aspectos da cultura gaúcha e sua teatralidade · entre outros especialistas dessa cultura....

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Aspectos da cultura gaúcha e sua teatralidade Inês Alcaraz Marocco Introdução Ninguém ainda, na verdade abordou esta tarefa imensa, da qual Mauss assinalava a necessidade premente, a saber: o inventário e a descrição de todos os usos que os homens, no curso da história e principalmente em todo o mundo, fizeram e continuam a fazer de seus corpos (LÉVI STRAUSS, apud MAUSS, 1974, p. 4). Os depoimentos dos viajantes europeus que atravessaram o Rio Grande do Sul nos séculos XVIII e XIX forneceram material de uma grande riqueza etnológica e etnográfica em relação à cultura gaúcha. Esse material constituiu uma fonte importante para pesquisadores como Hessel (1969), Leal (1988), Cezimbra Jacques (1883, 1979) Vellinho (1970,1973), Ornellas (1976), Flores (1993), Fagundes (1994), Meyer (1957), entre outros especialistas dessa cultura. Todavia, há um importante aspecto dessa cultura que não foi descrito e nem analisado por esses autores: a dimensão espetacular da cultura gaúcha e, mais especificamente, daquela que faz parte da região de fronteira, situada no oeste do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, neste artigo, adotarei o ponto de vista da Etnocenologia, 1 disciplina que estuda os comportamentos e as práticas espetaculares humanas organizadas, considerando, para análise, o meu olhar de diretora de teatro. Quanto a dimensão espetacular adotada aqui, ela se caracteriza por: a) não se deruzir só ao visual; b) referir-se ao conjunto das modalidades perceptivas humanas; c) reforçar o aspecto global das manifestações expressivas humanas, incluindo as dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais (PRADIER, 1996, p. 16). Como profissional das Artes Cênicas, tive, na realidade, uma formação de professora e diretora nesse campo. E a ideia deste estudo sobre a dimensão espetacular do homem gaúcho surgiu em consequência do trabalho artístico que realizei durante a criação de um espetáculo teatral intitulado Manantiais. 2 Esse espetáculo deveria fazer 1 Disciplina criada pelo professor Jean Marie Pradier e um grupo de intelectuais. Foi fundada oficialmente na sede da UNESCO, por ocasião do Colloque de Fondation du Centre International d’Ethnoscénologie”, nos dias 3 e 4 de maio de 1995, na Maison des Cultures du Monde, em Paris. 2 A origem deste trabalho está ligada à minha experiência prática de diretora teatral junto aos alunos/atores do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no

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Page 1: Aspectos da cultura gaúcha e sua teatralidade · entre outros especialistas dessa cultura. Todavia, há um importante aspecto dessa cultura que não foi descrito e nem analisado

Aspectos da cultura gaúcha e sua teatralidade

Inês Alcaraz Marocco

Introdução

Ninguém ainda, na verdade abordou esta tarefa imensa, da qual Mauss

assinalava a necessidade premente, a saber: o inventário e a descrição de

todos os usos que os homens, no curso da história e principalmente em todo

o mundo, fizeram e continuam a fazer de seus corpos (LÉVI STRAUSS,

apud MAUSS, 1974, p. 4).

Os depoimentos dos viajantes europeus que atravessaram o Rio Grande do Sul

nos séculos XVIII e XIX forneceram material de uma grande riqueza etnológica e

etnográfica em relação à cultura gaúcha. Esse material constituiu uma fonte importante

para pesquisadores como Hessel (1969), Leal (1988), Cezimbra Jacques (1883, 1979)

Vellinho (1970,1973), Ornellas (1976), Flores (1993), Fagundes (1994), Meyer (1957),

entre outros especialistas dessa cultura.

Todavia, há um importante aspecto dessa cultura que não foi descrito e nem

analisado por esses autores: a dimensão espetacular da cultura gaúcha e, mais

especificamente, daquela que faz parte da região de fronteira, situada no oeste do Rio

Grande do Sul. Nesse sentido, neste artigo, adotarei o ponto de vista da Etnocenologia,1

disciplina que estuda os comportamentos e as práticas espetaculares humanas

organizadas, considerando, para análise, o meu olhar de diretora de teatro.

Quanto a dimensão espetacular adotada aqui, ela se caracteriza por: a) não se

deruzir só ao visual; b) referir-se ao conjunto das modalidades perceptivas humanas; c)

reforçar o aspecto global das manifestações expressivas humanas, incluindo as

dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais (PRADIER, 1996, p.

16).

Como profissional das Artes Cênicas, tive, na realidade, uma formação de

professora e diretora nesse campo. E a ideia deste estudo sobre a dimensão espetacular

do homem gaúcho surgiu em consequência do trabalho artístico que realizei durante a

criação de um espetáculo teatral intitulado Manantiais.2 Esse espetáculo deveria fazer

1 Disciplina criada pelo professor Jean Marie Pradier e um grupo de intelectuais. Foi fundada oficialmente

na sede da UNESCO, por ocasião do “Colloque de Fondation du Centre International

d’Ethnoscénologie”, nos dias 3 e 4 de maio de 1995, na Maison des Cultures du Monde, em Paris. 2 A origem deste trabalho está ligada à minha experiência prática de diretora teatral junto aos

alunos/atores do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no

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parte do programa do II Festival Internacional de Teatro Universitário, que aconteceu

no Marrocos, em 1989, e para o qual havia recebido um convite. Naquela ocasião,

queria apresentar um espetáculo sobre a nossa cultura e, assim, dar a conhecer aos

marroquinos a diversidade cultural do Brasil. O tema escolhido era, então, a cultura

gauchesca e, para a boa compreensão dos não lusófonos, tratava-se de abordá-la com

pouco texto e, sobretudo, privilegiando o movimento corporal. O trabalho de criação

durou um ano e propiciou uma verdadeira descoberta de nossa própria cultura e, da

mesma forma, mostrou que era possível teatralizar essa dimensão do homem gaúcho,

de colocá-la em cena.

Essa experiência também demonstrou que dispúnhamos de um material muito

rico para a reflexão teórica sobre as práticas espetaculares da cultura gauchesca.

Durante a pesquisa que fez parte do espetáculo e do seu processo de criação, percebi

que essa cultura apresenta, além dos aspectos folclóricos de um grande valor teatral,

técnicas específicas, ligadas às práticas da lide campeira.

Meu interesse pelo desenvolvimento de um trabalho teórico sobre a dimensão

corporal do gaúcho nasceu precisamente durante esta pesquisa, quando solicitei a um

gaúcho laçador que fizesse uma demonstração técnica de sua arte. Fiquei, então,

impressionada com a eficácia, a precisão dos movimentos que ele imprimia à corda e

também com sua presença física bastante surpreendente. Percebi, assim, que seus

movimentos tinham as qualidades dos atores/dançarinos que treinam segundo os

princípios da Antropologia Teatral3 de Eugenio Barba, visando, precisamente, a obter

uma grande presença física em cena.

Essas impressões se concretizaram quando, durante o processo de criação do

espetáculo, percebi, através do treinamento dos alunos/atores (na reprodução de alguns

dos comportamentos e gestos tradicionais da cultura gaúcha), que eles integravam

período de 1976-1999. Este trabalho, realizado em 1988-1989, foi desenvolvido pelos professores e

alunos do departamento, participantes do grupo Teatro Experimental Universitário (TEU). Este

espetáculo foi constituído por lendas e contos de autores sul-riograndenses, com Barbosa Lessa e Simões

Lopes Neto, além de descrições históricas e antropológicas recolhidas pelo historiador Auguste se Saint-

Hilaire. 3 A Antropologia Teatral de Eugenio Barba se propõe a “estudar o comportamento cênico pré-expressivo

que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis, mas também das tradições pessoais ou

coletivas [...] ela estuda o comportamento pré-expressivo do ser humano em situação de representação

organizada” (BARBA, 193, p. 23-24).

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perfeitamente nos seus corpos esses gestos e desenvolviam, além disso, uma presença

física que se assemelhava àquela do laçador na sua demonstração.

Tudo isso me levou a alguns questionamentos: Quem é este homem gaúcho cujo

corpo atrai tanto a atenção? De que maneira ele atrai a atenção? De onde lhe vem tal

presença física? Essas diferentes questões me levaram a formular uma outra que acabou

por se tornar a central: O que é que faz a dimensão espetacular dos comportamentos e

das manifestações culturais do gaúcho?

Partindo do princípio, então, de que o homem gaúcho se mostra espetacular, pela

sua aparência física, seus comportamentos e seu discurso, e isto tanto no cotidiano de

sua profissão quanto nas situações de lazer, realizei um estudo que gerou uma tese de

doutorado,4 além de outras pesquisas

5 realizadas nas universidades em que trabalhei.

