focos de viso: politai ou res publica........

    23

    3.A mobilidade espiritual dos Gregos......................................

    28

    4.A mobilidade territorial dos Romanos.................................. 45

    Parte II - A gnese do tema e a transposio para o mosaico

    1.Uma ddiva divina e um ornatus arquitectural....................

    61

    2.Um retrato musivo da transposio helenstica....................

    81

    3.O motivo pyrgotos e a pintura funerria.............................

    91

    4.Ilici: a convivncia das consuetudines graeca e romana........

    100

    Parte III - A representao romana do tema da muralha

    1.As imagens da defensio e o mosaico romano.......................

    113

    2.A representao em romano more........................................

    132

    3.O valor icnico acrescido.....................................................

    160

    4.A metamorfose do tema urbano e a crise da cidade.............

    165

    Concluso..............................................................................

    192

    Bibliografia.............................................................................

    201

    Ilustraes.............................................................................

    Lxico musivo.........................................................................

    218

    232

  • 1

    INTRODUO

    Este estudo tem por objecto uma das mais significativas

    expresses das relaes entre o Mosaico e a Arquitectura no mundo

    romano: a representao de imagens de muros, torres e portas tema

    da muralha na musivria pavimental.

    Incidindo sobre os mosaicos romanos, mormente os de contexto

    hispano, tem como objectivos a identificao da expresso iconogrfica

    e a apreenso do contedo iconolgico da representao do tema

    arquitectnico em romano more.

    O tema da muralha apareceu, no mosaico, em perodo helenstico

    e percorreu os pavimentos at finais do sculo III d.C.; este longo lapso

    temporal abarca duas linguagens iconogrficas distintas que apontam

    para diferentes vises do mundo, para diferentes contextos histricos.

    Procuramos ter em conta tais contextos em estudo naturalmente

    vinculado arte com histria; e luz deles procuramos atingir o nosso

    escopo, apreender os valores iconolgicos subjacentes s expresses

    iconogrficas.

    Assim, a primeira parte do nosso trabalho incide sobre factos

    histricos; a segunda dedicada gnese do tema da muralha e sua

    transposio para o mosaico; a terceira parte tem por foco a consuetudo

    italica no tratamento daquele tema arquitectnico.

    Socorremo-nos da analstica da Antiguidade, cabendo relevar

    nomeadamente, o olhar de Pausnias para uma peregrinao Grcia,

    o discurso de Vitrvio para o entendimento da arquitectura da

    Antiguidade e a pergunta mtica plasmada nos Fasti de Ovdio: e por

    que que a cabea (de Cbele) est carregada com uma coroa de torres

    (At cur turrifera caput est onerata corona?).1

    1 OVDIO, Fastos, 4, 219.

  • 2

    Encontramos na representao do tema arquitectnico duas

    mundivises distintas, opostas, plasmadas em dois lapsos de tempo

    espaados: o momento helenstico e o momento romano com incio

    augustano e termo severiano.

    As duas mundivises assentavam na dimenso do religioso que

    molda o contexto mental da Antiguidade2, mas viso do mundo em

    compartimentos (poleis) contrapunha-se a viso do mundo como um

    continuum (imprio).

    Tal divergncia apontava para duas distintas idiossincrasias, por

    isso, comeamos pela anlise dos respectivos percursos histricos; aqui

    encontramos os distintos eixos antagnicos espiritual e material

    que suportaram, orientaram e diferenciaram a mobilidade grega da

    mobilidade romana.

    Tendo como metodologia a apreciao de factos histricos

    enquanto determinantes da produo artstica, deu-se relevo

    fundao de Roma e ao mos maiorum que formatou eticamente a

    romanidade.

    Atentou-se na dominao etrusca enquanto primeira e mediada

    influncia do helenismo e em dois sistemas polticos vimos projectadas

    as duas contrastantes vises do mundo.

    Para o confronto entre ambas, destacamos momentos artsticos

    (perodos clssico e helenstico) do percurso espiritual grego bem como

    momentos da expanso territorial romana.

    Em suma, constatamos a helnica mobilidade espiritual de uma

    viso do mundo compartimentado em poleis, contraposta mobilidade

    territorial, expansionista determinada por uma viso do mundo como

    um imprio.

    2 Entendido o sculo VI a.C. como termo da Alta Antiguidade, os finais do sculo III d.C.(dinastia dos

    Severos) como termo da Antiguidade e o sculo VIII como termo da Antiguidade Tardia.

  • 3

    O encontro, convergncia e fuso de tais mundivises ocorre, em

    contexto romano, ao tempo em que o modelo poltico republicano,

    longamente posto em crise, se dilui em apaziguador e monrquico

    sistema poltico. Este encontro, em tal tempo, vai viabilizar, na

    produo artstica, nomeadamente, na musivria pavimental, a

    expresso plstica de um modus cogitandi a sntese em romano

    more: a arte romana.

    O momento formal daquele encontro, da convergncia dos

    diferentes modos de olhar e de ver, a batalha de Actium, porque vem

    dar novo contexto, nova estrutura poltica, ao mundo alexandrino e vem

    dar unidade fase artstica greco-romana, pondo termo arte do

    perodo helenstico.

    Em Actium e com Augusto, comea o perodo romano, o tempo da

    maturada sntese artstica latina, da emergncia de uma arte expurgada

    de uestigia ruris pela influncia e emulao da arte greco-helenstica.3

    este o perodo visado neste estudo. Por isso, do confronto entre

    duas vises do mundo, plasmadas em dois percursos histricos,

    seguimos em busca da gnese do tema, recuando remota arquitectura

    oriental; avanamos para o perodo helenstico e no mundo alexandrino

    encontramos as primeiras transposies do tema da arquitectura para o

    mosaico.

    Movendo-nos no tempo e na geografia, encontramos ainda a

    consuetudo graeca em um mosaico da Hispania de finais da Repblica,

    e, na bordadura torreada desse mesmo mosaico ilicitano, encontramos

    o desabrochar da arte romana. No contexto hispnico, prosseguimos a

    busca da consuetudo italica no tratamento plstico do tema da muralha

    e do valor icnico que lhe est subjacente.

    3 HORCIO, Epstolas, 2, 156,160 .

  • 4

    At cur turrifera caput est onerata corona?

    Cbele

    (Museu Arqueolgico de Istambul)

  • 5

    PARTE I

    Actium: a convergncia de duas vises do mundo

  • 6

    1. O muro de Roma, o mos maiorum e o legado etrusco

    Augustus Caesar, Diui genus, aurea condet saecula...

    (Eneida, 6, 793 )

    Roma, finais do sculo I a.C.

    Comea o perodo que d a matriz, o enquadramento do valor

    semntico das imagens da antiga musivria pavimental romana que

    motivam este estudo: um tempo novo, tempo de mudanas que do

    resposta e solues conflitualidade social que crescendo, com menor

    ou maior rudo, culminou na crise da Repblica.

    Tal resposta, tais solues surgem por uma via polticamente

    orientada para a paz (pax romana) e espiritualmente orientada para a

    recuperao de perdidos valores morais ancestrais (mos maiorum); via

    guiada pelo Augusto que, sob a sua autoridade (imperium), recebeu um

    mundo de discrdias.4

    4Mos maiorum todo um referente comportamental assente em costumes ancestrais ancorados em

    exigentes padres ticos. Tais costumes, que remontam aos longnquos tempos da formao de Roma

    (perodo monrquico), transitaram para o perodo republicano, onde se esvaram com o correr dos

    sculos. Perante os conturbados tempos dos finais da Repblica, o mundo romano sente a falta dos

    referentes comportamentais, desse mos maiorum que evoca pelo nome de tica republicana. Esta

    redutora designao tinha em vista todo o quadro de ancestrais valores morais, formatado em perodo

    fundacional, monrquico, e baseado na uirtus, ou seja, na rectido que tinha, entre os seus corolrios, a

    pietas e a fides, princpios orientadores das relaes dos homens com os deuses e dos homens entre si.

  • 7

    Discrdias entre o patriciado e a plebe, indiciadoras do

    desajustamento de uma ordem poltica concebida para a especfica

    realidade de uma cidade-Estado, tinham-se agravado paulatinamente e

    foram dando sinais de alerta como o da revolta dos Gracos, em 132

    a.C.5.

    As discrdias prosseguiram bem como as derivas do modelo

    republicano: variava o nmero de magistraturas supremas (republica-

    namente fixado em duas) e variava a tendncia das reformulaes

    constitucionais, ora conservadoras, ora reformadoras, como foi o caso

    das reformas do senador Sula, em 82 a.C., em favor dos patrcios

    (faco dos optimates) e a respectiva derrogao, em 70 a.C., por

    Pompeio Magno e Marco Licnio Crasso, defensores da plebe (faco dos

    populares).6

    O sinal vermelho foi dado ao vencedor de cinco triunfos, porque

    aceitou honras excessivas, tais como vrios consulados, uns aps os

    outros, a ditadura e o cargo de censor perptuo, sem contar o ttulo de

    Imperator, o cognome de Pai da Ptria, uma esttua entre as dos reis

    (...) e deu o nome a um ms do ano; demais, no houve magistratura

    que ele no tivesse e no concedesse a seu talante.7

    5 Na sua origem, a organizao da sociedade romana tinha por base a gens, conjunto de famlias com um

    ancestral comum e sujeito poderosa tutela do pater familias. Na famlia, todos esto submetidos ao seu

    poder absoluto, a patria potestas que, desde a origem, incluia o direito de vida e de morte. A gens tinha

    um culto e uma sepultura em comum, no acontecendo o mesmo com a posse da terra.

    Da gentlica organizao estava excluda a plebs (multido), porque gens non habere (LVIO, Ab urbe

    condita, 8, 9), mas a seu contento e por iniciativa do rei etrusco Srvio Tlio, seria dividida, por critrio

    econmico, em 5 classes. Infra classem ficavam os que s tinham descendncia (proles) e mais nada

    possuam (proletarii) e supra classem estavam os patrcios, os detentores exclusivos de uma panplia de

    direitos. Tal diferenciao gerou o antagonismo entre patrcios e plebeus; o antagonismo assumiria

    concretas formas de conflito nos primeiros anos da Repblica, momento em que a plebe procura a

    igualdade em matria de direitos at ento reservados ao patriciado. O direito de acesso a magistraturas -

    lhe reconhecido em 494 a.C. (tribuno da plebe; em rigor, no era uma magistratura porque no tinha

    poderes magisteriais, i., maior potestas, mas tinha o direito de veto (ius intercessionis), derivado da

    sacrossantidade do cargo; o acesso ao consulado e o direito explorao do ager publicus sero

    estabelecidos pelas leis Licnias em 367 a.C., que consubstanciam um pacto social vertido na expresso

    SENATVS POPVLVSQVE ROMANVS e cujas siglas formariam o selo de Roma. A luta pela explorao

    do ager publicus, em 133 a.C., custaria a vida ao tribuno da plebe Tibrio Semprnio Graco. 6 A luta entre optimates e populares mais no do que a continuao, por forma organizada em faces,

    do conflito patrcio/plebeu. Aps a 2 guerra pnica, o patriciado seria dividido em ordo senatorius

    (amplissima ordo) e em ordo equester. Em tempo imperial, a estas ordines juntar-se-ia a ordo

    decurionum, para contemplar as elites locais da administrao das comunidades urbanas. 7 Jlio Csar, LXXVI, em Os doze Csares-Suetnio, trad. de Joo GASPAR SIMES, p.43.

