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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito ASPECTOS CONTROVERTIDOS DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 Simone Reissinger Belo Horizonte 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito

ASPECTOS CONTROVERTIDOS DO DIREITO À SAÚDE

NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Simone Reissinger

Belo Horizonte 2008

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Simone Reissinger

ASPECTOS CONTROVERTIDOS DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito

Orientador: Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior

Belo Horizonte 2008

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Reissinger, Simone R377a Aspectos controvertidos do Direito à saúde na Constituição Brasileira de 1988 / Simone Reissinger. – Belo Horizonte, 2008. 118f. Orientador: Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito. . Bibliografia. 1. Direito à saúde - Brasil. 2. Saúde – Planejamento – Brasil. 3. Saúde – Direitos sociais. I. Baracho Júnior, José Alfredo de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Direito. III. Título. CDU:342.7

Bibliotecária – Eunice dos Santos – CRB 6/1515

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Simone Reissinger Aspectos controvertidos do direito à saúde na Constituição Brasileira de 1988 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior

__________________________________________________________ José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior (Orientador) – PUC Minas

Álvaro Ricardo de Souza Cruz

__________________________________________________________ Álvaro Ricardo de Souza Cruz – PUC Minas

Clemerson Merlin Cléve

__________________________________________________________

Clemerson Merlin Cléve – UFPR

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AGRADECIMENTOS

Um estudo como este exige muito do seu autor e jamais se concretizaria sem a ajuda

da família, dos amigos, dos colaboradores e dos professores.

A Deus, por ter iluminado meu caminho. Em momentos difíceis cheguei a pensar que

não iria conseguir.

Ao meu orientador, Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, agradeço por ter

me aceitado como sua orientanda, bem como por seus ensinamentos que tanto contribuíram

para o presente estudo.

À minha família, por ter compreendido minha ausência neste período.

Aos amigos Flávio, Goreth, Carine, Fernanda, Adriano Ávila, Adriano Leite e

Ricardo, que tiveram paciência nos meus momentos de angústia e me incentivaram sempre

que foi necessário.

A todos que de alguma forma contribuíram para o presente estudo.

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“A vida humana só acontece uma vez e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira ou uma quarta vida para que possamos comparar decisões diferentes.”

Milan Kundera

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RESUMO

O presente trabalho analisa o direito à saúde e seus aspectos controvertidos na Constituição

brasileira de 1988, a partir da análise histórica, interpretativa e jurisprudencial. Identifica-se a

concepção de saúde, a fim de dirimir dúvidas sobre o sentido do direito à saúde como direito

público subjetivo, como direito fundamental e como norma programática na atual

Constituição. Analisa-se o direito à saúde como mínimo existencial e o entrave da cláusula da

reserva do possível nos julgamentos judiciais. Uma nova forma de interpretação dos direitos

fundamentais sociais é examinada, demonstrando a necessidade de distinguir direitos

individuais de direitos sociais, equacionando os diferentes interesses coletivos, de acordo com

a realidade sócio-econômica-política de cada Estado, levando a ética discursiva para o

processo judicial. Prioriza-se a participação popular, através dos conselhos e conferências de

saúde, para a realização de planejamento estatal e discussão das políticas públicas de saúde,

com o propósito da efetivação progressiva do direito à saúde.

Palavras-chave: direito à saúde; direito público subjetivo; direitos fundamentais sociais;

norma programática; mínimo existencial; cláusula da reserva do possível; participação

popular; políticas públicas; planejamento estatal.

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ABSTRACT

This present dissertation analyses the right to health and its controversial aspects in the 1988

Brazilian Constitution, considering the historic, interpretative and jurisprudential analyses. It

identifies the conception of health, in order to settle questions about the meaning of the right

to health as a subjective public law, as a fundamental right and as a programmatic norm in the

current Constitution. It also analyzes the right to health as “existential minimum” and the

barriers caused by “the reserve of the possible” clause in court trials. A new way of social

interpretation of fundamental rights is examined. It shows the need to distinguish individual

rights, social rights, to equalize the different collective interests, according to the socio-

economic-political reality of each state, leading ethical discourse to lawsuits. It highlights

popular participation through the health councils and conferences, aiming at carrying out state

planning and debates on public health policies, with the purpose of achieving progressive

effectiveness of the right to health.

Key-words: right to health; subjective public law; social fundamental rights; programmatic

norm; existential minimum; reserve of the possible clause; popular participation; public

policies; state planning.

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LISTA DE SIGLAS ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF – Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental CAP – Caixa de Aposentadoria e Pensão CNS – Conferência Nacional de Saúde IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensão INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INPS – Instituto Nacional de Previdência Social NHS – National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) OMS – Organização Mundial de Saúde PMS-BH – Plano Municipal de Saúde de Belo Horizonte STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça SUS – Sistema Único de Saúde

