aspectos da acao episcopal de d jose botelho de matos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA F ACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ASPECTOS DA AÇÃO EPISCOPAL DE D. JOSÉ BOTELHO DE MATOS SOB A LUZ DAS RELAÇÕES IGREJA-ESTADO (BAHIA, 1741-1759) REBECA C. DE SOUZA VIVAS Salvador BA 2011

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Aspectos Da Acao Episcopal de D Jose Botelho de Matos

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    ASPECTOS DA AO EPISCOPAL DE D. JOS BOTELHO DE

    MATOS SOB A LUZ DAS RELAES IGREJA-ESTADO (BAHIA,

    1741-1759)

    REBECA C. DE SOUZA VIVAS

    Salvador BA 2011

  • REBECA C. DE SOUZA VIVAS

    ASPECTOS DA AO EPISCOPAL DE D. JOS BOTELHO DE MATOS SOB A

    LUZ DAS RELAES IGREJA-ESTADO (BAHIA,1741-1759)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,

    Na Universidade Federal da Bahia, como

    requisito parcial para a obteno do Grau de

    Mestre em Histria.

    Orientador:

    Prof. Dr. Evergton Sales Souza.

    Salvador BA 2011

  • ______________________________________________________________________

    Vivas, Rebeca C. de Souza

    V856 Aspectos da ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos sob a luz das relaes

    Igreja-Estado (Bahia, 1741-1759) / Rebeca C. de Souza Vivas. Salvador, 2011. 144f.

    Orientador: Prof. Dr. George Evergton Sales Souza

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2011.

    1. Episcopado. 2. Igreja e Estado Bahia Histria 1741-1759. I. Souza, George Evergton Sales. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas. III. Ttulo.

    CDD 261.7

  • REBECA C. DE SOUZA VIVAS

    ASPECTOS DA AO EPISCOPAL DE D. JOS BOTELHO DE MATOS SOB A

    LUZ DAS RELAES IGREJA-ESTADO (BAHIA, 1741-1759)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,

    Na Universidade Federal da Bahia, como

    requisito parcial para a obteno do Grau de

    Mestre em Histria.

    Orientador:

    Prof. Dr. Evergton Sales Souza.

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Evergton Sales Souza Orientador Universidade Federal da Bahia

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Jos Pedro Paiva

    Universidade de Coimbra

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Cndido da Costa e Silva

    Universidade Catlica do Salvador

    Aprovado em

    29/07/2011

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Engana-se quem pensa que o ofcio de historiador nos reduz ao isolamento, onde nos

    tornamos condenados contemplao solitria dos nossos documentos e nossas

    interpretaes. Quando decidi aventurar-me pelas veredas da Histria, h alguns anos atrs,

    trouxe comigo pessoas e convices e encontrei muitas outras pelo caminho. Mas assim como

    as convices, as pessoas vem e vo. Algumas felizmente ficam, assim como as lies e os

    outros captulos por escrever. Gostaria de agradecer a todas elas, por tudo que me ensinaram.

    Ao professor Evergton Sales Souza pela grande oportunidade de trabalho. Adentrar o

    universo da pesquisa histrica sua inteira responsabilidade me abriu os olhos para a

    Amrica Portuguesa e para o prprio D. Jos Botelho de Matos, sem falar na coragem

    necessria para persistir nesse caminho que realmente cheio de pedras. Ademais, nestes

    tempos de intelectuais proletrios que me impediram de fazer viagens ao exterior, o

    professor Evergton Sales Souza sempre facilitou o acesso a documentos raros dos Arquivos

    do Vaticano e Torre do Tombo, alm de livros no publicados no Brasil e, com enorme

    generosidade, fez da sua biblioteca pessoal setor de emprstimo para todos os seus

    orientandos. Pelos trs anos de dedicada orientao na iniciao cientfica e pelos dois anos da

    orientao de mestrado, meus reiterados agradecimentos.

    Ao professor Jos Pedro Paiva, por ter acompanhado de maneira muito atenciosa esta

    pesquisa, desde o tempo em que eu era bolsista PIBIC, fazendo sugestes que aprimoraram a

    interpretao das fontes e os argumentos desta dissertao de mestrado. Ademais, pelo

    privilgio de poder contar com a presena do maior especialista em episcopado em Portugal e

    seu Imprio na banca examinadora. Pela solicitude costumeira e pesquisador rigoroso que

    inspira a todos ns que estamos apenas comeando, meus sinceros agradecimentos.

    Ao grande maestro Cndido da Costa e Silva, que no obstante ter-me permitido

    participar das reunies com os amigos do LEV num momento crucial da pesquisa, sempre foi

    a minha maior referncia de integridade e sabedoria, com sua polidez e solicitude

    extraordinrias. Pela sua grandeza de esprito, meus devotos agradecimentos.

    professora Lgia Bellini, que no s corrigiu o meu primeiro artigo na Universidade

    fornecendo sugestes preciosas, como assumiu com muito boa vontade alguns meses de

    orientao no mestrado, contribuindo enormemente com as balizas metodolgicas e

  • 6

    abordagens deste trabalho. Alm disso, ministrou uma disciplina no mestrado que ampliou o

    meu interesse nas prticas socais e representaes culturais na Histria da humanidade. Pela

    sua simpatia costumeira e ateno dispensadas a mim, meus emocionados agradecimentos.

    Ediana Mendes, por ter dividido comigo os primeiros momentos e desafios na

    iniciao cientfica e Camila Amaral, por ter fornecido um flego a mais quando juntou-se

    ns nas pesquisas sobre So Francisco Xavier, meus sinceros agradecimentos. Ademais, a

    Cndido Domingues, Carlos Francisco, David Barbuda, Maria Ferraz e amigos do grupo de

    Estudos de Histria Colonial pelas angstias compartilhadas, convices sucumbidas e por

    sempre darem o melhor de si, meus humildes agradecimentos.

    A Urano Andrade, pela sua amizade, enorme generosidade e ateno costumeiras.

    Aos funcionrios e funcionrias do Arquivo Pblico da Bahia, especialmente do setor

    de microfilmagem, Dona Marlene, Dona Jacira e Dona Valda que com dedicao, respeito e

    disponibilidade apoiaram-me na coleta de dados, meus sinceros agradecimentos.

    Aos funcionrios e funcionrias do Laboratrio Eugnio da Veiga, a exemplo de

    Renata, pela dedicao com que buscaram nos raros documentos do sculo XVIII ainda

    disponveis, gua para minha sede. professora Ventia Rios, que com imensa boa vontade

    tornou os Estatutos da S totalmente acessveis numa hora em que t-los tornou-se decisivo

    para esta dissertao. Meus sinceros agradecimentos.

    Aos funcionrios e funcionrias das bibliotecas do Mosteiro de So Bento e da

    Universidade Catlica do Salvador, pelas consultas nos seus preciosos acervos sobre Histria

    da Igreja.

    Aos funcionrios e funcionrias da Fundao Clemente Mariani por autorizar a

    reproduo de livros do seu acervo.

    Prof. Dr. Adriana Alves, para quem trabalhei nos ltimos trs anos, por toda

    compreenso nos tempos em que, para me dedicar minha pesquisa, tive de interromper

    temporariamente a sua, meus sinceros agradecimentos.

    Irm Arista, uma graciosa ursulina de quase noventa anos e professora apaixonada,

    pela generosidade de compartilhar comigo informaes de sua pesquisa pessoal sobre o

    Convento da Soledade e pela confiana depositada no meu trabalho, meus encantados

    agradecimentos.

    A Maximiliano S. Ruas, devotado paroquiano de Nossa Senhora da Penha de Frana,

    por ter me apresentado memria de D. Jos Botelho de Matos na parquia e local em que

    escolheu viver j no fim de sua vida. Pela fotografia que me fez conhecer o rosto daquele que

    eu apenas conhecia a grafia, meus insuficientes agradecimentos.

  • 7

    Aos professores doutores Antonio Luigi Negro e Maria Hilda Baqueiro Paraso, pelas

    disciplinas com que tanto aprendi no mestrado: com o professor Gino, a tratar o objeto de

    pesquisa de maneira crtica, alm de perseguir os ideais de objetividade e de pontualidade;

    com a professora Maria Hilda, a dedicar parte do nosso tempo de especialistas em Histria

    Moderna a perceber a influncia e importncia do contedo antropolgico na sensibilidade

    cultural dos historiadores, especialmente os que se interessam pela teoria da histria, como eu.

    professora Gabriela Sampaio, no s por ter ministrado a aula em que meu projeto

    de pesquisa foi avaliado pela turma e por ter me aceitado como sua assistente no tirocnio

    docente, mas tambm por todo respeito e confiana que sempre demonstrou ter pelo meu

    trabalho, os meus sinceros agradecimentos.

    Aos meus amigos de graduao, especialmente s queridas Lazarentas, por tornarem a

    Universidade um lugar mais aconchegante: Llian Antonino, Kleidiane Santiago, Gabriela

    Harrison, Emily Laurentino, Carolina Mendona e a sempre doce e eterna companheira

    Andra Souza.

    A Leonardo Coutinho, nosso querido Lazarento, cuja inteligncia e carter continuam

    admirveis.

    minhas queridas amigas Iane Cunha e Las Viena, por sempre terem estado do meu

    lado, sem jamais duvidar da honestidade do meu trabalho, me apoiando nas horas difceis e

    semeando uma amizade sem a qual esta vida no valeria a pena. Meus eternos

    agradecimentos.

    Ao meu Tiago Medeiros, cujas extraordinrias argcia e inteligncia provocaram

    inquietaes que aprimoraram a fundamentao crtica deste trabalho. Ademais, pelo amor,

    dedicao e companheirismo sem os quais hoje eu no me sentiria to completa. Com o amor

    de sempre, meus agradecimentos.

    Enquanto muitos cruzam os braos e se contentam com as limitaes que a vida lhes

    impe, Jos Carlos Vivas e Mariete Vivas, meus pais, arregaaram as mangas e decidiram que

    mudariam a histria deles. Com um enorme investimento afetivo e alguns sacrifcios de

    ordem material, mudaram a minha histria tambm, desde que descobri que ter trs geraes

    diferentes em casa me tornaria muito sensvel ao que as mudanas histricas representam.

    Adquiri valores que me definem, alguns livros legados de si e de outrem e os primeiros

    culos. E o destino se ocupou do resto. Tenho sempre muito orgulho de lembrar que toda a

    minha famlia investiu na minha formao meus pais e tambm minhas irms Micheline e

    Cristiane Vivas , me permitindo enxergar alm das possibilidades. Por isso, o meu grande

    muito obrigado sempre ser deles. Vive ut Vivas!

  • 8

    Esta pesquisa no seria possvel sem o financiamento integral do Conselho Nacional

    de Pesquisa Cientfica (CNPq).

