aspectos da cultura gaúcha e sua teatralidade · entre outros especialistas dessa cultura....
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Aspectos da cultura gaúcha e sua teatralidade
Inês Alcaraz Marocco
Introdução
Ninguém ainda, na verdade abordou esta tarefa imensa, da qual Mauss
assinalava a necessidade premente, a saber: o inventário e a descrição de
todos os usos que os homens, no curso da história e principalmente em todo
o mundo, fizeram e continuam a fazer de seus corpos (LÉVI STRAUSS,
apud MAUSS, 1974, p. 4).
Os depoimentos dos viajantes europeus que atravessaram o Rio Grande do Sul
nos séculos XVIII e XIX forneceram material de uma grande riqueza etnológica e
etnográfica em relação à cultura gaúcha. Esse material constituiu uma fonte importante
para pesquisadores como Hessel (1969), Leal (1988), Cezimbra Jacques (1883, 1979)
Vellinho (1970,1973), Ornellas (1976), Flores (1993), Fagundes (1994), Meyer (1957),
entre outros especialistas dessa cultura.
Todavia, há um importante aspecto dessa cultura que não foi descrito e nem
analisado por esses autores: a dimensão espetacular da cultura gaúcha e, mais
especificamente, daquela que faz parte da região de fronteira, situada no oeste do Rio
Grande do Sul. Nesse sentido, neste artigo, adotarei o ponto de vista da Etnocenologia,1
disciplina que estuda os comportamentos e as práticas espetaculares humanas
organizadas, considerando, para análise, o meu olhar de diretora de teatro.
Quanto a dimensão espetacular adotada aqui, ela se caracteriza por: a) não se
deruzir só ao visual; b) referir-se ao conjunto das modalidades perceptivas humanas; c)
reforçar o aspecto global das manifestações expressivas humanas, incluindo as
dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais (PRADIER, 1996, p.
16).
Como profissional das Artes Cênicas, tive, na realidade, uma formação de
professora e diretora nesse campo. E a ideia deste estudo sobre a dimensão espetacular
do homem gaúcho surgiu em consequência do trabalho artístico que realizei durante a
criação de um espetáculo teatral intitulado Manantiais.2 Esse espetáculo deveria fazer
1 Disciplina criada pelo professor Jean Marie Pradier e um grupo de intelectuais. Foi fundada oficialmente
na sede da UNESCO, por ocasião do “Colloque de Fondation du Centre International
d’Ethnoscénologie”, nos dias 3 e 4 de maio de 1995, na Maison des Cultures du Monde, em Paris. 2 A origem deste trabalho está ligada à minha experiência prática de diretora teatral junto aos
alunos/atores do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no
parte do programa do II Festival Internacional de Teatro Universitário, que aconteceu
no Marrocos, em 1989, e para o qual havia recebido um convite. Naquela ocasião,
queria apresentar um espetáculo sobre a nossa cultura e, assim, dar a conhecer aos
marroquinos a diversidade cultural do Brasil. O tema escolhido era, então, a cultura
gauchesca e, para a boa compreensão dos não lusófonos, tratava-se de abordá-la com
pouco texto e, sobretudo, privilegiando o movimento corporal. O trabalho de criação
durou um ano e propiciou uma verdadeira descoberta de nossa própria cultura e, da
mesma forma, mostrou que era possível teatralizar essa dimensão do homem gaúcho,
de colocá-la em cena.
Essa experiência também demonstrou que dispúnhamos de um material muito
rico para a reflexão teórica sobre as práticas espetaculares da cultura gauchesca.
Durante a pesquisa que fez parte do espetáculo e do seu processo de criação, percebi
que essa cultura apresenta, além dos aspectos folclóricos de um grande valor teatral,
técnicas específicas, ligadas às práticas da lide campeira.
Meu interesse pelo desenvolvimento de um trabalho teórico sobre a dimensão
corporal do gaúcho nasceu precisamente durante esta pesquisa, quando solicitei a um
gaúcho laçador que fizesse uma demonstração técnica de sua arte. Fiquei, então,
impressionada com a eficácia, a precisão dos movimentos que ele imprimia à corda e
também com sua presença física bastante surpreendente. Percebi, assim, que seus
movimentos tinham as qualidades dos atores/dançarinos que treinam segundo os
princípios da Antropologia Teatral3 de Eugenio Barba, visando, precisamente, a obter
uma grande presença física em cena.
Essas impressões se concretizaram quando, durante o processo de criação do
espetáculo, percebi, através do treinamento dos alunos/atores (na reprodução de alguns
dos comportamentos e gestos tradicionais da cultura gaúcha), que eles integravam
período de 1976-1999. Este trabalho, realizado em 1988-1989, foi desenvolvido pelos professores e
alunos do departamento, participantes do grupo Teatro Experimental Universitário (TEU). Este
espetáculo foi constituído por lendas e contos de autores sul-riograndenses, com Barbosa Lessa e Simões
Lopes Neto, além de descrições históricas e antropológicas recolhidas pelo historiador Auguste se Saint-
Hilaire. 3 A Antropologia Teatral de Eugenio Barba se propõe a “estudar o comportamento cênico pré-expressivo
que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis, mas também das tradições pessoais ou
coletivas [...] ela estuda o comportamento pré-expressivo do ser humano em situação de representação
organizada” (BARBA, 193, p. 23-24).
perfeitamente nos seus corpos esses gestos e desenvolviam, além disso, uma presença
física que se assemelhava àquela do laçador na sua demonstração.
Tudo isso me levou a alguns questionamentos: Quem é este homem gaúcho cujo
corpo atrai tanto a atenção? De que maneira ele atrai a atenção? De onde lhe vem tal
presença física? Essas diferentes questões me levaram a formular uma outra que acabou
por se tornar a central: O que é que faz a dimensão espetacular dos comportamentos e
das manifestações culturais do gaúcho?
Partindo do princípio, então, de que o homem gaúcho se mostra espetacular, pela
sua aparência física, seus comportamentos e seu discurso, e isto tanto no cotidiano de
sua profissão quanto nas situações de lazer, realizei um estudo que gerou uma tese de
doutorado,4 além de outras pesquisas
5 realizadas nas universidades em que trabalhei.
O meu estudo, que se realiza sob a perspectiva da Etnocenologia, trata dos
aspectos espetaculares de uma cultura específica e, em particular, dos comportamentos e
manifestações vivas por meio das quais eles se manifestam. O espetacular, a partir dessa
perspectiva, deve ser aqui compreendido como sustentado pelo corpo, isto é, por tudo o
que é referente à aparência física, aos gestos de trabalho, aos hábitos de indumentária e
de alimentação, ao discurso, que expressam ao mesmo tempo os valores e os símbolos
representativos da identidade cultural do gaúcho.
Neste artigo, vou me ater aos gestos de trabalho do campeiro, mais
especificamente às técnicas corporais presentes na lide campeira, utilizando esta
expressão no sentido que lhe dá Mauss (1974, p. 211) “entendo por essa palavra as
maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem
servir-se de seus corpos”. É importante ressaltar que, para ele, a técnica é “um ato
tradicional eficaz [...] e que não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição”
(MAUSS, p. 217).
Para realizar este estudo, iniciei uma pesquisa etnográfica de campo, a qual
serviu de base ao meu trabalho, cujo objetivo era também o de fazer o inventário dos
4 A Tese de Doutorado intitulada Le geste spectacularire dans l aculture gaúcha du Rio Grande do Sul-
Brésil, foi defendida em 1997, na Universidade de Paris 8, em Saint-Denis, França. 5 A pesquisa intitulada A questão do espetacular na trova e na performance do trovador do Rio Grande
do Sul foi desenvolvida na UFSM (1998-2000) e atualmente estou desenvolvendo a pesquisa As técnicas
corporais do gaúcho e a sua relação com a performance do ator/dançarino no DAD/IA-UFRGS.
comportamentos e práticas culturais espetaculares e organizadas dos gaúchos, a fim de
contribuir para a sua restituição e resgate. Neste artigo, proponho-me a fazer um
inventário sem me ater a uma descrição detalhada dessas práticas, a qual está
contemplada na tese de doutorado já citada. A fim de analisar e distinguir melhor a
complexidade de tais manifestações, fundamentei meu trabalho no método de análise
proposto pela Etnocenologia, que, por sua vez, se utiliza dos princípios das
Etnociências, os quais recomendam recorrer a dois tipos de análise: a interna e a
externa. As “’análises internas’ partem de critérios próprios à cultura estudada, e as
‘análises externas’ se fundamentam nas noções e métodos científicos em uso”
(PRADIER, 1996, p.20).