  • 8

    Nestes termos, SUETNIO dirige uma crtica ao homem que

    vinculou o juliano nome reformulao solar do calendrio8 que ainda

    hoje subsiste em grande parte do mundo contemporneo, com

    gregoriana correco no sculo XVI; SUETNIO critica a governao e a

    apetncia monrquica de Jlio Csar manifesta pela colocao da sua

    esttua entre as dos reis.9

    A vontade de ser rei, censurvel em perodo republicano, seria a

    verdadeira causa da sua morte diz PLUTARCO e explica que os que

    queriam elev-lo realeza difundiram um rumor segundo o qual um

    dos Oracula Sibyllina teria profetizado que os Partos s seriam submeti-

    dos pelo exrcito romano se este fosse comandado por um rex10.

    E que melhor rex seno o comandante, o general aclamado

    imperator11 pelos soldados pelas vitrias da Glia, Alexandria, Ponto,

    frica e Hispnia?12

    A sorte de Csar seria determinada no ano 49 a.C., no momento

    em que decidiu consciente da violao da legalidade republicana que

    impunha a entrada em Itlia sem armas atravessar com as suas

    legies o fronteirio Rubico; tal facto deu incio guerra civil,

    optimates contra populares, contando estes ltimos com o apoio de

    Csar e este com o do seu exrcito.

    Iacta alea est para o Csar que, no triunfo do Ponto, exibira a

    inscrio ueni, uidi, uinci : nos idos de Maro de 44 a.C., no Senado, o

    punhal de um Bruto (Marco Jnio) e de outros mais matam Jlio Csar

    8 Jlio Csar adopta o ano solar (365 dias) e para compensar o excedente horrio no contabilizado

    naquela anuidade, acrescentado, quadrienalmente, 1 dia ao 6 dia (sextus dies) antes das calendas de

    Maro, formando-se assim, um ano bissextus. 9 PLINIO refere que erigir esttuas de si e para si prprios era um costume dos reis (NH,34,13).

    10 PLUTARCO, Vida de Csar,60,2.

    11 O conceito de imperator tem contexto militar e dimenso religiosa: a saudao dos soldados ao seu

    general pelas vitrias obtidas, vitrias devidas ao poder divino. 12

    Assim escreve SUETNIO:Primum et excellentissimum triumphum egit Gallicum, sequentem

    Alexandrinum, deinde Ponticum, huic proximum Africanum, nouissimum Hispaniensem, diuerso quemque

    apparatu et instrumento (Jlio Csar, XXXVII).

    As grandes vitrias militares eram reconhecidas pela concesso do triunfo, um desfile de chefes militares,

    soldados, magistrados, prisioneiros de guerra acompanhados dos animais a sacrificar e dos despojos da

    campanha que entrava em Roma pela Porta Triumphalis rumo ao templo de Jpiter, no Capitlio, onde

    o general oferecia ao deus a sua coroa de louro.

  • 9

    e ferem de morte as derivas de um sistema poltico que um outro

    Bruto13 instaurara em 509 a.C..14

    Assim anunciado, o ponto de viragem surge em 31 a.C., momento

    em que a crescente dimenso objectiva e subjectiva do domnio de

    Roma (com proporcional desajustamento do modelo de governao e

    correspondente crescimento da conflitualidade social) atinge uma

    amplitude significativa pela incluso sob a alada de Roma na esfera

    das provncias romanas do domnio dos Ptolomeus, essa parcela

    tomada pelos Lgidas da imperial herana do grande e fugaz Alexandre

    da Macednia: o Egipto.15

    a viragem para um tempo novo, o tempo em que Augusto Csar,

    nascido de um deus, fundara um sculo de ouro (Augustus Caesar, Diui

    genus, aurea condet saecula)16.

    13

    A patronmica coincidncia revela a estabilidade do estrato de uma ordo (senatorial) que seria abalada

    pela restruturao do Senado levada a cabo por Csar: aumentou o nmero de senadores (de 600 para

    900) criando novos patrcios (Senatum suppleuit, patricios adlegit, SUETNIO, Jlio Csar, XLI). 14

    A deciso de atravessar o Rubico, pequeno rio entre a Itlia e a Glia Cisalpina, sustentada

    segundo o relato de Suetnio em uma viso que merece relevo pela dimenso augural, auspiciosa, em

    suma, religiosa (na coerncia da mentalidade antiga) que lhe est subjacente: chegado quele limite

    fluvial de Roma, Jlio Csar hesita perante o dever de depor as armas e licenciar os seus soldados para

    entrar em Roma. Nesse momento de hesitao, v-se um belo homem, sentado e a tocar flauta; atrados

    pela msica, os soldados aproximam-se e o tocador de flauta agarra na corneta de um dos soldados, atira-

    se ao rio e, com toques enrgicos de corneta, chega outra margem. Perante esta viso, Csar ter dito:

    Vamos para onde os sinais dos deuses e a injustia dos homens nos chamam: a sorte est lanada

    (Eatur ... quo deorum ostenta et inimicorum iniquitas uocat. Iacta alea est), SUETNIO, Jlio Csar,

    XXXII). 15

    As parcelas em que se fragmentou o imprio macednio do conta da amplitude do seu mbito

    geogrfico: sem ter indicado sucessor, Alexandre morre em 323 a.C., com 33 anos por febres acidentais

    ou manipuladas e o seu imprio foi longamente disputado pelos seus generais, sucessores (diadochoi );

    a paz s foi alcanada em 281 a.C., com a fragmentao do imprio em diferentes reinos e dinastias

    helensticas: os Lgidas no Egipto, os Selucidas na Sria, os Antignidas na Macednia e os Atlidas em

    Prgamo. 16

    Este o verso de VIRGLIO: Hic uir, hic, est, tibi quem promitti saepius audis, // Augustus Caesar,

    Diui genus, aurea condet // saecula qui rursus Latio regnata per arua // Saturno quondam ... (Este o

    homem que tanta vez ouviste como prometido / o Augusto Csar, filho do Deus, que fundara // o sculo

    de ouro, segunda vez, no Lcio nos campos // onde Saturno ...), Eneida, 6, 793.

  • 10

    A vitria de Octaviano na batalha de Actium, em 31 a.C., no s

    configura a consolidao17 de uma tutela poltica como consubstancia

    notvel redimensionamento territorial e populacional que vai muscular

    a metamorfose de uma cidade-Estado (Roma) em capital de um imprio.

    Tal metamorfose tem, necessariamente, repercusses no mundo

    da arte: as concepes artsticas greco-helensticas so anexadas

    latina mundiviso do vencedor, produzindo-se o sincretismo entre a

    arte grega ou greco-helenstica e as concepes artsticas que

    enformam a romanidade.18

    Por tanto, acompanha-se o entendimento dos autores que vem

    em 31 a.C. o termo do perodo helenstico19. Tal baliza temporal

    formal que no exclui supervenientes produes artsticas de

    carcter helenstico mas, aclara que elas tm um novo contexto

    (romano), nelas necessariamente reflexvel (por opo consciente ou

    no) e nelas reflectido (por modo expresso ou tcito) atravs de

    expresses plsticas que carreiam aceitao ou indiferena, adeso ou

    reaco mundiviso romana.

    A mundiviso romana perpassa no projecto augustano, na

    formulao da imperial ordem poltica: em 27 a.C., o vencedor de

    Actium, adopta o nome de Augusto, derruba a Repblica e, com o ttulo

    de Princeps, recebe um mundo de discrdias sob a sua autoridade.20

    17

    At ento, e desde 47 a.C., o Egipto tinha sido, de facto, um protectorado romano, por obra de Jlio

    Csar. 18

    A consensual data do incio do periodo helenstico reporta-se morte de Alexandre (323 a.C.); tal

    perodo tem por essncia a lngua e cultura gregas em contexto de assimilao pelo imprio macednio-

    alexandrino e tem por grandes centros culturais, entre outros, Alexandria, Antioquia, Prgamo e Rodes. 19

    SCHEFOLD entende que a destruio de Cartago (146 a.C.) o termo da fase helenstica; afirma que a

    expedio de Alexandre determinou mais o fim do que o incio da irradiao helenstica para leste e

    acrescenta que a sntese dos elementos gregos e orientais s se operou verdadeiramente na poca

    romana. Secundamos o entendimento de que a sntese dos elementos gregos e orientais se operou na

    poca romana, e, mais concretamente, em tempo imperial, facto constatvel, p.ex., no tratamento romano

    do tema da muralha na musivria pavimental. Cfr. Grcia Clssica, Karl SCHEFOLD, p.10. 20

    Diz TCITO: arma in Augustum cessere, qui cuncta discordiis ciuilibus fessa nomine principis sub

    imperium accepit ( Anais, 1,1,1).

  • 11

    Estas palavras de TCITO traduzem uma nova frmula poltica

    que mais no do que a sntese de contedos e forma de modelos de

    governao anteriores.

    A expresso sub imperium accepit, em razo do conjunto de

    poderes que integra o conceito imperium21, consubstancia uma

    recuperao do modelo de magistratura suprema singular, unipessoal

    (o rex latino ou o monarchos grego); contudo, tal recuperao

    formalmente metamorfoseada por via da consciente rejeio da

    designao rex em favor de outra designao, cujo significado est

    vinculado ao princpio da colegialidade (princeps Senatus) 22.

    Em suma, pode dizer-se que sob a inovadora frmula augustana

    de principado, reaparece a monarquia, porque Roma, no seu incio,

    teve reis.

    Vrbem Romam a principio reges habuere.23

    E boa memria deixaram os primeiros reis de Roma, latino-

    sabinos, cabendo destacar o que lhe deu o corpo e o que lhe deu a

    alma, essa tica formatao da romanitas assente em ancestrais regras

    comportamentais (mos maiorum), entre as quais a iustitia, a fides e a

    clementia como uirtutes24 fundamentais da poltica romana.