  • 9

    Era o seu destino, sua peculiaridade, independentemente do

    seu desejo, deixar-se estar assim, numa lngua de terra que o

    mar devora lentamente e l permanecer, como uma ave

    marinha desolada, sozinha. Era seu poder, seu dom, verter de

    uma vez todas as superfluidades, at retrair-se e diminuir-se

    de modo que parecia mais escasso e frugal fisicamente ,

    ainda que sem perder nada da intensidade de seu esprito, ele

    permanece, pois, naquela diminuta orla, encarando a

    escurido da ignorncia humana, o pouco que conhecemos

    enquanto o mar devora o solo onde permanecemos de p: este

    era seu destino, este era o seu dom.

    Ao Farol Virginia Woolf (traduo livre)

  • 10

    RESUMO

    A presente dissertao se prope a analisar aspectos da ao episcopal de D. Jos

    Botelho de Matos na Bahia entre 1741 e 1759, projetando sobre ela a situao coeva das

    relaes Igreja-Estado. Considerando que aqueles eram tempos de profunda interferncia do

    Estado na administrao da Igreja local, partiremos em busca de como D. Jos Botelho de

    Matos comps sua ao episcopal, quais foram as suas prioridades, qual a natureza de seus

    requerimentos e como lidou com as dificuldades oriundas do constrangimento da jurisdio

    eclesistica e das presses promovidas pelos rgos da Coroa.

    Palavras-Chave: Episcopado Relaes Igreja-Estado Padroado Rgio

    SUMMARY

    This work intends to analyze the role played by D. Jos Botelho de Matos as

    archbishop of Bahia in between 1741 and 1759, focusing on State-Church relations. Regarded

    deep interventions by the State, we seek to understand how could the archbishop build this

    episcopacy, what were his priorities and how he dealt politically with the challenges raised

    from restraint of religious jurisdiction and strengthening of Crowns power.

    Keywords: Episcopacy State-Church relations Royal Patronato

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................ . 5

    INTRODUO: DE PERSONAGEM MITO A PERSDONAGEM MTODO. ........................................12

    CAPTULO 1: REQUERER E PERSUADIR: OS COMPROMISSOS DE UMA COROA CATLICA ...............................................................................................................................26

    CAPTULO 2: VISITAS PASTORAIS: A CONSOLIDAO DO ZELO APOSTLICO COMO ELEMEN-TO DE DISCURSO POLTICO IN LOCO ................................................................................................38

    CAPTULO 3: RECUO ESTRATGICO OU CONSTRANGIMENTO? D. JOS BOTELHO DE MATOS E A SITUAO DO CONVENTO DA SOLEDADE ....................................................................................53

    O recolhimento do Corao de Jesus e a Alada Eclesistica: aspectos de um problema jurdico...................................................................................................................................60

    CAPTULO 4: UM ARCEBISPO ENTRE DOIS DISCURSOS: O PRAGMATISMO DA ADMINISTRAO DAS FINANAS E A AMPLIAO DAS INSTITUIES DE RECLUSO FEMININA ..............................................................................................................................................79

    Discurso Pragmtico na Economia .....................................................................................84

    Rendimentos conventuais sob a alada da Fazenda Real ................................................ 86

    O arcebispo e os herdeiros de Santo Incio: relaes estreitas ......................................103

    CAPTULO 5: ENTRE ZELOSOS COADJUTORES, INIMIGOS DO ESTADO: D. JOS BOTELHO DE MATOS E A PROFISSO RELIGIOSA MASCULINA (1741-1759) ............................................................... 107

    Zelosos coadjutores rejeitados pela Coroa [trocar Estado por Coroa]: dilemas pr-ticos dos ltimos momentos da ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos................125

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................128

    FONTES MANUSCRITAS ...............................................................................................................132

    FONTES IMPRESSAS ......................................................................................................................136

    OBRAS DE CONSULTA ...................................................................................................................138

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................................139

  • 12

    INTRODUO

    DE PERSONAGEM-MITO A PERSONAGEM-MTODO

    Jos Botelho de Matos nasceu na freguesia de So Sebastio da Pedreira, em Lisboa, e

    foi batizado em 5 de novembro de 1678. Junto com seus pais, Manuel Botelho e Maria Josefa,

    oriundos da comarca de Santarm, logo se transferiu para a freguesia de Duas Igrejas, diocese

    de Miranda, onde recebeu o sacramento da crisma pelo bispo diocesano no ano de 1691. Em

    1703, Botelho de Matos foi ordenado sacerdote e logo em seguida deu continuidade aos seus

    estudos na Universidade de Coimbra, lugar em que obteve grau de bacharel em Filosofia e

    depois em Cnones. Sua carreira eclesistica seria marcada pela ocupao de muitos cargos

    importantes no bispado de Miranda: em 1706, ano em que concluiu sua formao acadmica,

    foi nomeado vigrio geral; em 1713, aos 35 anos, foi confirmado cnego doutoral do Cabido.

    No ano de 1715, D. Joo Franco de Oliveira, o governador da diocese, teve de se afastar do

    cargo por motivos de sade e foi Botelho de Matos que, indicado, assumiu seu lugar. Devido

    ao desempenho que apresentou na assuno deste e de diversos outros compromissos no

    bispado, dentre eles professor de Teologia Moral do Seminrio diocesano de So Jos de

    Miranda, visitador diocesano e vigrio-capitular, construiu o currculo que lhe permitiu

    assumir responsabilidades cada vez maiores e mais desafiadoras. Assim, foi confirmado pelo

    pontfice Bento XIV como oitavo arcebispo da Bahia, recebendo ordenao episcopal em

    Lisboa a 05 de fevereiro de 1741, assistido pelo seu predecessor, D. Fr. Jos Fialho. Contando

    j 63 anos de idade, chegou arquidiocese de So Salvador da Bahia no dia 3 de maio de

    1741, onde tomaria posse dois dias depois, iniciando um dos episcopados mais longos da

    histria da Igreja na Amrica Portuguesa1.

    Quando o arcebispo D. Jos Botelho de Matos entrou para a histria, no entanto, a sua

    vigorosa carreira eclesistica parecia menos importante do que as circunstncias em que viria

    a abrir mo dela. A perseguio e expulso dos jesutas2 fizeram com que o perodo

    1 Os dados de que dispomos para fornecer alguma perspectiva biogrfica do arcebispo dada as limitaes

    prticas que me impediram de consultar arquivos portugueses foram coletadas na obra do Padre Arlindo Rubert, cuja confiabilidade para muitos questionvel. Ficamos, ento, com o compromisso de futuramente

    confirmar tais dados nos arquivos de Lisboa e Miranda. De qualquer forma, para constatar a fonte: RUBERT,

    Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol. III, Santa Maria,

    Palotti, 1982, p. 26-34 e tambm RUBERT, Mons. Arlindo. D. Jos Botelho de Matos (1678-1767), 8 arcebispo da Bahia (no tricentenrio de seu nascimento), RIHGB, n. 87, 1978, pp. 105-123. 2 Embora naquele tempo houvesse uma espcie de sentimento geral de cumplicidade com a deciso de D. Jos I

    fato corroborado pela prpria extino da ordem pelo papa Clemente XIV anos depois historicamente, a expulso da Companhia de Jesus de todos os domnios portugueses, determinada em 1758 por D. Jos I, tem

  • 13

    pombalino passasse a inspirar hostilidade para muitos estudiosos sculos depois. Por meio de

    discursos inflamados, alguns historiadores sensibilizados com a causa ultramontana, tanto no

    sculo XIX quanto no sculo XX, passaram a supervalorizar personagens em quem viam

    resistncia chamada tirania pombalina3. O Marqus de Pombal tornou-se smbolo dos

    mais marcantes da interferncia do Estado nos assuntos da Igreja4.

    Em razo da construo de um discurso histrico, a diocese da Bahia teria um heri

    da resistncia eleito pelos intelectuais de tempos ulteriores: era o arcebispo D. Jos Botelho

    de Matos. Sua memria passou a ser celebrada por boa parte dos historiadores que escreveram

    sobre a conjuntura da reforma dos jesutas. Do mesmo modo, a sua renncia do referido cargo

    em 1760 passou a ser frequentemente associada a possveis perseguies por parte do

    Marqus de Pombal:

    Nesta dramtica emergncia, a atitude da Baa ttulo honroso para ela. [...]

    O grande Arcebispo, D. Jos Botelho de Matos, teve a coragem de sustentar

    os seus Religiosos, e foi obrigado a resignar por ordem de El-Rei sacristo e do seu aclito, leigos, que pela mentalidade tartufa da poca se

    intrometiam a pontificar nos assuntos de hierarquia eclesistica, que no

    lhes competia na Igreja de Deus, por aquilo que a Cesar o que de Csar e a Deus o que de Deus... Acompanhou o seu prelado, nas demonstraes de pesar, qusi toda a cidade, com as suas foras vivas e organizaes

    religiosas.5

    Nesta passagem, o historiador jesuta Serafim Leite retoma, com revolta, os eventos

    que sucederam o decreto de D. Jos na arquidiocese da Bahia6. importante notar o tom

    heroico usado para se referir resistncia de D. Jos Botelho de Matos na dada conjuntura,

    dividido opinies, por conta da importncia que sua atividade missionria teve no prolongamento das fronteiras

    do imprio cristo portugus e mesmo na formao do clero secular. De acordo com Serafim Leite, durante dois

    sculos, quase todo o clero secular do Brasil formou-se no Colgio da Companhia de Jesus. Ver LEITE,

    Serafim, Histria da Companhia de Jesus no Brasil: da Baa ao Nordeste, estabelecimentos e assuntos locais,

    sculos XVII e XVIII, Tomo V, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1945, p. 151. 3 Ver FALCON, Francisco J. C., A poca Pombalina: Poltica Econmica e Monarquia Ilustrada, So Paulo,

    tica, 1982, pp. 213-222. A expresso retirada deste estudo, no qual Falcon rene em seis grupos as anlises

    histricas que tomaram por objeto o Marqus de Pombal: 1) os contemporneos; 2) os admiradores e crticos

    imediatos; 3) os liberais e o mito do liberalismo pombalino; 4) os conservadores e o mito da tirania pombalina;

    5) as vises da primeira metade do sculo XX; 6) as anlises recentes (ps 1945). O quarto grupo, portanto,

    aparece como portador deste discurso. Embora no insira os eclesisticos em nenhum deles, especificamente,

    interessante observar como a postura tirnica comumente associada a Pombal pelos membros da Igreja que se

    opuseram s suas reformas, bem como por aqueles que no deixaram dar seu parecer ao escrever a respeito. O

    prprio Serafim Leite, em Histria da Companhia de Jesus no Brasil, reporta-se ao ministro de D. Jos como tal:

    E alguns mostraram-se opostos, arrostando-se s iras do tirano. Tomo V, p. 103. 4 Sobre o assunto ver tambm FRANCO, Jos Eduardo, O Mito dos Jesutas em Portugal, no Brasil e no

    Oriente (sculos XVI a XX), Lisboa, Gradiva, 2007, 2 vols. 5 Cf. LEITE, Serafim, op. cit, pp 103-104.