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 09 2 HISTÓRICO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL ................................................ 13 2.1 Modelos ou concepções de sistemas de saúde ........................................................... 13 2.2 O paradigma do Estado Social.................................................................................. 15 2.3 Histórico legislativo da saúde no Brasil .................................................................... 17 2.4 Previsão constitucional .............................................................................................. 21 2.5 Constituição Federal de 1988 .................................................................................... 22 2.6 Legislação atual ......................................................................................................... 23 3 CONTEÚDO DO DIREITO À SAÚDE ...................................................................... 26 3.1 Concepção de saúde .................................................................................................. 26 3.2 Concepção de direito à saúde na Constituição de 1988............................................ 28 3.2.1 Reforma sanitária brasileira.................................................................................... 28 3.2.2 O conceito abrangente de saúde .............................................................................. 32 3.2.3 Saúde como direito de todos .................................................................................... 34 3.2.4 Saúde como dever do Estado ................................................................................... 36 3.2.5 O direito à saúde como direito público subjetivo ..................................................... 38 3.2.6 O direito à saúde como norma programática .......................................................... 43 3.2.7 O direito à saúde como direito fundamental ............................................................ 49 3.2.8 O direito à saúde e o princípio da dignidade da pessoa humana ............................. 52 4 O DIREITO À SAÚDE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS ...................................... 55 4.1 A garantia estatal do mínimo existencial .................................................................. 55 4.2 O problema da reserva do possível ........................................................................... 61 4.3 O direito à saúde nos tribunais ................................................................................. 70 4.3.1 Formas de se defender judicialmente o direito à saúde ........................................... 76 4.4 Uma nova interpretação para os direitos fundamentais sociais .............................. 80 5 DIREITO À SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA ................................................... 87 5.1 Política neoliberal e Estado mínimo ......................................................................... 87 5.2 Recursos públicos para saúde ................................................................................... 89 5.3 Políticas públicas ....................................................................................................... 91 5.4 Planejamento estatal ................................................................................................. 93 5.4.1 Lei do Plano ............................................................................................................ 94 6 PARTICIPAÇÃO POPULAR ..................................................................................... 98 6.1 Conselhos de saúde .................................................................................................... 98 6.1.1 A esfera pública de Habermas e o direito à saúde no Brasil ................................. 102 7 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 106 REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 110

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1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República de 1988 garante a todos os indivíduos o direito à saúde.

Todavia, cotidianamente os meios de comunicação noticiam matérias relatando graves

problemas e até a morte de usuários do sistema público de saúde1. Essa é a realidade da saúde

pública no Brasil e em vários outros países, inclusive os considerados desenvolvidos2

Na presente dissertação, busca-se analisar as controvérsias relacionadas ao direito à

saúde, esperando-se, como resultado, compreender a sistemática desse direito no Brasil, de

forma que, investigando os problemas, seja possível apontar, também, soluções viáveis para

efetividade desse direito, a fim de que os históricos de morte por falta de leitos hospitalares,

por falta de medicamentos, entre outros agravos, não sejam considerados apenas estatísticas.

. Mas,

então, o que está errado?

O principal objetivo da pesquisa é expor a diferença nas formas de interpretação, pelos

juristas brasileiros, da norma constitucional sobre direito à saúde e suas conseqüências. Hoje,

a grande maioria interpreta o direito à saúde como um direito fundamental individual.

Todavia, o presente trabalho irá demonstrar que as demandas individuais não contribuem para

a justiça social. Trata-se de um direito fundamental social3

1 Exemplos de notícias extraídas de diversos periódicos eletrônicos: Idosa morre na porta de hospital por falta de atendimento (Teresina/PI, 11/01/2008); Grávida de 5 meses morre por falta de ambulância no ES (Vila Velha/ES, 04/09/2007); Homem morre por falta de atendimento no PA: Vigilante de 40 anos passou mal e foi levado para unidade de saúde. Família reclama que aparelhos estavam quebrados e ambulância demorou para chegar (Belém/PA, 03/07/07); O retrato da saúde: bebê corre risco de morte por falta de vaga em UTI (Salvador da Conquista/BA, 03/01/2008); Sem vaga na UTI, homem morre no Hospital Municipal (São José dos Campos/SP, 22/05/2007); Morte na porta de hospital (Belo Horizonte/MG, 22/05/2007); Jovem morre por falta de medicamento (Salvador/BA, 15/12/2007).

, previsto no art. 6º da Constituição

(1988), devendo, portanto, ser compreendido como forma de amenizar as desigualdades

sociais e econômicas, tal qual a realidade constitucional concretamente existente, buscando

harmonizar a “tensão entre a validade do direito e a faticidade do real” (MELLO, 2001, p.

272).

2 Mulher morre ao ser recusada em 29 hospitais no Japão. A mulher, de 89 anos de idade, sofreu parada cardíaca enquanto era levada de ambulância. Entre os motivos mais citados, os hospitais alegaram "dificuldades no atendimento" (1.306 casos), "atendimento ou cirurgia em outros pacientes" (842) e "falta de especialidade" (572). (Tondabayashi/Osaka, 28/12/2007). 3 Em que pese a posição contrária de juristas brasileiros sobre o assunto, entendendo que mesmo estando no capítulo de direitos sociais, o direito à saúde é também direito fundamental individual, o que leva à interpretação de que se trata de um direito subjetivo individual, pretende-se destacar que esse não é o entendimento adequado para a sociedade brasileira, principalmente pelas condições econômicas e socais da população mais carente, que vive em estado de exclusão. Assim, mesmo considerando a saúde em si mesma como uma situação individual, devido aos fatores que a condicionam ou a comprometem, ela também é considerada um fenômeno social.