    A memria do fundador do organizado espao de vida colectiva

    dos Romanos levaria Octaviano a ponderar tomar-lhe o nome em sede

    21

    Imperium o mais alto poder executivo, civil e militar. 22

    O Princeps senatus era o lder do Senado romano, o primeiro entre pares, um poltico respeitado pelos

    seus pares, escolhido pelos censores de entre os senadores patrcios com estatuto consular, ou seja, ex-

    cnsules; cargo sem natureza vitalcia, atribudo por 5 anos, passveis de renovao. Depois da queda da

    Repblica Romana, o princeps senatus ou princeps passou a ser um cargo exclusivo do imperador. 23

    No incio, a cidade de Roma teve reis ( TCITO, Anais, 1,1,1). 24

    Segundo LUCLIO (sc. II a.C.), uirtus saber o que para o homem recto, o que til, honesto, o

    que bom, como o que mau, o que intil, feio, desonesto, in ROMANA.Antologia da cultura latina,

    Maria Helena da Rocha PEREIRA, p. 17.

  • 12

    de uma hesitao onomstica, que por si mesma reveladora do eixo

    urbanstico em que assentaria o projecto poltico do primeiro Princeps.

    Mas reservado ficou pela Fortuna pela sorte, sorte feita deusa

    que carrega na cabea esculpido tema da muralha o nome de Rmulo

    para o ltimo imperador do Ocidente25, porque Octaviano escolheu o

    nome alternativo, tambm vinculado ao acto fundacional.

    Um augusto augrio orientou a fundao de Roma e assim o

    confirmam os versos de NIO: Septingenti sunt paulo plus aut minus

    anni / Augusto augurio postquam inclita condita Roma est 26.

    A cronologia da fundao de Roma enquadra-se no dinmico

    movimento de criao de cidades, verificado no Ocidente, a partir do

    sculo IX a.C., onde brilha, no Norte de frica, a fundao fencia de

    Cartago, em 814 a.C., ou as sucessivas fundaes gregas, como a da

    ilha de schia, entrada do golfo de Npoles, em 770 a.C., ou a

    fundao de Cumas, por volta de 750 a.C., ambas promovidas pelos

    gregos da ilha de Eubeia.

    Cumas ficaria famosa no s por ser a primeira colnia grega em

    itlica terra firme, mas tambm porque no enorme flanco da rocha

    eubica existe um antro com cem largos acessos, cem portas, tantas

    quantas as vozes que da surgem, respostas da Sibila 27.

    Entre outros, tambm o povo etrusco acorreria a ouvir as

    respostas da Sibila, implantado que estava em regio da Itlia Central

    (actual Toscana), onde criou as cidades que serviriam de modelo urbe

    dos Romanos.

    25

    O ltimo Imperador Romano do Ocidente foi Romulus Augustulus, um jovem nascido em Ravena; este,

    sucessor do imperador Jlio Nepote, foi forado a abdicar em 476 a.C., aps um ano de governao, por

    imposio de Odoacro, chefe dos hrulos. Coroando-se rei de Itlia, Odoacro tomou a iniciativa de se

    submeter autoridade de Constantinopla, autoridade de Zeno, imperador romano do Oriente. 26

    QUINTVS ENNIVS (239-169 a.C.), Anais,18,409. 27

    VIRGLIO, Eneida, 6, 41,43.

  • 13

    A fundao de cidades tinha em vista, muitas vezes, colmatar

    problemas de sobrepopulao, como se extrai claramente de uma

    tradio de inspirao grega, a tradio sabina do Ver Sacrum: as

    crianas nascidas na Primavera (uer) seguinte a um ano de fome ou de

    epidemia ficavam obrigadas, na sua maioridade, a partir para fundar

    uma colnia .28

    Sem problemas de sobrepopulao e com vontade de fundar uma

    cidade, Rmulo procurou o conselho dos deuses recorrendo ao

    caracterstico rito fundacional, o auguraculum.

    O augusto augrio foi o prodigioso nmero de doze abutres,

    auspiciosa resposta dos deuses augural consulta de Rmulo sobre a

    oportunidade, a bondade da edificao de uma cidade no monte

    Palatino; para trs ficou, com seis abutres, o projecto fundacional de

    Remo no monte Aventino...

    Rmulo delineou o territrio de Roma com uma charrua, lavrando

    um sulco onde iria implantar um muro que distinguiria o espao de

    vida, espao sagrado (fanum) espao de vida da comunidade (romana),

    o espao onde se podia consultar os deuses sobre qualquer questo,

    dvida, conselho do outro espao, no sagrado (profanum), o post-

    murum, o pomoerium.

    Diz Justino MACIEL: quando no mundo indo-europeu se define o

    pomoerium ou espao sagrado dos povoados, tal acarreta a ideia de que

    h um fora e um dentro, com espaos organizados e funcionais de um

    lado e de outro lado.29

    28

    Conta ESTRABO que os Sabinos, aps ganharem a guerra contra os Umbros cumpriram o voto para

    tanto feito: imolaram animais e ofereceram produtos agrcolas (tal como os Gregos costumavam fazer em

    semelhantes circunstncias, explica o gegrafo). Contudo, o ano seguinte foi um ano de fome, por isso

    foram aconselhados a consagrar divindade, tambm, as crianas recm-nascidas. Assim, todas as

    crianas que nasceram naquela Primavera foram dedicadas a Marte e quando cresceram foram enviadas

    para longe, para, em conjunto, fundar uma colnia; um touro serviu-lhes de guia e quando arranjaram

    lugar para se estabelecer imolaram o touro a Marte.(Geografia, 5, 4,12). 29

    Em Imagens de Arquitecturas: Quadrata, Lacus e Laculi nos santurios rupestres do perodo romano

    em Portugal, p.25.

  • 14

    essa distino entre o espao sagrado dos povoados e o que lhe

    exterior que materializada pelo muro, pela muralha que, feita limite

    sagrado, carreia em si mesma um valor religioso que no colide com

    inerente valor honorfico (estatuto de cidade) nem colide com o expresso

    valor defensivo, majorado pelas suas torres e pela proteco das

    divindades que encimavam as suas portas...

    A dimenso do sagrado que preside fundao da Vrbs e que

    percorre a lenda da sua fundao (como de qualquer cidade antiga)

    igualmente sugerida (na fixao da inviolabilidade do mural limite

    sagrado) no lendrio motivo que vinculou Rmulo, directa ou

    indirectamente30, provocada morte do irmo.

    Conta LVIO que Remo, num gesto de burla e desafio saltou o

    sulco, o imaginrio muro e Rmulo matou-o dizendo: Morra de igual

    modo todo aquele que franqueie as minhas muralhas (sic deinde,

    quicumque alius transiliet moenia mea interfectum)31.

    Sobre o nome da nova cidade, LVIO afirma, com razo ou sem

    ela32, que Roma tomou o nome do seu fundador (condita urbs conditoris

    nomine appellata 33) . No sendo lquido que o nome da cidade provenha

    do nome do fundador, certo que, para o povoamento da nova cidade,

    Rmulo criou um refgio, um asylum34, onde escravos ou homens

    livres, todos os que estimulam o amor pela mudana se foram refugiar;

    30

    Segundo FLORO, Remo foi morto e admite-se que tenha sido por ordem do irmo e acrescenta com

    segurana, pelo menos ele foi a primeira vitima que consagrou com o seu sangue as muralhas da nova

    cidade (prima certe uictima fuit munitionemque urbis nouae sanguine suo consecrauit), in Epitome, 1,1. 31

    LVIO, Ab urbe..., 1,7,2. 32

    Sobre a origem do nome de Roma, Mireille CBEILLAC-GERVASONI observa: Varron, I.I.V 33,

    voulait faire, tort, de Romulus le fondateur ponyme de Rome. L tymologie du nom est trs complexe,

    on pense qu il s agit d une trs ancienne origine italique qui pourrait driver de ruma, la mamelle,

    dsignation image de la colline ou de Rumon, premier nom du Tibre, em Histoire romaine, de Jean-

    Pierre MARTIN, Alain CHAUVOT e Mireille CBEILLAC-GERVASONI, 2001, p.10.

    Para Gza ALFOLDY o nome de Roma provem de ruma, uma linhagem etrusca. V. A historia social de

    Roma, p.19. 33

    Ab urbe..., 1,7,3. 34

    Na Antiguidade, o mbito do exerccio do direito de asilo circunscrevia-se aos lugares sagrados e,

    segundo ESTRABO, o direito de asilo permaneceu intacto tal como era antigamente mas observa que

    os limites geogrficos da sua aplicao tiveram vrias ampliaes: Alexandre estendeu-os a um raio

    equivalente a um estdio, Mitrdates aumentou-os um pouco mais, estendendo-os at ao local ao

    alcance de uma flecha lanada de um dos 4 ngulos do terrao superior de um templo e, Antnio

    duplicou-os de modo a compreender um bairro; contudo, reconhecendo os inconvenientes duma medida

    que sujeitava a cidade a toda a espcie de malfeitores, Csar Augusto revogou-a.(Geografia, 14,1,23).

  • 15

    LVIO, historiador de cronologia e ideologia augustanas, remata a sua

    afirmao com ironia: Este foi o primeiro suporte da nossa grandeza

    nascente 35.

    De facto, a boa hospitalidade que ser tanta vez expressa em

    simblica linguagem, tesseladamente vertida nos pavimentos romanos

    foi o primeiro suporte da grandeza de Roma pela vertente moral (fides)

    que lhe est subjacente: ela estabilizaria relaes sociais como a do

    patronus-cliens ou motivaria a adeso de vrios povos ao projecto

    imperial contido no programa poltico augustano (pax romana).

    Contudo, a hospitaleira perspectiva no anula o facto de Roma ter

    sido fundada pela violncia e pelas armas como se extrai do retrato de

    Rmulo feito, no sculo V d.C., pelo historiador ORSIO: E assim,

    depois de ter morto primeiramente o av Numiter e, mais tarde, o seu

    irmo Remo, Rmulo apoderou-se do poder e estabeleceu Roma.

    Consagrou o poder com o sangue do av, as muralhas com o sangue do

    irmo, o templo com o sangue do sogro. Reuniu um bando de

    criminosos com a promessa de impunidade36.

    Vrbe condita, caberia a Numa Pomplio dar-lhe a alma: pautado

    pela justia e pela piedade, governou Roma de modo a que a violncia e

    as armas que presidiram sua fundao fossem substitudas pela

    justia, pela lei e pela integridade dos costumes. 37

    Tambm FLORO faz meno piedade de Numa afirmando que

    criou os pontfices, os ugures, os Slios e os outros sacerdcios.38

    35

    Ab urbe.., 1,8,5. 36

    Itaque Romulus, interfecto primum auo Numitore dehinc Remo fratre, arripuit imperium Vrbemque

    constituit; regnum aui, muros fratris, templum soceri sanguini dedicauit; sceleratorum manum promissa

    inpunitate collegit, in Orosio, Histria Apologtica, trad. de Paulo FARMHOUSE ALBERTO e Rodrigo

    FURTADO, Lisboa, 2000, pp.56-57. 37

    LVIO, Ab urbe...,1,18,19:qui regno ita potitus urbem nouam, conditam ui et armis, iure eam

    legibusque ac moribus de integro parat. 38

    ille pontifices, augures, Salios ceteraque sacerdotia creauit, FLORO, Epitome, 1, 2.