O meu estudo, que se realiza sob a perspectiva da Etnocenologia, trata dos

aspectos espetaculares de uma cultura específica e, em particular, dos comportamentos e

manifestações vivas por meio das quais eles se manifestam. O espetacular, a partir dessa

perspectiva, deve ser aqui compreendido como sustentado pelo corpo, isto é, por tudo o

que é referente à aparência física, aos gestos de trabalho, aos hábitos de indumentária e

de alimentação, ao discurso, que expressam ao mesmo tempo os valores e os símbolos

representativos da identidade cultural do gaúcho.

Neste artigo, vou me ater aos gestos de trabalho do campeiro, mais

especificamente às técnicas corporais presentes na lide campeira, utilizando esta

expressão no sentido que lhe dá Mauss (1974, p. 211) “entendo por essa palavra as

maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem

servir-se de seus corpos”. É importante ressaltar que, para ele, a técnica é “um ato

tradicional eficaz [...] e que não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição”

(MAUSS, p. 217).

Para realizar este estudo, iniciei uma pesquisa etnográfica de campo, a qual

serviu de base ao meu trabalho, cujo objetivo era também o de fazer o inventário dos

4 A Tese de Doutorado intitulada Le geste spectacularire dans l aculture gaúcha du Rio Grande do Sul-

Brésil, foi defendida em 1997, na Universidade de Paris 8, em Saint-Denis, França. 5 A pesquisa intitulada A questão do espetacular na trova e na performance do trovador do Rio Grande

do Sul foi desenvolvida na UFSM (1998-2000) e atualmente estou desenvolvendo a pesquisa As técnicas

corporais do gaúcho e a sua relação com a performance do ator/dançarino no DAD/IA-UFRGS.

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comportamentos e práticas culturais espetaculares e organizadas dos gaúchos, a fim de

contribuir para a sua restituição e resgate. Neste artigo, proponho-me a fazer um

inventário sem me ater a uma descrição detalhada dessas práticas, a qual está

contemplada na tese de doutorado já citada. A fim de analisar e distinguir melhor a

complexidade de tais manifestações, fundamentei meu trabalho no método de análise

proposto pela Etnocenologia, que, por sua vez, se utiliza dos princípios das

Etnociências, os quais recomendam recorrer a dois tipos de análise: a interna e a

externa. As “’análises internas’ partem de critérios próprios à cultura estudada, e as

‘análises externas’ se fundamentam nas noções e métodos científicos em uso”

(PRADIER, 1996, p.20).

Graças à análise interna dos elementos fornecidos pela própria cultura, defini

algumas categorias que são recorrentes nos comportamentos do gaúcho, tais como a

masculinidade, a combatividade, a organização e o excesso que fazem parte dos valores

essenciais dessa cultura e constituem a identidade desse homem. São elas que vão me

ajudar não somente a perceber os comportamentos e atividades as mais representativas

dos campeiros, mas também a colocar em evidência a sua dimensão espetacular. A

análise externa se desenvolverá com o auxílio de diferentes disciplinas, como a

Antropologia Teatral, a Antropologia das Técnicas e a Proxémie.

O gaúcho é um tipo espetacular?

No trabalho de doutorado, refiro-me ao gaúcho como sendo um combatente, um

guerreiro e tento colocar em evidência que é nesse aspecto, entre outros, que reside a

dimensão espetacular de seu comportamento. Na realidade, a combatividade é uma das

categorias constitutivas da identidade “gauchesca”. Ela é visível no gaúcho pela sua

aparência física, assim como pelos seus comportamentos cotidianos e de lazer, como já

evocado na Tese. Esses aspectos são ainda mais evidentes nas atividades de sua

profissão, nas quais o gaúcho encontra-se sempre em situação de combate e em contato

direto com o animal.

O que parece importante de reforçar neste estudo sobre a dimensão espetacular

característica dessa cultura é que os gestos que o gaúcho na sua profissão, sejam eles

cotidianos sejam de situações de festa, demonstram uma preocupação sempre presente

pela estética. A estética do gaúcho, segundo Ornellas (1976), caracteriza-se assim por

sua aparência elegante, por sua competência na profissão e nas atividades de lazer assim

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como pelos seus valores morais, tais como a coragem e a audácia. Como podemos ver

pela afirmação de Ornellas (1976, p. 225) para quem o gaúcho é um:

Tipo essencialmente estético, o canto, o jogo, a doma, a marcação, o laço, o

rapto, a carreira e a peleia foram suas atividades preferidas. Onde não

pudesse luzir seu valor ou sua agilidade, onde não lhe admirassem a

galhardia e o gesto, a audácia, a coragem e a nobreza, o gaúcho não achava

interesse. Para ele a vida era um espetáculo estético e o homem um ator

trágico.

Essa preocupação com a estética do campeiro pode ser verificada também na

literatura relativa à história do Uruguai, com Zum Felde (1919).

É importante assinalar que os gaúchos reproduzem nas festas campeiras as

mesmas atividades que fazem no seu cotidiano. Na realidade, independentemente dessas

atividades se realizarem no cotidiano ou em ambientes de festa, elas se constituem

sempre num elogio ao homem campeiro, a seus valores morais, sociais e estéticos, pois,

através delas, percebemos sua coragem, liberdade e ética para com o grupo, seu espírito

de competição e sua preocupação com as aparências e o trabalho bem realizado que é

uma exigência de perfeição e competência.

Neste texto, minha intenção é a de fazer um inventário e a análise do savoir faire

do gaúcho, através das atividades que ele desenvolve na fazenda, como o laçar a cavalo,

o pealo, a doma, e a condução do gado.

As atividades que serão analisadas aqui são representativas do universo do

campeiro da região da fronteira oeste do estado do Rio Grande do Sul, e, entre elas,

duas não são mais praticadas: o pealo e o bolear. A primeira delas, que consistia em

pegar o terneiro pelas patas dianteiras para fazer a marcação, perdeu a sua função. Ela

pode ser feita de uma forma bem mais simples e prática, prendendo o gado no brete.6

Mas apesar de não ser mais usada no campo, consegui que ela fosse demonstrada

durante a minha pesquisa de campo e foi assim que conheci uma prática que

esteticamente se parece muito com uma dança por apresentar características como

harmonia, equilíbrio no espaço, organização, precisão e habilidade nos movimentos. A

segunda é mais antiga. Encontrei traços dela somente nos depoimentos dos viajantes.7

6 A expressão brete designa uma espécie de corredor que comunica com a mangueira ou curral, dentro do

qual o animal fica com os seus movimentos tolhidos, podendo ser marcado [...] vacinado, castrado,

tosado, etc. (NUNES e NUNES, 1993, p. 74). 7 Verificar em Darwin (1992, p. 166) e Saint-Hilaire (1887, p. 74).

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Sua descrição adquire uma maior importância porque se trata de uma atividade de

origem indígena, cujos movimentos parecem muito com aqueles da manipulação do

laço.

Na realidade, estamos aqui em presença de práticas espetaculares que, repito,

representam também os valores morais, sociais e estéticos da cultura gauchesca, as

quais pretendo evidenciar por meio de uma abordagem etnocenológica.

Essa abordagem propõe a descrição dos comportamentos emergentes como

sendo um método apropriado para o estudo das manifestações vivas de uma cultura.

Para Pradier (1996, p. 41), Etnocenologia é:

Uma ciência da presença do vivo, uma disciplina voltada à descrição dos

comportamentos emergentes fundadores da identidade não tem somente um

valor de erudição. Ela introduz a descoberta do múltiplo na unidade da

espécie, do sutil na diversidade, no mais profundo do enigma da vida e de seu

respeito amoroso.

Neste texto, não apresentarei as descrições8 de cada atividade, mas uma análise

por analogia com os princípios da Antropologia Teatral, de seus aspectos mais

importantes que ajudem na compreensão da dimensão espetacular, extracotidiana. Para

Barba (1993, p. 32), “Elas (as técnicas extras cotidianas) parecem mesmo sugerir um

princípio inverso daquele que caracteriza as técnicas cotidianas: o princípio de um gasto

máximo de energia para um resultado mínimo”.

Como verificar essa dimensão nos comportamentos de profissão do gaúcho? O

extracotidiano não se refere aqui à conduta dos interessados (observados), mas à do

observador que, pelo contraste, demonstra o caráter excepcional do que ele percebe.

Inicialmente, inspirando-me no olhar externo do viajante europeu, um dos primeiros a

ter registrado esses comportamentos, e, em seguida, no meu olhar de diretora de teatro

em situação de interação com os discursos e as práticas do campeiro.