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Outro fator importante para a efetivação do direito à saúde, defendido no presente

trabalho, é a necessidade de se conscientizar os usuários do SUS de que eles podem e devem

participar do planejamento, fiscalização e execução dos serviços de saúde através de canais de

participação já existentes, como os conselhos de saúde, o que é garantido pela própria

Constituição. Trata-se de uma esfera pública dialógica, de acordo com o paradigma

procedimental proposto por Habermas (1997). O usuário deve ser um cidadão participativo,

co-autor das decisões, e não apenas um cliente do sistema. Por outro lado, a administração

pública deve ver tais mecanismos de participação como auxiliares e não como entraves.

O trabalho inicia-se com uma descrição do aparato histórico do direito à saúde no

Brasil, explicando-se os sistemas ou modelos de saúde existentes e a sua adoção no contexto

nacional, em distintas épocas. Essa análise é importante, pois, dependendo do sistema adotado

(assistencialismo, previdencialismo e universalismo), as políticas de saúde são diferenciadas,

bem como a relação entre os usuários e o Estado.

Ainda no segundo capítulo, são abordadas as características do Estado social.

Justifica-se essa análise, tendo em vista que o direito à saúde é considerado um dos direitos

sociais, que surgiram com o paradigma do Estado social.

Em seguida, realiza-se um escorço histórico da legislação da saúde no Brasil. Nota-se

a ligação sempre presente entre a saúde e a previdência social, de forma que a dicotomia entre

a saúde preventiva, a cargo do Estado, e a saúde curativa, destinada aos trabalhadores urbanos

do mercado formal, é bastante acentuada. Outra dicotomia apresentada é referente à clientela,

pois o trabalhador rural, por exemplo, não tinha acesso à medicina previdenciária, uma vez

que não contribuía para a previdência social. Dessas dicotomias existentes nasce a idéia de

universalização da saúde.

As constituições brasileiras são analisadas apenas sob o enfoque da existência ou não

de previsão sobre a matéria de saúde. Como a Constituição de 1988 é considerada um marco

para o direito à saúde, já que destinou-lhe capítulo próprio, sua análise é feita em um tópico

separado das demais, bem como as principais leis infraconstitucionais regulamentadoras das

normas constitucionais de 1988.

O terceiro capítulo trata do conteúdo do direito à saúde. Um dos grandes desafios para

os juristas é definir o que deve ser entendido como direito à saúde. Todo tipo de tratamento

médico, medicamentos de alto custo, próteses e aparelhos podem ser considerados como

dever do Estado? Ou, de outra forma, o Estado deve ser obrigado a fornecê-los?

Assim, para tentar esclarecer o conteúdo do direito à saúde, buscou-se realizar uma

pesquisa sobre a concepção de saúde, que é fornecida pela área médica. A definição mais

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recepcionada é a da Organização Mundial de Saúde, desde 1946, reconhecida como um

estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou

enfermidades.

Para se encontrar a concepção de direito à saúde, optou-se por uma análise histórica, a

partir das discussões que permearam a reforma sanitária brasileira, principalmente através dos

anais da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986 e considerada um marco na

área da saúde, pois serviu de base para a Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988.

Neste estudo foram discutidos aspectos relacionados à saúde como direito de todos e a saúde

como dever do Estado, tendo em vista a redação do art. 1964

Outro aspecto importante analisado no terceiro capítulo é o direito à saúde e o seu

reconhecimento pelos tribunais como direito público subjetivo, o que permite aos indivíduos

reclamar judicialmente as prestações estatais não fornecidas, numa típica relação obrigacional

entre o Estado (devedor) e os cidadãos (credores).

da Constituição de 1988.

De forma oposta, como um entrave à pretensão judicial, está a norma programática,

porque muitos juristas consideram que o art. 196 da Constituição de 1988 possui eficácia

limitada ou baixa normatividade, não gerando o direito à prestação estatal sem a

intermediação do legislador.

No quarto capítulo o estudo é direcionado aos aspectos analisados pelos tribunais

brasileiros na efetivação do direito à saúde. Assim, a primeira controvérsia é a garantia do

mínimo existencial e o problema da reserva do possível. Consiste na obrigação do Estado em

fornecer determinadas prestações, como os serviços de saúde, considerados básicos para uma

vida digna. Por outro lado, o Estado alega não poder atender a todas as demandas relacionadas

a esses direitos, devido à escassez de recursos, principalmente financeiros, o que corresponde

à reserva do possível. Em seguida são examinados julgados relacionados aos assuntos

anteriormente tratados, verificando-se os argumentos trazidos pelos tribunais.

Ainda neste capítulo são analisadas as ações judiciais passíveis de defesa para o direito

à saúde, com ênfase para as ações coletivas, o que se justifica no fato de se tratar de um

direito social, que deve abranger o maior número possível de beneficiários. Por derradeiro,

aborda-se uma nova interpretação para os direitos fundamentais sociais, procurando afastar o

caráter formalista das leis, voltado, ainda, para o sistema jurídico-positivo qualificado pelo

individualismo.

4 Art. 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

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No quinto capítulo discute-se a necessidade de planejamento para a concretização das

políticas sociais e econômicas dirigidas ao direito à saúde. Assim, inicia-se pela questão da

política neoliberal, que prevê um Estado mínimo, cujas prestações estatais devem ser

reduzidas, o que, em países como o Brasil, é um risco para os direitos fundamentais sociais.