    6 Sobre Serafim Leite e sua obra fundamental ver a dissertao de Lvia C. Pedro, Histria da Companhia de

    Jesus no Brasil: biografia de uma obra - dissertao de mestrado, Salvador, UFBa, 2008.

  • 14

    bem como o apelo ao apoio popular. Ao citar a famosa passagem bblica7, ele no deixa de

    esboar uma crtica ao regalismo pombalino8, revelando um parecer bastante negativo acerca

    da interferncia do Estado nos assuntos da Igreja. No o nico, todavia, a enxergar uma

    clara associao entre a expulso dos jesutas e a resignao do arcebispo. Fortunato de

    Almeida, autor da no menos monumental Histria da Igreja em Portugal, publicada pela

    primeira vez em 1910, dedica algumas poucas linhas do captulo sobre os bispos de alm-mar

    para dizer que a Santa S recusava-se a confirmar o sucessor do governador da diocese baiana

    em 1760 por falta de ttulo justificativo da demisso de D. Jos Botelho de Matos, que

    resignara cedendo s perseguies do Marqus de Pombal. Diz ainda que Pombal

    reclamou nos arrogantes termos que lhe eram peculiares9, e que, uma vez rompidas as

    relaes com a Santa S, somente em 1771 D. Frei Manuel de Santa Ins iria assumir a

    arquidiocese como sucessor de Botelho de Matos. preciso observar com ateno a maneira

    como os personagens envolvidos na querela dos jesutas so dispostos nestas narrativas: de

    um lado, est D. Jos Botelho de Matos, heroico e injustiado; do outro est Pombal,

    arbitrrio e tirnico.

    Arlindo Rubert foi outro importante historiador da Igreja que reclamou a memria de

    Botelho de Matos na dada conjuntura. Mas diferentemente dos autores anteriormente citados,

    na sua verso, a suposta recusa de cumprir as disposies acerca da expulso dos jesutas,

    ainda que tivesse provocado a resignao do arcebispo, tem importncia reduzida frente ao

    que representou, de maneira geral, a ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos. digna de

    nota a ateno dedicada ao seu episcopado em A Igreja no Brasil. O apreo de Rubert pelos

    chamados bispos militantes resulta num rico relato histrico sobre o arcebispo. Mas no

    apenas a generosidade das informaes que surpreende. o trato extremamente rigoroso da

    pesquisa histrica sobre a ao episcopal de Botelho de Matos que aparece nas pginas que

    7 Cf. Mt., 22, 21.

    8 Os anseios por um Estado se impe diante da autoridade pontifcia, que busca em Deus a sua legitimidade mas

    entende que os poderes dos reis e dos pontfices tem funes e deveres prprios estiveram manifestos na

    literatura defensora do regalismo. O auge de difuso destas ideias atribudo ao perodo pombalino, sobretudo

    atravs de Antonio Pereira de Figueiredo. Para Evergton Sales Souza, porm, h um literatura com fortes anseios

    regalistas ainda no sculo XVII, revelando as profundas razes de uma eclesiologia ibrica que no ficou restrita

    s influncias do galicanismo francs. Um exemplo deste regalismo ibrico estaria na obra de Gabriel Pereira de

    Castro, o Tractatus de manu Regia, publicada nos tempos da Unio Ibrica. Cf. SOUZA, Evergton Sales.

    Jansenismo e reforma da Igreja Portuguesa In: Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa: 2 a 5 de novembro de 2005. Acessvel em http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=76&Itemid=69. ltimo acesso: 20/06/2011, s

    15h34. Sobre a fundamentao poltico-filosfica do regalismo ver DIAS, Sebastio da Silva, Pombalismo e Teoria Poltica, In: Cultura Histria e Filosofia, vol. I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1982, pp. 45-70. 9 Cf. ALMEIDA, Fortunato de, Histria da Igreja em Portugal, Porto, Portucalense Editora, 4 vol., 1967-1971,

    p. 604.

  • 15

    lhe foram dedicadas: biografia, aspectos principais da execuo do seu ofcio, e o

    enfrentamento do absolutismo de Pombal10. A grandeza dos feitos de D. Jos Botelho de

    Matos so tamanhos, tal como os imaginava Rubert, que o fato da renncia chega a parecer

    incoerente11

    .

    Estas trs grandes obras da histria da Igreja Catlica conferem uma aura

    indiscutivelmente heroica a D. Jos Botelho de Matos. Outorgam a ele um papel corajoso e

    obstinado, que era estrategicamente til a uma Igreja que custou a recuperar-se dos efeitos da

    laicizao do Estado em seu espao de influncia ideolgica. A militncia foi um aspecto

    bastante valorizado no perfil dos clrigos por esta historiografia, pouco preocupada em

    esconder o incmodo diante de crises provocadas pelo absolutismo estatal e pelas indbitas

    intromisses do poder secular na esfera espiritual12. Por isso, compreensvel a maneira

    como cada um deles vociferava contra aqueles que tentaram solapar as bases da Igreja a

    partir do sculo XVIII, fosse Pombal, a maonaria ou a prpria filosofia liberal.

    Por haver uma tendncia clara postura defensiva por parte de cada um dos autores,

    h, consequentemente, certa m vontade em reconhecer que este tambm foi um perodo de

    renovao, em que os eclesisticos se dividiam em suas opinies. preciso recordar que

    poca pombalina, a Igreja estava repleta de dissidncias internas, e muitos dos seus prprios

    bispos invocavam a condio de ilustrados. Se por um lado, alguns destes bispos tentaram

    garantir suas redes de influncia poltica e defender suas posies eclesiolgicas, abrigando-se

    sob as asas de Pombal, por outro lado, houve os que optaram pela fidelidade ao Pontfice, mas

    mesmo assim, no viraram as costas para o movimento reformador..13

    Os ecos da resistncia de D. Jos Botelho de Matos chegaram ainda com fora

    gerao posterior quela do auge da defensiva ultramontana. Jos Pedro Paiva, por exemplo,

    corrobora a verso de Samuel Miller14

    na qual o arcebispo teria se recusado a executar a

    reforma dos jesutas, por ach-la injustificvel, razo pela qual acabou sendo punido com a

    demisso do cargo15

    . Aps a sada de D. Jos Botelho de Matos, que coincidiu com o

    10

    Cf. RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol.

    III, Santa Maria, Palotti, 1982, p. 26-34. 11

    Cf. RUBERT, Mons. Arlindo. D. Jos Botelho de Matos (1678-1767), 8 arcebispo da Bahia (no tricentenrio de seu nascimento), RIHGB, n. 87, 1978, pp. 105-123. 12

    Rubert faz questo de expor que entende a postura poltica de Carvalho e Melo por absolutista. Ver RUBERT, Mons. Arlindo, op. cit., p. 19. 13

    Cf. CAEIRO, Jos, Jesutas do Brasil e da ndia na perseguio do Marqus de Pombal, Salvador, Escola

    Tipogrfica Salesiana, 1936, p. 39. 14

    Cf. MILLER, Samuel J., Portugal and Rome c. 1748-1830: An Aspect of The Catholic Enlightenment, Roma,

    Universit Gregoriana Editrice, 1978, p. 99. 15

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os Bispos de Portugal e do Imprio (1495 1777), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 211, 506, 547.

  • 16

    rompimento das relaes entre Portugal e a Santa S, no houve confirmao de novo bispo

    at 1770, quando a diocese da Bahia finalmente deu boas vindas ao seu novo prelado

    diocesano, D. Frei Manuel de Santa Ins.

    Evergton Sales Souza tambm demonstrou grande interesse pela construo heroica

    em torno de D. Jos Botelho de Matos. Partindo da correspondncia entre o arcebispo e o

    reino, ele percebeu alguns detalhes desta construo histrica que mereciam ser revistos.

    Atravs de um levantamento exaustivo de referncias crise no arcebispado na Bahia, desde

    Rocha Pombo at a recente dissertao de Fabrcio Lyrio Santos16

    o nmero de aluses j

    dimensiona a relevncia do tema o historiador aponta a fragilidade de alguns pontos

    nevrlgicos da hiptese, a saber, a recusa em executar a reforma, a perseguio obstinada por

    parte de Pombal e a suspenso do pagamento das cngruas aps a renncia. Confrontadas

    com a documentao do Arquivo Histrico Ultramarino e, entre elas, as prprias declaraes

    do arcebispo sobre as condies da sua frgil sade, a elaborao do fato perde algo da

    consistncia17

    .

    D. Jos Botelho de Matos chegou Bahia em trs de maio de 1741 e demitiu-se do

    cargo em 1759, por razes que ainda causam polmica. A associao recorrente ao episdio

    da expulso dos jesutas o transformou em vulto clebre da Histria da Igreja, mas tambm

    fez com que seu episcopado, relativamente longo e repleto de atuaes nas mais diversas

    frentes, acabasse ficando em segundo plano. Que sabemos do contedo da ao pastoral de D.

    Jos Botelho de Matos? A importncia de sua atuao, que durou quase duas dcadas, no se

    resume, evidentemente, aos dois anos compreendidos entre a reforma e a expulso da

    Companhia de Jesus e a renncia do cargo.

    Julgando, de tal sorte, que a histria do episcopado de D. Jos Botelho de Matos no

    pode definir-se apenas pelo seu controverso desfecho, tampouco pela sua participao na

    querela dos jesutas com o Marqus de Pombal, acreditamos na importncia de partir para

    uma investigao mais detida acerca de alguns dos seus projetos para a diocese da Bahia,

    tomando por base a correspondncia frequente que o arcebispo manteve com o reino. A

    abundncia de documentos acerca do perodo sem dvida um convite a explor-lo em todo o

    seu potencial, e mesmo com a realizao de alguns estudos prvios, nossas pesquisas

    16

    Cf. SANTOS, Fabricio Lyrio, Te Deum Laudamus. A expulso dos jesutas da Bahia (1758-1763) dissertao de mestrado, Salvador, UFBA, 2002, pp. 96-100. 17

    Cf. SOUZA, Evergton Sales, D. Jos Botelho de Matos, arcebispo da Bahia, e a expulso dos jesutas (1758-1760), Belo Horizonte, Varia Histria, vol. 24, n 40, p. 729-746, jul/dez 2008.

  • 17

    anteriores apenas trataram de uma pequena parte dessas informaes18

    . De modo geral, j

    supomos que para o estudo da influncia das relaes Igreja-Estado sobre a ao episcopal na

    Amrica portuguesa, talvez poucas circunstncias seriam to oportunas quanto aquelas em

    que D. Jos Botelho de Matos atuou na Bahia. Pelas razes a seguir, consideramos tanto o

    personagem quanto o contexto uma significativa oportunidade historiogrfica.

    de se notar que o referido episcopado se faz dividir por uma curiosa simetria: D.