O inventário das atividades do campeiro foi realizado na fazenda Santa Maria de

Butuí (SMB)9, no qual analiso as qualidades corporais que caracterizam seu gestual e o

aspecto extracotidiano, por meio de uma análise interna, tendo como critérios os

próprios valores da cultura gauchesca. Justifico o aspecto extracotidiano dessas

8 As descrições de cada atividade citada neste texto estão na Tese já citada.

9 A fazenda de Santa Maria de Butuí é de propriedade de Odete Saraiva e localiza-se em Itaqui, na região

oeste do Rio Grande do Sul, e tem como gerente José Cláudio Motta.

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atividades com base em um olhar externo, isto é, por analogia com as atividades que

desenvolvem os atores/dançarinos para reforçar sua presença física sobre a cena. E é a

partir deste inventário e análise que espero colocar em evidência os fundamentos do

comportamento do campeiro que tornam sua dimensão extracotidiana espetacular.

Antes de proceder ao inventário dessas atividades, veremos, por meio de alguns

depoimentos dos viajantes estrangeiros, como eles percebiam os gaúchos nos seus

comportamentos e em algumas de suas práticas profissionais.

O olhar dos viajantes estrangeiros no século XIX

É importante enfatizar que o gaúcho que é descrito nos depoimentos dos

primeiros viajantes estrangeiros que vieram ao sul do Brasil no século XIX é aquele

indivíduo que habitava numa vasta e única região sem fronteiras delimitadas, que

compreendia o atual estado do Rio Grande do Sul, o Norte da Argentina e o Leste do

Uruguai, que eram também conhecidas pelo nome de terra de ninguém.

O gaúcho, segundo os depoimentos de Saint-Hilaire, correspondia a um tipo

rude e grosseiro, que era só aparências. O fato de que ele vivia numa região onde

predominava o estado de guerra e o regime militar e de que ele tinha como profissão

cuidar e formar o gado, só reforçava a ideia de Saint-Hilaire (1974, p. 120). Para ele, os

gaúchos eram homens que não exerciam sua inteligência:

Fazenda do Deumário, 16 de fevereiro, 3 léguas – [...] A vida pastoril,

tomando o vocábulo em sua verdadeira acepção é própria dos primeiros

estágios da civilização, quando as regiões ainda estão despovoadas. Quando a

população aumenta e as terras se dividem, é preciso dedicar-se à agricultura,

que exige maiores conhecimentos que a criação de animais, conduzindo,

portanto, o homem ao aperfeiçoamento. As magníficas pastagens que cobrem

as capitanias do Rio Grande do Sul e Uruguai convidavam naturalmente os

primeiros povoadores à criação de gado, mas contribuíram para um estado

retrógrado, fazendo-os deixar a vida agrícola propriamente dita pela pecuária,

verdadeiro retorno à barbárie, aliás, muito mais sensível entre os espanhóis,

que chegam a se confundirem com os índios.

Mas o que o viajante botânico não percebeu, e Darwin reparou muito bem, é que

o gaúcho tinha desenvolvido uma inteligência do corpo. Diferentemente do que Saint-

Hilaire considerava, este homem pensava mais agindo; além do que ele atraía a atenção

dos outros pela sua forte presença corporal. Darwin (1992, p. 134), que foi um dos

primeiros viajantes a descrever suas atividades assim como os gestos que faziam, refere-

se a uma delas como a um espetáculo:

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Um dos espetáculos mais curiosos que possa oferecer Buenos Aires é o

grande curral, onde se guarda antes do abate os animais que devem servir ao

abastecimento da cidade. A força do cavalo comparada ao do boi é realmente

impressionante. Um homem a cavalo, após ter laçado os cornos do boi, pode

leva-lo onde ele quiser [...].

Descrevendo as atividades da profissão do gaúcho, Darwin foi o primeiro a

perceber sua dimensão espetacular. Viajantes tais como Saint-Hilaire e Dreys, que

também ficaram impressionados com a habilidade e a excelência do gaúcho como

cavaleiro, não fizeram descrições de suas atividades por serem etnocentristas,

enxergando na vida do campo uma primeira época da civilização, e, em consequência,

sem interesse. Mas apesar disso, Dreys (1961, p. 148) descreveu o que ele considerava

como sendo os principais instrumentos do sul-rio-grandense, o laço e as boleadeiras,

reconhecendo que “somente os homens desta parte da América sabem manejar com

habilidade”.

Segundo este autor, saber utilizá-las bem era também uma questão de

sobrevivência, “Subjugar na imensidão dos pampas, o gado, o cavalo solto, não há nada

que possa suprir o laço: com o laço, nunca falta ao rio-grandense nem o que comer, nem

meios de caminhar”. (DREYS, 1961, p. 148).

Nos relatos dos viajantes, percebo que Darwin descreve as fases do tiro de laço –

o laçar – tal como ele era realizado no século XIX -, que correspondem, com todas as

proporções guardadas, ao que os campeiros ainda fazem nos dias de hoje. O pealo, de

acordo com a descrição de Darwin e Saint-Hilaire, era feito a cavalo; e a doma,

conforme a descrição de Darwin, era diferente de como é feita hoje, o animal, por

exemplo, era laçado pelas patas, como se fosse um pealo a cavalo. Além disso, por

meio da descrição desta atividade, constatei o desaparecimento de alguns procedimentos

e, em consequência, de certos gestos.

A partir de depoimentos10

dos viajantes, mais especificamente de Darwin, que

percebeu e se ocupou em descrever as qualidades do corpo, virtuose do gaúcho, extrai

alguns aspectos que considero importantes para este estudo em razão: 1) da habilidade e

da destreza física destes homens cavaleiros; 2) da organização de suas atividades que

obedecem a um método e são realizadas em equipe; 3) da exigência de um corpo

10

Para ter acesso a um relato mais completo dos depoimentos dos viajantes estrangeiros, reportar-se à

tese já citada.

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equilibrado e ágil; 4) da realização de gestos específicos, precisos, eficazes e

econômicos; 5) do risco de morte.

A seguir, farei um inventário e a análise de algumas atividades que considero

como sendo as mais representativas do universo gaúcho que habita atualmente nas

regiões de São Borja e Itaqui.

A espetacularidade da lide campeira

O interesse em estudar estas atividades reside em duas razões: de um lado trata-

se de manifestações vivas representativas da cultura gaúcha; e, de outro, elas

apresentam qualidades corporais e estéticas que considero como extracotidianas,

espetaculares.

Mas, como enfatiza Jean Marie Pradier, (1996, p.21), “os fatos espetaculares

existem como picos emergentes que não revelam nada ou muito pouco dos sistemas

complexos, psicobiológicos, culturais, etc. que são o motor, a fonte ardente”.

Assim, neste artigo, analisarei o aspecto espetacular dessas manifestações, mas

também, tratarei dos aspectos subjacentes às técnicas corporais, enfatizando as

qualidades e habilidades que estas atividades exigem, assim como farei analogias com

os princípios da presença física no ator/dançarino, segundo Barba.

Na realidade, a descrição dos viajantes do século XIX das atividades do gaúcho

são ainda válidas 160 anos depois, como pude comprovar em minhas observações.

Verifiquei também, por meio destas descrições, que se trata de práticas tradicionais.

Além do laçar, do pealo e da doma, que foram observados e descritos pelos viajantes,

considerei também os gestos da atividade de conduzir o gado. Eles são também

importantes, pois fazem parte integrante da profissão do campeiro, e apresentam

características corporais que podem ser encontradas em outras atividades, em especial

as de lazer.

O encilhar11

11

Encilhar significa colocar os arreios no animal (NUNES, 1993, p. 160). A expressão arreios designa o

conjunto de peças com que se equipa um cavá-lo para monta-lo (NUNES, 1993, P.41)

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A primeira atividade que o campeiro faz no início de sua jornada é a que

consiste em selar seu cavalo. Trata-se de uma atividade organizada na medida em que

ela obedece a uma ordem precisa na colocação de diferentes acessórios para encilhar,

que são os arreios.

É importante lembrar que existe uma diferença entre a maneira de encilhar

cavalos já domados e os selvagens. A ordem dos gestos durante a atividade de encilhar

é sempre a mesma, o que muda é a maneira com a qual cada um dispõe os acessórios.

Há, no entanto, algumas variantes nesta atividade durante a Festa Campeira, como o

gaúcho que observei ser pelego12

sobre a sela.

Essa atividade é minuciosamente organizada até na disposição dos acessórios

antes que o campeiro comece a equipar o cavalo: eles são, em geral, colocados no chão

ou sobre os cavaletes já na ordem de sua instalação. Para ir à festa, os gaúchos levam o

equipamento do cavalo, fazendo uma espécie de pacote, operação que eles chamam de

imalar os arreios.