Em seguida é analisada a previsão constitucional sobre os recursos financeiros destinados aos

serviços públicos de saúde e a falta de regulamentação do § 3° do art. 198, inserido pela

Emenda Constitucional 29 (2004), que tinha por intuito, exatamente, destinar mais recursos

para esse setor.

O sexto capítulo destina-se ao estudo da participação popular, aspecto fortemente

defendido na reforma sanitária brasileira e previsto na Constituição de 1988, demonstrando a

força dos cidadãos para definir suas prioridades na área da saúde, bem como controlar e

fiscalizar os serviços e recursos financeiros através dos conselhos e conferências de saúde,

órgãos colegiados, de participação paritária. Após explicar tais mecanismos de participação

popular na área da saúde, o capítulo é encerrado com a constatação de que o paradigma

procedimental proposto por Habermas, abordando esferas públicas de discussão, pode ser

adotado em países como o Brasil, tal como na “democracia sanitária”.

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2 HISTÓRICO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

2.1 Modelos ou concepções de sistemas de saúde

Antes de se iniciar o histórico do direito à saúde no Brasil, faz-se necessário distinguir

os modelos ou concepções desse sistema. Pode-se falar, segundo André Médici (1994, p.

219), em “três modelos, concepções e até histórias relacionadas ao sistema de saúde”.

O primeiro modelo é denominado assistencialismo

Esse sistema está estritamente ligado ao início do capitalismo industrial ou às

chamadas Leis dos Pobres na Inglaterra, voltado para meios de proteção social aos mais

necessitados. Vigorou até 1870 como modelo clássico de organização de proteção social.

Entretanto, ainda permanece como modelo residual, pois vários países utilizam estratégias

assistenciais dentro das suas políticas de saúde.

. Esse modelo de proteção social

está voltado para as classes mais pobres da sociedade, isto é, aquelas pessoas que

efetivamente não podem manter os seus mecanismos de sustentação de saúde.

O segundo sistema é o do previdencialismo

Esse modelo tripartite de proteção social e dos sistemas de saúde foi o adotado por

Bismarck, na Alemanha. Vigorou, como principal sistema nos países desenvolvidos, na

primeira metade do século XX até a Primeira Guerra. Nos países em desenvolvimento, como

Brasil e Argentina, esse modelo vigorou como hegemônico entre as décadas de 70 e 80.

, que se originou juntamente com o

desenvolvimento da classe trabalhadora. Seus mecanismos têm como base um contrato de

proteção ligado aos trabalhadores e suas famílias. Tal contrato se desenvolveu pela iniciativa

dos próprios trabalhadores, combinando seus interesses com os das empresas e,

posteriormente, com os do Estado.

O terceiro modelo é denominado universalista

Esse sistema está presente na sociedade desde o pós-guerra. Entretanto, nos anos 70

entrou em crise, devido a problemas relacionados à transição desse modelo para o que se pode

chamar de flexibilidade.

. Nasceu a partir do momento que o

trabalhador é identificado como cidadão, ou seja, os laços de regulação formal estendem-se a

toda sociedade. O conceito de saúde está baseado na proteção de toda a população, em que se

tem a universalização das políticas sociais e um conceito de cidadania.

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A crise mundial do universalismo da década de 1970 se dá basicamente por uma

questão fiscal, isto é,

os mecanismos de acumulação no início dos anos 70 se esgotaram, em função de crises de matérias-primas, de insumos e, basicamente, em função do acúmulo muito grande de capital em determinados processos produtivos, já considerados ultrapassados. Esse processo foi gerando uma deterioração das relações econômicas no interior desses países, de forma que o mecanismo de manutenção da universalidade, significando basicamente os atributos de saúde, de seguro-desemprego, de seguro social no seu sentido mais amplo, começaram a representar parcelas cada vez maiores no total dos encargos da sociedade. (MÉDICI, 1994, p. 221).

Essa situação pressionava os cidadãos com o aumento da carga tributária a fim de

satisfazer os encargos. Nesse contexto, a flexibilização começa a surgir, importando em

relações como a informalização e a terceirização nas relações de trabalho. As indústrias

passam a se estabelecer em regiões onde é menor a organização sindical, para fugir dos

padrões “fordistas”5

O Estado também começou a flexibilizar algumas relações referentes aos gastos

públicos, principalmente no setor da saúde. Os custos da saúde tiveram um crescimento muito

grande com o modelo universalista, porque houve uma expansão horizontal e vertical de

cobertura, englobando a totalidade da população, bem como novos aspectos relacionados à

saúde: odontologia, psiquiatria, fisioterapia, etc.

da relação de trabalho.

Outro aspecto da crise foi a mudança na estrutura etária da população. O custo do

sistema de saúde foi elevado pelo envelhecimento populacional.