Graças à análise interna dos elementos fornecidos pela própria cultura, defini
algumas categorias que são recorrentes nos comportamentos do gaúcho, tais como a
masculinidade, a combatividade, a organização e o excesso que fazem parte dos valores
essenciais dessa cultura e constituem a identidade desse homem. São elas que vão me
ajudar não somente a perceber os comportamentos e atividades as mais representativas
dos campeiros, mas também a colocar em evidência a sua dimensão espetacular. A
análise externa se desenvolverá com o auxílio de diferentes disciplinas, como a
Antropologia Teatral, a Antropologia das Técnicas e a Proxémie.
O gaúcho é um tipo espetacular?
No trabalho de doutorado, refiro-me ao gaúcho como sendo um combatente, um
guerreiro e tento colocar em evidência que é nesse aspecto, entre outros, que reside a
dimensão espetacular de seu comportamento. Na realidade, a combatividade é uma das
categorias constitutivas da identidade “gauchesca”. Ela é visível no gaúcho pela sua
aparência física, assim como pelos seus comportamentos cotidianos e de lazer, como já
evocado na Tese. Esses aspectos são ainda mais evidentes nas atividades de sua
profissão, nas quais o gaúcho encontra-se sempre em situação de combate e em contato
direto com o animal.
O que parece importante de reforçar neste estudo sobre a dimensão espetacular
característica dessa cultura é que os gestos que o gaúcho na sua profissão, sejam eles
cotidianos sejam de situações de festa, demonstram uma preocupação sempre presente
pela estética. A estética do gaúcho, segundo Ornellas (1976), caracteriza-se assim por
sua aparência elegante, por sua competência na profissão e nas atividades de lazer assim
como pelos seus valores morais, tais como a coragem e a audácia. Como podemos ver
pela afirmação de Ornellas (1976, p. 225) para quem o gaúcho é um:
Tipo essencialmente estético, o canto, o jogo, a doma, a marcação, o laço, o
rapto, a carreira e a peleia foram suas atividades preferidas. Onde não
pudesse luzir seu valor ou sua agilidade, onde não lhe admirassem a
galhardia e o gesto, a audácia, a coragem e a nobreza, o gaúcho não achava
interesse. Para ele a vida era um espetáculo estético e o homem um ator
trágico.
Essa preocupação com a estética do campeiro pode ser verificada também na
literatura relativa à história do Uruguai, com Zum Felde (1919).
É importante assinalar que os gaúchos reproduzem nas festas campeiras as
mesmas atividades que fazem no seu cotidiano. Na realidade, independentemente dessas
atividades se realizarem no cotidiano ou em ambientes de festa, elas se constituem
sempre num elogio ao homem campeiro, a seus valores morais, sociais e estéticos, pois,
através delas, percebemos sua coragem, liberdade e ética para com o grupo, seu espírito
de competição e sua preocupação com as aparências e o trabalho bem realizado que é
uma exigência de perfeição e competência.
Neste texto, minha intenção é a de fazer um inventário e a análise do savoir faire
do gaúcho, através das atividades que ele desenvolve na fazenda, como o laçar a cavalo,
o pealo, a doma, e a condução do gado.
As atividades que serão analisadas aqui são representativas do universo do
campeiro da região da fronteira oeste do estado do Rio Grande do Sul, e, entre elas,
duas não são mais praticadas: o pealo e o bolear. A primeira delas, que consistia em
pegar o terneiro pelas patas dianteiras para fazer a marcação, perdeu a sua função. Ela
pode ser feita de uma forma bem mais simples e prática, prendendo o gado no brete.6
Mas apesar de não ser mais usada no campo, consegui que ela fosse demonstrada
durante a minha pesquisa de campo e foi assim que conheci uma prática que
esteticamente se parece muito com uma dança por apresentar características como
harmonia, equilíbrio no espaço, organização, precisão e habilidade nos movimentos. A
segunda é mais antiga. Encontrei traços dela somente nos depoimentos dos viajantes.7
6 A expressão brete designa uma espécie de corredor que comunica com a mangueira ou curral, dentro do
qual o animal fica com os seus movimentos tolhidos, podendo ser marcado [...] vacinado, castrado,
tosado, etc. (NUNES e NUNES, 1993, p. 74). 7 Verificar em Darwin (1992, p. 166) e Saint-Hilaire (1887, p. 74).
Sua descrição adquire uma maior importância porque se trata de uma atividade de
origem indígena, cujos movimentos parecem muito com aqueles da manipulação do
laço.
Na realidade, estamos aqui em presença de práticas espetaculares que, repito,
representam também os valores morais, sociais e estéticos da cultura gauchesca, as
quais pretendo evidenciar por meio de uma abordagem etnocenológica.
Essa abordagem propõe a descrição dos comportamentos emergentes como
sendo um método apropriado para o estudo das manifestações vivas de uma cultura.
Para Pradier (1996, p. 41), Etnocenologia é:
Uma ciência da presença do vivo, uma disciplina voltada à descrição dos
comportamentos emergentes fundadores da identidade não tem somente um
valor de erudição. Ela introduz a descoberta do múltiplo na unidade da
espécie, do sutil na diversidade, no mais profundo do enigma da vida e de seu
respeito amoroso.
Neste texto, não apresentarei as descrições8 de cada atividade, mas uma análise
por analogia com os princípios da Antropologia Teatral, de seus aspectos mais
importantes que ajudem na compreensão da dimensão espetacular, extracotidiana. Para
Barba (1993, p. 32), “Elas (as técnicas extras cotidianas) parecem mesmo sugerir um
princípio inverso daquele que caracteriza as técnicas cotidianas: o princípio de um gasto
máximo de energia para um resultado mínimo”.
Como verificar essa dimensão nos comportamentos de profissão do gaúcho? O
extracotidiano não se refere aqui à conduta dos interessados (observados), mas à do
observador que, pelo contraste, demonstra o caráter excepcional do que ele percebe.
Inicialmente, inspirando-me no olhar externo do viajante europeu, um dos primeiros a
ter registrado esses comportamentos, e, em seguida, no meu olhar de diretora de teatro
em situação de interação com os discursos e as práticas do campeiro.
O inventário das atividades do campeiro foi realizado na fazenda Santa Maria de
Butuí (SMB)9, no qual analiso as qualidades corporais que caracterizam seu gestual e o
aspecto extracotidiano, por meio de uma análise interna, tendo como critérios os
próprios valores da cultura gauchesca. Justifico o aspecto extracotidiano dessas
8 As descrições de cada atividade citada neste texto estão na Tese já citada.
9 A fazenda de Santa Maria de Butuí é de propriedade de Odete Saraiva e localiza-se em Itaqui, na região
oeste do Rio Grande do Sul, e tem como gerente José Cláudio Motta.
atividades com base em um olhar externo, isto é, por analogia com as atividades que
desenvolvem os atores/dançarinos para reforçar sua presença física sobre a cena. E é a
partir deste inventário e análise que espero colocar em evidência os fundamentos do
comportamento do campeiro que tornam sua dimensão extracotidiana espetacular.
Antes de proceder ao inventário dessas atividades, veremos, por meio de alguns
depoimentos dos viajantes estrangeiros, como eles percebiam os gaúchos nos seus
comportamentos e em algumas de suas práticas profissionais.
O olhar dos viajantes estrangeiros no século XIX
É importante enfatizar que o gaúcho que é descrito nos depoimentos dos
primeiros viajantes estrangeiros que vieram ao sul do Brasil no século XIX é aquele
indivíduo que habitava numa vasta e única região sem fronteiras delimitadas, que
compreendia o atual estado do Rio Grande do Sul, o Norte da Argentina e o Leste do
Uruguai, que eram também conhecidas pelo nome de terra de ninguém.