A ação de encilhar o cavalo é, na realidade, uma técnica que exige certo savoir

faire. Motta, o administrador da fazendo SMB, contou-me a diferença que existe entre

os gaúchos de uma fazenda agrícola e os de uma de criação de gado na maneira de

encilhar um cavalo. De acordo com ele, para realizar esta atividade aparentemente

banal, que se repete cotidianamente, a vestimenta do cavaleiro e os acessórios devem

obedecer a certas regras: “Numa fazenda agrícola, tu vês os homens montarem o cavalo

em jeans, o que tu não verás numa fazenda de criação de gado. E o cavalo com os

arreios meio complicados, atados com cordas de nylon”13

.

Os gestos são precisos, nítidos, firmes e econômicos. Não é preciso fazer duas

vezes a mesma coisa, pois o campeiro não se engana. O ritmo com o qual ele dispõe os

arreios é igual durante todo o processo, pontual, tranquilo, com a diferença do ritmo de

desencilhar, que é mais rápido. Os campeiros da fazenda realizam esta tarefa lado a

lado, mas ficam concentrados, a maior parte do tempo em silêncio, mesmo que alguns

realizem esta atividade cantando ou assoviando.

12

“Trata-se de pele de carneiro ou de ovelha de forma retangular, com a lã natural, que se coloca sobre os

arreios, para tornar macio o assento do cavaleiro” (NUNES, 1993, p. 361). 13

Entrevista dada por José Candido Motta, em 5/11/1994, em São Borja.

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Encilhar um cavalo exige também certa arte, como mostra a descrição de Vianna

(1974, p. 209) na sua análise do campeiro. A busca da identidade do gaúcho leva-o

também a trabalhar a imagem do cavalo: este animal é muito importante para ele, e a

maneira pela qual ele personaliza o encilhamento, enfeitando de prata os estribos e

certos elementos dos arreios, por exemplo, contribui para reforçar a própria imagem.

O próprio arrear do cavalo – do pingo [...] cuidadosamente tosado - é para ele

uma obra de arte, suma prova de seu gosto artístico e de sua hipofilia. No

compor dos aperos da arredura, nos indefectíveis ornatos de prata, rosas,

estrelas, corações de adornam suas cabeças [...] na complicada abundância de

suas peças complementares [...] em suma, em toda a composição e disposição

desses arneses numerosos, o gaúcho põe o orgulho e os requintes de um

artista. (VIANNA, 1994, p. 209).

Após encilhar o cavalo, o campeiro se prepara para a atividade de laçar, que

também obedece a regras. Já nesta primeira atividade do gaúcho, destacam-se alguns

aspectos que são recorrentes em todo o trabalho da lide, como a repetição, o savoir

faire, a precisão e a economia de seus gestos, que por analogia podemos afirmar que

estes elementos são também necessários para o trabalho de treinamento do

ator/dançarino.

O tiro-de-laço

No que se refere ao tiro-de-laço, que se constitui em arremessar o laço contra o

animal que se pretende pegar, uma das primeiras coisas que os campeiros realizam é a

armada do laço, isto é, preparar o laço, fazendo várias voltas com a própria corda para

obter mais potência. Esta atividade preparatória foi descrita pelos europeus na sua fase

final. Na Festa Campeira assim como na fazenda SMB o procedimento é o mesmo. A

diferença é que, no primeiro caso, as regras precisas determinam a medida do diâmetro

da armada. Ele deve ter 7,5 metros: na fazenda, este diâmetro não é limitado, e depende

do espaço disponível e da necessidade do momento.

É interessante assinalar que o laço é um instrumento de trabalho que pode servir

de arma, o que equivale a dizer que é um instrumento de combate. Isso reforça a minha

ideia de que o homem gaúcho é, antes de tudo, um combatente e o laço, um de seus

instrumentos. É um acessório importante para o trabalho do campeiro, que o traz sempre

enrolado e amarrado na cincha, na parte traseira da sela, à sua direita. Essa maneira que

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tem o gaúcho de trazê-lo sobre o cavalo é vista por certas pessoas como um traço de

elegância: o “gaúcho faceiro carrega o laço com variada e requintada elegância”

(VIANNA, 1974, P. 258).

Tanto em situação de competição na Festa como na fazenda, o gaúcho prepara a

armada ao mesmo tempo em que galopa e observa os terneiros destinados a serem

curados ou castrados e que deverão ser laçados. O movimento de girar o laço é idêntico

ao observado na Festa, a única diferença é a circunferência da armada que é menor

assim como as rodilhas14

que determinam a potência da corda são menos numerosas, ,

por que o espaço onde acontece o exercício é mais reduzido.

Na fazenda, é na atividade de parar o rodeio15

que o laçar é mais presente e,

como já disse, desenvolve-se em um espaço ainda mais reduzido. Daí o campeiro não

tem necessidade de correr com seu animal. Ele circula geralmente entre os animais, com

a armada na mão direita pronta para ser usada. Em seguida, procede a todas as etapas

do laçar, tais como foram feitas na festa, mas com outra qualidade de energia, os

movimentos vão se tornando reduzidos. No entanto, mesmo realizando a atividade com

menos energia e deslocamentos, ela exige uma grande virtuosidade na medida em que

há sempre um risco mortal. Segundo Motta, a corda do laço “é a arma do diabo. Porque

o laço é a coisa mais perigosa que existe; se der errado, mata ou aleija, arranca um

braço, tira pedaço”.16

Além disso, encontrei, no cotidiano, situações imprevistas que não

vi na Festa e nas quais o risco é ainda maior, além de ser necessário provar uma eficácia

e uma destreza extraordinárias. Nesta atividade, salienta-se a capacidade de improvisar

e agir em situações imprevistas que exigem novas adaptações a todo o momento, é a

técnica dando liberdade para agir dentro das diferentes possibilidades que aparecem. É

nesses momentos que a dimensão espetacular desta atividade aparece com mais nitidez.

Na festa, onde o espaço disponível ocupado pelo campeiro e o animal que ele

deverá pegar são maiores, a atividade de todas ase etapas que a compõe aparecem com

mais nitidez. Existem duas maneiras de realizar esta atividade: 1) o contrarrasto ou

frente e o 2) encontro. A diferença entre essas duas maneiras de manipular o laço

14

As rodilhas são pequenas voltas do laço que, quando é manejado, ficam algumas junto à armada, na

mão direita e outras na mão esqueda do laçador (NUNES, 1993, p. 435). 15

A atividade de parar o rodeio, consiste em reunir o gado no rodeio com a finalidade de marcar,

assinalar, castrar, curar, dar sal, apartar examinar (NUNES, 1993, p.350) 16

Entrevista com José Cláudio Motta, no dia 5/11/1994, em São Borja.

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depende da posição do cavaleiro em relação ao terneiro que ele quer pegar: ele se coloca

à direita do animal, na primeira; e atrás dele, na segunda.

Segundo Motta, o laçar do campeiro da região é muito difícil de realizar, na

medida em que “o movimento do braço no nosso método não deve ficar do lado da

cabeça.”17

Isso reforça a ideia de especificidade das técnicas corporais dessa profissão,

na qual uma das características é a rotação da mão, que necessita de um movimento

hábil do punho, o qual é chamado pelos campeiros de quebrar o pulso. A mão gira,

assim em torno do punho, num movimento que é realizado pelo braço, que é também

giratório. É a este mesmo movimento de mão que se refere Darwin.18

Segundo Motta, é ele quem dá o verdadeiro impulso ao reboleio19

e dirige a ação

de laçar. Trata-se de um exemplo de economia de gestos e, ao mesmo tempo, a

utilização máxima da energia, ao contrário de qualquer movimento cotidiano que

responde ao princípio mínimo do esforço. Outro aspecto a destacar é a harmonia e a

sincronia presentes entre o cavalo e o cavaleiro.

O cavalo sabe o que vai fazer. Se tu estás com o laço nos tentos, ele sabe que

ele pode correr um boi ou uma vaca, mas ele sabe que não é para laçar, que é

para atacar, apartar, para fazer uma coisa diferenciada. Com o laço na mão, é

difícil o cavalo encostar-se na rês.20

O cavaleiro deve, assim, executar várias ações ao mesmo tempo: fazer girar o

laço, equilibrar-se, conduzir o cavalo pelos movimentos corporais e manterás rédeas.

Para isso, é necessário: 1) equilíbrio: é um dos princípios de base das qualidades

corporais que deve desenvolver o gaúcho na sua profissão, na medida em que todas as

suas atividades, à exceção do pealo, realizam-se a cavalo; 2) coordenação motora; 3)

atenção concentrada; 4) uma percepção do espaço muito desenvolvida para saber o

momento exato em que deve atirar o laço; 5) sincronia entre seus movimentos e os do

animal; 6) uma qualidade de olhar sobre a cabeça do animal que persegue; e 7) realizar

as oposições nos movimentos de soltar e puxar a corda do laço, com inclinações do

tronco para frente e para trás. Podemos observar que o campeiro, depois de laçar o

17

Entrevista com José Cláudio Motta, no dia 5/11/1994, em São Borja. 18

Verificar a descrição do movimento de rebolear em Darwin (1992, p. 51). 19

Rebolear significa dar movimento de rotação ao laço ou à boleadeira, a fim de lançá-los sobre o animal

que se pretende prender. Fazer com que qualquer objeto descreva trajetórias circulares no ar (NUNES,

1993, p. 421). 20

Entrevista com José Cláudio Motta, no dia 5/11/1994, em São Borja.