Um terceiro fator do aumento nos custos da saúde é a tecnologia. O processo

tecnológico em saúde não é igual ao da indústria, que substitui a mão-de-obra, compensando

o alto custo do equipamento. Os meios tecnológicos no setor da saúde são mais voltados à

5 Modelo de produção que vigorou na grande indústria ao longo do século XX, particularmente a partir da segunda década, tendo seu auge nas décadas de 1950 e 1960. Henry Ford reconheceu que a produção em massa significava consumo em massa, adotando um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho. Tal modelo caracteriza-se pelo padrão de produção em massa, objetivando reduzir os custos de produção, bem como ampliar o mercado consumidor; pela produção homogeneizada e enormemente verticalizada obedecendo à uniformidade e padronização, em que o trabalho é rotinizado, disciplinado e repetitivo; pelo parcelamento das tarefas, o que conduzirá o trabalho operário à desqualificação. Ford revolucionou as relações de trabalho da época criando o salário mínimo de 5 dólares por dia para seus operários, 500% maior do que o que se pagava até então. Os lucros aumentavam, mas os preços diminuíam compensados pela produção em escala e aumento do mercado consumidor. Sua lógica e visão empresarial iam contra as práticas e regras do capitalismo aplicado em sua época. Em pouco tempo, seu salário mínimo passou para 6 dólares, criando o mercado consumidor de massa e obrigando grande parte do meio industrial a melhorar também gradativamente as condições de trabalho e de remuneração dos trabalhadores. Com esta visão, Henry Ford viabilizou a formação de algo novo na sociedade, uma classe média composta de trabalhadores e operários, que poderiam ser também consumidores de produtos complexos e refinados como um automóvel.

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aplicação na melhoria de diagnósticos e terapias, mas não traz uma redução dos custos, pois

cria novos profissionais para manuseá-los. Assim, o processo tecnológico é um fator

encarecedor no sistema de saúde.

No Brasil os três modelos tiveram um desenvolvimento incipiente. O modelo

assistencialista, por exemplo, só foi efetivo em algumas das grandes capitais e, mesmo assim,

apoiado pelos movimentos filantrópicos, a Igreja, através das Santas Casas, que prestavam a

maior parte da assistência médica à população de baixa renda no final do século XIX e início

do século XX.

Segundo Médici (1994), o sistema universalista brasileiro, previsto na atual

Constituição, tentou ser parecido com o modelo de proteção social inglês6. Mas como ele

mesmo adverte, “dado que a universalização da assistência à saúde é ainda uma utopia, ou

seja, não se tem uma efetiva universalização, esse nosso sistema de saúde é cada vez mais um

sistema americano” (MÉDICI, 1994, p. 226)7, prevendo, ainda, a americanização perversa do

sistema universalista de saúde no Brasil8

.

2.2 O paradigma do Estado Social

Para facilitar a compreensão do histórico legislativo do direito à saúde no Brasil,

também é importante explicar, em linhas gerais, as diretrizes do Estado Social.

No final do século XIX, na Europa e Estados Unidos, foram iniciados movimentos

reivindicatórios que pugnavam por um Estado mais ativo na realização da justiça social.

Apenas a garantia de igualdade formal não atendia ao anseio da liberdade real de todos que

eram excluídos pela lei, como, por exemplo, a primeira Constituição francesa que excluía,

inicialmente, todas as mulheres e, posteriormente, os homens não proprietários, de comporem

o Parlamento e de votarem.

6 O sistema universalista de saúde na Grã-Bretanha era executado pelo National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), criado em 1948 e considerado, até o início da década de 1990, um dos melhores sistemas de assistência médica fornecida pelo Estado, com prestação de serviços bem abrangentes. 7 O sistema de saúde americano está, em sua maior parte, a cargo do setor privado, refletindo a tendência liberal. Para aqueles que não têm como pagar um plano de saúde individual, o governo subsidia ou reembolsa os custos com cuidados médicos curativos através do Medicaid (destinado aos indivíduos considerados pobres e/ou deficientes) e do Medicare (para os idosos e deficientes). 8 Ao se referir a “americanização perversa do sistema universalista de saúde no Brasil”, acredita-se que Médici (1994) previa o que atualmente acontece: a Constituição da República garante um sistema universal de saúde, mas não consegue efetivá-lo, assim, para que a população tenha a prestação de serviços necessários, recorre aos planos privados de saúde.

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O Estado Liberal ou Estado de Direito, até então vigente, que se limitava a garantir a

liberdade, a segurança e a propriedade, caracterizado pelo dualismo Estado-Sociedade, não

conseguiu conter os impactos provocados pela industrialização, tais como os graves

problemas sociais e econômicos, o que extremava a desigualdade entre a classe empregadora

e a operária9

Nesse contexto clamava-se por um Estado que concedesse aos indivíduos direitos a

prestações sociais estatais como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc. A reação às

novas idéias foi violenta, com repressão policial aos movimentos sociais. Todavia, surge o

Estado Social ou do bem-estar social, como superação da configuração original do Estado

Liberal.

.

Neste momento era imperioso ao Estado justificar e legitimar seus poderes através da

promoção do bem-estar efetivo dos cidadãos, suprimindo as desigualdades e concretizando a

dignidade humana10

As primeiras Constituições a incorporarem o Estado Social foram a mexicana, em

1917, e, a mais célebre, a Constituição de Weimar, de 1919, que influenciou as elaboradas

posteriormente. Somente após a Segunda Grande Guerra, as Constituições passam a

incorporar, de fato, os direitos sociais. No Brasil, a Constituição de 1934 passou a integrar os

direitos sociais, coletivos e econômicos.

. A igualdade formal, garantida pelo Estado Liberal de Direito, deveria ser

acrescida das possibilidades de efetiva realização, pois as desigualdades materiais

inviabilizavam a fruição dos direitos liberais.