    Jos Botelho de Matos pde testemunhar, em apenas dezoito anos, os nove ltimos anos do

    reinado de D. Joo V e os nove primeiros do reinado de D. Jos I, incluindo, nestes nove,

    quatro anos de consulado pombalino. Coincidentemente, entre os anos 1740 e 1760, temos um

    perodo particularmente delicado das relaes Igreja-Estado em Portugal e suas possesses

    ultramarinas. Segundo Samuel Miller19

    , o perodo compreendido entre 1740 e 1758

    corresponde gnese da ruptura diplomtica entre Portugal e Roma, que ocorreu finalmente

    em 1760. Aps o processo de expulso dos jesutas na Amrica portuguesa, os prelados

    diocesanos encontravam-se em um delicado momento poltico, e embora no se conhecesse o

    fim ao qual os meios iam levar, nas vsperas do rompimento das relaes com a Santa S,

    certamente havia vestgios de tenses entre o papado e a Coroa que no passavam

    despercebidos. No que toca o processo de provimento dos cargos episcopais, por exemplo,

    muitos dos bispos nomeados nos tempos de D. Joo V veriam seus cargos em risco quando

    Sebastio Jos de Carvalho e Melo reformou alguns dos critrios de escolha destes bispos20

    .

    Para Jos Pedro Paiva, no entanto, a definio da frmula de nomeao dos prelados em 1740,

    ainda no reinado joanino, pode ser considerada um dos fatos inauguradores do ciclo de

    eventos que se estendeu at 1759 e culminou com a j referida expulso da Companhia de

    18

    Em virtude das pesquisas realizadas como bolsista PIBIC, no projeto intitulado Histria de uma devoo

    impopular: So Francisco Xavier, padroeiro de Salvador, percebemos o arcebispo enquanto personagem

    fundamental na tentativa de popularizar o culto ao santo missionrio. Ao notar que a impopularidade dava-se

    muito em funo de que a populao imaginava ser Jesus Cristo o padroeiro da cidade, Botelho de Matos

    informou a Diogo Corte Real, Secretrio de Estado de Ultramar, a resoluo de fabricar uma Pastoral, publicada

    em agosto de 1754, a fim de resolver a dvida (AHU, Projeto Resgate, Castro e Almeida, Cx. 08, Doc. 1428).

    Aps veredicto do Pontfice Bento XIV, a Pastoral foi fixada nas portas da Catedral da S, em 3 de agosto de

    1754. O Santssimo Salvador era confirmado Titular da Cidade da Bahia e da sua Igreja Catedral, e como tal,

    Lhe era devida toda a reverncia. So Francisco Xavier, outrossim, era ratificado como padroeiro principal da

    cidade, cannica e legitimamente eleito, a quem se prestaria, da mesma maneira, o culto que lhe era devido. Cf.

    VIVAS, Rebeca C. de Souza,A ao episcopal de D. Jos Botelho de Matos (1741-1759), artigo apresentado em forma de comunicao no I Colquio de Histria da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife,

    2007. 19

    Cf. MILLER, Samuel J., Portugal and Rome c. 1748-1830: An Aspect of The Catholic Enlightenment, Roma,

    Universit Gregoriana Editrice, 1978, p. 28. 20

    Cf. PAIVA, Jos Pedro , Os novos prelados diocesanos nomeados no consulado pombalino, Penlope, n. 25, 2001, p. 45.

  • 18

    Jesus21

    . No obstante, temos que o perodo tambm corresponde ao exato tempo em que a

    Igreja de Roma esteve sob regncia de Bento XIV (1740-1758), cujo pontificado teria sido

    marcado pela sensibilidade s interferncias externas e para muitos, at mesmo flexvel s

    pretenses dos governos temporais22

    . Alm do mais, o referido pontfice teria buscado dirigir-

    se preferencialmente aos bispos, exortando-lhes a trabalhar para a reforma do clero.

    No h como no julgar de extremo interesse o fato de que as condicionantes das

    relaes Igreja-Estado nas dcadas de 1740 e 1750, quando dirigidas ao espao que nos

    interessa o arcebispado da Bahia convirjam precisamente para a ao episcopal de D. Jos

    Botelho de Matos. Um nico episcopado pode parecer insuficiente para permitir um estudo do

    qual esperssemos uma cobertura satisfatria das mudanas que constituem, por excelncia, o

    processo histrico, mas, por outro lado, diante de situaes como reinados em transio ou de

    grandes reformas polticas, poderia ser suficiente para esclarecer porque os projetos de um

    bispo para uma diocese foram efetivados ou rejeitados, revelando muito do tipo de relao

    que este indivduo manteve com o sistema poltico no qual atuou. Do organismo complexo

    nascido da chamada interpenetrao entre Igreja e Estado23

    , procuramos fazer uma espcie de

    bipsia, mostrando em que reas deste organismo os interesses da Igreja vo ao encontro

    daqueles do Estado e quando vo de encontro a eles.

    Bispo poltico, portanto, uma categoria de anlise central neste trabalho. Os

    estudos de Jos Pedro Paiva sobre o processo de provimento episcopal em Portugal e seu

    imprio, durante a poca moderna24

    , trazem referncias imprescindveis na interpretao das

    opes de D. Jos Botelho de Matos. Este perfil de bispo, que desponta no sculo XVII,

    representa uma Igreja que defende o seu territrio jurisdicional, pois j bastante sensvel

    viragem operada na interpenetrao entre Igreja e Estado25

    . Deixando, aos poucos, de ser o

    nico referencial jurdico, moral e espiritual diante da laicizao progressiva das

    mentalidades, a Igreja enfrenta ataques ao seu poder de influncia e sua jurisdio universal.

    Uma batalha diplomtica j tinha comeado quando, no sculo XVIII, os bispos

    21

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, A Igreja e o Poder In: AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.), Histria Religiosa de Portugal, vol. II, Coimbra, Crculo de Leitores, 2000, pp. 164. 22

    A opinio de Carlos Castiglioni, afinal, de que este juzo parece discutvel para um pontfice de

    extraordinria erudio como Prospero Lambertini, sagrado Bento XIV. Opinio que no deve ser isenta de certa parcialidade ultramontana, sobretudo quando combina certos comentrios (des)qualificao de D. Jos I

    como dbil e voluptuoso. Ver CASTIGLIONI, Carlos, El Iluminismo y el racionalismo contra la Iglesia In: Historia de Los Papas, Tomo II: Desde Bonifacio VIII at Pio XII (com um estudo do R.do P.e Bernardino

    Llorca, S. J.), Barcelona, Editorial Labor, 1948, pp. 488-499. 23

    Ver PAIVA, Jos Pedro, El Estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado: Contaminaciones, dependencias y disidencia entre la monarqua y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640), Manuscrits, n 25, 2007, pp.45-57. 24

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os Bispos de Portugal e do Imprio (1495-1777), Imprensa da Universidade de

    Coimbra, 2006, pp. 147-154. 25

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, El Estado en la Iglesia..., pp.45-57

  • 19

    especialmente interessados em questes polticas comearam a multiplicar-se, fosse porque

    precisavam defender os interesses da Igreja segundo o vocabulrio secular vigente, fosse

    porque estavam demasiado entranhados na mquina pblica para conseguirem separar o

    sacerdcio da poltica. Jogavam um jogo ambguo: submetiam-se, por um lado, s normas de

    convivncia estabelecidas pelo Estado, mas subvertiam, por outro, as tendncias laicizantes

    em ascenso. No que seja fcil definir com preciso o que vinha afinal a ser um bispo

    poltico, tampouco reduzir a nico os vrios perfis que estes prelados apresentavam na dada

    conjuntura setecentista26

    . Mas sua existncia sublinha o momento histrico em que a Igreja

    tem na poltica uma via sem retorno para o universo das coisas terrenas.

    Ademais, trata-se do bispo poltico de uma arquidiocese ultramarina, e a localizao

    na zona perifrica do imprio sem dvida um fator a ser levado em considerao. A prpria

    historiografia da Igreja e do episcopado no imprio portugus j estabeleceu o espao

    ultramarino como um recorte analtico relevante. No processo de provimento episcopal das

    dioceses ultramarinas, por exemplo, Jos Pedro Paiva tem mostrado que os critrios tornaram-

    se especficos do contexto, tendo D. Jos Botelho de Matos sido eleito de acordo com estes

    critrios27

    . O crescimento fsico do imprio, explica Paiva, forou subdivises e alteraes na

    dinmica de organizao das dioceses portuguesas28

    . Assim, nos sculos XVI e XVII, alm de

    uma nova provncia eclesistica em Goa, surgiram dioceses sufragneas provncia

    eclesistica de Lisboa, como Funchal, Angra, Cabo Verde, So Tom, Congo e at a Bahia.

    No sculo XVII, esta ltima foi elevada condio de arcebispado, da qual tambm passaram

    a ser subordinadas as dioceses de Olinda, Congo, So Tom, Angola, e todas as outras que

    surgiram na Amrica portuguesa29

    . Alm disso, a consolidao da importncia da arquidiocese

    da Bahia transformou-a num referencial de ascenso nas carreiras de muitos candidatos a

    assumir a sua Mitra30

    . Todo o esforo de cobertura da territorializao da Igreja portuguesa

    atravs das relaes Igreja-Estado necessita, portanto, de uma complementao a altura para

    os espaos no continentais.

    26

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os Bispos... pp. 111-170. 27

    Alm de explicitar os critrios que levaram escolha dos arcebispos da Bahia e demais bispos da Amrica

    portuguesa entre 1701 e 1750, Jos Pedro Paiva mostra os diferentes ciclos e tendncias deste processo. Cf.

    PAIVA, Jos Pedro, D. Sebastio Monteiro da Vide e o episcopado do Brasil em tempo de renovao (1701-1750) In: FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, A Igreja no Brasil: Normas e Prticas durante a Vigncia das Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So Paulo, Unifesp, 2011, pp. 29-59. 28

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, Dioceses e organizao eclesistica In: AZEVEDO, Carlos Moreira de (dir.), Histria Religiosa de Portugal, vol. II, Coimbra, Crculo de Leitores, 2000, pp. 187-199. 29

    Cf. PAIVA, Jos Pedro, Dioceses e organizao eclesistica, pp. 188-189. 30

    Cf. FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Estudo Introdutrio In: DA VIDE, D. Sebastio Monteiro, Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo,

    2010, p. 10.

  • 20

    O governo civil e sua projeo social, nas suas mais diversas instituies e hierarquias,

    (a exemplo dos poderes executivo, legislativo e judicirio) so fatores cruciais no

    entendimento de como o poder episcopal atuava afinal, na Amrica portuguesa, no s pela

    cooperao em prol da manuteno da ordem pblica e nos rituais de poder que reafirmavam

    a presena e majestade do monarca, mas tambm atravs disputas oriundas dos conflitos de

    jurisdio, em vista do alargamento da jurisdio civil sobre a eclesistica31

    . Por este motivo,

    a publicao das Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707 o ponto de

    apoio no estudo da projeo de aes episcopais sobre as relaes Igreja-Estado e a realidade

    jurdico-poltico-administrativa da Amrica portuguesa.