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animal, tem diferentes maneiras de puxar a corda do laço, revelando, assim diferentes

estilos (Figura 1a, b, c).

Do ponto de vista da análise externa, e se fizermos a analogia desta atividade

com a performance do ator/dançarino, perceberemos que um dos princípios que reforça

a presença física é o de fornecer o máximo de energia para o mínimo de movimentos.

Uma das qualidades do ator, dançarino consiste em saber canalizar todas as suas

energias na realização de uma ação que seja precisa e viva. Feito isso, é todo o seu

corpo que se torna vivo, mesmo em situação de imobilidade, o que Barba denomina

como a expressão omissão.21

Este estado de atenção é requisito fundamental nos

momentos mais tensos da atuação do ator/dançarino. Outras capacidades estão presentes

nestas atividades, como a coordenação e a dissociação de movimentos que são

qualidades fundamentais para a realização da performance do ator/dançarino.

Encontramos também, nas atitudes do gaúcho, o sentido de equilíbrio instável, de

luxo22

, o olhar e a oposição dos movimentos23

, princípios que, segundo Barba, reforçam

a presença física do ator/dançarino. A observação e a qualidade na precisão e direção do

foco do olhar fazem parte também da representação cênica. E o foco que dá objetivo

preciso à ação do ator/dançarino, e se constituiu num dos elementos de sua presença

física na medida em que ele ajuda a modificar sua postura.24

Finalizando a atividade, o gaúcho refaz a armada do laço, coloca-o na sela, do

lado direito do cavalo, amarrando-o numa tira de couro. Caso contrário, ele o segura na

mão para utiliza-lo de novo. Ele prepara a armadura do laço, montado a cavalo,

circulando entre o gado observando-o, sem ter necessidade de olhar o que está fazendo,

integrado na atividade com uma totalidade.

21

Para o ator em cena, omissão significa reter, não gastar num excesso de expressividade e vitalidade as

qualidades da presença cênica. A beleza da omissão na realidade, é a sugestividade da ação indireta da

vida que se manifesta com o máximo de intensidade num mínimo de atividade (BARBA, 1993, p. 49). 22

Verificar a definição de equilíbrio de luxo na parte dedicada à doma. 23

Outro princípio da pré-expressividade do ator/dançarino reside nas oposições que regem a dinâmica

dos movimentos (BARBA, 1993, p. 55). 24

Segundo Barba (1993, p. 46), o olhar permite modificar a postura física, o tônus muscular do peito, o

equilíbrio e a pressão dos pés sobre o chão.

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Figura 1 - Tiro-de-laço

É importante que mantenha o laço pronto no seu lugar, pois é necessário tê-lo à

mão em caso de urgência, como a situação que presenciei na fazenda quando o touro

fugiu em direção à floresta. Nesta situação, foi necessário preparar a armada com toda a

rapidez, enquanto todos os homens se lançavam atrás do animal. A rapidez com a qual o

campeiro arrumou o seu laço, ao mesmo tempo em que perseguia o touro, mostrou-me a

que ponto ele estava pronto para entrar em ação. Da mesma forma que o ator/dançarino,

o campeiro está sempre em estado de alerta, com a percepção alterada, conectada com a

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totalidade do que acontece no espaço de representação, em prontidão para situações

inesperadas.

Esta ação que acontece em uma situação de trabalho cotidiano, impressionou-me

muito mais do que a que fui apresentada na Festa. Uma das razões foi além da

virtuosidade e da prontidão do campeiro, o fato de o episódio ter sido imprevisto pelo

perigo de morte que ele corria. Não poderia também afirmar que estes dois fatores, o

imprevisto e o risco, participam da dimensão espetacular da cultura gauchesca?

Este acontecimento revela, em todo o caso, que as atividades da fazenda podem

ser também tão ou mais árduas e espetaculares que as realizadas nas Festas Campeiras.

O pealo

Como no laçar a cavalo, nessa atividade utiliza-se da corda do laço, mas ela não

é mais realizada nem na fazenda nem na Festa, na medida em que perde a sua função,

que consistia em pegar os terneiros nos campos para marcá-los. Hoje, como já foi

referido, esta atividade acontece no brete. Os campeiros não praticam mais, e eles só

fizeram uma demonstração para atender ao meu pedido.

Apesar de utilizar o mesmo instrumento e realizar a mesma atividade que é a de

laçar, o pealo não é considerado como uma variante do tiro-de-laço, porque enquanto

este é feito pelo campeiro montado a cavalo, o pealo é realizado a pé. Trata-se de uma

atividade específica de um pealo a pé como afirma Motta. Da mesma forma que no tiro-

de-laço, no pealo é necessário também fazer uma armadura. A diferença entre as

armaduras está no encadeamento dos movimentos, da maneira de fazê-la e do seu

tamanho, assim como no número de rodilhas. Existe também um tipo de armada na qual

não há nenhuma rodilha, com o domador José me mostrou.

Destacarei, nessa atividade, o fato de que, para lançar a armada, o braço e a mão

fazem um movimento de torção para baixo, que é diferente daquele do laçar a cavalo.

Segundo José, aquele se faz horizontalmente; no pealo, ele se realiza para baixo. José

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fez a demonstração ao mesmo tempo em que comentava: “a gente arreboleia, mas torce

já a armada, e larga torcida a armada”.25

O que me impressionou mais nesse encadeamento de movimentos foi a oposição

entre os movimentos de atirar e de puxar a corda do laço. A importância da oposição na

expressividade do ator já era evidente para Meyerhold quando na criação da

Biomecânica26

, pois, para ele, a essência do movimento cênico se baseia nos contrastes

(BARBA, 1993, p. 41). Esses movimentos de oposição da mesma forma que acontece

com o ator/dançarino, contribuem para dar ao corpo do campeiro uma dimensão

extracotidiana, e ao encadeamento dos movimentos do pealo, um aspecto de dança,

como se fosse regido por uma coreografia (Figura 2a, b, c, d).

Figura 2 – Pealo 25

Entrevista concedida por José Carlos Silva da Silva, em 26/11/1994, na fazenda SMB. 26

"É o estudo da mecânica aplicada ao corpo humano. Meyerhold se utiliza desta expressão para

descrever um método de treinamento para o ator baseado na execução instantânea de tarefas [...] ditadas

pelo diretor ou autor (PAVIS, 1996, p. 34).

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A doma

Na fazenda SMB, o processo de doma, tal como realizado por José, começa com

o encilhar. Diferentemente do que é feito com os cavalos domados, ele o realiza aqui

com gestos muito suaves. A outra diferença entre estas duas maneiras de montar o

cavalo é que, na doma, o domador deve amarrar completamente o animal,

imobilizando-o.

Para iniciar o processo de equipar o cavalo, o domador começa pelo bucal.27

Mas antes de colocar este acessório na cabeça do animal, ele se aproxima suavemente

acariciando seu pescoço com a corda para evitar que o animal tenha medo. Em seguida,

ele o amarra pelas cordas do freio28

a um tronco de árvore.

Depois ele procede à imobilização do animal. Para fazer isso, ele tem a ajuda de

dois empregados da fazenda. Ele amarra as patas com uma só tira de couro comprida,

seus gestos são lentos, precisos e hábeis, pois além do fato de só utilizar uma única tira,

ele está lidando com um cavalo selvagem (Figura 3ª, b, c).

Após equipar o cavalo com os arreios, o empregado e o capataz ajudam o

domador a tirar todos os acessórios que serviram para imobilizá-lo. Todos procedem

com gestos muito lentos e cuidadosos, pois o cavalo reage a cada toque.

É interessante notar que os campeiros trabalham em equipe e em silêncio.

Ninguém diz ao outro o que é preciso fazer; eles agem em comum acordo, dividindo as

diversas atividades; enquanto o domador amarra o bocal em torno do maxilar do cavalo,

o empregado retira a tira de couro que o imobilizava, deixando apenas as patas

dianteiras amarradas, e o capataz o mantém no lugar, puxando-o pelo freio.

Nesta atividade, dois aspectos novos devem ser enfatizados na postura dos

campeiros: o trabalho silencioso e em equipe, atitudes que encontramos também no

treinamento e no jogo dos atores/ dançarinos.