O gaúcho, segundo os depoimentos de Saint-Hilaire, correspondia a um tipo
rude e grosseiro, que era só aparências. O fato de que ele vivia numa região onde
predominava o estado de guerra e o regime militar e de que ele tinha como profissão
cuidar e formar o gado, só reforçava a ideia de Saint-Hilaire (1974, p. 120). Para ele, os
gaúchos eram homens que não exerciam sua inteligência:
Fazenda do Deumário, 16 de fevereiro, 3 léguas – [...] A vida pastoril,
tomando o vocábulo em sua verdadeira acepção é própria dos primeiros
estágios da civilização, quando as regiões ainda estão despovoadas. Quando a
população aumenta e as terras se dividem, é preciso dedicar-se à agricultura,
que exige maiores conhecimentos que a criação de animais, conduzindo,
portanto, o homem ao aperfeiçoamento. As magníficas pastagens que cobrem
as capitanias do Rio Grande do Sul e Uruguai convidavam naturalmente os
primeiros povoadores à criação de gado, mas contribuíram para um estado
retrógrado, fazendo-os deixar a vida agrícola propriamente dita pela pecuária,
verdadeiro retorno à barbárie, aliás, muito mais sensível entre os espanhóis,
que chegam a se confundirem com os índios.
Mas o que o viajante botânico não percebeu, e Darwin reparou muito bem, é que
o gaúcho tinha desenvolvido uma inteligência do corpo. Diferentemente do que Saint-
Hilaire considerava, este homem pensava mais agindo; além do que ele atraía a atenção
dos outros pela sua forte presença corporal. Darwin (1992, p. 134), que foi um dos
primeiros viajantes a descrever suas atividades assim como os gestos que faziam, refere-
se a uma delas como a um espetáculo:
Um dos espetáculos mais curiosos que possa oferecer Buenos Aires é o
grande curral, onde se guarda antes do abate os animais que devem servir ao
abastecimento da cidade. A força do cavalo comparada ao do boi é realmente
impressionante. Um homem a cavalo, após ter laçado os cornos do boi, pode
leva-lo onde ele quiser [...].
Descrevendo as atividades da profissão do gaúcho, Darwin foi o primeiro a
perceber sua dimensão espetacular. Viajantes tais como Saint-Hilaire e Dreys, que
também ficaram impressionados com a habilidade e a excelência do gaúcho como
cavaleiro, não fizeram descrições de suas atividades por serem etnocentristas,
enxergando na vida do campo uma primeira época da civilização, e, em consequência,
sem interesse. Mas apesar disso, Dreys (1961, p. 148) descreveu o que ele considerava
como sendo os principais instrumentos do sul-rio-grandense, o laço e as boleadeiras,
reconhecendo que “somente os homens desta parte da América sabem manejar com
habilidade”.
Segundo este autor, saber utilizá-las bem era também uma questão de
sobrevivência, “Subjugar na imensidão dos pampas, o gado, o cavalo solto, não há nada
que possa suprir o laço: com o laço, nunca falta ao rio-grandense nem o que comer, nem
meios de caminhar”. (DREYS, 1961, p. 148).
Nos relatos dos viajantes, percebo que Darwin descreve as fases do tiro de laço –
o laçar – tal como ele era realizado no século XIX -, que correspondem, com todas as
proporções guardadas, ao que os campeiros ainda fazem nos dias de hoje. O pealo, de
acordo com a descrição de Darwin e Saint-Hilaire, era feito a cavalo; e a doma,
conforme a descrição de Darwin, era diferente de como é feita hoje, o animal, por
exemplo, era laçado pelas patas, como se fosse um pealo a cavalo. Além disso, por
meio da descrição desta atividade, constatei o desaparecimento de alguns procedimentos
e, em consequência, de certos gestos.
A partir de depoimentos10
dos viajantes, mais especificamente de Darwin, que
percebeu e se ocupou em descrever as qualidades do corpo, virtuose do gaúcho, extrai
alguns aspectos que considero importantes para este estudo em razão: 1) da habilidade e
da destreza física destes homens cavaleiros; 2) da organização de suas atividades que
obedecem a um método e são realizadas em equipe; 3) da exigência de um corpo
10
Para ter acesso a um relato mais completo dos depoimentos dos viajantes estrangeiros, reportar-se à
tese já citada.
equilibrado e ágil; 4) da realização de gestos específicos, precisos, eficazes e
econômicos; 5) do risco de morte.
A seguir, farei um inventário e a análise de algumas atividades que considero
como sendo as mais representativas do universo gaúcho que habita atualmente nas
regiões de São Borja e Itaqui.
A espetacularidade da lide campeira
O interesse em estudar estas atividades reside em duas razões: de um lado trata-
se de manifestações vivas representativas da cultura gaúcha; e, de outro, elas
apresentam qualidades corporais e estéticas que considero como extracotidianas,
espetaculares.
Mas, como enfatiza Jean Marie Pradier, (1996, p.21), “os fatos espetaculares
existem como picos emergentes que não revelam nada ou muito pouco dos sistemas
complexos, psicobiológicos, culturais, etc. que são o motor, a fonte ardente”.
Assim, neste artigo, analisarei o aspecto espetacular dessas manifestações, mas
também, tratarei dos aspectos subjacentes às técnicas corporais, enfatizando as
qualidades e habilidades que estas atividades exigem, assim como farei analogias com
os princípios da presença física no ator/dançarino, segundo Barba.
Na realidade, a descrição dos viajantes do século XIX das atividades do gaúcho
são ainda válidas 160 anos depois, como pude comprovar em minhas observações.
Verifiquei também, por meio destas descrições, que se trata de práticas tradicionais.
Além do laçar, do pealo e da doma, que foram observados e descritos pelos viajantes,
considerei também os gestos da atividade de conduzir o gado. Eles são também
importantes, pois fazem parte integrante da profissão do campeiro, e apresentam
características corporais que podem ser encontradas em outras atividades, em especial
as de lazer.
O encilhar11
11
Encilhar significa colocar os arreios no animal (NUNES, 1993, p. 160). A expressão arreios designa o
conjunto de peças com que se equipa um cavá-lo para monta-lo (NUNES, 1993, P.41)
A primeira atividade que o campeiro faz no início de sua jornada é a que
consiste em selar seu cavalo. Trata-se de uma atividade organizada na medida em que
ela obedece a uma ordem precisa na colocação de diferentes acessórios para encilhar,
que são os arreios.
É importante lembrar que existe uma diferença entre a maneira de encilhar
cavalos já domados e os selvagens. A ordem dos gestos durante a atividade de encilhar
é sempre a mesma, o que muda é a maneira com a qual cada um dispõe os acessórios.
Há, no entanto, algumas variantes nesta atividade durante a Festa Campeira, como o
gaúcho que observei ser pelego12
sobre a sela.
Essa atividade é minuciosamente organizada até na disposição dos acessórios
antes que o campeiro comece a equipar o cavalo: eles são, em geral, colocados no chão
ou sobre os cavaletes já na ordem de sua instalação. Para ir à festa, os gaúchos levam o
equipamento do cavalo, fazendo uma espécie de pacote, operação que eles chamam de
imalar os arreios.
A ação de encilhar o cavalo é, na realidade, uma técnica que exige certo savoir
faire. Motta, o administrador da fazendo SMB, contou-me a diferença que existe entre
os gaúchos de uma fazenda agrícola e os de uma de criação de gado na maneira de
encilhar um cavalo. De acordo com ele, para realizar esta atividade aparentemente
banal, que se repete cotidianamente, a vestimenta do cavaleiro e os acessórios devem
obedecer a certas regras: “Numa fazenda agrícola, tu vês os homens montarem o cavalo
em jeans, o que tu não verás numa fazenda de criação de gado. E o cavalo com os
arreios meio complicados, atados com cordas de nylon”13
.
Os gestos são precisos, nítidos, firmes e econômicos. Não é preciso fazer duas
vezes a mesma coisa, pois o campeiro não se engana. O ritmo com o qual ele dispõe os
arreios é igual durante todo o processo, pontual, tranquilo, com a diferença do ritmo de
desencilhar, que é mais rápido. Os campeiros da fazenda realizam esta tarefa lado a
lado, mas ficam concentrados, a maior parte do tempo em silêncio, mesmo que alguns
realizem esta atividade cantando ou assoviando.
12
“Trata-se de pele de carneiro ou de ovelha de forma retangular, com a lã natural, que se coloca sobre os
arreios, para tornar macio o assento do cavaleiro” (NUNES, 1993, p. 361). 13
Entrevista dada por José Candido Motta, em 5/11/1994, em São Borja.
Encilhar um cavalo exige também certa arte, como mostra a descrição de Vianna
(1974, p. 209) na sua análise do campeiro. A busca da identidade do gaúcho leva-o
também a trabalhar a imagem do cavalo: este animal é muito importante para ele, e a
maneira pela qual ele personaliza o encilhamento, enfeitando de prata os estribos e
certos elementos dos arreios, por exemplo, contribui para reforçar a própria imagem.