    Observando os estudos sobre aes episcopais em outras dioceses brasileiras,

    percebemos que as mudanas e permanncias na ao pastoral dos bispos na segunda metade

    do sculo XVIII, so atribudas a uma grande influncia das resolues do Conclio de Trento

    junto com as Constituies Primeiras nas prticas pastorais de muitos arcebispos. Foi o caso

    da diocese de Mariana, no episcopado de Frei Manuel da Cruz (1748-1764) e Frei Domingos

    da Encarnao Pontevel (1780-1793). Considerando que a Igreja Catlica exercia uma funo

    clara no estabelecimento da ordem na regio, Alcilene Oliveira defendeu que o apoio do

    Estado Igreja favoreceu a implantao do programa salvfico de Trento32 Segundo a

    31

    A opinio de que o caos administrativo era uma marca da colonizao portuguesa na Amrica recorrente na

    historiografia brasileira, tendo comeado, segundo Maria Fernanda Bicalho, com os estudos de Caio Prado Jr.,

    passando por Raymundo Faoro e Srgio Buarque de Holanda. Todavia, a ideia de que este caos administrativo

    era regulado e/ou alimentado em ltima instncia pela Coroa, que funcionava como rbitro da superposio de

    jurisdies, , segundo Bicalho, fruto de uma nova perspectiva historiogrfica, oriunda de uma parceria entre

    estudiosos lusitanos e brasileiros, inaugurando um contraponto s opinies de Faoro e Prado Jr. Para conhecer o

    denso debate historiogrfico de que a historiadora d conta ver BICALHO, Maria Fernanda, Centro e Periferia: pacto e negociao poltica na administrao do Brasil colonial, In: Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, n 6, abril-outubro de 2000, pp. 17-39. Atualmente, porm, podemos dizer que h duas grandes correntes

    relativamente opostas em suas perspectivas sobre a maior ou menor autonomia da dinmica administrativa da

    Amrica portuguesa com relao metrpole. Digo relativamente, pois a oposio entre ambas no se apresenta

    de maneira mais clara no que diz respeito ideia, do que se apresenta diante de suas opes terico-

    metodolgicas. Uma delas, por parte do historiador portugus Antnio Manuel Hespanha, toma, em linhas gerais

    a estrutura administrativa da Amrica portuguesa pelo seu carter descerebrado. Em outras palavras, relaciona a centralidade do direito reduo das funes da Coroa a uma administrao que soa passiva, afinal. Para Hespanha, as causas do enfraquecimento do poder central portugus residem numa confuso jurisdicional do

    Antigo Regime (teoria da estrutura polissinodal), o que poderia justificar o alargamento da sombra do rei na sombra de seus funcionrios, cobrindo e dando legitimidade prtica a toda a sorte de iniciativas e ousadias. Segundo a outra perspectiva, porm, fornecida por Laura de Mello e Souza, ocorre, por parte de Hespanha uma

    relativizao generalizada da presena do Estado e no caso portugus e seria difcil aplicar sua anlise para alm

    do sculo XVIII, levando em conta a atuao de personagens polticos marcantes como o Marqus de Pombal.

    Para ela, a supervalorizao dos textos jurdicos, do esquema polissinodal e da microfsica do poder teria

    denunciado um estudo negligente das especificidades em cada parte do Imprio e enfraquecido excessivamente o

    papel do Estado. Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. Depois do Leviathan, Almanack Braziliense, N 05, 05/2007, pp. 55-66 e SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: poltica e administrao na Amrica

    portuguesa do sc. XVIII, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, pp. 27-77. 32

    OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de, A ao pastoral dos bispos da Diocese de Mariana: mudanas e

    permanncias (1748-1793) - dissertao de mestrado, Campinas, UNICAMP, 2001, p. 210.

  • 21

    autora, a feio corporativista das relaes Igreja-Estado teria produzido um eficiente

    mecanismo de disciplinamento social que dirigiu com rigor a conduta do clero e de uma

    populao mineira que at ento, apresentava elevados ndices de concubinato, heterodoxias

    devocionais, prostituio e filhos ilegtimos. Havia tambm uma grande preocupao com a

    organizao do sistema de parquias e com o fortalecimento da hierarquia da Igreja, garantido

    pela exigncia de licenas eclesisticas por parte dos procos e sacerdotes, que por sua vez,

    deviam expurgar os desvios comportamentais e doutrinrios atravs da insero do quadro

    devocional do iluminismo catlico.33

    As visitas pastorais, atividade mais importante,

    constituam a base de apoio de toda esta atuao.

    A ao pastoral dos bispos paulistas, a partir da criao da diocese de So Paulo em

    1745, tambm sugere que os esforos da Igreja Catlica na colnia dirigiam-se na tentativa de

    fazer implementar os pressupostos tridentinos, cujo sinal manifestava-se j na elaborao das

    Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia34

    . O incremento da atividade mineradora

    era fator de influncia na deciso de efetivar um disciplinamento social nas capitanias do

    sudeste, para o qual a ao dos bispos estava voltada e cujas prioridades eram a criao de

    parquias e a reforma moral e intelectual do clero. A afirmao do poder hierrquico do bispo

    mostrou-se fundamental para que se pudesse garantir o zelo por parte dos vigrios e procos

    das Constituies do Arcebispado da Bahia. O dever da desobriga quaresmal o aspecto com

    maior destaque na ao pastoral dos bispos em So Paulo e refora a ideia tridentina de que a

    via sacramental era a melhor forma de prevenir abusos e desvios de conduta por parte dos

    fieis. De acordo com Dalila Zanon, como consequncia, via-se uma piedade extremamente

    exteriorizada, sintomtica dos limites do programa tridentino em uma populao crescente35

    .

    A difuso das indulgncias pelo estmulo crena do purgatrio e mesmo uma economia das

    indulgncias eram, para Zanon, traos marcantes das aes pastorais dos bispos paulistas.

    O termo programa salvfico, recorrente em ambos os estudos sobre as aes

    episcopais no sudeste36

    , sugere certo consenso a respeito da ideia de que o modelo tridentino

    estava em plena fase de implantao, ainda no sculo XVIII na Amrica portuguesa. As

    relaes Igreja-Estado teriam servido para impulsionar o disciplinamento social na colnia e,

    embora insistissem na postura reformadora dos bispos, conclui-se, em geral, que a

    complexidade da sociedade colonial, incitada pela distncia do reino e verificada nos

    33

    Idem, p. 214-217. 34

    ZANON, Dalila, A ao dos bispos e a orientao tridentina em So Paulo (1745-1796) - dissertao de

    mestrado, Campinas, UNICAMP, 1999, p. 222-223. 35

    Idem, p. 235. 36 Ver OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de, A ao pastoral dos bispos da Diocese de Mariana..., p. 210 e ver

    tambm ZANON, Dalila, A ao dos bispos...p. 242.

  • 22

    frequentes desvios de conduta de clero e da populao, eram um grande obstculo para a

    consolidao deste modelo tridentino de Igreja. Estes dois estudos sugerem uma tendncia a

    evitar a oposio absoluta entre o cotidiano religioso da colnia e a reforma com base

    tridentina, apontando para uma terceira via que so as adaptaes do corpo eclesistico (e o

    uso do termo adaptao no deixa de ser feito com bastante cuidado) s condies estruturais

    e materiais da Igreja catlica na Amrica portuguesa. Para que estas adaptaes fossem

    possveis, o arcebispo precisava ter um conhecimento concreto da diocese. No por acaso,

    desde Trento, a realizao de visitas pastorais est entre as atribuies obrigatrias dos

    prelados diocesanos.

    As pesquisas de Dalila Zanon e Alcilene Cavalcante mostram que, graas

    documentao pastoral disponvel possvel ir fundo nos questionamentos que tentam

    entender a ligao destes episcopados com o Conclio de Trento, e mostram como os bispos

    vieram quelas dioceses imbudos da necessidade de disciplinar o clero e os fiis. Esta tica

    disciplinadora sublinhada por ambas as historiadoras tambm fruto de um interesse

    constante em entender como a Igreja colaborou com a atitude repressiva da Coroa na

    conjuntura da minerao. Porm, a interpretao da Igreja como instituio unida ao Estado

    para reforar prticas de disciplinamento social pode falhar quando toma por certa a

    existncia de uma total harmonia de interesses neste sculo de tantas tenses entre Portugal e

    Santa S. preciso considerar, outrossim, a Igreja como instituio composta de vrios

    grupos diferentes, com interesses s vezes pouco harmnicos. As tenses entre Portugal e a

    Santa S tendiam a evidenciar uma Igreja Catlica que se dividia. Alguns destes grupos

    eclesisticos, veremos, encontravam-se por vezes mais prximos dos interesses dos fiis do

    que da prpria Coroa. Por isso, atribuir ao alinhamento perfeito da Igreja local com o poder

    poltico colonial o valor de axioma pode significar uma opo arriscada. sempre vlido

    observar o comportamento dos grupos e indivduos ligados Igreja para observarmos de

    outro ngulo como a atuao da instituio na sociedade colonial ainda mais complexa.

    No raro encontrar eclesisticos, mesmo arcebispos, que denunciam as contradies

    e problemas da sociedade colonial. Os estudos sobre as circunstncias de elaborao das

    Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia37

    mostraram que a demora em realizar um

    snodo diocesano na arquidiocese foi um sinal claro da dificuldade de implantao das normas

    de Trento em regies perifricas como a Amrica portuguesa, dificuldades que foram

    37

    Cf. FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Estudo Introdutrio In: DA VIDE, D. Sebastio Monteiro, Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo,

    2010.

  • 23

    denunciadas pelo prprio arcebispo, D. Sebastio Monteiro da Vide. Para Bruno Feitler e

    Evergton Sales Souza, no caso da Bahia, a extenso da diocese teve grande influncia sobre a

    insuficincia das visitas pastorais, dificultando at o diagnstico dos problemas concretos da

    diocese. A dedicao de D. Sebastio de Monteiro da Vide, que fez quatro visitas pastorais

    entre 1702 e 1718, veio mudar este quadro, deixando bastante evidente que, em qualquer ao

    episcopal na Amrica portuguesa e em qualquer outro espao perifrico, seja em relao a

    Roma ou ao prprio imprio, a maior ou menor capacidade dos bispos de conhecer com

    profundidade a diocese sob sua responsabilidade determinante da execuo de seus projetos

    pastorais.

    Estudos detalhados a partir das visitas pastorais seriam de fundamental importncia

    para a arquidiocese da Bahia. Porm, o nmero de registros nos arquivos da Cria

    Metropolitana de Salvador no permite, para o sculo XVIII, uma abordagem nos nveis das

    que foram feitas para Minas Gerais e So Paulo, que contam com uma documentao

    significativa acerca de pastorais, registros paroquiais e informaes sobre visitas diocesanas.