A fase seguinte, que é o momento mais arriscado da doma, corresponde também

a gineteada, que é realizada na Festa. A diferença está no fato de que, na primeira, o

27

Entrevista com José Cláudio Motta, em 5/11/1994, em São Borja. 28

Freio é um acessório de metal formado de duas hastes unidas por uma terceira peça perpendicular que

se prende à cabeça e aos focinhos da cavalgadura e permite a condução do animal. (HOUAISS, 2001).

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cavalo está selado; na segunda, o cavaleiro monta o cavalo a pelo, isto é, sem nenhum

acessório dos arreios.

Figura 3 – Doma

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Quando o cavalo está pronto, José o leva ao campo para montá-lo. O empregado

da fazenda e o capataz também montam nos seus respectivos cavalos. Todos se

encaminham para a mesma direção. Como na Festa, os dois, empregado e capataz farão

o papal de amadrinhadores, cuja função ajudar o domador ou gineteador a evitar que

seja machucado e impedir o cavalo de ir em direção à cerca de arame farpado. Eles vão

também ajuda-lo a montar e a descer do cavalo e, no caso de perigo, retirá-lo de cima do

cavalo xucro. Para isso, é necessário, entre outros aspectos, que haja harmonia e

sincronia entre os três homens. (Figura 3d).

Segundo Motta, a doma pode ser normalmente feita por uma única pessoa. Mas

ele justifica que, por causa do método utilizado na região, onde o cavalo deve corcovear

muito, é melhor dispor de dois amadrinhadores. Trata-se de uma atividade organizada,

na medida em que ela segue um método, e é cultural, porque é específica dessa região.

A afirmação de Motta é confirmada por José, “o Jorge e o Paulo são amadrinhadores

porque solito não dá pra sair no primeiro golpe. Porque (o cavalo xucro) não respeita a

cerca nem nada29

”.

Além da sincronia, esta atividade organizada exige competência, gestos precisos,

eficazes e ordenados. A ausência de uma destas qualidades implica risco mortal para o

cavaleiro e o animal.

Essa fase da doma nos faz perceber a grande destreza e domínio do cavaleiro, e

também suas qualidades de equilíbrio/desequilíbrio e resistência. No momento da doma,

há um combate entre o homem e o animal, este corveia e procura jogar o homem no

chão, fazendo-o, muitas vezes, perder o equilíbrio. No teatro, podemos fazer uma

analogia dessa situação com a expressão utilizada pelas atores/dançarinos para designar

um dos princípios da presença física, que é o do equilíbrio de luxo:

Em todas as formas codificadas de representação encontramos uma

deformação da técnica cotidiana do caminhar, do deslocamento no espaço e

da situação imóvel. [...] Recusando o equilíbrio ‘natural’, o ator intervém no

espaço com um equilíbrio ‘de luxo’, complexo, aparentemente supérfluo e

que custa muita energia (BARBA, 1993, p. 36).

29

Entrevista com José Carlos Silva da Silva, em 26/11/1994, na fazenda SMB.

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Quatro novos elementos vêm, assim, juntar-se aos princípios comuns que já

detectamos no trabalho do ator/dançarino e aquele do campeiro: a sincronia, a

resistência, um corpo em estado de alerta e pronto para agir e a competência no savoir-

faire. Quanto à sincronia, ela é fundamental no campo da representação, pois sem ela o

jogo não pode se desenvolver. Trata-se de uma habilidade que exige coordenação,

relação, inter-relação e harmonia. Do ponto de vista da Proxémie, o homem se

comunica por sincronia30

, e encontramos os reflexos disso na dança31

. Nas

manifestações ou nas atividades culturais, sejam elas artísticas ou não, a sincronia

ocorre em diferentes níveis – rítmico, sensorial, físico, emocional – da qual participa

também o público quando há audiência.

Em relação ao aspecto da resistência no teatro oriental, a qualidade principal do

ator balinês é o tahan, a resistência. Para o ator chinês, ela corresponde a expressão

Kung Fu, que significa aguentar, resistir, o que equivale, para o ator ocidental, à

energia, à capacidade de resistência no trabalho. Quanto ao estado de alerta no jogo,

exige prontidão para agir e reagir em cena. Essa questão da competência é, segundo

Grotowski (1993), diretamente ligada ao que caracteriza uma verdadeira arte. Para não

ser diletante, o artista deve apresentar uma atitude de competência, de precisão, de

lucidez, persistência e habilidade.

Retomando a análise da fase final da doma, a atividade de desencilhar se faz no

mesmo ritmo lento que o encilhar e com gestos leves. Para tirar o equipamento do

cavalo, o empregado da fazenda e o domador devem imobilizá-lo pelos mesmos

procedimentos que no encilhar, mas, desta vez, prendendo somente as patas dianteiras

do animal.

A doma exige persistência, paciência e tranquilidade. Não se pode apavorar o

animal no primeiro mês durante o processo de doma, todas as atividades devem ser

feitas de forma muito tranquila, como, por exemplo, a retirada do freio. Para poder se

aproximar do cavalo, o campeiro deve primeiro acalmá-lo, passando a mão sobre o

ventre e as costas do animal. O processo de doma lembra muito o do treinamento do

30

Segundo Hall (1979, p. 73), "geralmente os indivíduos em interação se mexem juntos numa espécie de

dança, mas não se dão conta da sincronia de seus movimentos e os executam sem música e sem

orquestração consciente. Estar em sync [sic] é em si uma forma de comunicação". 31

Hall (1979, p. 74) conclui que "examinando os filmes (de sua pesquisa) passados em câmera lenta para

reconhecer a sincronia, nos damos conta que a dança tal como nós a conhecemos não é na realidade senão

uma versão estilizada do que se passa num ritmo acelerado entre dois seres humanos em relação

recíproca".

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ator/dançarino, porque, da mesma forma que se repete a sua sequência de ações, o

domador refaz todos os dias as mesmas coisas, na mesma ordem; os gestos são sempre

os mesmos, podendo variar conforme a reação do animal.

Esse trabalho exige, então, uma disciplina, na medida em que ele deve

ser repetido cotidianamente. Essa mesma disciplina é encontrada no treinamento dos

atores/dançarinos, ao desenvolverem sua pré-expressividade, segundo Barba (1993) e o

trabalho sobre si mesmo de Stanislavski.

Depois de uma primeira fase da doma, que dura de quinze a vinte dias, o

domador faz uma pausa de um mês, depois da qual ele retoma o trabalho com o mesmo

cavalo. Nessa última fase que se estende por um período de 30 a 50 dias (conforme o

cavalo), ele o enfrena, isto é, coloca o freio de ferro que corresponderia à concretização

da doma.

Sublinhemos, ainda uma vez, para encerrar, que a gineteada executada na

fazenda me pareceu muito mais impressionante na Festa, comprovando que sua

dimensão espetacular não acontece só em função da presença do público.

A condução do gado

Na vida cotidiana, o gaúcho é econômico nos seus gestos: ele parece se

movimentar muito pouco. Quando, por exemplo, dois entre eles devem se

cumprimentar, eles se contentam em roçar a palma da mão e o antebraço um no outro. O

que mais encontrei entre eles foram poses, posturas e atitudes.

Percebi também que é na sua relação mais direta com os animais, em situação de

trabalho, que esta economia de gestos aparece. Quando perguntei a José, o domador, as

razões desta parcimônia de gestos e de palavras, ele respondeu que os campeiros têm

necessidade de gestos para se fazer compreender pelos animais e não entre eles. De

todos os gestos de profissão, aqueles que lhes servem para conduzir as tropas foram os

que mais me chamaram a atenção por serem recorrentes em outras atividades. Entre

estes gestos, José destaca principalmente dois tipos: o assobio e certos movimentos

executados com o braço direito levantado, fazendo girar ou não o relho. Notamos que,

na condução do gado, o gesto básico consiste em levantar o braço acima da cabeça

(Figura 4a, b, c, d).

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Podemos encontrar este mesmo movimento em certas situações de lazer, como

as Trovas: antes de começar a cantar ou para marcar o ritmo, o trovador Mello levanta

seu braço da mesma maneira (Figura 4a, b).

Apesar de parecerem à primeira vista, espontâneos, todos esses gestos e sons

são, na realidade, técnicas corporais específicas, adquiridas desde a infância e

desenvolvidas durante um trabalho que se faz em contato permanente com os animais.

Figura 4 − Condução do gado

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O contato constante com a natureza aparece como uma marca no corpo e nos

gestos do gaúcho, assim como no seu comportamento, sua maneira de se deslocar no

espaço, de falar, de pensar, e na sua relação com os outros. Encontramos diferenças

quanto aos sons que acompanham os gestos destinados à condução do gado: na

realidade, esses sons – sejam eles barulhos de boca imitando de maneira exagerada um

beijo e aos quais o gado obedece instantaneamente, onomatopeias, risos roucos ou

assobios – não podem ser feitos por qualquer pessoa como aconteceu com os

empregados que vieram da cidade de São Borja para ajudar na fazenda, pois os animais

não os obedeceram. Sobre este assunto, José, o domador, explicou o seguinte: não tendo

o hábito de falar muito entre eles, as pessoas do interior não trabalham suas vozes, nem

as sofisticam como as pessoas da cidade. Sua voz, por isso, fica, muitas vezes, mais

próxima aos sons da natureza, sendo mais aceita pelos animais. Podemos constatar o

desenvolvimento de um alargamento de suas potencialidades vocais que possui relação

com um corpo mais arcaico, mais rústico.