Como direitos fundamentais, os direitos sociais são qualificados como de segunda

geração ou dimensão. A igualdade deixa de ter um aspecto meramente formal, passando para

uma concepção material, privilegiando os hipossuficientes econômica e socialmente11

. Para

concretizar as demandas coletivas, o Estado assumiu um crescente número de funções

públicas.

Toda a sociedade torna-se credora/cliente do Estado, cobrando-lhe prestações positivas que permitam uma melhoria na qualidade de vida do proletariado. Direitos sociais e coletivos são consagrados constitucionalmente. Consolidam-se sistemas públicos de previdência e assistência sociais. A saúde pública, preventiva e repressiva, expande-se na ocasião. (CRUZ, 2001, p.220).

9 Em tese, o empregado era igual ao empregador. Todavia, tratava-se de uma igualdade formal. 10 “A legitimidade do poder estatal é aferida em razão dos serviços que presta, da sua capacidade de controlar as relações sociais de forma a reduzir as desigualdades econômicas.” (BARACHO JÚNIOR, 2000, p. 99) 11 A máxima preponderante neste contexto é: Tratar-se desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

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17

A expressão dessa política social foi a criação e, em alguns casos, a consolidação dos

sistemas públicos de seguro (previdência) social. No entanto, na área de saúde, na Inglaterra,

em 1948, foi criado o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), considerado

como a estrutura mais estatizada e mais ampla da prestação de cuidados médicos individuais

em sociedades capitalistas.

O Poder Judiciário também sofre mudanças. A tarefa mecânica de subsunção da

norma ao fato, conforme os ensinamentos do Positivismo clássico, cede lugar para a ética

(concepções axiológicas) como determinante do trabalho do operador do direito, a fim de

materializar os valores dominantes em uma dada sociedade, como condição de uma justiça

distributiva.

Nos anos 70 a realidade revela que o Estado paternalista se mostrou ineficiente para

concorrer com a iniciativa privada na prestação de determinados serviços, como no caso da

saúde, ocasionando uma crise do Estado Social12, que surgiu basicamente com a ideologia do

Estado Neoliberal13

A crise do Estado de bem-estar social tem tido repercussões marcantes sobre o setor da

saúde, as quais assumem distintas configurações nos processos europeus, norte e latino-

americanos. O ponto em comum é a retração do Estado nas políticas sociais, o que aprofunda

ainda mais as desigualdades, ferindo o princípio constitucional da eqüidade no que tange aos

serviços de saúde.

.

2.3 Histórico legislativo da saúde no Brasil

No Brasil, desde a década de 20 até a Constituição da República brasileira de 1988, a

assistência médica pelo setor público sempre esteve associada à previdência social.

12 Conforme delineado acima, o modelo universalista de saúde também passou por uma crise mundial na mesma época, o que apenas reafirma a crise do Estado Social, devedor de tantas prestações sociais. 13 Conforme Ingo Wolfgang Sarlet (2003), através da política e da economia do “Estado mínimo”, propalada pelo Neoliberalismo, verifica-se o enfraquecimento do Estado democrático de Direito e, por conseguinte, dos direitos fundamentais. O mesmo autor ainda esclarece que o ideário neoliberal prescreve a diminuição do Estado, caracterizada principalmente pela desnacionalização, desestatização, desregulação e redução gradativa da intervenção estatal no domínio econômico e social.

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18

A seguridade social anterior à previsão na atual Constituição Federal se restringia a

formas de benefícios e prestações de serviços bastante específicas, com caráter estritamente

contratualista.

A primeira intervenção do Estado na área de seguro social é de 1919, com a criação do

seguro de acidentes do trabalho, restrita para assalariados urbanos do setor privado.

As Caixas de Aposentadorias e Pensões - CAPs, criadas na década de 20, eram

entidades públicas autônomas ao Estado, instituídas como um contrato compulsório,

organizadas por empresas e geridas por representação direta de empregados e empregadores.

Sua finalidade era puramente assistencial, com benefícios em dinheiro e prestação de

serviços. Os recursos provinham de contribuição compulsória dos empregados, empregadores

e da União. Desta forma, o Estado não participa diretamente do seu gerenciamento.

Através do decreto-lei n. 4.682, de 1923 (Lei Eloy Chaves)14

Neste período, o Estado só se responsabilizava, no tocante à saúde pública, pelas

medidas de caráter coletivo, ou seja, tinha um enfoque eminentemente preventivo, como por

exemplo, campanhas sanitárias. Já as classes assalariadas urbanas tinham à sua disposição

“serviços de atenção médica individual, prestados pelas CAPs, que por sua vez compravam

serviços médicos do setor privado através do mecanismo de credenciamento médico” (COHN

et al, 1991, p. 15). Esta é a primeira dicotomia verificada no setor da saúde: enfoque

preventivo (estatal) x enfoque curativo (contratualista).

, é criada a primeira

Caixa de Aposentadorias e Pensões pelos ferroviários. Esse tipo de seguro social multiplicou-

se nos anos seguintes, definindo os contornos e contradições da política social brasileira:

dirigida para uma fração restrita da classe trabalhadora, excludente em relação à maioria da

população rural e urbana, baseada na relação contratual característica do seguro privado e

abrangente quanto ao conjunto de benefícios concedidos.