O próprio arrear do cavalo – do pingo [...] cuidadosamente tosado - é para ele
uma obra de arte, suma prova de seu gosto artístico e de sua hipofilia. No
compor dos aperos da arredura, nos indefectíveis ornatos de prata, rosas,
estrelas, corações de adornam suas cabeças [...] na complicada abundância de
suas peças complementares [...] em suma, em toda a composição e disposição
desses arneses numerosos, o gaúcho põe o orgulho e os requintes de um
artista. (VIANNA, 1994, p. 209).
Após encilhar o cavalo, o campeiro se prepara para a atividade de laçar, que
também obedece a regras. Já nesta primeira atividade do gaúcho, destacam-se alguns
aspectos que são recorrentes em todo o trabalho da lide, como a repetição, o savoir
faire, a precisão e a economia de seus gestos, que por analogia podemos afirmar que
estes elementos são também necessários para o trabalho de treinamento do
ator/dançarino.
O tiro-de-laço
No que se refere ao tiro-de-laço, que se constitui em arremessar o laço contra o
animal que se pretende pegar, uma das primeiras coisas que os campeiros realizam é a
armada do laço, isto é, preparar o laço, fazendo várias voltas com a própria corda para
obter mais potência. Esta atividade preparatória foi descrita pelos europeus na sua fase
final. Na Festa Campeira assim como na fazenda SMB o procedimento é o mesmo. A
diferença é que, no primeiro caso, as regras precisas determinam a medida do diâmetro
da armada. Ele deve ter 7,5 metros: na fazenda, este diâmetro não é limitado, e depende
do espaço disponível e da necessidade do momento.
É interessante assinalar que o laço é um instrumento de trabalho que pode servir
de arma, o que equivale a dizer que é um instrumento de combate. Isso reforça a minha
ideia de que o homem gaúcho é, antes de tudo, um combatente e o laço, um de seus
instrumentos. É um acessório importante para o trabalho do campeiro, que o traz sempre
enrolado e amarrado na cincha, na parte traseira da sela, à sua direita. Essa maneira que
tem o gaúcho de trazê-lo sobre o cavalo é vista por certas pessoas como um traço de
elegância: o “gaúcho faceiro carrega o laço com variada e requintada elegância”
(VIANNA, 1974, P. 258).
Tanto em situação de competição na Festa como na fazenda, o gaúcho prepara a
armada ao mesmo tempo em que galopa e observa os terneiros destinados a serem
curados ou castrados e que deverão ser laçados. O movimento de girar o laço é idêntico
ao observado na Festa, a única diferença é a circunferência da armada que é menor
assim como as rodilhas14
que determinam a potência da corda são menos numerosas, ,
por que o espaço onde acontece o exercício é mais reduzido.
Na fazenda, é na atividade de parar o rodeio15
que o laçar é mais presente e,
como já disse, desenvolve-se em um espaço ainda mais reduzido. Daí o campeiro não
tem necessidade de correr com seu animal. Ele circula geralmente entre os animais, com
a armada na mão direita pronta para ser usada. Em seguida, procede a todas as etapas
do laçar, tais como foram feitas na festa, mas com outra qualidade de energia, os
movimentos vão se tornando reduzidos. No entanto, mesmo realizando a atividade com
menos energia e deslocamentos, ela exige uma grande virtuosidade na medida em que
há sempre um risco mortal. Segundo Motta, a corda do laço “é a arma do diabo. Porque
o laço é a coisa mais perigosa que existe; se der errado, mata ou aleija, arranca um
braço, tira pedaço”.16
Além disso, encontrei, no cotidiano, situações imprevistas que não
vi na Festa e nas quais o risco é ainda maior, além de ser necessário provar uma eficácia
e uma destreza extraordinárias. Nesta atividade, salienta-se a capacidade de improvisar
e agir em situações imprevistas que exigem novas adaptações a todo o momento, é a
técnica dando liberdade para agir dentro das diferentes possibilidades que aparecem. É
nesses momentos que a dimensão espetacular desta atividade aparece com mais nitidez.
Na festa, onde o espaço disponível ocupado pelo campeiro e o animal que ele
deverá pegar são maiores, a atividade de todas ase etapas que a compõe aparecem com
mais nitidez. Existem duas maneiras de realizar esta atividade: 1) o contrarrasto ou
frente e o 2) encontro. A diferença entre essas duas maneiras de manipular o laço
14
As rodilhas são pequenas voltas do laço que, quando é manejado, ficam algumas junto à armada, na
mão direita e outras na mão esqueda do laçador (NUNES, 1993, p. 435). 15
A atividade de parar o rodeio, consiste em reunir o gado no rodeio com a finalidade de marcar,
assinalar, castrar, curar, dar sal, apartar examinar (NUNES, 1993, p.350) 16
Entrevista com José Cláudio Motta, no dia 5/11/1994, em São Borja.
depende da posição do cavaleiro em relação ao terneiro que ele quer pegar: ele se coloca
à direita do animal, na primeira; e atrás dele, na segunda.
Segundo Motta, o laçar do campeiro da região é muito difícil de realizar, na
medida em que “o movimento do braço no nosso método não deve ficar do lado da
cabeça.”17
Isso reforça a ideia de especificidade das técnicas corporais dessa profissão,
na qual uma das características é a rotação da mão, que necessita de um movimento
hábil do punho, o qual é chamado pelos campeiros de quebrar o pulso. A mão gira,
assim em torno do punho, num movimento que é realizado pelo braço, que é também
giratório. É a este mesmo movimento de mão que se refere Darwin.18
Segundo Motta, é ele quem dá o verdadeiro impulso ao reboleio19
e dirige a ação
de laçar. Trata-se de um exemplo de economia de gestos e, ao mesmo tempo, a
utilização máxima da energia, ao contrário de qualquer movimento cotidiano que
responde ao princípio mínimo do esforço. Outro aspecto a destacar é a harmonia e a
sincronia presentes entre o cavalo e o cavaleiro.
O cavalo sabe o que vai fazer. Se tu estás com o laço nos tentos, ele sabe que
ele pode correr um boi ou uma vaca, mas ele sabe que não é para laçar, que é
para atacar, apartar, para fazer uma coisa diferenciada. Com o laço na mão, é
difícil o cavalo encostar-se na rês.20
O cavaleiro deve, assim, executar várias ações ao mesmo tempo: fazer girar o
laço, equilibrar-se, conduzir o cavalo pelos movimentos corporais e manterás rédeas.
Para isso, é necessário: 1) equilíbrio: é um dos princípios de base das qualidades
corporais que deve desenvolver o gaúcho na sua profissão, na medida em que todas as
suas atividades, à exceção do pealo, realizam-se a cavalo; 2) coordenação motora; 3)
atenção concentrada; 4) uma percepção do espaço muito desenvolvida para saber o
momento exato em que deve atirar o laço; 5) sincronia entre seus movimentos e os do
animal; 6) uma qualidade de olhar sobre a cabeça do animal que persegue; e 7) realizar
as oposições nos movimentos de soltar e puxar a corda do laço, com inclinações do
tronco para frente e para trás. Podemos observar que o campeiro, depois de laçar o
17
Entrevista com José Cláudio Motta, no dia 5/11/1994, em São Borja. 18
Verificar a descrição do movimento de rebolear em Darwin (1992, p. 51). 19
Rebolear significa dar movimento de rotação ao laço ou à boleadeira, a fim de lançá-los sobre o animal
que se pretende prender. Fazer com que qualquer objeto descreva trajetórias circulares no ar (NUNES,
1993, p. 421). 20
Entrevista com José Cláudio Motta, no dia 5/11/1994, em São Borja.
animal, tem diferentes maneiras de puxar a corda do laço, revelando, assim diferentes
estilos (Figura 1a, b, c).
Do ponto de vista da análise externa, e se fizermos a analogia desta atividade
com a performance do ator/dançarino, perceberemos que um dos princípios que reforça
a presença física é o de fornecer o máximo de energia para o mínimo de movimentos.
Uma das qualidades do ator, dançarino consiste em saber canalizar todas as suas
energias na realização de uma ação que seja precisa e viva. Feito isso, é todo o seu
corpo que se torna vivo, mesmo em situação de imobilidade, o que Barba denomina
como a expressão omissão.21
Este estado de atenção é requisito fundamental nos
momentos mais tensos da atuação do ator/dançarino. Outras capacidades estão presentes
nestas atividades, como a coordenação e a dissociação de movimentos que são
qualidades fundamentais para a realização da performance do ator/dançarino.