Se esses diferentes movimentos, executados a cavalo, exigem certa virtuosidade

(coordenação motora e qualidade de equilíbrio) a atividade de conduzir o gado aparece

também organizada. Essa organização de encontra:

na hierarquia dos gestos;

na especificidade do gestual adaptado para cada tipo de gado. Por

exemplo: o campeiro adota um comportamento diferente segundo a

composição da tropa (bois, cavalos, ovelhas); assim a presença dos

cachorros é necessária para conduzir as ovelhas, mas não no caso das

vacas, com as quais os campeiros devem agir com lentidão porque elas

são acompanhadas de seus terneiros;

nas diferentes funções de trabalho. Aliás, o campeiro tem consciência da

especificidade de sua profissão. o capataz estabelece, para a atividade de

conduzir o gado, uma diferença entre o campeiro (que se ocupa da

criação) e o tropeiro (condutor de tropas)

O inventário e a análise das técnicas corporais da lide do campeiro mostraram

alguns aspectos essenciais que caracterizam, de certa maneira, a cultura gauchesca:

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gosto pela estética, inteligência do corpo, aprendizagem por imitação, a utilização do

corpo como medida de todas as coisas e a consideração de certos instrumentos como

uma extensão do corpo.

O gaúcho: um tipo essencialmente estético

Os gestos e comportamentos de profissão assim como os hábitos indumentários

mostram que sua preocupação maior é de sempre “fazer bem” as coisas e de “fazê-las

com elegância”. Essa preocupação do gaúcho pelo “belo” se encontra também na sua

maneira de se vestir: ele tem um grande cuidado com sua roupa, que está sempre

impecável. Com esta mesma preocupação estática, em “se apresentar bem arrumado”32

,

ele realiza todas as suas atividades da lide.

Na realidade, o bom campeiro se caracteriza por possuir um savoir-faire do qual

tem orgulho, demonstrando competência e perfeccionismo por ter uma profissão

aprendida desde a infância, que, de alguma forma, se imprimiu33

nele, conferindo-lhe

uma habilidade e uma virtuosidade fora do comum.

Outro aspecto a destacar, além do “fazer bem a sua profissão”, é o do prazer que

eles têm ao realizar as atividades. Na realidade, todos esses gestos e comportamentos da

profissão fazem parte do que Mauss (1974) chamou de “técnicas corporais”. Quanto a

essas técnicas que exigem certa sensibilidade um entendimento harmonioso com o

animal, o gaúcho sente emoção e prazer, como o confirma Motta, para que José “é o

tipo que gineteia por prazer”.34

Essa mesma emoção ele sente ao fazer a doma na

fazenda “quando eu trabalho no dia-a-dia assim é uma emoção a bem dizer que eu

tenho, né? É tudo na brincadeira”.35

Além do domínio corporal e técnico deve-se levar em conta um fator que não é

mensurável nem explicável como, por exemplo, a presença que os gaúchos possuem,

pois os seus gestos cotidianos se constituem em picos emergentes representativos da sua

cultura. Eles seriam a marca de atividades tradicionais que representam o universo do

gaúcho quanto aos seus valores morais, sociais e estéticos, mas também de uma

32

Entrevista com Jorge P. de S. S., na fazenda SMB, em 2/12/1994. 33

O verbo imprimir, utilizado aqui, tem o mesmo significado do verbo engrammer, em francês,

empregado por Condom e Sanders (apud PRADIER, 1994, p. 28) na relação que eles fazem com a

aprendizagem da linguagem, e significa que as atividades se imprimiram no corpo do gaúcho, aliando o

cultural ao biológico. 34

Entrevista com Motta, em 5/11/1994, em São Borja. 35

Entrevista com José Carlos da Silva, na fazenda SMB, em 26/11/1994.

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dimensão que o diferencia dos outros homens. O gaúcho realiza suas atividades em

harmonia total com seu meio ambiente e tem uma relação quase osmótica com os

animais, o que lhe desenvolve uma outra sensibilidade, uma qualidade espiritual. A

dimensão espetacular dos gestos de profissão do gaúcho se constitui, então, de aspectos

não só cognitivos e físicos, mas também emocionais e espirituais.

A inteligência do corpo

Para os primeiros viajantes, com exceção de Darwin, o gaúcho, muitas vezes,

aparecia como uma espécie de índio grosso, primitivo, servindo-se, sobretudo, de seu

corpo e, por isso mesmo, destituído de inteligência. Ora, não existe atividade em que a

inteligência não seja contemplada sem que o corpo participe na sua totalidade, o que

confirma Marcel Jousse (1974, p. 30), para quem “o homem pensa com todo o seu

corpo”.

No caso dos gaúchos, nós estamos diante de uma cultura viva, que tem o hábito

de pensar suas ações com o corpo, de não separá-lo do mental. Na nossa sociedade

ocidental, impregnada do pensamento cartesiano, fazemos, muitas vezes, uma dicotomia

entre o corpo e o espírito, muitas vezes, em detrimento do último.

Nós estamos aqui em presença de um indivíduo que desenvolveu, por meio de

uma aprendizagem, uma inteligência do corpo. Com,o a expressão thinking in motion,

de Blacking (1980), para se referir a um corpo que pensa pela dança, podemos dizer, por

analogia, que o campeiro tem também um corpo que pensa realizando suas atividades da

lide.

Dois outros pontos a destacar que fazem parte do comportamento do gaúcho em

trabalho são a coragem e o silêncio. Sob o ponto de vista da análise externa, podemos

estabelecer uma comparação com o campo da representação teatral, pois o teatro é

também uma arte viva, em que o ator/dançarino tem que estar presente na sua totalidade

e numa situação de risco por estar exposto ao público. É interessante lembrar que, no

processo de criação, é fundamental arriscar-se em situação de jogo se quisermos ter um

trabalho interessante. O silêncio é fundamental na criação,para os atores, e na labuta,

para o campeiro, pois ambas as atividades requerem concentração e percepção da

totalidade do entorno.

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Este aspecto é importante para o desenvolvimento da “inteligência física”

(SAVARESE, 1985, p. 130) do ator/dançarino que treina sua eficácia para o jogo. É

esta mesma capacidade, segundo Volli, (1985, p. 121), que buscam os esportistas e

aqueles que praticam artes tradicionais como as marciais, para

matar, como diz a tradição Zen, a inteligência discursiva. Trata-se de

criar condições de silêncio onde se torna inútil pensar ao que se faz. Então, o

samurai está em condições de combater eficazmente, o artista pode criar ou

executar, o ator jogar, o atleta realizar sua performance.

Essa capacidade está bem presente no campeiro, quando ele apresenta, no seu

trabalho cotidiano, uma atitude de silêncio, permitindo-lhe a concentração e a

disponibilidade física necessárias para melhor agir.

A aprendizagem por imitação

A inteligência presente no corpo do campeiro é desenvolvida por uma

aprendizagem por imitação que requer percepção, observação, repetição, concentração e

a identificação. Essa imitação não é passiva, ela é ativa e crítica na medida em que ela

se desenvolve no âmbito de uma relação pai-filho, mestre-discípulo, artesão-aprendiz,

mesmo quando os campeiros afirmam que não foram ensinados. Os homens na fazenda

SMB aprenderam a profissão de campeiro por meio de seus pais ou outros adultos desde

a idade de 4 ou 5 anos, observando e imitando suas práticas. Essa aprendizagem

tradicional do corpo faz parte integrante da cultura gauchesca. De maneira análoga à dos

atores orientais que aprendem desde a infância imitando o seu mestre, trata-se de uma

“tradição viva transmitida de pai para filho” (SAVARESE, 1985, p. 129). Entre os

campeiros existe a ideia de que a virtuosidade na lide é uma questão de talento, e que se

trata de uma faculdade nata. Na realidade, eles não consideram, na sua capacitação, o

papel que teve a aprendizagem e o fato de que eles repetem a lide diariamente, como um

treino. A aprendizagem vai se prolongar no trabalho cotidiano sem esforço. É por isso

que o campeiro nunca parece cansado nem dispensa muito esforço no seu trabalho. O

seu corpo está tão treinado que ele cumpre o trabalho como um esporte. É esta a palavra

que os campeiros utilizam para definir o prazer que eles têm participando da festa, em

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que, para Jorge, um dos peões, é como “fazer um esporte”, e para o domador José “é

como jogar futebol, um esporte que eu adoro”.36

Como ele não dá impressão de cansar ou de realizar esforço durante o trabalho,

além de sentir prazer, poderíamos pensar que se trata de uma atividade de lazer. Na

realidade, é necessário entender que este corpo foi modelado desde a infância e treinado

cotidianamente. Como afirma José “eu tá parado ou tá trabalhando, pra mim é a mesma

coisa”.37

Podemos qualificar tal aprendizagem como holística, na medida em que o

corporal e o metal se encontram nitidamente ligados, o que faz com que todos os

aspectos que constituem o indivíduo sejam desenvolvidos: físico, sensorial, motor,

emocional e cognitivo (PRADIER, 1989, p. 112).