  • 16

    Numa ergueu um templo ao romano deus Ianus, o deus que tinha

    duas faces para ver, em simultneo, o passado e o futuro, o deus

    protector de todas as portas, reais ou imaginrias, deus das partidas e

    dos regressos, deus dos comeos; nesse templo, Numa colocou uma

    esttua de Jano como deus da idade, deus do tempo, figurado que foi a

    praticar a indigitatio, a indicar com os dedos (em convencionadas

    posies) o nmero de dias do ano (365). 39

    As portas do templo de Jano40 assinalavam a paz e a guerra

    (indicem pacis bellique)41: em tempo de guerra, mantinham-se abertas

    como sinal de chamada dos cidados s armas e fechavam-se para

    anunciar que a paz reinava entre todos os povos circundantes .42

    Numa no esqueceu o deus bifronte quando reformulou o

    calendrio segundo o curso da Lua, dando o nome divino a um dos doze

    meses (Janeiro) como tambm no esqueceu a fixao no calendrio dos

    dias fastos e nefastos.43

    Muitos mais deveriam ter sido os dias nefastos dias em que se

    suspendia a actividade poltica porque, depois do reinado de Numa, o

    templo de Ianus foi fechado duas vezes; segundo LVIO, a primeira

    ocorreu aps a 2 Guerra Pnica e a segunda, aps a batalha de

    Actium, quando Augusto estabeleceu a paz na terra e no mar 44.

    39

    Assim diz PLNIO :Ianus geminus a Numa rege dicatus, ... digitis ita figuratis, ut CCCLXV dierum

    nota (aut per significationem anni temporis) et aeui esse deum indicent , in NH, 34,16,33. 40

    Entre as vrias hipteses da origem etimolgica do termo Ianus h a que a vincula ao termo latino

    ianua, i., porta; da a chave apresentar-se como um dos atributos de Jano. 41

    LVIO, Ab urbe..., 1,19,2. 42

    Apertus ut in armis esse ciuitatem, clausus pacatos circa omnes populos significaret (Ab urbe.., 1,

    19,2). 43

    Idem nefastos dies fastosque fecit, quia aliquando nihil cum populo agi utile futuram erat (Ab urbe...,

    1, 19,7).

    Segundo GRIMAL,Fastos, na origem, eram os dias do calendrio religioso, estabelecido pelos

    Pontfices, em que o pretor podia desempenhar funes judiciais. Inicialmente, mantida secreta pelos

    patrcios, a lista destes dias foi publicada em 304. Este termo designa ainda as listas oficiais respeitantes

    aos actos pblicos de actividades romanas (Estado, municpios, colgios) e conservados por inscries

    (fastos triunfais, consulares, etc. ), in A Civilizao Romana, p.299. 44

    post bellum Actiacum ab imperatore Caesare Augusto pace terra marique parta (Ab urbe..., 1,19,3).

  • 17

    Mas boa memria de Numa Pomplio e dos outros reis latino-

    sabinos, sobreps-se outra, bem contrria e dirigida aos reis seguintes,

    aos que vieram com a dominao etrusca.45

    O mbito temporal da regncia etrusca, em Roma, integra-se no

    perodo de florescimento da civilizao daquele povo do mar, entre finais

    do sculo VIII e o sculo VI a.C., perodo antecedido de uma fase que

    abarcou a reformulao, a renovao do contexto vilanoviano em que

    estava implantada (sculos IX e VIII a.C.).

    No mundo romano, vincada marca deixaram os Etruscos por uma

    caracterstica bem especial, assinalada por LVIO nestes termos:

    preocupavam-se mais que todos os outros povos com a observao dos

    ritos religiosos46.

    Da profunda preocupao na observncia dos ritos cultuais

    resultou o acentuado gosto de formulrios. Este gosto seria transmitido

    aos Romanos que o plasmariam, por exemplo, no mosaico: no

    padronizado e linear esquema compositivo da representao do tema da

    muralha .

    O respeito etrusco pelos ritos religiosos assumia uma dimenso

    de receio, vertida na mxima amplitude das prticas supersticiosas.

    Sendo certo que a superstio percorre a Antiguidade como percorre

    todos os perodos histricos da vida humana, enquanto espontnea

    expresso da conscincia da finitude certo tambm que, no contexto

    etrusco, ela traduz uma mundiviso acentuadamente fatalista.

    Tal mundiviso manifestava-se no facto de recorrerem, como eixo

    condutor do comportamento humano, a prticas de interpretao de

    fenmenos naturais; encarados como um prodigium, um ostentum, um

    45

    Sobre a cronologia do incio da dominao etrusca ver M.CBEILLAC-GERVASONI (2001), p.27. 46

    Ab urbe condita, 5, 1,6.

  • 18

    miraculum, um portentum, neles viam o sinal de uma conduta a seguir,

    de um facto extraordinrio ou a predico do futuro.

    A esta preocupao de antecipar o futuro respondia o panteo

    etrusco com Culsans47, o deus que tinha duas faces para ver o futuro e

    o passado, o deus das portas e das passagens, o deus que teve

    homlogo no mundo romano: Ianus.

    A vontade de ver o futuro ter motivado a compilao das

    profecias sibilinas promovida pelo rei Tarqunio Prisco; e motivou as

    actividades do etrusco Vulcacius que previu o fim dos Etruscos aps o

    decurso de dez sculos48. De facto, nos finais do sculo I a.C., o

    desastre de Perugia, em 40 a.C., consolidou a dissoluo dos Etruscos

    no mundo romano.

    Por sua vez, a vontade de olhar o passado vincou-se no

    tratamento que o mundo etrusco deu aos seus mortos, tratamento no

    determinado por feitos especiais ou hericos mas sim, por laos de

    afecto, vertidos em retratos funerrios que cobriam, por exemplo, os

    sarcfagos em klin .

    47

    Observa Daniele F.MARAS: Come il latino Ianus, anche l omologo dio etrusco Culsans ha due facce,

    ma dimostra una natura ctonia e funeraria pi spiccata e si pone all interno di una serie di divinit che

    gli Etruschi immaginavano poste a tutela di porte reali e immagineri, I due volti di Culsans in

    Archeo.Attualit del passato, n 292, Giugno 2009, Milano, pp.64 -71. 48

    Esses sculos no eram como ns hoje os conhecemos, cada qual com a durao de cem anos, mas

    saecula, eras que chegavam ao fim aps a morte do mais velho membro sobrevivente de uma gerao.

    Cada ano que morria era assinalado com um prego espetado no muro da parede do templo Volsinii; cada

    gerao que passava tinha como epitfio um cu carregado de troves, lido por adivinhadores etruscos,

    mestres em entranhas e relmpagos. A sibila Begia, que havia revelado a arte da interpretao e da

    invocao dos relmpagos, tinha estabelecido regras para a marcao de fronteiras s quais os Etruscos

    atribuiam grande significado. Como as suas fronteiras territoriais na Itlia setentrional foram atravessadas

    pelos Romanos durante os sculos V e IV a.C., parece que os Etruscos tero comeado uma contagem

    decrescente at ltima das suas fronteiras temporais....Os que esculpiram sarcfagos e cmaras

    funerrias de uma calma reflectiva, mesmo alegre, pintavam agora nos seus tmulos demnios e deidades

    do submundo com rostos violentos, ameaadores. (...) mas j em 44 a.C., impressionado por um

    flamejante cometa (Halley), o adivinhador Vulccio anunciou em Roma o fim de um nono, penltimo

    saeculum. Previu um dcimo e derradeiro saeculum a que nenhum etrusco escaparia, excepto os prprios

    adivinhadores, que sobreviveram o suficiente sua civilizao extinta, para invocar os relmpagos sobre

    os Visigodos sculos depois, durante a queda de Roma, em Os Finais de Sculo Lenda. Mito. Histria

    de 990 ao ano 2000, de Hillel SCHWARTZ, pp.35-36.

  • 19

    O culto dos antepassados que motivou o gosto etrusco pela

    retratstica e contagiou o gosto romano pelo retrato determinou o

    florescimento da pintura funerria, da projeco plstica da crena na

    vida para alm da morte.

    Para o mundo funerrio, a decorao pictrica foi buscar os

    temas ao mundo grego como a foi buscar o estilo estrutural para

    reproduzir imagens da arquitectura, v.g., a falsa porta, smbolo de

    passagem; na figurao, recorreu s tcnicas linear e da oposio de

    cores para manifestar a predileco pelo tratamento plano,

    bidimensional e transmiti-la ao mundo romano que a verteu no

    musivrio tratamento plano do tema da muralha.

    Eram as marcas, era a expresso artstica de um povo (cujas

    origens so uexatae quaestiones: itlicas? orientais?) que se transmitia

    aos Romanos do mesmo modo como lhes transmitiu as elevadas

    capacidades tcnicas. Capacidades manifestas, por exemplo, na

    excelncia da tcnica de granulao da requintada arte da ourivesaria

    etrusca ou na clebre tcnica de fabricao de cermica negra, dita

    bucchero; esta e outras de produo ou inspirao grega, moldavam os

    recipientes para exportao do trigo, azeite, vinho ou sal.

    A qualidade dos produtos de apurada tcnica agrcola foi

    memorizada na lenda que atribui a invaso cltica das terras etruscas

    ao gosto dos Galos pelo doce sabor dos frutos de Itlia e sobretudo do

    seu vinho, prazer que lhes era ainda desconhecido49.

    49

    LVIO, Ab urbe...,5, 33,2: Este povo, diz a tradio, seduzido pelo doce sabor dos frutos (de Itlia) e

    sobretudo do vinho, um prazer novo, transps os Alpes e apoderou-se das terras antes cultivadas pelos

    Etruscos (Eam gentem traditur fama dulcedine frugum maximeque uini noua tum uoluptate captam

    Alpes transisse agrosque ab Etruscis ante cultos possedisse).

  • 20

    Tambm a aptido para as tcnicas militares foi transmitida aos

    Romanos que dela fariam empenhado uso blico; e dariam melhor e

    mais belo uso s tcnicas construtivas, ao arco e abbada que os

    Etruscos foram buscar ao Oriente para dar a espaciosidade

    naturalmente vedada ao sistema construtivo arquitravado grego.