Encontramos também, nas atitudes do gaúcho, o sentido de equilíbrio instável, de
luxo22
, o olhar e a oposição dos movimentos23
, princípios que, segundo Barba, reforçam
a presença física do ator/dançarino. A observação e a qualidade na precisão e direção do
foco do olhar fazem parte também da representação cênica. E o foco que dá objetivo
preciso à ação do ator/dançarino, e se constituiu num dos elementos de sua presença
física na medida em que ele ajuda a modificar sua postura.24
Finalizando a atividade, o gaúcho refaz a armada do laço, coloca-o na sela, do
lado direito do cavalo, amarrando-o numa tira de couro. Caso contrário, ele o segura na
mão para utiliza-lo de novo. Ele prepara a armadura do laço, montado a cavalo,
circulando entre o gado observando-o, sem ter necessidade de olhar o que está fazendo,
integrado na atividade com uma totalidade.
21
Para o ator em cena, omissão significa reter, não gastar num excesso de expressividade e vitalidade as
qualidades da presença cênica. A beleza da omissão na realidade, é a sugestividade da ação indireta da
vida que se manifesta com o máximo de intensidade num mínimo de atividade (BARBA, 1993, p. 49). 22
Verificar a definição de equilíbrio de luxo na parte dedicada à doma. 23
Outro princípio da pré-expressividade do ator/dançarino reside nas oposições que regem a dinâmica
dos movimentos (BARBA, 1993, p. 55). 24
Segundo Barba (1993, p. 46), o olhar permite modificar a postura física, o tônus muscular do peito, o
equilíbrio e a pressão dos pés sobre o chão.
Figura 1 - Tiro-de-laço
É importante que mantenha o laço pronto no seu lugar, pois é necessário tê-lo à
mão em caso de urgência, como a situação que presenciei na fazenda quando o touro
fugiu em direção à floresta. Nesta situação, foi necessário preparar a armada com toda a
rapidez, enquanto todos os homens se lançavam atrás do animal. A rapidez com a qual o
campeiro arrumou o seu laço, ao mesmo tempo em que perseguia o touro, mostrou-me a
que ponto ele estava pronto para entrar em ação. Da mesma forma que o ator/dançarino,
o campeiro está sempre em estado de alerta, com a percepção alterada, conectada com a
totalidade do que acontece no espaço de representação, em prontidão para situações
inesperadas.
Esta ação que acontece em uma situação de trabalho cotidiano, impressionou-me
muito mais do que a que fui apresentada na Festa. Uma das razões foi além da
virtuosidade e da prontidão do campeiro, o fato de o episódio ter sido imprevisto pelo
perigo de morte que ele corria. Não poderia também afirmar que estes dois fatores, o
imprevisto e o risco, participam da dimensão espetacular da cultura gauchesca?
Este acontecimento revela, em todo o caso, que as atividades da fazenda podem
ser também tão ou mais árduas e espetaculares que as realizadas nas Festas Campeiras.
O pealo
Como no laçar a cavalo, nessa atividade utiliza-se da corda do laço, mas ela não
é mais realizada nem na fazenda nem na Festa, na medida em que perde a sua função,
que consistia em pegar os terneiros nos campos para marcá-los. Hoje, como já foi
referido, esta atividade acontece no brete. Os campeiros não praticam mais, e eles só
fizeram uma demonstração para atender ao meu pedido.
Apesar de utilizar o mesmo instrumento e realizar a mesma atividade que é a de
laçar, o pealo não é considerado como uma variante do tiro-de-laço, porque enquanto
este é feito pelo campeiro montado a cavalo, o pealo é realizado a pé. Trata-se de uma
atividade específica de um pealo a pé como afirma Motta. Da mesma forma que no tiro-
de-laço, no pealo é necessário também fazer uma armadura. A diferença entre as
armaduras está no encadeamento dos movimentos, da maneira de fazê-la e do seu
tamanho, assim como no número de rodilhas. Existe também um tipo de armada na qual
não há nenhuma rodilha, com o domador José me mostrou.
Destacarei, nessa atividade, o fato de que, para lançar a armada, o braço e a mão
fazem um movimento de torção para baixo, que é diferente daquele do laçar a cavalo.
Segundo José, aquele se faz horizontalmente; no pealo, ele se realiza para baixo. José
fez a demonstração ao mesmo tempo em que comentava: “a gente arreboleia, mas torce
já a armada, e larga torcida a armada”.25
O que me impressionou mais nesse encadeamento de movimentos foi a oposição
entre os movimentos de atirar e de puxar a corda do laço. A importância da oposição na
expressividade do ator já era evidente para Meyerhold quando na criação da
Biomecânica26
, pois, para ele, a essência do movimento cênico se baseia nos contrastes
(BARBA, 1993, p. 41). Esses movimentos de oposição da mesma forma que acontece
com o ator/dançarino, contribuem para dar ao corpo do campeiro uma dimensão
extracotidiana, e ao encadeamento dos movimentos do pealo, um aspecto de dança,
como se fosse regido por uma coreografia (Figura 2a, b, c, d).
Figura 2 – Pealo 25
Entrevista concedida por José Carlos Silva da Silva, em 26/11/1994, na fazenda SMB. 26
"É o estudo da mecânica aplicada ao corpo humano. Meyerhold se utiliza desta expressão para
descrever um método de treinamento para o ator baseado na execução instantânea de tarefas [...] ditadas
pelo diretor ou autor (PAVIS, 1996, p. 34).
A doma
Na fazenda SMB, o processo de doma, tal como realizado por José, começa com
o encilhar. Diferentemente do que é feito com os cavalos domados, ele o realiza aqui
com gestos muito suaves. A outra diferença entre estas duas maneiras de montar o
cavalo é que, na doma, o domador deve amarrar completamente o animal,
imobilizando-o.
Para iniciar o processo de equipar o cavalo, o domador começa pelo bucal.27
Mas antes de colocar este acessório na cabeça do animal, ele se aproxima suavemente
acariciando seu pescoço com a corda para evitar que o animal tenha medo. Em seguida,
ele o amarra pelas cordas do freio28
a um tronco de árvore.
Depois ele procede à imobilização do animal. Para fazer isso, ele tem a ajuda de
dois empregados da fazenda. Ele amarra as patas com uma só tira de couro comprida,
seus gestos são lentos, precisos e hábeis, pois além do fato de só utilizar uma única tira,
ele está lidando com um cavalo selvagem (Figura 3ª, b, c).
Após equipar o cavalo com os arreios, o empregado e o capataz ajudam o
domador a tirar todos os acessórios que serviram para imobilizá-lo. Todos procedem
com gestos muito lentos e cuidadosos, pois o cavalo reage a cada toque.
É interessante notar que os campeiros trabalham em equipe e em silêncio.
Ninguém diz ao outro o que é preciso fazer; eles agem em comum acordo, dividindo as
diversas atividades; enquanto o domador amarra o bocal em torno do maxilar do cavalo,
o empregado retira a tira de couro que o imobilizava, deixando apenas as patas
dianteiras amarradas, e o capataz o mantém no lugar, puxando-o pelo freio.
Nesta atividade, dois aspectos novos devem ser enfatizados na postura dos
campeiros: o trabalho silencioso e em equipe, atitudes que encontramos também no
treinamento e no jogo dos atores/ dançarinos.
A fase seguinte, que é o momento mais arriscado da doma, corresponde também
a gineteada, que é realizada na Festa. A diferença está no fato de que, na primeira, o
27
Entrevista com José Cláudio Motta, em 5/11/1994, em São Borja. 28
Freio é um acessório de metal formado de duas hastes unidas por uma terceira peça perpendicular que
se prende à cabeça e aos focinhos da cavalgadura e permite a condução do animal. (HOUAISS, 2001).
cavalo está selado; na segunda, o cavaleiro monta o cavalo a pelo, isto é, sem nenhum
acessório dos arreios.
Figura 3 – Doma
Quando o cavalo está pronto, José o leva ao campo para montá-lo. O empregado
da fazenda e o capataz também montam nos seus respectivos cavalos. Todos se
encaminham para a mesma direção. Como na Festa, os dois, empregado e capataz farão
o papal de amadrinhadores, cuja função ajudar o domador ou gineteador a evitar que
seja machucado e impedir o cavalo de ir em direção à cerca de arame farpado. Eles vão
também ajuda-lo a montar e a descer do cavalo e, no caso de perigo, retirá-lo de cima do
cavalo xucro. Para isso, é necessário, entre outros aspectos, que haja harmonia e
sincronia entre os três homens. (Figura 3d).