    Atualmente, o Arquivo Histrico Ultramarino tem suprido a falta de registros de natureza

    pastoral alm de permitir enfatizar vrios aspectos das relaes Igreja-Estado, dado ao fato de

    que sua composio inclui majoritariamente cartas entre os arcebispos da Bahia e o Conselho

    Ultramarino. Por isso, decidimos suprir a falta de documentos de natureza pastoral com a

    demanda por um estudo de ao episcopal mais criticamente vinculado s vicissitudes das

    relaes Igreja-Estado, aproveitando a abundncia de documentos que favorecem esta

    observao.

    Fundamentalmente, partimos dos manuscritos do Arquivo Histrico Ultramarino,

    digitalizados por ocasio do Projeto Resgate para realizar este estudo sobre a ao episcopal

    de D. Jos Botelho de Matos. Apesar de o arcebispo ter-se revelado uma voz contestadora de

    muitas medidas tomadas pela Coroa o que por si j diferencia sua tica governativa

    tambm perseguimos o ideal de ineditismo atravs da metodologia, ou seja, o enfoque na

    correspondncia entre o arcebispo e a Coroa que no prescindiu, por sua vez, do cruzamento

    com informaes obtidas nos requerimentos de diferentes grupos sociais, representando os

    mais variados conjuntos de interesses. Os fiis, os clrigos, os regulares, as religiosas, as

    irmandades, os membros do governo civil, enfim, todos estes grupos que se apropriaram de

    aspectos circunstanciais das relaes Igreja-Estado, participando ativamente deste cotidiano

    poltico e religioso no qual desejavam fazer valer tambm os seus interesses mais imediatos e

    acabaram redefinindo a ao de D. Jos Botelho de Matos.

  • 24

    Muitos, portanto, foram os indivduos e instituies da vida religiosa e leiga na Bahia

    com os quais o arcebispo D. Jos Botelho de Matos lidou e mediante os quais tentou

    empreender uma ao pastoral. De modo a conferir viabilidade a uma anlise mais coesa do

    seu episcopado, todavia, decidimos dar destaque a apenas alguns campos de sua atuao, no

    s para respeitar as limitaes que o formato de uma dissertao de mestrado nos impe, mas

    tambm porque a prpria escassez documental a nvel pastoral no nos permitiu ir mais fundo

    nos detalhes da natureza de seu governo arquidiocesano. Teremos, consequentemente, muito

    mais de um discurso produzido pela prtica poltica do episcopado do que de suas vises

    teolgicas ou vinculaes eclesiolgicas.

    No primeiro captulo, tentaremos mostrar como o elogio ao pio zelo da Coroa era

    utilizado como elemento de discurso para penetrar sistema poltico metropolitano e como D.

    Jos Botelho de Matos utilizou este elemento de discurso para navegar na emaranhada

    burocracia do reino, alm de tentar afrouxar a rigidez da Fazenda Real, obtendo suporte

    financeiro para as diversas intervenes que pretendia realizar. No segundo captulo, o

    objetivo mostrar como a realizao de quatro visitas pastorais contribuiu no s para a

    elaborao das estratgias de requerimento do arcebispo, com um discurso bastante

    convincente, mas tambm o auxiliou a selecionar os pontos cruciais de sua ao pastoral, que

    adquiriu carter mais incisivo. O terceiro captulo tratar do interesse de D. Jos Botelho de

    Matos pela profisso religiosa feminina, dos pontos de vista religioso, moral e social,

    considerando a existncia de um mercado matrimonial necessrio ao aumento das

    conquistas, razo porque a Coroa portuguesa reforou uma poltica de controle destas

    vocaes. H bastante nfase nos conflitos de jurisdio, que fizeram o arcebispo recuar

    temporariamente, uma vez que suas iniciativas acabaram suplantadas por prioridades

    determinadas pelo Estado.

    O quarto captulo comea mostrando um perodo delicado de atuao poltica do

    arcebispo, ainda sensvel ao desgaste poltico do exaustivo processo em torno do recolhimento

    e posteriormente convento da Soledade. Como se no bastasse a fragilidade poltica, a

    obteno e circulao de breves apostlicos revelou-se uma manobra comum entre leigos e

    religiosos para subverter as leis da Coroa que afetavam suas isenes tributrias e

    jurisdicionais. Tais manobras tornaram-se extremamente embaraosas para o arcebispo, que

    neste contexto veio a ter bastante apoio de dois missionrios jesutas.

    O quinto captulo traz a culminncia desta tenso entre as iniciativas de D. Jos

    Botelho de Matos e as barreiras impostas pelas circunstncias jurdicas, polticas e

    ideolgicas, quando a Coroa assumiu com rigor o discurso de defesa da integridade do

  • 25

    Estado, viso que, alis, antecede (e muito) as chamadas reformas pombalinas. A poltica de

    ordenao do clero reproduzia e refletia uma srie de problemas que, em ltima anlise, eram

    da prpria constituio eclesistica da Amrica portuguesa no Brasil.

    Afinal, este trabalho tem profundo interesse em desenhar os traos da personalidade

    poltica de D. Jos Botelho de Matos, colhendo suas contribuies positivas no trato cotidiano

    com as dificuldades impostas pelo ritmo da burocracia transatlntica e pelo nvel em que se

    encontravam as relaes Igreja-Estado.

  • 26

    CAPTULO 1

    REQUERER E PERSUADIR:

    OS COMPROMISSOS DE UMA COROA CATLICA

    A Bula Super Specula criou a diocese de So Salvador da Bahia em vinte e cinco de

    fevereiro de 1551, desmembrando-a da diocese de Funchal, na Ilha da Madeira. Celebrando

    um pacto poltico, a criao da diocese atravs da referida bula era a manifestao territorial

    de um acordo que visava beneficiar dois imprios em expanso, sacramentando o

    compromisso que pontfice e rei assumiam um com o outro, em prol da expanso da f

    catlica. Atravs da concesso do direito de padroado, D. Joo III, que j detinha a jurisdio

    temporal e espiritual das longnquas ilhas e conquistas asiticas38

    , passava a ter os mesmos

    privilgios sobre as novas pores americanas, uma vez Gro-Mestre da Ordem de Cristo.

    Ostentava o pomposo ttulo de rei de Portugal e dos Algarves, daqum e dalm-mar, em

    frica, era Senhor de Guin e da Conquista, Navegao e Comrcio de Etipia, Arbia, Prsia

    e ndia39

    . E tudo isso, naturalmente, precedido da graa de Deus.

    A evoluo do controle estatal sobre o processo de territorializao da Igreja nos d a

    impresso de que gozar do direito de padroado rgio tornou-se um benefcio unilateral da

    Coroa portuguesa. Entretanto, este privilgio monrquico no deixava de ter uma

    contrapartida, nem de criar um dbito. Por requerer a divina graa, transcrita nos termos das

    bulas apostlicas, o alcance dos predicativos rgios de conquista e comrcio fez com que os

    monarcas portugueses adquirissem uma dvida sagrada com os representantes da Igreja de

    Roma. Assim, desde que D. Pero Fernandes Sardinha (1551-1556) foi nomeado primeiro

    bispo de So Salvador da Bahia por D. Joo III, estava subentendido que a ao episcopal

    38

    SILVA, Cndido da Costa e, Notcia do Arcebispado de So Salvador da Bahia, Salvador, Fundao Gregrio

    de Matos, 2001, p. 34. 39

    ngela Barreto Xavier destacou a importncia que os ttulos invocados tinham com a relao de poder

    exercida sobre os territrios ultramarinos: Ora, a permanncia do ditado dos ttulos ostentados pelos monarcas portugueses desde finais do sculo XV (assumido como uma importante representao do poder imperial,

    manifesto pblico da relao que a monarquia estabelecia entre os espaos que dominava e o tipo de poder que

    sobre eles exercia) parece desmentir a hiptese de que tenha existido uma alterao jurdico-poltica estabelecida

    entre a coroa portuguesa e os territrios asiticos [...] eram reis das cidades conquistadas no Norte de frica,

    senhores da Guin e, no que respeitava a Etipia, Arbia, Prsia e ndia, ambicionavam ser senhores da

    conquista, navegao e comrcio. Ou seja, na maior parte dos territrios que constituam o imprio portugus

    [...] os reis de Portugal exerciam apenas este ltimo direito... Cf. XAVIER, ngela Barreto, A Inveno de Goa: Poder Imperial e Converses Culturais nos Sculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais,

    2008, pp.64-65. Na defesa desta dissertao, Jos Pedro Paiva no deixou de salientar um aspecto tambm muito

    interessante acerca destes predicativos rgios: a ausncia de meno explcita ao Brasil nestes ditados, no

    obstante a Amrica portuguesa ter sido uma poro imperial de grande relevncia nos sculos XVII e XVIII.

    Paiva explica que esta ausncia entende-se pelo fato de que a certa altura, a designao adquire uma meno da

    tradio e j no se altera, nem mesmo para aludir a cada um dos domnios especificamente.

  • 27

    daquele bispo e dos seus sucessores iria requerer constantemente o compromisso rgio de

    zelar pelo aumento da f crist.

    Na expanso ultramarina, poderamos considerar o estabelecimento de misses, e

    posteriormente, de uma Igreja diocesana, como um procedimento poltico-administrativo

    padro, condicionante da ocupao efetiva dos territrios de conquista das monarquias

    ibricas. Sem o processo de converso cultural40 e a absoro das estruturas poltico-

    administrativas herdadas deste processo (primeiro misses e parquias e s ento vilas e

    cidades) como imaginar a efetivao da conquista? Neste contexto, ao reconhecerem a

    importncia dos seus deveres nas conquistas, as representaes eclesisticas locais esperavam

    que, naturalmente, as suas demandas constassem da lista de prioridades administrativas da

    Coroa.

    A julgar, contudo, pela limitada infraestrutura administrativa da arquidiocese de So

    Salvador j no incio do sculo XVIII, mais de um sculo aps a publicao da bula que

    garantia a criao do arcebispado, ficava cada vez mais evidente a necessidade de relembrar

    aquela dvida sagrada que a Coroa mantinha com a Igreja. Ao redigir suas Notcias sobre o

    arcebispado da Bahia no ano de 171241

    e dar incio a uma descrio exaustiva das

    necessidades da diocese, D. Sebastio Monteiro da Vide (1702-1722) mostrava que a agora

    arquidiocese42

    permanecia carente, entre outras coisas, de procos que pudessem realizar a

    cura de almas de maneira adequada. Cura de almas, alis, que costumava ser o ponto

    nevrlgico da ao pastoral de todo e qualquer prelado diocesano em conformidade com as

    diretrizes tridentinas43

    . Mas apesar da nova amplitude jurisdicional conferida mitra de So

    Salvador da Bahia que colocava os bispados de Pernambuco e do Rio de Janeiro, alm do de

    Angola e do de So Tom, sob sua jurisdio ordinria a precariedade da estrutura

    40

    Atravs do uso da categoria converso cultural, ngela Barreto Xavier mostrou de modo preciso como a narrativa dominante dos agentes imperiais era lentamente absorvida e reproduzida pelas diversos grupos sociais

    do espao ultramarino. A apropriao e os usos daquele discurso eram determinantes da maneira como esses

    grupos interagiam socialmente e construam uma dinmica local para o poder poltico e para a sociedade na

    periferia do imprio. Embora no descartasse a relao entre violncia e absoro do referido discurso, quando

    se reportou Igreja, levou em conta a adoo de um tipo de violncia mais suave, atravs da educao e da assistncia, mas nem por isso, menos eficaz. Cf. XAVIER, ngela Barreto, A Inveno de Goa: Poder Imperial

    e Converses Culturais nos Sculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais, 2008, pp. 26 e 27. 41

    Esta data atribuda por Cndido da Costa e Silva, pelo fato das Notcias encontrarem-se incompletas. Uma

    vez que o arcebispo Monteiro da Vide refere-se aos dez anos que tinha frente do arcebispado, deduziu-se tratar-

    se do ano de 1712. Arlindo Rubert refere-se a um perodo anterior a 1713, o que no desmente a suposio. Ver.

    RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol. III,

    Santa Maria, Palotti, 1982, p. 30. 42

    Desde 1676. RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no Brasil: expanso missionria e hierrquica (sculo XVII),

    Vol. II, Santa Maria, Palotti, 1982, p. 197 e ss. 43

    RLO, Fr. Raul de Almeida (O.P.), Lvque de la Reforme Tridentine: Sa Mission Pastorale daprs le vnrable Barthelmy des Martyres (Traduit du Portugais par le R. P. Ceslas Salmon, O.P.) Lisboa, Centro de

    Estudos Histricos Ultramarinos, 1965, pp. 218-228.

  • 28

    eclesistica secular fazia com que a herclea tarefa de administrar os sacramentos numa

    diocese vastssima precedesse de prticas heterodoxas, pouco ou nada condizentes com o que

    as recm-promulgadas Constituies do arcebispado e o prprio Conclio Tridentino

    preconizavam.

    No obstante ter celebrado o snodo diocesano que resultou na elaborao das

    Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707 e feito um esforo incomum de

    realizar quatro visitas pastorais a fim de conhecer os problemas da diocese44

    , D. Sebastio

    Monteiro da Vide continuava escandalizado com a quantidade de crianas batizadas muito

    aps os oito dias ordinariamente concedidos aos pais para faz-lo; espantou-se com o nmero

    de fiis que comungavam fora das suas parquias alm daqueles que nem mesmo chegavam

    a buscar o sacramento da eucaristia; com a realizao de matrimnios que ignoravam

    impedimentos entre os noivos; com o soberbo desinteresse pela catequizao dos escravos e

    com o fato de que a dcima parte dos fregueses no frequentava a missa dominical,

    culminando no desconhecimento de uma srie de pecados pblicos por parte dos procos45

    .

    O arcebispo sabia que as relaxaes eram resultado da incapacidade dos clrigos para

    vencer dificuldades estruturais enfrentadas h dcadas pela arquidiocese. As grandes

    distncias, a vastido, a amplitude territorial da diocese da Bahia, quando relacionadas ao

    nmero insuficiente de ministros tornava a ao pastoral um verdadeiro desafio, quando no

    um grande desengano. Por isso, Monteiro da Vide precisava sublinhar o valor do

    compromisso sagrado que os Prncipes deveriam ter com a Igreja no por acaso

    legitimadora do poder poltico dos reis e provedora da unidade confessional dos imprios

    catlicos. Insistia no quanto estes to nobilssimos fins como so o da honra de Deus, e

    salvao das Almas sempre tiveram bom acolhimento nos Prncipes e Monarcas soberanos46.

    Convicto de que a maior certeza da durao e firmeza dos imprios devia-se ao

    estabelecimento, conservao e aumento do culto do verdadeiro Deus e a F e Religio

    Crist, recomendava que era muito prprio das Majestades e monarcas soberanos

    anteporem o servio de Deus47.

    No que tamanho compromisso tornasse mais fcil a tarefa de ser arcebispo-primaz do

    Brasil. A dimenso territorial da arquidiocese era um obstculo que nem todos os bispos

    44

    FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales Estudo introdutrio In: Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia/ Sebastio Monteiro da Vide. So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo, 2010,

    p.14. 45

    SILVA, Cndido da Costa e, Notcia do Arcebispado de So Salvador da Bahia, Salvador, Fundao Gregrio

    de Matos, 2001, p. 40-42. 46

    Idem, p. 36. 47

    Idem ibidem, pp. 26, 33, 34,66.

  • 29

    tiveram condies de vencer. Por outro lado, aos que tiveram como enfrent-lo, como foi o

    caso de D. Sebastio Monteiro, restou uma reputao memorvel. Alis, no sculo XVIII, o

    cargo de prelado diocesano da Bahia havia se tornado uma dignidade mpar, concedida apenas

    aos candidatos melhor preparados (e/ou melhor relacionados48

    ) do reino, alm de garantir para

    muitos deles, o ponto alto de uma carreira eclesistica no ultramar49

    . A relevncia adquirida

    pelo Brasil naqueles tempos, devido principalmente ao fato de que a poro americana do

    imprio continuava fortalecendo os predicativos rgios da conquista e, mais ainda do

    comrcio, havia mudado o significado de assumir como residncia a S primacial da Amrica

    portuguesa.

    a que se encontra uma contradio fundamental, pois apesar da fama, em termos de

    infraestrutura, o arcebispado de So Salvador da Bahia demandava vigorosas intervenes.

    Justia seja feita, as Constituies Primeiras representaram um enorme divisor de guas na

    organizao da Igreja na Amrica portuguesa, mas a dificuldade de penetrar nos sertes, a

    penria financeira dos vigrios e procos das regies mais afastadas, a quantidade de donzelas

    pobres em situao de risco, alm do desequilbrio cada vez maior entre clero secular e

    regular em atuao permaneciam alarmantes. O efetivo de missionrios jesutas, franciscanos,

    capuchinhos, carmelitas, entre outros, que se dirigiam tanto converso das populaes

    indgenas quanto evangelizao das populaes de colonos residentes, no se comparava ao

    da Igreja secular. Nas Notcias de Monteiro da Vide, havia um forte apelo para que se

    ampliasse o quadro de religiosos do Hbito de So Pedro nas mais diversas regies do

    arcebispado, especialmente as mais remotas. Havia, em consequncia, a necessidade de mais

    igrejas paroquiais para organizar esta cura de almas e prover os registros, alm de uma

    cngrua que garantisse a subsistncia destes procos com decncia.

    Monteiro da Vide j havia percebido que a necessidade de mais procos e mais igrejas

    no seria possvel sem canalizar mais rendas para a arquidiocese. E, para que estas rendas

    fossem reajustadas, seria preciso ampliar a poro dos dzimos destinada s despesas

    diocesanas, o que, por sua vez, exigiria da Fazenda Real lastro financeiro proporcional

    amplitude das intervenes. Assim, o arcebispo elaborou uma splica na qual a expectativa

    era de que a obrigao moral da Coroa a fizesse inclinar-se na viabilizao do processo, j

    que, a partir da Super Specula, os monarcas portugueses como Gro Mestres das Ordens

    Militares, adquiriam direito e autoridade sobre coisas espirituais e temporais, a exemplo de

    48

    As redes clientelares em torno do processo de provimento episcopal so elucidadas em PAIVA, Jos Pedro, Os

    Bispos de Portugal e do Imprio (1495-1777), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 171-288. 49

    FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales, Op. cit., p. 10.

  • 30

    frutos, emolumentos e dzimos50. Esperava-se do ento soberano D. Joo V em 1712 a

    sano de uma reforma da malha paroquial baseada nas prerrogativas que a Igreja havia dado

    aos reis, afinal, o acrescentamento das rendas era um nobilssimo ato de zelo com religio

    crist. Munido de trs relatrios ad limina51

    , no havia como no ser convincente. Afinal,

    conseguiu obter junto a D. Joo V em 1718, vinte52

    novas parquias na diocese sob sua

    jurisdio, que era um feito considervel, mas ainda insuficiente diante da situao global da

    arquidiocese.

    As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia representaram um enorme

    esforo neste sentido, por ter significado uma interveno sem precedentes do ponto de vista

    jurdico-institucional. Mas obter uma melhor subdiviso da rede de parquias era, portanto,

    consolidar o referencial das Constituies atravs de uma ao empreendida em nvel

    espacial, distribuindo os procos e vigrios de modo mais estratgico. O valor desta reforma

    era reconhecido pelas vrias solicitaes feitas no s pelos arcebispos e vigrios, mas pelos

    fiis e at pelos prprios membros da administrao secular. No preciso dizer o quanto o

    governo local e a prpria Coroa tambm se beneficiavam do conhecimento concreto do

    contingente populacional e consolidao dos limites territoriais da capitania. Por isso, no ano

    de 1732, o Provedor Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil chegou a redigir uma carta ao

    rei para que ele socorresse as obras da igreja de Nossa Senhora das Brotas, j que os

    paroquianos no tinham condies53

    . No ano imediatamente posterior, o arcebispo da Bahia,

    D. Lus lvares de Figueiredo (1725-1735), divulgaria a sua enorme dificuldade para levantar

    com detalhes o nmero de habitantes das parquias54

    , reforando a persistncia dos obstculos

    prticos de uma ao episcopal na Bahia.

    O elogio ao pio zelo da Coroa como meio de comov-la na sua obrigao moral para

    com a vida religiosa era o recurso fundamental de qualquer ao episcopal no mbito do

    discurso. Tanto que at os fiis recorriam a ele, pois mesmo sendo muitas vezes os

    responsveis pela fundao e patrocnio de muitas reformas em suas parquias, ainda

    necessitavam da autorizao rgia para faz-lo. Por isso mesmo no deixavam de cobrar o

    50

    SILVA, Cndido da Costa e, Op. Cit., p.34. 51

    As relaes ad limina, que os bispos devem enviar a Roma com regularidade, foram enviados por D. Sebastio

    Monteiro da Vide pelo menos trs vezes, em 1702, 1711 e em 1721. Cf. RUBERT, Mons. Arlindo, A Igreja no

    Brasil: expanso territorial e absolutismo estatal (1700-1822), Vol. III, Santa Maria, Palotti, 1982, pp. 22-23. 52

    Estes nmeros geralmente variam. Segundo Rubert, as parquias foram 18. J para Evergton Sales Souza e

    Bruno Feitler, foram vinte. E, segundo Lus de Vilhena, eram vinte. RUBERT, Mons. Arlindo, Op.Cit.,, p. 23;

    FEITLER, Bruno e SOUZA, Evergton Sales Op. Cit., p. 16; VILHENA, Luis dos Santos, A Bahia no sculo

    XVIII, Itapo, Salvador, 1969, vol. II, p. 441. 53

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 44, Doc. 3890 (22/09/1732). 54

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 45, Doc. 3996 (25/01/1733).