    Na edilcia, os reis etruscos deixaram notvel obra pblica em

    Roma, como a drenagem do Forum promovida por Tarqunio-o-Antigo,

    ou a grande muralha que Seruius Tullius construiu no contorno do

    pomoerium, ou a cloaca mxima feita por Tarqunio-o-Soberbo para unir

    todos os canais de esgotos. 50

    E com a edilcia honraram os seus deuses, como fez esse rei que

    governou com tanta habilidade um reino adquirido pela manha, que

    parecia t-lo obtido legitimamente51. De facto, Seruius Tullius dedicou

    um templo deusa romana Fortuna, deusa esta que semelhana da

    homloga grega Tyche filha do Oceano e de Ttis na teogonia

    hesiodaca apresenta como atributo uma coroa mural.

    O rei Tarqunio-o-Soberbo dedicou um templo a Jpiter onde

    guardou os Libri Sibyllini, compilao dos orculos que a Sibila de

    Cumas anotou em folhas de palma; esta planta era tida em to grande

    apreo pelos povos da Antiguidade que das suas folhas fizeram motivos

    artsticos como os que ocupam os cantos das bordaduras de mosaicos

    helensticos preenchidas com o tema da muralha.

    50

    Diz Mireille CEBEILLAC-GERVASONI : Le mur dit de Seruius en gros blocs de tuf de la carrire de Grotta Oscura est dat du IVe s. Le mur de Seruius tait un haut mur de terre (agger) bord dun

    foss, des morceaux de muraille en grosses dalles() Tarquin l Ancien commena faire asscher le

    Frum avec l installation d un rseau de petits gouts, ce qui permit une meilleure communication entre

    les diffrentes collines. La cloaca maxima de Tarquin le Superbe, en rseau souterrain, unifia tous les

    gouts, bneficiant, selon Tite-Live, de la matrise des techniques hydrauliques apportes par les

    ingnieurs trusques , op.cit, pp.21-22. 51

    Esta afirmao regnum dolo partum sic egit industriae, ut iure adeptus uideretur parte de um facto

    narrado pelo autor. Conta FLORO que Seruius Tullius, filho de uma escrava, foi educado por Tanaquil,

    mulher de Tarqunio; um dia, ela viu uma chama volta da cabea de Seruius e entendeu-a como um

    pressgio de um futuro ilustre (et clarum fore uisa circa caput flamma promiserat), Epitoma Flori, 1,1,6.

  • 21

    Assim, no templo de Jpiter, guardada ficou pelo ltimo

    Tarqunio a sibilina compilao feita pelo primeiro Tarqunio, o rei que

    aliava o gnio grego ao itlico talento(graecum ingenium Italicis artibus

    miscuisset)52...

    Mais tarde, nas escavaes das fundaes desse templo, os

    Romanos encontrariam uma cabea humana que encarariam como um

    prodgio anunciador do futuro de Roma:imperii sedem caputque

    terrarum53.

    memria da notvel regncia etrusca, a promissiva sede de um

    imprio e cabea do universo sobreps a memria da governao do rei

    cujos costumes lhe dariam o cognome de Soberbo54. Aqui radica a

    resistncia romana no s aos reis etruscos e ao regime monrquico

    mas tambm prpria designao rex.

    Bem mais tarde, por tal designao morreria Jlio Csar;

    contudo, e pouco depois, Augusto, metamorfoseando tal designao,

    seria a cabea e Roma a sede de um Imprio.

    Em 509 a.C., o soberbo rex foi simplesmente expulso. Sob o

    pretexto da violao de Lucrcia pelo filho de Tarqunio-o-Soberbo, o

    patrcio Lucius Iunus Brutus lidera a conjura que depe o rgio

    governante: afasta a dominao etrusca e instaura o regime que

    libertatem et consulatum instituit 55.

    Deste modo, um Bruto instaura um regime que, em finais do

    sculo I a.C., ser ferido de morte por outro Bruto...

    52

    Graecum ingenium Italicis artibus miscuisset a bela expresso de FLORO para caracterizar o

    primeiro rei etrusco, Lucius Tarquinius Priscus, Tarqunio-o-Velho, oriundo de Corinto e que governou

    Roma entre 616-579 a.C., in Epitoma Flori, 1,1,5.

    53 nec dubitauere cuncti monstrum pulcherrimum imperii sedem caputque terrarum promittere, in

    Epitoma Flori, 1,1,6 .

    54 cui cognomen Superbo ex moribus datum, ibidem. 55

    TCITO, Anais, 1,1,1.

  • 22

    Para o mundo etrusco o incio do desvanecente percurso

    previsto por Vulccio; para a talassocracia etrusca o ponto de viragem

    da roda da Fortuna ocorre sobre guas, guas de Cumas, no ano 474

    a.C, em vitorioso combate dos Siracusanos.

    Para Roma, a nova ordem poltica o limiar do prodigioso ou

    prometido percurso que a transformar em caput imperii .

    Tal ordem a resposta nsia de liberdade que percorria o

    mundo antigo, mormente o universo das cidades-Estado, na transio

    do sculo VI a.c. para o sculo V: um tempo de profundas mudanas

    sociais motivadas por razes, entre as quais, o aparecimento da moeda

    tem papel relevante.

  • 23

    2. A divergncia nos focos de viso: politai ou res publica

    uirtus in usu sui tota posita est;

    usus autem eius est maximus ciuitatis gubernatio

    (Ccero, De Respublica, 1,2)

    Os finais do sculo VI, princpios do sculo V a.C. apresentam-se

    como tempos de mudanas econmicas e sociais que levam busca do

    melhor ou adequado sistema poltico, da politeia.

    Este o termo usado por ARISTTELES para abarcar o conceito

    de constituio, entendendo-o como o normativo da organizao das

    magistraturas, repartio dos poderes, atribuio da soberania, i., a

    determinao do fim especial de cada associao poltica.56

    Tal busca incide no universo das cidades-Estado, nomeadamente

    as do universo mediterrnico, destacadamente no mundo romano e no

    mundo grego.

    A procura do sistema poltico adequado realidade de cada

    contexto encarada como a busca da liberdade, a libertao das derivas

    de regimes polticos, como a desptica governao de Tarqunio-o-

    Soberbo em Roma ou a governao tirnica de Pisstrato em uma

    cidade-Estado grega, Atenas.

    56

    Poltica, 4,1,5. Em ARISTTELES, o termo politeia apresenta vrias gradaes semnticas, todas

    subsumveis em um mesmo conceito: sistema poltico.

  • 24

    Roma encontra a liberdade na instituio do Consulado

    (libertatem et consulatum instituit), magistratura suprema em sistema

    poltico a que d o nome de Respublica57; por sua vez e em tempo

    prximo, em 510 a.C., Atenas encontra a liberdade na rejeio do desvio

    (Tirania) do modelo de governao de uma magistratura suprema

    (monarchos) para adoptar o sistema poltico a que ARISTTELES d o

    nome de politeia.58

    Da soluo romana (respublica) destaca-se o nuclear vector, a

    atribuio dos poderes governativos (imperium) a dois magistrados

    (cnsules), por prazo limitado (um ano).

    Nesta delimitao temporal do exerccio da autoridade consular e

    na imposio da regra da alternncia dos seus titulares assentava a

    noo de liberdade: os poderes governativos no eram diminudos

    (omnia iura, omnia insignia primi consules tenere) mas era acautelada a

    viso do terror em duplicado caso os dois magistrados tivessem, em

    simultneo, poderes governativos (id modo cautum est, ne, si ambos

    fasces haberent, duplicatus terror uideretur)...59

    57

    A expresso res publica pode significar negcios que respeitam ao Estado ou o prprio Estado ou a

    constituio do Estado. 58

    Poltica,4,2:1. No nosso primeiro estudo sobre as constituies, reconhecemos trs espcies de

    constituies puras: a realeza, a aristocracia, a politeia; e trs outras espcies, desvios das primeiras: a

    tirania para a realeza, a oligarquia para a aristocracia, a democracia para a politeia. 2. (...) Enfim a

    democracia o mais suportvel dos maus governos. 3. Um escritor, antes de ns, tratou do mesmo

    assunto; mas o seu ponto de vista era diferente do nosso: admitindo que todos estes governos eram

    regulares e que assim a oligarquia podia ser to boa como os outros, ele declarou que a democracia o

    menos bom dos bons governos e o melhor dos maus. 4. Ns, ao contrrio, declaramos radicalmente maus

    estes trs tipos de governos; e livramo-nos de dizer que tal oligarquia melhor que a outra; dizemos

    somente que ela menos m.

    Afirma Paul DEMON que Constata-se que a democracia aqui uma forma de regime desviado, onde o

    povo governa no seu prprio interesse, por meio de decretos que ele toma em toda ocasio, um anulando

    outro, sem leis estveis visando o interesse comum do Estado. (La querelle du meilleur rgime, in Hors-

    srie Nouvel Observateur, 69, juillet-aot 2008, Paris, pp.52-55). 59

    Tito LIVIO: Libertatis autem originem inde magis, quia annum imperium consulare factum est, quam

    quod deminutum quicquam sit ex regia potestate, numeres. Omnia iura, omnia insignia primi consules

    tenuere; id modo cautum est, ne, si ambos fasces haberent, duplicatus terror uideretur (Ab urbe ...,

    2,1,7,8).

  • 25

    Da soluo poltica ateniense (politeia) destaca-se o vector nuclear

    ou princpio da igualdade, resumidamente definvel nos quatro iotas:

    isogonia (todos nascem iguais), isopoliteia (todos so iguais dentro da

    cidade), isonomia (todos so iguais perante a lei) e isigoria (igualdade de

    expresso); visando cidados livres, excludos estavam de tanta

    igualdade as mulheres, crianas e estrangeiros.

    A substancial divergncia entre as duas solues polticas assenta

    nas contrastantes mundivises, reflectidas nas denominaes que

    encorporam diferenciados pontos de mira, contrastantes focos de viso:

    a res publica (coisa pblica) e os politai (cidados).

    No que respeita soluo tica importa realar que as

    aristotlicas gradaes semnticas do termo politeia (lato sensu como

    constituio e stricto sensu como especfico sistema poltico) apontam

    todas para o cidado (polites) como o foco do pensamento poltico do

    mundo grego, ideia visvel, por exemplo, em PLATO que, sua obra

    conhecida por Repblica deu o ttulo de Politeia.

    A amplitude da significao do termo politeia dada por

    ARISTTELES quando refere trs tipos de constituies puras

    () que identifica por realeza (), aristocracia

    () e politeia (); ou quando aponta as derivas

    daquelas constituies, mencionando a tirania como desvio da realeza

    ( ), a oligarquia da aristocracia (

    ) e a democracia como desvio da politeia (

    ). (Poltica,4, 2,1).

    A soluo poltica ateniense, consolidada por Clstenes com a

    expulso dos Tiranos, plasma na prpria denominao, uma viso

    circunscrita ao universo da polis, dos politai.

  • 26

    Inserido no contexto da cidade (polis), cuja organizao poltica

    est definida numa constituio (politeia), o ser humano um animal

    gregrio, um animal poltico (zoon politikon), porque est obrigado a ter

    uma participao cvica, i., a exercer a cidadania (politeia) 60.