Percebe-se, assim, que neste momento a saúde não é um direito do cidadão e um dever

do Estado. Trata-se de um serviço restrito à assistência médica, pertinente à esfera privada,

cujo acesso é limitado à “inserção no mercado de trabalho formal e para o qual se tem que

contribuir com um percentual do salário, sempre por meio de um contrato compulsório”

14 A Lei Eloy Chaves implantou no Brasil o sistema de previdência social e instituiu os seguintes benefícios, nesta ordem: 1º.) assistência médica, inclusive aos familiares do segurado; 2º.) medicamentos a preços especiais; 3º.) aposentadoria; 4º.) pensão. No entanto, segundo a Profa. Sônia Maria Fleury Teixeira, “nunca foi estipulado um percentual da receita destinado a cobrir os custos da assistência médica, ficando resguardado este benefício ‘na medida das possibilidades orçamentárias’. Esta fragilidade vai refletir nas variações impostas às despesas com assistência médica em cada conjuntura política e institucional, que aumentam ou diminuem em função de pressões políticas e não em base a uma política previdenciária relativa à saúde dos beneficiários.” (TEIXEIRA, 1986, p. 106)

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19

(COHN et al, 1991, p. 15). À população não inserida no mercado formal restava a assistência

médica prestada pelas entidades filantrópicas.

Na década de 30 surgem os Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs,

que institucionalizam o seguro social fragmentando as classes assalariadas urbanas por inserção nos setores da atividade econômica: marítimos, bancários, comerciários, industriários e outros (COHN et al, 1991, p. 15-16).

Tais institutos eram autarquias, gerenciadas pelo Estado, continuando a receber

recursos de forma tripartite: empregados, empregadores e União.

Na segunda metade da década de 50 inicia-se um processo acelerado de

aprofundamento das dicotomias entre assistência médica curativa e medidas preventivas de

caráter coletivo. Em 1966 todo o sistema previdenciário é unificado no Instituto Nacional de

Previdência Social – INPS, através do Decreto-lei n. 72/66.

Coube ao sistema previdenciário, a partir da década de 60,

um papel duplamente fundamental: o sistema passa a responsabilizar-se não só pela prestação de assistência médica aos segurados da Previdência, como também pela expansão da cobertura dessa assistência, colocando-se na condição de ‘sócio provedor’ do chamado ‘complexo médico-industrial-previdenciário’. Este, constituindo-se como uma articulação específica entre o Estado e o setor privado de prestação de serviços de saúde, foi responsável pela expansão da assistência médica individual no Brasil. (ANDRADE, 2003, p. 76)

Até a década de 70 percebe-se a clara divisão de tarefas e clientelas, quando, a partir

da segunda metade, a rede pública de serviços de saúde passa a assumir a assistência médica

individual.

A Lei n. 6.229/75, que cria o Sistema Nacional de Saúde, reafirma as tarefas a cargo

da Previdência Social e do Ministério da Saúde, incluindo a assistência médica individual. A

divisão baseava-se numa estigmatização da clientela. Para o Ministério da Previdência e

Assistência Social, criado em 1974, ficou a tarefa de cuidar da população mais diferenciada,

por estar formalmente inserida no mercado de trabalho. Ao Ministério da Saúde restou a

população de mais baixa renda, excluída do setor formal da economia15

15 Nesse período a preocupação era o desenvolvimento econômico e não os direitos sociais, como a saúde. O Prof. Jairnilson Silva Paim, no painel “Direito à saúde, cidadania e Estado”, que ocorreu na 8ª Conferência Nacional de Saúde, assim explicou a situação: “No caso da saúde, a grande questão posta no pós-guerra era se ela conduzia ao desenvolvimento ou se era um mero subproduto do crescimento econômico. A prestação dos serviços ficava ao jugo das forças do mercado e às expensas da filantropia combinada com a ação supletiva do Estado, via previdência e assistência social. Somente no final da década de 60 e durante os anos 70 (...), os estados latino-americanos passam a conferir alguma atenção à questão do direito à saúde. Não como reconhecimento de um direito inerente à cidadania, mas, fundamentalmente, como forma de contornar certas

.

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20

O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – INAMPS, criado

pela Lei n. 6.439, de 1º/09/77, na forma de autarquia federal, que substituiu o INPS, tinha

como finalidade prover a saúde dos trabalhadores ligados à Previdência Social. Para essa

clientela previdenciária era destinado o serviço médico do setor privado, que vendia seus

serviços sob a forma de convênios ou de credenciamentos junto ao INPS/INAMPS.

Essa autarquia ficou responsável pelas prestações de serviços médicos aos

trabalhadores urbanos, funcionários públicos, empregadores rurais e seus dependentes; pelos

subsídios programados de atendimento aos trabalhadores rurais e seus dependentes; pela

prestação de assistência médica aos maiores de setenta anos ou “inválidos” titulares da renda

mensal inicial vitalícia; e, ainda, pela execução dos programas especiais de assistência

médica, antes mantidos pela LBA (Fundação Legião Brasileira de Assistência) e destinados às

populações carentes, beneficiárias ou não da Previdência Social, mediante convênios com

órgãos públicos, desde que assegurados os recursos financeiros necessários.

Verifica-se, assim, que a assistência médica era dividida em: a) direito contratual,

compulsório e contributivo e b) serviço público e filantrópico para a população carente. Essa

dicotomia acentuou a diferença entre os setores urbano e rural em termos de acesso e

disponibilidade de equipamentos médicos.