Segundo Motta, a doma pode ser normalmente feita por uma única pessoa. Mas
ele justifica que, por causa do método utilizado na região, onde o cavalo deve corcovear
muito, é melhor dispor de dois amadrinhadores. Trata-se de uma atividade organizada,
na medida em que ela segue um método, e é cultural, porque é específica dessa região.
A afirmação de Motta é confirmada por José, “o Jorge e o Paulo são amadrinhadores
porque solito não dá pra sair no primeiro golpe. Porque (o cavalo xucro) não respeita a
cerca nem nada29
”.
Além da sincronia, esta atividade organizada exige competência, gestos precisos,
eficazes e ordenados. A ausência de uma destas qualidades implica risco mortal para o
cavaleiro e o animal.
Essa fase da doma nos faz perceber a grande destreza e domínio do cavaleiro, e
também suas qualidades de equilíbrio/desequilíbrio e resistência. No momento da doma,
há um combate entre o homem e o animal, este corveia e procura jogar o homem no
chão, fazendo-o, muitas vezes, perder o equilíbrio. No teatro, podemos fazer uma
analogia dessa situação com a expressão utilizada pelas atores/dançarinos para designar
um dos princípios da presença física, que é o do equilíbrio de luxo:
Em todas as formas codificadas de representação encontramos uma
deformação da técnica cotidiana do caminhar, do deslocamento no espaço e
da situação imóvel. [...] Recusando o equilíbrio ‘natural’, o ator intervém no
espaço com um equilíbrio ‘de luxo’, complexo, aparentemente supérfluo e
que custa muita energia (BARBA, 1993, p. 36).
29
Entrevista com José Carlos Silva da Silva, em 26/11/1994, na fazenda SMB.
Quatro novos elementos vêm, assim, juntar-se aos princípios comuns que já
detectamos no trabalho do ator/dançarino e aquele do campeiro: a sincronia, a
resistência, um corpo em estado de alerta e pronto para agir e a competência no savoir-
faire. Quanto à sincronia, ela é fundamental no campo da representação, pois sem ela o
jogo não pode se desenvolver. Trata-se de uma habilidade que exige coordenação,
relação, inter-relação e harmonia. Do ponto de vista da Proxémie, o homem se
comunica por sincronia30
, e encontramos os reflexos disso na dança31
. Nas
manifestações ou nas atividades culturais, sejam elas artísticas ou não, a sincronia
ocorre em diferentes níveis – rítmico, sensorial, físico, emocional – da qual participa
também o público quando há audiência.
Em relação ao aspecto da resistência no teatro oriental, a qualidade principal do
ator balinês é o tahan, a resistência. Para o ator chinês, ela corresponde a expressão
Kung Fu, que significa aguentar, resistir, o que equivale, para o ator ocidental, à
energia, à capacidade de resistência no trabalho. Quanto ao estado de alerta no jogo,
exige prontidão para agir e reagir em cena. Essa questão da competência é, segundo
Grotowski (1993), diretamente ligada ao que caracteriza uma verdadeira arte. Para não
ser diletante, o artista deve apresentar uma atitude de competência, de precisão, de
lucidez, persistência e habilidade.
Retomando a análise da fase final da doma, a atividade de desencilhar se faz no
mesmo ritmo lento que o encilhar e com gestos leves. Para tirar o equipamento do
cavalo, o empregado da fazenda e o domador devem imobilizá-lo pelos mesmos
procedimentos que no encilhar, mas, desta vez, prendendo somente as patas dianteiras
do animal.
A doma exige persistência, paciência e tranquilidade. Não se pode apavorar o
animal no primeiro mês durante o processo de doma, todas as atividades devem ser
feitas de forma muito tranquila, como, por exemplo, a retirada do freio. Para poder se
aproximar do cavalo, o campeiro deve primeiro acalmá-lo, passando a mão sobre o
ventre e as costas do animal. O processo de doma lembra muito o do treinamento do
30
Segundo Hall (1979, p. 73), "geralmente os indivíduos em interação se mexem juntos numa espécie de
dança, mas não se dão conta da sincronia de seus movimentos e os executam sem música e sem
orquestração consciente. Estar em sync [sic] é em si uma forma de comunicação". 31
Hall (1979, p. 74) conclui que "examinando os filmes (de sua pesquisa) passados em câmera lenta para
reconhecer a sincronia, nos damos conta que a dança tal como nós a conhecemos não é na realidade senão
uma versão estilizada do que se passa num ritmo acelerado entre dois seres humanos em relação
recíproca".
ator/dançarino, porque, da mesma forma que se repete a sua sequência de ações, o
domador refaz todos os dias as mesmas coisas, na mesma ordem; os gestos são sempre
os mesmos, podendo variar conforme a reação do animal.
Esse trabalho exige, então, uma disciplina, na medida em que ele deve
ser repetido cotidianamente. Essa mesma disciplina é encontrada no treinamento dos
atores/dançarinos, ao desenvolverem sua pré-expressividade, segundo Barba (1993) e o
trabalho sobre si mesmo de Stanislavski.
Depois de uma primeira fase da doma, que dura de quinze a vinte dias, o
domador faz uma pausa de um mês, depois da qual ele retoma o trabalho com o mesmo
cavalo. Nessa última fase que se estende por um período de 30 a 50 dias (conforme o
cavalo), ele o enfrena, isto é, coloca o freio de ferro que corresponderia à concretização
da doma.
Sublinhemos, ainda uma vez, para encerrar, que a gineteada executada na
fazenda me pareceu muito mais impressionante na Festa, comprovando que sua
dimensão espetacular não acontece só em função da presença do público.
A condução do gado
Na vida cotidiana, o gaúcho é econômico nos seus gestos: ele parece se
movimentar muito pouco. Quando, por exemplo, dois entre eles devem se
cumprimentar, eles se contentam em roçar a palma da mão e o antebraço um no outro. O
que mais encontrei entre eles foram poses, posturas e atitudes.
Percebi também que é na sua relação mais direta com os animais, em situação de
trabalho, que esta economia de gestos aparece. Quando perguntei a José, o domador, as
razões desta parcimônia de gestos e de palavras, ele respondeu que os campeiros têm
necessidade de gestos para se fazer compreender pelos animais e não entre eles. De
todos os gestos de profissão, aqueles que lhes servem para conduzir as tropas foram os
que mais me chamaram a atenção por serem recorrentes em outras atividades. Entre
estes gestos, José destaca principalmente dois tipos: o assobio e certos movimentos
executados com o braço direito levantado, fazendo girar ou não o relho. Notamos que,
na condução do gado, o gesto básico consiste em levantar o braço acima da cabeça
(Figura 4a, b, c, d).
Podemos encontrar este mesmo movimento em certas situações de lazer, como
as Trovas: antes de começar a cantar ou para marcar o ritmo, o trovador Mello levanta
seu braço da mesma maneira (Figura 4a, b).
Apesar de parecerem à primeira vista, espontâneos, todos esses gestos e sons
são, na realidade, técnicas corporais específicas, adquiridas desde a infância e
desenvolvidas durante um trabalho que se faz em contato permanente com os animais.
Figura 4 − Condução do gado
O contato constante com a natureza aparece como uma marca no corpo e nos
gestos do gaúcho, assim como no seu comportamento, sua maneira de se deslocar no
espaço, de falar, de pensar, e na sua relação com os outros. Encontramos diferenças
quanto aos sons que acompanham os gestos destinados à condução do gado: na
realidade, esses sons – sejam eles barulhos de boca imitando de maneira exagerada um
beijo e aos quais o gado obedece instantaneamente, onomatopeias, risos roucos ou
assobios – não podem ser feitos por qualquer pessoa como aconteceu com os
empregados que vieram da cidade de São Borja para ajudar na fazenda, pois os animais
não os obedeceram. Sobre este assunto, José, o domador, explicou o seguinte: não tendo
o hábito de falar muito entre eles, as pessoas do interior não trabalham suas vozes, nem
as sofisticam como as pessoas da cidade. Sua voz, por isso, fica, muitas vezes, mais
próxima aos sons da natureza, sendo mais aceita pelos animais. Podemos constatar o
desenvolvimento de um alargamento de suas potencialidades vocais que possui relação
com um corpo mais arcaico, mais rústico.