    De entre os vrios tipos de politeuma (constituies) que

    percorrem o mundo grego (v.g., a realeza em Esparta), Atenas adopta a

    que se denomina politeia, sistema poltico baseado na igualdade de

    todos os cidados e na participao directa com subsidirio recurso

    ao instituto da representao nas decises respeitantes vida

    poltica, vida em comunidade.

    Sobre a soluo romana, releva-se aqui o entendimento expresso,

    bem mais tarde, j nos finais da Respublica, por CCERO: na

    monarquia todos os restantes cidados esto margem da

    participao jurdica e deliberativa; sob o domnio da aristocracia, a

    multido escassamente tem acesso liberdade, uma vez que est

    privada de todo o poder deliberativo; e, quando tudo governado pelo

    povo, ainda que justo e moderado, contudo a prpria equabilidade

    desigual, uma vez que no tem nenhuns graus para distinguir o

    mrito61.

    E mais diria: das trs espcies principais de constituio, de

    longe a melhor, em minha opinio, a monarquia, mas mesmo

    monarquia se sobrepe uma outra, que seja harmonizada e temperada

    com elementos das trs principais formas de governao. Pois o que me

    60

    Dire, comme le fait Aristote, que l homme est un zoon politikon, nest pas faire de l tre humain,

    comme on traduit d ordinaire, un animal politique, c est en faire un tre vivant l intrieur de la cit.

    Aristote ajoute du reste aussitt: Celui qui, par nature et non par hasard, est sans cit (apolis) est moins

    ou plus qu un homme (in Politique I, 1253 a 4). Mais il n y a pas que le barbare toucher l animal

    (ou excepcionnellement au dieu). C est la totalit du monde sociale qui pourrait tre integre un vaste

    tableau, conu la manire qui tait celle des Pythagoriciens, mais o, du ct droit, on ne trouverait

    que le Grec adulte, citoyen, n exerant aucun mtier vil , tandis que gauche on placerait le barbare,

    l enfant, la femme, l artisan, l esclave. In La Grce Ancienne, vol.3.Rites de passage et transgressions,

    de Jean-Pierre VERNANT et Pierre VIDAL-NAQUET, p.23. 61

    Da Repblica, traduo de Helena Rocha PEREIRA, in ROMANA.Antologia da cultura latina, p.34.

  • 27

    agrada que haja na coisa pblica algo de superior e de rgio, que haja

    algo de atribudo e submetido autoridade dos cidados de primeira

    qualidade, e que haja certos assuntos reservados ao juzo e vontade da

    multido. Esta constituio possui, em primeiro lugar, uma certa

    equabilidade.

    Remata-se a longa citao com o conclusivo entendimento do

    citado: pois as formas primitivas facilmente deslizam para defeitos

    opostos, de o rei se converter em tirano, os aristocratas (optimates) em

    faco, o povo em confusa turbamulta (...). Isto no sucede nesta

    constituio mista (permixta constitutio) da repblica.62

    Este o entendimento sobre ordem poltica instaurada, em Roma,

    no final do sculo VI a.C., entendimento vertido no sculo I a.C. por

    quem afirmou que a virtude est toda inteira nas obras e o maior

    emprego da virtude o governo dos Estados (uirtus in usu sui tota

    posita est; usus autem eius est maximus ciuitatis gubernatio).

    Deste confronto entre dois sistemas polticos emergem os focos

    contrastantes de duas vises a matria/coisa uersus o homem/esprito

    que vo moldar, dar substncia e dar contraste aos pertinentes

    percursos histricos e s respectivas produes artsticas.

    62

    Helena Rocha PEREIRA, in ROMANA.Antologia da cultura latina, pp. 35-36.

  • 28

    3. A mobilidade espiritual dos Gregos

    Graecia capta ferum uictorem cepit

    (Horcio, Epstolas, 2,156)

    O percurso histrico de Atenas prende-se com uma mundiviso

    circunscrita dimenso da polis63 como claramente se extrai da ratio da

    colonizao grega, caracterizada em modo bem preciso por PICARD:

    arrastava para longe dum pas, superpovoado, grupos numerosos de

    emigrantes que, instalando-se, sem tencionarem regressar, numa nova

    ptria, trabalhavam para recriar a imediatamente a feio antiga.64

    esta caracterstica de recriar a feio antiga em novo contexto

    de natureza autrcica que molda a viso do mundo como um conjunto

    de compartimentos, de organizados ncleos populacionais (poleis) e

    assim se plasma na musivria pavimental, no padronizado esquema

    compositivo feito de bandas decorativas que correm em torno de um

    painel central.

    63

    Polis era o modelo das antigas cidades gregas desde o perodo arcaico at ao helenstico e

    caracterizava-se por ser uma comunidade autnoma de cidados (politai ou astoi) eventualmente

    acompanhada de estrangeiros (xenoi ou metoikoi); na sua configurao espacial sobressaia a zona central

    pblica (agora) e a reserva da parte alta aos templos. 64

    A vida quotidiana em Cartago no tempo de Anbal Sculo III antes de Cristo, Gilbert e Colette

    CHARLES-PICARD, p.25.

  • 29

    Fig.1: O esquema compositivo grego em mosaico de seixos rolados (Corinto)

    Neste mosaico das Termas do Centauro em Corinto, de finais do

    sculo V a.C., o esquema compositivo desenvolve-se a partir de um

    painel central; este est ocupado por quadrantes de crculo em branco e

    negro e est moldurado por faixas circulares de tringulos, de

    meandros e de vagas.

    a mundiviso helnica que configura o privilegiado esquema

    compositivo, vertida que a essncia da helenidade (a feio antiga, a

    metropolis ou essncia, alma grega) na centralidade de um painel,

    enquanto a mutabilidade as circunstncias, o movimento sugerida

    nas bandas que correm em torno do centrado painel.

    Tal esquema apresenta-se como uma linguagem artstica comum,

    uma koine, que exprime a idiossincrasia dos Helenos; por isso, percorre

    no s o contexto ateniense mas todo o universo grego e, mais tarde,

    percorrer arte bizantina65.

    a expresso artstica de uma viso do mundo partilhada por

    todos os Helenos, porque no obstante a diversidade nos grupos

    tnicos ou na implantao geogrfica, determinante de diferenas como

    65

    V.Andr CHASTEL, LItalie et Byzance.

  • 30

    a j mencionada em matria de sistemas polticos 66 todos tinham o

    mesmo sangue (homaimon), os mesmos costumes (homoethes), a mesma

    lngua (homoglosson) e a mesma religio (homothrskon).67

    Na coerncia deste helnico contexto, Atenas, vinculada a uma

    viso do mundo no como um continuum, um imprio, faz tal como o

    seu mundo grego um percurso despojado de escopos materialmente

    expansionistas: segue a via da mobilidade espiritual.

    Assim, por volta de 500 a.C., quando um filsofo grego da escola

    jnica, Heraclito de feso (576-480 a.C.), defende que o movimento a

    essncia do ser, em resposta, a arte grega procura uma nova esttica

    dando incio a um movimentado percurso plstico, manifesto na

    estaturia e escultura68, artes derivadas da antiga arte de moldar em

    argila a que os Gregos davam o nome de plasticen (NH,34,35).69

    A rigidez da arte arcaica entra em tenso na busca do movimento

    que ir dar substncia plstica do Classicismo (clssico primitivo); em

    contraposto, o corpo humano anima-se e, por isso, perde o sorriso

    (estilo severo70); dominada a nova tectnica da figura em movimento, a

    plstica das arrojadas poses que expem as figuras a todos os ngulos

    de viso d o apogeu ao Classicismo.

    66

    Esparta acolheu o regime monrquico e Mgara, p.ex., rejeitou tal modelo. Conta PAUSNIAS que os

    Megarianos depois de terem matado o rei Hiperon, em razo da sua insolncia e cupidez, optaram por um

    regime de magistrados eleitos, para cada um governar sua vez; consultado o orculo de Delfos sobre os

    meios de fazer prosperar a sua cidade a resposta foi que os Megarianos seriam felizes na medida em

    que eles deliberassem com o maior nmero; pareceu-lhes que este orculo indicava os mortos, j que so

    em maior nmero que os vivos, e por isso, os Megarianos construiram o Senado no lugar onde estavam os

    tmulos dos heris... (Periegese, 1,43).

    Antes deste relato j PAUSNIAS tinha feito meno ingenuidade dos Megarianos (Perieg, 1,41). 67

    HERDOTO, 8,144,2. 68

    PLNIO afirma que a escultura to antiga quanto a pintura ou a estaturia: non omittendum hanc

    artem (marmoris sculpendum) tanto uetustiorem fuisse quam picturam aut statuariam, em NH, 36, 15.

    Sobre plastes e ratio plastica ver VITRVIO (1,1, 13) e notas de J. MACIEL, Vitrvio Tratado de

    Arquitectura, p.35. 69

    PLNIO atribui a inveno da tcnica de moldar em argila (plasticen) ao pintor de cermica sicinio,

    Butades de Corinto (NH,35,43); a soldagem com ferro atribuda a Glauchus de Chios, sc.VII a.C., por

    PAUSNIAS (Perieg.,10,16) ; este autor (Perieg.,8,14, 8) atribui as primeiras esttuas em bronze, de 508

    a.C.,a Rhoecus e Theodorus, dois escultores e arquitectos que construram o Heraion de Samos,

    relacionado com o labirinto de Lemnos (v. nota 247, p.161). 70

    A designao estilo severo est conceptualmente ligada escultura grega e cobre, grosso modo, os

    primeiros 50 anos do perodo clssico.

  • 31

    Os temas artsticos do perodo arcaico (700-500 a.C.), todos

    relacionados com a imortalidade, transitam para o perodo clssico71,

    onde se sujeitam a novo tratamento estilstico.

    Uma nova esttica molda as imagens dos deuses imortais

    (simulacra deorum) ou as imagens dos heris, i., dos que adquiriram a

    imortalidade por terem sido gerados em misto conbio, divino e terreno;

    e molda tambm, as imagens dos homens que mereceram a

    perpetuidade por alguma causa ilustre (illustri causa perpetuitatem

    merentium)72.

    Entre as causas ilustres, todas de carcter religioso, PLNIO

    destaca, como a primeira, a vitria nos jogos sagrados. Tal vitria,

    sendo triplicada, conferia o excepcional direito representao dos

    traos individuais do autor da proeza (effigies hominum), representao

    essa que, pela expressa semelhana se enquadrava no gnero das

    imagens chamadas icnicas (iconicas uocant), ou seja, no gnero do

    retrato.

    Tal era o modo de garantir a imortalidade dos retratados,

    memorizando-se a sua individualidade e memorizando os seus feitos em

    inscries no pedestal das suas esttuas e no apenas nos seus

    tmulos73.