Se analisarmos sob o ponto de vista da análise externa, podemos comparar esse

tipo de aprendizagem desenvolvida através do corpo na sua totalidade com que ele

caracteriza as artes vivas do Oriente. Na realidade, o verbo aprender, em japonês,

contém implicitamente esta referência, pois “se diz em japonês taitoku-suru, o que

significa mais precisamente: ‘aprender pelo corpo’” (PRADIER, 1986, p. 89).

Outro elemento importante que justifica a dimensão espetacular deste tipo de

aprendizagem é que se trata de um processo de iniciação desde a mais terna idade,

quando as capacidades do corpo não estão ainda estabilizadas. É assim na harmonia de

todas as suas potencialidades e competências que o indivíduo vai se desenvolver, e é aí

que reside a dimensão espetacular do ator/dançarino do Oriente:

Uma aprendizagem do ator fundamentada-como é geralmente no

Ocidente-sobre a linguagem, o comentário, a análise psicológica verbal, não

pode conduzir senão a um teatro de intenções. Ao contrário, a história dos

métodos de formação Ásia parece retomar a busca contemporânea do físico:

a inteligência do todo através do domínio do infinitamente pequeno

(PRADIER, 1986, p. 95-96).

O corpo: a medida de todas as coisas

36

Entrevista com José Carlos da SIlva, na fazenda SMB, em 26/11/1994. 37

Entrevista com José Carlos da SIlva, na fazenda SMB, em 26/11/1994.

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Percebemos uma sabedoria dos campeiros na maneira como eles se

servem de seu corpo para tomar a medida de tudo o que eles fazem. Quando pega a

corda de seu laço Paulo, o capataz, o faz por braçadas, isto é, na extensão de dois braços

estendidos. José engraxava as tiras de couro dos arreios e arrumava seu comprimento

tendo como medida o seu antebraço.

Este traço dos gaúchos constituiu uma marca de sabedoria, se considerarmos que

“o corpo humano é a mais perfeita e harmônica construção arquitetural”.38

Nosso corpo

estando equilibrado, tudo o que o prolonga é também. Neste sentido toda a construção

que leva em conta as medidas do corpo se torna harmônica e orgânica.

No campo teatral, o corpo do ator é o seu próprio instrumento, e a sua extensão

se estabelece pela sua presença e pela qualidade cênica de seus movimentos. Barba

(1993, p. 152) se refere ao corpo do ator/dançarino como uma “arquitetura de

movimentos”.

Não se trata da forma de uma matéria inanimada incapaz de se

metamorfosear, trata-se da forma de um corpo vivo, mas reinventado, de um

comportamento que se afastou daquele de cada dia, de um natural que é fruto

do fictício.

É, então, por um processo de aculturação que o ator/dançarino “constrói” seu

coro extracotidiano. Um corpo que, apesar do exercício estilizado e codificado que ele

passou, apresentará, pelo treinamento, uma organicidade própria do corpo humano e que

se manifesta igualmente no cotidiano.

Os instrumentos da profissão: uma extensão do corpo

Este último aspecto que será abordado neste artigo e que não foi mencionado

pelos viajantes estrangeiros do século XIX é muito significativo e representativo da

dimensão espetacular do homem gaúcho.

Seus gestos de profissão, aprendidos por observação e exercitados no dia-a-dia,

tornam-se hábitos musculares, reflexos. E os instrumentos que participam das “técnicas

corporais” do campeiro, como o laço, as esporas e o chicote, tornam-se, para ele, uma

maneira de prolongar o corpo. No laçar a cavalo e no pealo, é antes de tudo a corda que

joga este papel; na doma, são as esporas e, na condução dos animais são usados o relho

e o chicote.

38

Depoimento do professor e arquiteto Krikor Belenkian, retirado das notas do curso do LEM, na Escola

Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris, em 1993-1994.

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Este aspecto do instrumento técnico como prolongamento do corpo já fi

abordado no campo da Antropologia das técnicas pelos estudos e pesquisas de Leroi-

Gourhan (1964), Haudricourt e Dibie (1987), que influenciaram a Antropologia Teatral.

Volli (1985, p. 121-122), que se inspirou nas ideias de Leroi-Gourhan, vai ainda mais

longe na sua análise das “técnicas do corpo”, afirmando que, além dos instrumentos

técnicos fazerem parte deste corpo, eles formam um conjunto indissociável:

O modo e a maneira pela qual cortamos, escrevemos, martelamos,

usamos roupas e acessórios não faz parte de uma cultura dos objetos, pois

estes instrumentos são mais projeções externas do corpo, a materialização de

posturas e movimentos, de sombras projetadas pelas práticas culturais, em

constante interação com elas.

Na fazenda SMB, observamos um exemplo prático desse aspecto quando

solicitei aos empregados que simulassem a preparação da armada e do laçar a pé, sem a

corda e eles não souberam fazê-lo. Na realidade, esses gestos se tornaram neles reflexos

tão precisos e eficazes, o instrumento passado a ser como um prolongamento do corpo e

parte integrante da técnica corporal. Privados do instrumento, eles são incapazes de

reproduzi-la, pois é como se faltasse o seu braço.

É o que confirma o gerente da fazenda, Motta, para quem a manipulação do laço

é, para o campeiro, “uma coisa automatizada, não tem dúvida”. E quando eles lançam a

corda do laço, é como se eles “levassem o braço para pegar alguma coisa”.39

Esses exemplos ilustram concretamente o fato de que não somente os

instrumentos do campeiro se constituem em espécies de apêndices naturais de seu

corpo, mas também que se trata de um corpo que pensa agindo, que possuí uma

inteligência orgânica. A automatização de seus gestos mostra, a exemplo dos realizados

nas artes marciais, que eles são conscientes e que essa consciência tem uma

corporeidade.

Perguntemo-nos se no campo da atuação cênica podemos encontrar referências a

este aspecto. O ator/dançarino tem como instrumento de trabalho o seu próprio corpo e

treina até que ele se torne um conjunto orgânico, completo, pronto a entrar em jogo.

Inspirando-se na noção de técnicas corporais de Mauss (1974) e Barba (1993),

consideram que tudo pode ser aprendido e que o gesto mais eficaz é aquele que se

tornou quase reflexo. Esses gestos, adquiridos durante a aprendizagem e desenvolvidos

39

Entrevista com Motta, em 5/11/1994, em São Borja.

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por treinamento, fazem parte do indivíduo a ponto que ele pode executá-los à perfeição,

colocando em prática essa inteligência orgânica.

Para resumir, eu diria que o tipo estético que o gaúcho desenvolveu por uma

aprendizagem tradicional através de uma inteligência corporal e organicidade

constituem o fundamento da dimensão espetacular de seus comportamentos de

profissão. Esses diferentes aspectos colocam também em relevo um traço que me parece

essencial na cultura gauchesca, que é a não separação entre o corpo e a mente na

maneira de ser e agir do campeiro, e isso é o que lhe dá uma especificidade e o distingue

dos outros.

Como conclusão, diria que o campeiro apresenta qualidades corporais, atitudes

de trabalho e características pessoais que lhe conferem um corpo de combate/guerreiro e

que todos esses elementos podem ser inseridos nas categorias estabelecidas no início do

texto, que servem para delimitar a dimensão espetacular da identidade gaúcha:

- a masculinidade, pelo fato de que ser campeiro e fazer trabalho é reservado aos

homens, exigindo-lhes virtuosidade, destreza, coragem e força física;

- a combatividade, pelo fato de que todas as atividades de profissão mostram,

antes de tudo, um combate entre o homem e o animal, quando o último sempre é

dominado. Essa situação de combate coloca em cena qualidades e capacidades, tais

como o equilíbrio, o domínio do animal, a sincronia, a resistência, a percepção espacial,

a observação e o estado de alerta;

- o excesso, pelo fato de que todas as atividades realizadas implicam em risco de

morte;

- a organização, pelo fato de que todas as atividades da profissão dos campeiros

são organizadas e seguem métodos que exigem gestos e comportamentos precisos,

eficazes e econômicos.

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