Se esses diferentes movimentos, executados a cavalo, exigem certa virtuosidade
(coordenação motora e qualidade de equilíbrio) a atividade de conduzir o gado aparece
também organizada. Essa organização de encontra:
na hierarquia dos gestos;
na especificidade do gestual adaptado para cada tipo de gado. Por
exemplo: o campeiro adota um comportamento diferente segundo a
composição da tropa (bois, cavalos, ovelhas); assim a presença dos
cachorros é necessária para conduzir as ovelhas, mas não no caso das
vacas, com as quais os campeiros devem agir com lentidão porque elas
são acompanhadas de seus terneiros;
nas diferentes funções de trabalho. Aliás, o campeiro tem consciência da
especificidade de sua profissão. o capataz estabelece, para a atividade de
conduzir o gado, uma diferença entre o campeiro (que se ocupa da
criação) e o tropeiro (condutor de tropas)
O inventário e a análise das técnicas corporais da lide do campeiro mostraram
alguns aspectos essenciais que caracterizam, de certa maneira, a cultura gauchesca:
gosto pela estética, inteligência do corpo, aprendizagem por imitação, a utilização do
corpo como medida de todas as coisas e a consideração de certos instrumentos como
uma extensão do corpo.
O gaúcho: um tipo essencialmente estético
Os gestos e comportamentos de profissão assim como os hábitos indumentários
mostram que sua preocupação maior é de sempre “fazer bem” as coisas e de “fazê-las
com elegância”. Essa preocupação do gaúcho pelo “belo” se encontra também na sua
maneira de se vestir: ele tem um grande cuidado com sua roupa, que está sempre
impecável. Com esta mesma preocupação estática, em “se apresentar bem arrumado”32
,
ele realiza todas as suas atividades da lide.
Na realidade, o bom campeiro se caracteriza por possuir um savoir-faire do qual
tem orgulho, demonstrando competência e perfeccionismo por ter uma profissão
aprendida desde a infância, que, de alguma forma, se imprimiu33
nele, conferindo-lhe
uma habilidade e uma virtuosidade fora do comum.
Outro aspecto a destacar, além do “fazer bem a sua profissão”, é o do prazer que
eles têm ao realizar as atividades. Na realidade, todos esses gestos e comportamentos da
profissão fazem parte do que Mauss (1974) chamou de “técnicas corporais”. Quanto a
essas técnicas que exigem certa sensibilidade um entendimento harmonioso com o
animal, o gaúcho sente emoção e prazer, como o confirma Motta, para que José “é o
tipo que gineteia por prazer”.34
Essa mesma emoção ele sente ao fazer a doma na
fazenda “quando eu trabalho no dia-a-dia assim é uma emoção a bem dizer que eu
tenho, né? É tudo na brincadeira”.35
Além do domínio corporal e técnico deve-se levar em conta um fator que não é
mensurável nem explicável como, por exemplo, a presença que os gaúchos possuem,
pois os seus gestos cotidianos se constituem em picos emergentes representativos da sua
cultura. Eles seriam a marca de atividades tradicionais que representam o universo do
gaúcho quanto aos seus valores morais, sociais e estéticos, mas também de uma
32
Entrevista com Jorge P. de S. S., na fazenda SMB, em 2/12/1994. 33
O verbo imprimir, utilizado aqui, tem o mesmo significado do verbo engrammer, em francês,
empregado por Condom e Sanders (apud PRADIER, 1994, p. 28) na relação que eles fazem com a
aprendizagem da linguagem, e significa que as atividades se imprimiram no corpo do gaúcho, aliando o
cultural ao biológico. 34
Entrevista com Motta, em 5/11/1994, em São Borja. 35
Entrevista com José Carlos da Silva, na fazenda SMB, em 26/11/1994.
dimensão que o diferencia dos outros homens. O gaúcho realiza suas atividades em
harmonia total com seu meio ambiente e tem uma relação quase osmótica com os
animais, o que lhe desenvolve uma outra sensibilidade, uma qualidade espiritual. A
dimensão espetacular dos gestos de profissão do gaúcho se constitui, então, de aspectos
não só cognitivos e físicos, mas também emocionais e espirituais.
A inteligência do corpo
Para os primeiros viajantes, com exceção de Darwin, o gaúcho, muitas vezes,
aparecia como uma espécie de índio grosso, primitivo, servindo-se, sobretudo, de seu
corpo e, por isso mesmo, destituído de inteligência. Ora, não existe atividade em que a
inteligência não seja contemplada sem que o corpo participe na sua totalidade, o que
confirma Marcel Jousse (1974, p. 30), para quem “o homem pensa com todo o seu
corpo”.
No caso dos gaúchos, nós estamos diante de uma cultura viva, que tem o hábito
de pensar suas ações com o corpo, de não separá-lo do mental. Na nossa sociedade
ocidental, impregnada do pensamento cartesiano, fazemos, muitas vezes, uma dicotomia
entre o corpo e o espírito, muitas vezes, em detrimento do último.
Nós estamos aqui em presença de um indivíduo que desenvolveu, por meio de
uma aprendizagem, uma inteligência do corpo. Com,o a expressão thinking in motion,
de Blacking (1980), para se referir a um corpo que pensa pela dança, podemos dizer, por
analogia, que o campeiro tem também um corpo que pensa realizando suas atividades da
lide.
Dois outros pontos a destacar que fazem parte do comportamento do gaúcho em
trabalho são a coragem e o silêncio. Sob o ponto de vista da análise externa, podemos
estabelecer uma comparação com o campo da representação teatral, pois o teatro é
também uma arte viva, em que o ator/dançarino tem que estar presente na sua totalidade
e numa situação de risco por estar exposto ao público. É interessante lembrar que, no
processo de criação, é fundamental arriscar-se em situação de jogo se quisermos ter um
trabalho interessante. O silêncio é fundamental na criação,para os atores, e na labuta,
para o campeiro, pois ambas as atividades requerem concentração e percepção da
totalidade do entorno.
Este aspecto é importante para o desenvolvimento da “inteligência física”
(SAVARESE, 1985, p. 130) do ator/dançarino que treina sua eficácia para o jogo. É
esta mesma capacidade, segundo Volli, (1985, p. 121), que buscam os esportistas e
aqueles que praticam artes tradicionais como as marciais, para
matar, como diz a tradição Zen, a inteligência discursiva. Trata-se de
criar condições de silêncio onde se torna inútil pensar ao que se faz. Então, o
samurai está em condições de combater eficazmente, o artista pode criar ou
executar, o ator jogar, o atleta realizar sua performance.
Essa capacidade está bem presente no campeiro, quando ele apresenta, no seu
trabalho cotidiano, uma atitude de silêncio, permitindo-lhe a concentração e a
disponibilidade física necessárias para melhor agir.
A aprendizagem por imitação
A inteligência presente no corpo do campeiro é desenvolvida por uma
aprendizagem por imitação que requer percepção, observação, repetição, concentração e
a identificação. Essa imitação não é passiva, ela é ativa e crítica na medida em que ela
se desenvolve no âmbito de uma relação pai-filho, mestre-discípulo, artesão-aprendiz,
mesmo quando os campeiros afirmam que não foram ensinados. Os homens na fazenda
SMB aprenderam a profissão de campeiro por meio de seus pais ou outros adultos desde
a idade de 4 ou 5 anos, observando e imitando suas práticas. Essa aprendizagem
tradicional do corpo faz parte integrante da cultura gauchesca. De maneira análoga à dos
atores orientais que aprendem desde a infância imitando o seu mestre, trata-se de uma
“tradição viva transmitida de pai para filho” (SAVARESE, 1985, p. 129). Entre os
campeiros existe a ideia de que a virtuosidade na lide é uma questão de talento, e que se
trata de uma faculdade nata. Na realidade, eles não consideram, na sua capacitação, o
papel que teve a aprendizagem e o fato de que eles repetem a lide diariamente, como um
treino. A aprendizagem vai se prolongar no trabalho cotidiano sem esforço. É por isso
que o campeiro nunca parece cansado nem dispensa muito esforço no seu trabalho. O
seu corpo está tão treinado que ele cumpre o trabalho como um esporte. É esta a palavra
que os campeiros utilizam para definir o prazer que eles têm participando da festa, em
que, para Jorge, um dos peões, é como “fazer um esporte”, e para o domador José “é
como jogar futebol, um esporte que eu adoro”.36
Como ele não dá impressão de cansar ou de realizar esforço durante o trabalho,
além de sentir prazer, poderíamos pensar que se trata de uma atividade de lazer. Na
realidade, é necessário entender que este corpo foi modelado desde a infância e treinado
cotidianamente. Como afirma José “eu tá parado ou tá trabalhando, pra mim é a mesma
coisa”.37
Podemos qualificar tal aprendizagem como holística, na medida em que o
corporal e o metal se encontram nitidamente ligados, o que faz com que todos os
aspectos que constituem o indivíduo sejam desenvolvidos: físico, sensorial, motor,
emocional e cognitivo (PRADIER, 1989, p. 112).