    Esta reserva do retrato excepcionalidade da conduta humana

    vai diluir-se, subtil e paulatinamente, ao longo do perodo clssico, na

    esteira de um percurso esttico que na coerncia do pensamento

    71 No perodo clssico, as figuras passam a descrever o movimento, distanciando-se, por isso, da mera insinuao do movimento, contida na rgida estabilidade, monumentalidade, que caracterizou o estilo

    arcaico (700-500 a.C.), estilo que sucedera ao perodo da organizao geomtrica da figurao, o

    denominado estilo geomtrico (1000-700 a.C.).

    Segundo K.SCHEFOLD, a primeira fase do classicismo,clssico primitivo(500-450), caracteriza-se pela

    tenso entre imobilidade e movimento vertida em modelos arcaicos, e nela distingue a fase subarcaica

    (500-480) e o momento inovador do estilo severo (480-450), que introduz um novo sistema de formas de

    amplas superfies e eixos slidos a suportar a imagem. A segunda fase, apogeu do classicismo (450-425),

    caracteriza-se pelo equilibrio harmonioso das tenses; segue-se o estilo rico (425-380) que SCHEFOLD

    caracteriza pela ausncia daquele equilibrio e pelo privilgio da aparncia e no da essncia, o momento

    mais do que a regra. A ltima e quarta fase, a do classicismo tardio (380-325), vem compensar esse

    predomnio do temporal, integrando pela 1 vez o espao no esquema da composio, na medida em que

    se desenvolveu em redor da forma plstica. In Grcia Clssica, pp.15-16. 72

    PLNIO, NH, 34,9. 73

    Ibidem.

  • 32

    filosfico do sculo V a.C., do sofista entendimento do homem como

    medida de todas as coisas74 desce do mundo do Olimpo para o

    mundo do Homem.

    O Classicismo, ao demarcar-se do estilo arcaico pela introduo (e

    no mera insinuao) do sentido do movimento nas representaes

    artsticas, consubstancia um caminho na direco do pujante

    naturalismo do periodo helenstico, tempo em que o ideal dar lugar ao

    real, o genrico ao particular, a essncia da condio humana

    especificidade do indivduo.

    Trata-se de uma busca do Homem, do Homem na sua

    envolvncia, na Natureza, suficientemente atestada pelas artes

    derivadas do plasticen.

    todo um percurso esttico que, vislumbrado pelo arcaico

    escultor da escola argiva, Ageladas, e iniciado por Fdias, atinge o seu

    termo no ltimo tero do sculo IV a.C., ao tempo em que Lsipo

    plasma, com um novo cnone, a marca de um novo perodo artstico.

    No perodo Clssico, a rgida monumentalidade que caracterizou a

    tectnica arcaica substituda por novas e cannicas frmulas das

    propores da figura humana, orientadas para a sua humanizao,

    para o realismo da representao. Deste modo, abalado o idealismo

    que enformou o estilo arcaico e foi vertido na frontalidade de rgidos

    corpos, como os dos Kouroi e Korai de estereotipado sorriso, imagens

    de uma etapa humana (juventude) usadas como oferendas votivas ou

    marcos de sepulturas.

    A transio da esttica arcaica para a do Classicismo manifesta-

    se na brnzea esttua da deusa Atena, obra encomendada pelos colonos

    de Lemnos e executada por escultor da escola tica que teve o seu

    apogeu na 83 Olimpada e deixou a sua marca no programa

    construtivo iniciado por Pricles, nomeadamente, no Parteno.

    74

    Comentado por PLATO em Teeteto. Traduo de Adriana Manuela NOGUEIRA e Marcelo BOERI.

    Prefcio de Jos TRINDADE SANTOS, Lisboa: Servio de Educao e Bolsas, Fundao Calouste

    Gulbenkian, 2005, p. 205 [ 152 a].

  • 33

    Daquela esttua de Fdias (498-432 a.C.), a obra mais notvel do

    escultor no entender de PAUSNIAS75, merece relevo a articulao da

    tectnica arcaica com a plstica clssica. (ESTAMPA I)

    De uma estrutura potente, pesada, arcaica, a imagem da Atena

    Lmnia, solidamente assente nos ps separados, ergue-se por entre as

    rgidas pregas que distanciam o seu peplo dos lisos peplos arcaicos;

    assim anunciada, a nova esttica plasma-se no movimento da cabea

    que foge regra da frontalidade, e no movimento dos braos que

    rejeitam a inerte pendncia ao longo dos corpos arcaicos.

    Com a cabea de perfil, a deusa Atena a protectora dos

    Atenienses, porque para eles inventou a oliveira 76 dirige o olhar vago

    para o capacete que Fdias lhe colocou na mo direita para imprimir

    sentido de movimento figura; a este movimento descendente, Fdias

    contrape, bem harmoniosamente, o sentido do erguido brao esquerdo

    que se apoia na lana desta deusa que nasceu de capacete no devido

    lugar e armadamente equipada da cabea de Zeus.

    A mitolgica sugesto das magnficas dimenses divinas

    sugerida na obra do escultor e deu-lhe celebridade porque, segundo

    QUINTILIANO, adequou natureza divina a grandeza da sua obra

    (maiestas operis deum aequaeuit)77.

    Tal facto manifesto na esttua criselefantina de Zeus que Fdias

    fez para o templo de Elis: as dimenses colossais do deus sentado,

    levariam ESTRABO a comentar que se o deus se erguesse arrastaria a

    cobertura do templo com a cabea...78

    75

    Periegese, 1,28,2. 76

    Na disputa de Atena e Posdon pela proteco de Atenas: Segundo o mito, Posdon chegou primeiro e,

    tocando com o tridente no solo, fez brotar uma fonte de gua salgada na Acrpole. Depois veio Atena e

    rebentou uma oliveira. Este momento est representado no fronto ocidental do Prtenon, simbolizando o

    triunfo de Atena. Ccrops atribuiu a cidade deusa, em Herdoto. Histrias. Livro VIII, Jos RIBEIRO

    FERREIRA, Carmen LEAL SOARES, p. 66 e nota n. 110. V. PAUSNIAS, Perieg., 1,24. 77

    QUINTILIANO, 10, 9. 78

    Geografia, 7, 3,30.

  • 34

    Antes de se atentar nesta observao de ESTRABO, no

    despiciendo ter-se em conta o contedo semntico atribudo pela

    analstica da Antiguidade representao de Zeus sentado.

    Conta EUSBIO de Cesareia com base em PORFRIO (232-304),

    filsofo da escola de Alexandria e discpulo de PLOTINO que Zeus est

    sentado porque esta atitude exprime a imobilidade do seu poder.

    Merece acentuado relevo, pela aclarao de contedos

    iconolgicos da Antiguidade, a continuada explicao sobre a

    iconografia de Zeus: as suas partes superiores esto nuas, porque ele

    manifesta-se nas substncias intelectuais e nos corpos celestes; as suas

    partes inferiores esto cobertas porque ele invisvel nas coisas que

    contm os abismos do mundo. Na mo esquerda leva um ceptro, porque

    este o lado do corao, o orgo que tem o primeiro lugar entre todas

    as partes do corpo, pela faculdade da inteligncia e da razo: ora, pela

    sua inteligncia criadora que ele governa o mundo. Na (mo) direita tem

    uma guia para indicar que domina os deuses do cu, como a guia

    domina as aves do ar ou um emblema da vitria como vencedor de

    todos os obstculos...79.

    Quanto esttua de Zeus feita por Fdias, o reparo de ESTRABO

    aponta para o cnone das propores da figura humana criado pelo

    escultor que obteve o 1 lugar em certame de esttuas de Amazonas;

    participado pelos mais clebres artistas de diversos grupos etrios, o

    concurso deu a Fdias o 2 lugar e deu a feso as melhores esttuas

    para o templo de rtemis.

    Sobre este certame de esttuas das lendrias mulheres guerreiras

    que queimavam o seio direito para melhor atirar o arco, conta PLNIO

    que a avaliao das obras postas a concurso foi cometida aos prpios

    concorrentes. A acuidade que presidiu escolha dos avaliadores

    79

    Preparao Evanglica, 3, 9.

  • 35

    presidiu leitura dos resultados da avaliao: cada um dos avaliadores-

    concorrentes indicou, primeiramente, o seu prprio nome e, todos

    indicaram, em segundo lugar, o mesmo nome: Policleto.80

    Policleto de Scion (480-420 a.C.), escultor da escola argiva, foi o

    autor de um cnone para a representao das figuras, magistralmente

    vertido na mais clebre esttua da sua prolfica e brnzea obra, o

    Dorforo. (ESTAMPA II)

    Esta representao de um jovem cheio de vigor que cuida o seu

    corpo no se enquadra, em bom rigor, no temtico e tradicional elenco

    de deuses, heris e vencedores, nem apresenta qualquer conotao

    imortalidade como a contida, pela sua finalidade (votiva ou tumular),

    nas arcaicas representaes de kouroi ou korai.

    To pouco se encaixa no gnero dito retrato de atleta, gnero

    iniciado em perodo arcaico e que tem entre os primeiros exemplares o

    retrato do pancriatista Arrhachion (c. 564 a.C). Sobre este retrato regista

    PAUSNIAS o estilo arcaico, especialmente na atitude, porque, os ps

    no esto separados e as mos pendem sobre os lados at s coxas81.

    Neste gnero se inscreve a esttua feita por Ageladas ao vencedor da

    66 Olimpada (516 a.C), Clestenes o Epidamniense, retratado no seu

    carro, com a sua equipa e com inscries dos nomes dos cavalos

    (Phoinix, Korax, Knakias e Samos), inscries essas que evocam o tema

    dos cavalos vencedores que seria vertido em mosaico de contexto

    domstico, do sculo IV d.C., em Torre de Palma na Lusitnia (Fig.66).

    O Dorforo de Policleto no visa retratar um concreto vencedor,

    no visa preservar a memria de um sagrado feito, v.g., a vitria nos

    jogos sagrados.

    80

    NH, 34,19. 81

    Conta PAUSNIAS que a 3 vitria de Arrhachion (na 54 Olimpiada, em 564 a.C.) ficou clebre

    tanto pela deciso do jri como pela coragem do atleta na luta com o ltimo dos seus adversrios

    porque, enquanto estava a ser estrangulado, Arrachion parte o p do adversrio; este, dorido, perde a

    disputa por uma coroa de oliveira e o vencedor, Arrhachion, d o ltimo suspiro e ... coroado depois de

    morto. (Perieg. 8, 40).

  • 36

    uma imagem que projecta, no um homem concreto, mas um

    ideal, um tipo, uma remisso para os valores da paideia,

    nomeadamente, a efebia, esse principal instrumento da educao grega

    que, at ao perodo helenstico, se caracterizou pela primazia dada

    educao fsica.