  • 31

    retorno financeiro representado pelos dzimos pagos. Em junho de 1734, os fiis da igreja

    matriz de Nossa Senhora da Ajuda da vila de Jaguaripe solicitaram ajuda de custo ao rei para

    continuar as obras55

    . Neste requerimento, os paroquianos reclamavam os mesmos privilgios

    das outras matrizes do Recncavo que estavam recebendo ajuda de custo em suas respectivas

    obras, no deixando de lembrar a Coroa da finalidade dos dzimos arrecadados:

    ...E porq os dizimos daquele Estado se areccado p.la Faz.da Real de V. Mag.e por isso costuma a sua grandeza e pio zello mandar assistir com a despeza

    necessria p.a as obras das Igr.

    as Parrochiaes do d.

    o Estado. E na d.

    a Cid.

    e da

    B.a o tem praticado c a S, e com a Parrochia de S. P.

    o extremuros; e p.

    la

    com.ca

    dela com a de S. Ber.meu

    de Maragogipe, a da S.ta Vera Cruz de

    Itaparica, a de N. Sr.a da Ajuda de Porto Seguro, a de So Domingos da

    Saubara, e outras muitas. E sendo a Freg.a de Jaguarippe a q mais necessita,

    ou das mais necessitadas, he to bem das mais dignas do auxillio e grandeza

    de V. Mag.e 56

    .

    A splica dos paroquianos evidencia o nmero significativo de obras nas Igrejas

    paroquiais em curso. Porm, em 1739, a Coroa decidiria suspender a continuidade das obras

    nas Igrejas paroquiais do arcebispado57

    .

    D. Joo, por graa de DEUS, Rei de Portugal, e dos Algarves[...]Fao saber a

    vos Conde das Galvas[...] que para se evitar a desordem com que

    regularmente se impreendem as obras das Igrejas Parochiaes deste Estado.

    Fuy servido determinar por rezoluo e dous de Maro deste prezente anno

    em consulta do meu Concelho Ultramarino que os freguezes se no

    intrometo a reedificar, ou ampliar as ditas Igrejas Parochiaes sem primeiro

    darem conta ao Governador, e Provedor da Fazenda...58

    Como quaisquer outras demandas que envolviam as finanas estatais e que dependiam,

    em alto grau, do exerccio da diplomacia e da anlise de prioridades, sem falar na burocracia,

    a expanso da malha paroquial seria indissocivel das questes de contexto poltico e

    econmico. Mesmo diante de tantos clamores da populao local, o Conselho Ultramarino e a

    Fazenda Real apareciam frequentemente para dissuadi-los diante do risco da desordem. E a

    salvaguarda da ordem pblica reaparecia, figurando permanentemente no discurso estatal. A

    mudana de postura do Estado em relao ao padroado e presena da Igreja faria com que as

    necessidades apontadas pelos arcebispos tivessem de ser submetidas aos critrios de um

    Estado cada vez mais forte e centralizado, que estabelecia como entidades prioritrias a

    55

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 48, Doc. 4242 (anterior a 08/06/1734). 56

    Idem ibidem. 57

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 65, Doc. 5530 (03/08/1739). Cf. AHU,

    Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 65, Doc. 5563 (17/09/1739) A Proviso incluza q V. Ex. foi servido remeterme p.

    a a mandar fazer prez.

    te nas freguesias desta com.

    a p.

    a os moradores delas p.

    a q seno

    intrometo a fazer obras nas Igr.as

    seno na forma insinuada nella logo a fis publicar na forma q consta da certido junta, q com ella remeto na Thesouraria da Ordem de V. Ex.a, q D.s G.de B. 17 de 7br. de 1739. 58

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 65, Doc. 5568 (19/09/1739)

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    Repblica e o bem comum, impondo um novo vocabulrio poltico-filosfico a

    instituies e indivduos, incluindo a Igreja, sob cujas invocaes conduziam a rdeas curtas o

    cotidiano dos sditos.

    Com as mudanas a todo vapor e as finanas sob intenso controle, vemos portanto que

    a capacidade dos prelados para dominar as regras do jogo da persuaso na segunda metade do

    sculo XVIII foi crucial para as conquistas de suas aes episcopais. E veremos ao longo

    deste trabalho como D. Jos Botelho de Matos conseguiu aprimorara este requerer constante,

    enriquecendo as estratgias de splica Coroa com a polidez costumeira no tratamento entre

    figuras nobres, mas tambm lanando mo de aspectos que persuadem porque soam lgicos e

    bem fundamentados. O arcebispo percebeu com o tempo que a conciliao de objetivos entre

    Igreja e Estado, por exemplo, passaria a ser uma das estratgias mais teis e passaria a tomar

    parte de questes de sade pblica, de instruo pblica e, claro, de ordem pblica,

    demarcando a presena da Igreja nesse espao de interao entre Estado e sociedade civil.

    O governo de uma diocese sempre foi, essencialmente, um ato poltico. Garantir, entre

    outras coisas, o suporte financeiro da Fazenda Real era decisivo numa conjuntura crtica para

    a autonomia da Igreja Catlica no imprio portugus. Em meados do sculo XVIII, as

    habilidades polticas e jurdicas de um arcebispo se tornariam to cruciais quanto o contedo

    pastoral de seu episcopado59

    .

    Desejo concluir este primeiro e tmido captulo, portanto, intuindo que a virtude mais

    importante daquele que ocupasse a maior entre as dignidades eclesisticas locais o

    arcebispo-primaz precisaria revelar-se antes mesmo da execuo das primeiras medidas de

    sua ao episcopal: atravs da extensa e ramificada rede de relaes que tecida em torno do

    smbolo que a dvida mtua entre Estado e Igreja de que falamos no incio do captulo,

    preciso decodificar o sistema poltico, descobrindo quais so os pontos desta rede que

    reverberam da periferia ao centro do poder temporal, garantindo acesso aos olhos e ouvidos

    do rei. Tudo isto envolvido por uma sutileza incrvel, em que h um esforo gigantesco para

    no alterar o equilbrio destas relaes em um perodo em que as relaes Igreja-Estado j

    entram numa dinmica de tenso suficientemente arriscada.

    59

    Parece lcito tomar, mais uma vez, o bispo poltico conceito aprimorado por Jos Pedro Paiva como sendo o representante emblemtico de uma Igreja que defende o seu territrio jurisdicional. Cf. PAIVA, Jos Pedro, Os

    Bispos de Portugal e do Imprio (1495-1777), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 147-154. Pouco

    a pouco, as relaes Igreja-Estado vo se reduzindo ao territrio jurisdicional, exigindo das foras envolvidas o

    conhecimento tcnico e a lapidao das virtudes polticas. So tambm interessantes as reflexes de

    ALBERIGO, Giuseppe, A Igreja na Histria. So Paulo, Paulinas, 1999, p. 240 e PRODI, Paolo, Uma Histria

    da Justia, Lisboa, Editorial Estampa, 2002, pp. 291-292.

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    Assim, a insistncia no pio zelo apostlico da Coroa, a identificao da grandeza do

    imprio com este zelo apostlico, o apelo ao sentimento de fiel catlico no interior do

    soberano absoluto, entre outras estratgias do exerccio cotidiano do jogo da persuaso,

    mostram que a caracterstica fundamental do bispo poltico no era apenas tentar atrair a

    disputada ateno da Coroa atravs de simples splicas ou requerimentos. Havia certa dose de

    humildade e mesmo de bajulao, sim, mas havia, essencialmente, uma boa dose de

    persistncia, quase teimosia, temperada com recuos estratgicos. Era preciso, portanto, mais

    do que apenas requerer: era preciso persuadir tambm.

    Antes mesmo de partir de Lisboa, D. Jos Botelho de Matos fez um requerimento

    Coroa que j o colocaria diante da resistncia da Fazenda Real. Tendo vivido e atuado boa

    parte de sua vida no bispado de Miranda, era a primeira vez que ele deixaria o reino para

    ocupar uma dignidade no imprio ultramarino. Por isso, tratou de antecipar o pedido de uma

    ajuda de custo. Era ainda o ms de fevereiro de 1741 quando ele, argumentando ter feito

    muitas despesas na ida Corte (residia em Miranda h mais de duas dcadas) solicitava uma

    um conto de ris para cobrir a despesa de levar consigo a famlia para nova diocese de

    residncia60

    . O oitavo arcebispo de So Salvador da Bahia somente pisaria no solo da

    arquidiocese em trs de maio daquele ano.

    O Conselho Ultramarino assentou na ajuda de custo, acrescentando que esta tinha sido

    a mesma quantia fornecida a D. Lus lvares de Figueiredo61

    . D. Joo V deferiu o

    requerimento, mas o tesoureiro (da Fazenda Real) Ambrsio da Silva alegava no haver

    dinheiro suficiente para a referida despesa. D. Jos Botelho de Matos decidiu insistir,

    amparando-se no fato de que o rei j havia expedido a ordem que autorizava a liberao da

    ajuda de custo. Por isso, chegou a solicitar que outro tesoureiro de Sua Majestade avaliasse o

    requerimento. E o fez com certo tom de pressa, pois j estava de partida para a Bahia. A

    insistncia do arcebispo eleito pareceu surtir efeito, pois mesmo diante do fato de que

    supostamente no havia dinheiro para cobrir a despesa, em sete de maro de 1741, o pedido

    foi afinal deferido62

    .

    O arcebispo, ento, partiu para um segundo requerimento, cujo valor em ris

    correspondia ao dobro do que havia solicitado na ajuda de custo. Ainda no ms de fevereiro

    de 1741, Botelho de Matos fez chegar s mos de D. Joo V a solicitao do aumento de sua

    60

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 70, Doc. 5911 (11/02/1741). 61

    Cf. AHU, Castro e Almeida, Cx. 3, Docs. 348-350 (7,8,10/07/1738) 62

    Cf. AHU, Documentos Avulsos da Capitania da Bahia, Cx. 70, Doc. 5911.

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    cngrua pessoal63

    . Jos Botelho de Matos argumentava que a cngrua de quatro mil cruzados,

    valor recebido pelo seu imediato antecessor D. Frei Jos Fialho (1739-1741) j no

    correspondia ao custo de vida na arquidiocese baiana. Fazendo meno s demais dificuldades

    enfrentadas por seus predecessores, inclusive D. Sebastio Monteiro da Vide, os quais,

    impedidos de recorrer s lutuosas dos eclesisticos, penso da capela de msica e aos

    aougues (pois uma sentena do Tribunal da Relao os havia inibido ainda nos tempos de

    Monteiro da Vide64), tiveram de enfrentar a gravidade dos gastos e tenuidade das rendas

    daquele arcebispado65. Como de costume, fez um apelo estratgico a pia proteo e

    grandeza de Sua Majestade, para que ela deferisse o requerimento e aumentasse o valor da

    cngrua de 4.000 cruzados para 6.000 cruzados66

    . Em 27 de fevereiro, o Conselho

    Ultramarino deu parecer positivo no acrscimo no valor da cngrua pessoal, a qual, em ris,

    chegaria a dois contos e quatrocentos mil ris (2:400$000), alm da ajuda de custo de um

    conto de ris (1:000$00067