Se analisarmos sob o ponto de vista da análise externa, podemos comparar esse
tipo de aprendizagem desenvolvida através do corpo na sua totalidade com que ele
caracteriza as artes vivas do Oriente. Na realidade, o verbo aprender, em japonês,
contém implicitamente esta referência, pois “se diz em japonês taitoku-suru, o que
significa mais precisamente: ‘aprender pelo corpo’” (PRADIER, 1986, p. 89).
Outro elemento importante que justifica a dimensão espetacular deste tipo de
aprendizagem é que se trata de um processo de iniciação desde a mais terna idade,
quando as capacidades do corpo não estão ainda estabilizadas. É assim na harmonia de
todas as suas potencialidades e competências que o indivíduo vai se desenvolver, e é aí
que reside a dimensão espetacular do ator/dançarino do Oriente:
Uma aprendizagem do ator fundamentada-como é geralmente no
Ocidente-sobre a linguagem, o comentário, a análise psicológica verbal, não
pode conduzir senão a um teatro de intenções. Ao contrário, a história dos
métodos de formação Ásia parece retomar a busca contemporânea do físico:
a inteligência do todo através do domínio do infinitamente pequeno
(PRADIER, 1986, p. 95-96).
O corpo: a medida de todas as coisas
36
Entrevista com José Carlos da SIlva, na fazenda SMB, em 26/11/1994. 37
Entrevista com José Carlos da SIlva, na fazenda SMB, em 26/11/1994.
Percebemos uma sabedoria dos campeiros na maneira como eles se
servem de seu corpo para tomar a medida de tudo o que eles fazem. Quando pega a
corda de seu laço Paulo, o capataz, o faz por braçadas, isto é, na extensão de dois braços
estendidos. José engraxava as tiras de couro dos arreios e arrumava seu comprimento
tendo como medida o seu antebraço.
Este traço dos gaúchos constituiu uma marca de sabedoria, se considerarmos que
“o corpo humano é a mais perfeita e harmônica construção arquitetural”.38
Nosso corpo
estando equilibrado, tudo o que o prolonga é também. Neste sentido toda a construção
que leva em conta as medidas do corpo se torna harmônica e orgânica.
No campo teatral, o corpo do ator é o seu próprio instrumento, e a sua extensão
se estabelece pela sua presença e pela qualidade cênica de seus movimentos. Barba
(1993, p. 152) se refere ao corpo do ator/dançarino como uma “arquitetura de
movimentos”.
Não se trata da forma de uma matéria inanimada incapaz de se
metamorfosear, trata-se da forma de um corpo vivo, mas reinventado, de um
comportamento que se afastou daquele de cada dia, de um natural que é fruto
do fictício.
É, então, por um processo de aculturação que o ator/dançarino “constrói” seu
coro extracotidiano. Um corpo que, apesar do exercício estilizado e codificado que ele
passou, apresentará, pelo treinamento, uma organicidade própria do corpo humano e que
se manifesta igualmente no cotidiano.
Os instrumentos da profissão: uma extensão do corpo
Este último aspecto que será abordado neste artigo e que não foi mencionado
pelos viajantes estrangeiros do século XIX é muito significativo e representativo da
dimensão espetacular do homem gaúcho.
Seus gestos de profissão, aprendidos por observação e exercitados no dia-a-dia,
tornam-se hábitos musculares, reflexos. E os instrumentos que participam das “técnicas
corporais” do campeiro, como o laço, as esporas e o chicote, tornam-se, para ele, uma
maneira de prolongar o corpo. No laçar a cavalo e no pealo, é antes de tudo a corda que
joga este papel; na doma, são as esporas e, na condução dos animais são usados o relho
e o chicote.
38
Depoimento do professor e arquiteto Krikor Belenkian, retirado das notas do curso do LEM, na Escola
Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris, em 1993-1994.
Este aspecto do instrumento técnico como prolongamento do corpo já fi
abordado no campo da Antropologia das técnicas pelos estudos e pesquisas de Leroi-
Gourhan (1964), Haudricourt e Dibie (1987), que influenciaram a Antropologia Teatral.
Volli (1985, p. 121-122), que se inspirou nas ideias de Leroi-Gourhan, vai ainda mais
longe na sua análise das “técnicas do corpo”, afirmando que, além dos instrumentos
técnicos fazerem parte deste corpo, eles formam um conjunto indissociável:
O modo e a maneira pela qual cortamos, escrevemos, martelamos,
usamos roupas e acessórios não faz parte de uma cultura dos objetos, pois
estes instrumentos são mais projeções externas do corpo, a materialização de
posturas e movimentos, de sombras projetadas pelas práticas culturais, em
constante interação com elas.
Na fazenda SMB, observamos um exemplo prático desse aspecto quando
solicitei aos empregados que simulassem a preparação da armada e do laçar a pé, sem a
corda e eles não souberam fazê-lo. Na realidade, esses gestos se tornaram neles reflexos
tão precisos e eficazes, o instrumento passado a ser como um prolongamento do corpo e
parte integrante da técnica corporal. Privados do instrumento, eles são incapazes de
reproduzi-la, pois é como se faltasse o seu braço.
É o que confirma o gerente da fazenda, Motta, para quem a manipulação do laço
é, para o campeiro, “uma coisa automatizada, não tem dúvida”. E quando eles lançam a
corda do laço, é como se eles “levassem o braço para pegar alguma coisa”.39
Esses exemplos ilustram concretamente o fato de que não somente os
instrumentos do campeiro se constituem em espécies de apêndices naturais de seu
corpo, mas também que se trata de um corpo que pensa agindo, que possuí uma
inteligência orgânica. A automatização de seus gestos mostra, a exemplo dos realizados
nas artes marciais, que eles são conscientes e que essa consciência tem uma
corporeidade.
Perguntemo-nos se no campo da atuação cênica podemos encontrar referências a
este aspecto. O ator/dançarino tem como instrumento de trabalho o seu próprio corpo e
treina até que ele se torne um conjunto orgânico, completo, pronto a entrar em jogo.
Inspirando-se na noção de técnicas corporais de Mauss (1974) e Barba (1993),
consideram que tudo pode ser aprendido e que o gesto mais eficaz é aquele que se
tornou quase reflexo. Esses gestos, adquiridos durante a aprendizagem e desenvolvidos
39
Entrevista com Motta, em 5/11/1994, em São Borja.
por treinamento, fazem parte do indivíduo a ponto que ele pode executá-los à perfeição,
colocando em prática essa inteligência orgânica.
Para resumir, eu diria que o tipo estético que o gaúcho desenvolveu por uma
aprendizagem tradicional através de uma inteligência corporal e organicidade
constituem o fundamento da dimensão espetacular de seus comportamentos de
profissão. Esses diferentes aspectos colocam também em relevo um traço que me parece
essencial na cultura gauchesca, que é a não separação entre o corpo e a mente na
maneira de ser e agir do campeiro, e isso é o que lhe dá uma especificidade e o distingue
dos outros.
Como conclusão, diria que o campeiro apresenta qualidades corporais, atitudes
de trabalho e características pessoais que lhe conferem um corpo de combate/guerreiro e
que todos esses elementos podem ser inseridos nas categorias estabelecidas no início do
texto, que servem para delimitar a dimensão espetacular da identidade gaúcha:
- a masculinidade, pelo fato de que ser campeiro e fazer trabalho é reservado aos
homens, exigindo-lhes virtuosidade, destreza, coragem e força física;
- a combatividade, pelo fato de que todas as atividades de profissão mostram,
antes de tudo, um combate entre o homem e o animal, quando o último sempre é
dominado. Essa situação de combate coloca em cena qualidades e capacidades, tais
como o equilíbrio, o domínio do animal, a sincronia, a resistência, a percepção espacial,
a observação e o estado de alerta;
- o excesso, pelo fato de que todas as atividades realizadas implicam em risco de
morte;
- a organização, pelo fato de que todas as atividades da profissão dos campeiros
são organizadas e seguem métodos que exigem gestos e comportamentos precisos,
eficazes e econômicos.
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