    Nesta obra de Policleto, a ausncia de relao com a imortalidade

    articulada com a sugesto de valor educacional, reflecte o evolutivo

    percurso esttico clssico em direco ao mundo humano, em direco

    ao antropocentrismo; o Porta-Lana a expresso plstica da mudana,

    da reformulao do pensamento humano, em deslocao do mundo dos

    imortais, do Olimpo, para o mundo finito, concreto, do homem.

    No lado direito da figura, o brao pende ao longo do corpo sem

    tocar a perna que sustenta a estrutura leve da figura e se sustenta no

    p pousado; no outro lado, o brao esquerdo, flectido, equilibra as

    tenses enquanto, de joelho dobrado, a recuada perna mal deixa aflorar

    o p no cho; o rosto foge frontalidade e rejeita a emoo com a ajuda

    do olhar vago.

    Esta esttua exemplar do cnone das propores do corpo

    humano, representando uma figura sem a rigidez mas com a juventude

    e a nudez dos kouroi. A flexibilidade da representao resulta da

    modelao da figura em pose de contraposto, modo que levou PLNIO a

    dizer que foi Policleto quem inventou a sustentao das esttuas sobre

    uma nica perna82.

    Mas carga de louvores obra do escultor argivo, PLNIO junta a

    crtica de VARRO forma padronizada e quadrada das esttuas de

    Policleto.

    82

    uno crure ut insiterent signa excogitasse, NH, 34 ,19.

  • 37

    O reparo varroniano, ao visar a dimenso de idealismo presente

    na feitura padronizada da obra de Policleto, aponta para a direco do

    naturalismo vincada, por exemplo, na obra de Mron (n.480)83, o

    escultor que parece ter sido o primeiro a ter variado a verdade dos

    tipos84.

    O seu Discbulo apresenta maior realismo na representao do

    corpo humano e plasma a continuidade, no perodo clssico, do

    princpio arcaico da aret (excelncia) impresso na modelada figura

    animada por acentuado sentido de movimento. (ESTAMPA III)

    O corpo do atleta curva-se para lanar o disco que sustenta na

    mo de um brao recuadamente levantado; por sua vez, o brao

    esquerdo desce diagonalmente e em suave curva para pousar a mo na

    dobrada perna direita que sustenta a figura enquanto o p esquerdo,

    em perna flectida e recuada, aflora o cho. todo um jogo de tenses

    com harmonia, de formas curvas e de movimentos que materializam o

    instante, o momento, numa figura que quer ser vista por todos os

    ngulos da viso.

    Contudo, a obra de Mron suscitaria o reparo de PLNIO no

    sentido de que no representou as emoes.85

    As emoes, a expresso dos sentimentos, a adefectus

    exprimentia seriam plasmadas, por Praxteles (390-335 a.C.), na

    estaturia e, magistralmente, na arte que o tornou clebre a

    escultura86 porque, com consumada arte informou as suas figuras de

    mrmore com as paixes da alma.

    Moldou em bronze e esculpiu no mrmore sentimentos como a

    alegria ou a tristeza87 e, na mais bela das suas obras, a Afrodite de

    Cnido, a humanizao da imagem divina perpassa no conjunto plstico

    83

    Com apogeu artstico entre 480-440 a.C.. 84

    NH, 34,19. 85

    animi sensus non exprimissi, NH, 34,19. 86

    marmore felicior, ideo et clarior fuit, ibidem. 87

    duo signa eius diuersus adfectus exprimentia flentis matronae et meretricis gaudentis, NH, 34,19.

  • 38

    exposto a todos os ngulos de viso: as modeladas formas do tronco e

    membros harmonizam-se com a doura das linhas do rosto virado para

    o lado, enquanto a mo esquerda segura com firmeza o vu que se abre

    em suaves pregas que descem at ao cho e a mo direita aflora a coxa

    esquerda do corpo desnudo. (ESTAMPA IV)

    Deste modo, Praxteles produz mais uma representao de um ser

    imortal, ao produzir uma imagem da deusa nascida da espuma do mar,

    deusa do amor e me do mtico heri troiano a quem a Sibila de Cumas

    profetizou a fundao de um imprio eterno: o heri Eneias que seria

    propagandeado por Augusto na Ara Pacis e pelo seu pico na Eneida

    como o natural ascendente da famlia dos Iulii...

    A Afrodite de Cnido acusa, tal como toda a obra de Praxteles, a

    evoluo artstica verificada ao longo do perodo clssico,

    nomeadamente no tratamento plstico e no alargado mbito dos temas

    das representaes artsticas.

    O princpio da excluso da representao dos traos individuais

    dos seres que no se notabilizaram por qualquer feito, dos seres

    comuns, est afastado neste tempo de Praxteles, como testemunha a

    esttua dourada que aquele escultor fez da sua amada e que ela, Frine,

    dedicou a Apolo.88

    E para Mgara89, para o templo de uma deusa que tem a coroa

    mural como atributo do seu numen, Praxteles fez um simulacrum : uma

    esttua de Thyche, a deusa que ter culto revigorado em tempo

    helenstico, pela vinculao do seu poder protectivo sorte de cada

    indivduo; aqui radica a distino de deusas como Reia ou Cbele que

    apresentam idntico atributo arquitectnico mas tem os numina

    vinculados sorte de uma comunidade, uma cidade (polis).

    88

    PAUSNIAS, Perieg., 10,15. 89

    Perieg.,1,43,6.

  • 39

    A mencionada feitura de retratos de homens comuns, bem como a

    apontada especializao do numen da Sorte ou Fortuna reflectem a

    centralizao do pensamento filosfico no indivduo; configura-se um

    percurso plstico que ruma do contexto clssico para o helenstico, que

    desce do mundo dos imortais para o mundo dos mortais; o rumo de

    uma produo artstica que se encara a si mesma como LUCIANO

    encarou o escultor Demtrio de Alpece: fazedor no de deuses mas de

    homens 90.

    A temtica artstica no mais se reduz ao campo da imortalidade;

    assim, a dimenso de idealismo vertida nos simulacra deorum ou nas

    esttuas dos que mereceram a perpetuidade vai, suavemente, dar lugar

    expresso realista do ser terreno, mortal.

    Surge o retrato de filsofo, gnero que junta ao realismo

    estilstico a revalorao da dimenso intelectual humana, em manifesto

    paralelismo com a evoluo da paideia grega.

    idealizada representao de figuras como o Discbulo ou o

    Dorforo, sobrepe-se a representao do homem real, decaindo os

    valores que presidiram esttica arcaica e que atravessaram o

    Classicismo: o autodomnio (sofrosyne) e o equlibrio entre as

    qualidades fsicas e morais (kalokagatia).

    a reformulao do conceito de excelncia (aret) que passa a dar

    primazia ao vector intelectual em detrimento do vector fsico,

    acompanhando assim, a evoluo do instituto da efebia que passa a

    privilegiar a oratria e filosofia e a passar para segundo plano a

    disciplina fsica e militar.91

    90

    LUCIANO, Philopseudes, 20. 91

    V. Arnold HAUSER, Histria Social da Arte e da Literatura, pp.69-71.

  • 40

    No ltimo tero do sculo IV, surge um inovador cnone da

    figurao plasmado na brnzea obra de Lisipo (370-318 a.C), nos seus

    mltiplos retratos que revelam o incio de novo ciclo esttico e que

    traduzem o fim do ciclo clssico por ter alcanado o seu escopo: o

    homem.

    No ano 338 a.C., Atenas e o grego mundo encontram Alexandre

    em Queroneia.

    O desastre de Queroneia foi o comeo de todos os males da

    Grcia mesmo para aqueles que no quiseram tomar partido perante o

    perigo comum e aqueles que se colocaram ao lado dos Macednios.92

    Esta afirmao de PAUSNIAS d a dimenso do desaire, da

    perda de liberdade que resultaria da batalha de Queroneia, porque o

    apreo pela indepndencia, sobretudo poltica, da sua cidade, uma

    caracterstica do homem grego93.

    O mundo grego, um mundo que sempre ansiou pela autonomia

    fica sob tutela de Filipe II da Macednia e a arte helnica expande a

    emoo: na musivria pavimental, o compositivo esquema grego de

    painel central aumenta o numero de bandas de enquadramento, numa

    sugesto do synoikismos, esse processo de fuso por motivos defensivos

    de pequenas comunidades que se identificam com um centro, a

    metropolis.

    92

    PAUSANIAS, Perieg., 1,25. 93

    Cfr. Herdoto.Histrias. Livro VIII, de Jos Ribeiro FERREIRA, Carmen Leal SOARES, p. 52, nota

    52.

  • 41

    Fig.2: O esquema compositivo grego em Delos, mosaico de finais sc. II a.C.

    Na Fig.2, uma composio base de semicrculos forma um floro

    que ocupa o painel central deste mosaico de Delos, de finais do sculo

    II, princpios do sculo I; o painel enquadrado por cinco faixas sem

    decorao e duas faixas com o motivo das vagas, clara manifestao da

    tendncia nova para aumentar o nmero de faixas de enquadramento.

    O Classicismo esvaiu-se e as helenas poleis vo-se dissolvendo;

    tem razo HATZFELD94 ao afirmar que o fim de uma poca; mas ,

    tambm e sobretudo, a passagem do helenismo imortalidade, porque

    aqui comea a difuso da paideia grega, porque aqui se d o

    surgimento do mundo globalizado do Helenismo95.

    O Estratego do imprio Macednio, Filipe II, morre em 336 a.C. e

    Alexandre continua a poltica expansionista. Estende o seu imprio

    Fencia, Sria, Egipto, Gaugamela na Mesopotmia, Susa no Kurdisto,

    a Perspolis; ocupa a Bactriana onde funda uma cidade a que d o

    nome de Alexandria Extrema, para assinalar a extenso do imprio at

    India; em 326, no vale do Gange, os soldados revoltam-se. Retrocede.

    94

    A batalha da Queroneia marca o fim de uma poca, e a extraordinria difuso da civilizao grega que

    dela resulta no deve fazer-nos esquecer que est em vias de desaparecer esta primeira forma de

    helenismo, restrita, mas muito perfeita, que tinha por base cidades livres e prsperas, in Histria da

    Grcia Antiga, Jean HATZFELD, p.250. 95

    Antnio Pedro MESQUITA, Introduo ao Estudo da Filosofia, p.109.

  • 42

    Em 323 a.C., quando preparava uma espedio naval s costas

    da Arbia, morre de febres na Babilnia.

    Inserida na vastido deste contexto civilizacional, a arte dos

    Helenos ser conhecida pelo nome de helenstica, por sugesto de

    DROYSEN(1808-1884)96. um contexto de assimilao ao imprio

    alexandrino, onde vai dar e receber influncias, projectando o ethos e o

    pathos humanos, plasmando o quotid