Com a centralização de todo o aparato previdenciário no INPS/INAMPS houve uma

expansão inédita do gasto em medicina previdenciária, possibilitando, naturalmente, um

crescimento da rede de serviços privados, o que propiciou a expansão da capacidade

hospitalar e ambulatorial pelo conjunto das empresas médicas, voltada basicamente para o

mercado financiado pelo INPS/INAMPS. Dados trazidos por Eli Iôla Gurgel Andrade (2003)

informam que, num período de sete anos (1969 a 1976), os gastos do INPS com assistência

ambulatorial cresceram 400%, enquanto na área hospitalar a expansão foi de 184,7%.

Tais resultados econômico-financeiros no período de 1967-1979 foram implacáveis

para a história do sistema público de previdência no Brasil e, conseqüentemente, para a área

da saúde pública.

Diante deste contexto, no início da década de 80 vem à tona a crise da Previdência

Social, com o reconhecimento de que o sistema já se tornava incapaz de sustentar o padrão de

gastos planejado no sistema anterior.

tensões sociais resultantes do processo de desenvolvimento econômico, através de uma ‘medicina simplificada’ para o chamado quarto estrato residente nas zonas rurais e nas periferias urbanas.” (PAIM, 1986, p. 49).

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21

Após ser transferido para a estrutura do Ministério da Saúde, em 1990, o INAMPS foi

extinto em 1993, por meio da Lei n. 8.689, de 27/07/93, com a criação do Sistema Único de

Saúde - SUS. O Decreto n. 907, de 31/09/93, regulamenta referida lei.

2.4 Previsão constitucional

As Constituições de 1824 e 1891 não fizeram referência expressa ao direito à saúde.

Na Constituição de 1934, a assistência médica e sanitária estava relacionada à

legislação do trabalho (art. 121, § 1°, alínea h). Tratava-se de competência concorrente da

União e dos Estados em cuidar da saúde, incumbindo a todos os entes federados a adoção de

medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade

infantis; higiene social a fim de impedir a propagação de doenças transmissíveis e o cuidado

com a higiene mental.

Na Constituição de 1937, a competência para legislar sobre normas fundamentais da

defesa e proteção da saúde, especialmente da criança, era privativa da União. Entretanto, os

Estados tinham competência para legislar sobre a matéria a fim de suprir deficiências ou

atender às peculiaridades locais sobre assistência pública, obras de higiene popular, casas de

saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais (art. 18, c).

A Constituição de 1946, em seu art. 157, também fez menção à legislação do trabalho

e da previdência social para observar a previdência contra as conseqüências da doença. A

competência para legislar sobre normas gerais de defesa e proteção da saúde era da União.

A Constituição de 1967 praticamente repetiu as diretrizes estabelecidas na

Constituição de 1946. A União tinha competência para estabelecer e executar planos

nacionais de saúde, bem como planos regionais de desenvolvimento e legislar através de

normas gerais sobre defesa e proteção da saúde. Sob a égide da Carta de 1967 foi implantado

um plano básico de Previdência Social Rural, a cargo do Fundo de Assistência ao Trabalhador

Rural (FUNRURAL)16

16 A criação do FUNRURAL já dava indícios da intenção de se universalizar o sistema de saúde, a fim de acabar com as desigualdades existentes.

para os empregados do setor agrário da agroindústria canavieira,

através do Decreto n. 564, de 1º./05/1969. Tratava-se de um plano mais moderado e, por isso,

mais viável que o sistema geral destinado aos trabalhadores urbanos.

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22

A Emenda Constitucional n.1 de 1969 trouxe como única diferença, no seu art. 165, o

direito de previdência social aos trabalhadores no caso de doença. A Profa. Sônia Maria

Fleury Teixeira, no texto Cidadania, direitos sociais e Estado, apresentado na VIII

Conferência Nacional de Saúde (1986), caracteriza, resumidamente, o que foi o direito à

saúde até esse momento:

Uma breve revisão destas Constituições pode mostrar-nos que a legislação sobre a questão da saúde foi de evolução lenta, de natureza vaga e de caráter discriminatório. Não se alcançou em nenhum momento imprimir na Carta Magna o direito à saúde como inerente à cidadania e o dever do Estado na garantia do seu gozo. Ao contrário, a assistência médica apenas foi garantida aos trabalhadores e dependentes vinculados ao sistema previdenciário, criando uma situação de pré-cidadania para todos os demais brasileiros quanto ao direito à saúde. Na medida em que não se alcança o desenvolvimento de direitos universais de cidadania, sendo os direitos previdenciários restritos à condição de cidadania regulada pela inserção do indivíduo no processo de trabalho, e que mesmo o direito à educação não é assumido realmente pelo Estado, a questão social vai sendo canalizada para as medidas e instituições de cunho assistencial. (TEIXEIRA, 1986, p. 105).

A partir da Constituição de 1988 o direito à saúde passa a ter tratamento diferenciado,

o que será analisado em tópico separado, devido à sua importância neste trabalho.

2.5 Constituição Federal de 1988

Como relatado acima, o sistema de saúde no Brasil era desigual, pois a assistência

pública à saúde era privilégio somente dos trabalhadores assalariados, ou seja, formalmente

incluídos no mercado de trabalho e que contribuíam para a Previdência Social, enquanto os

outros tinham que se satisfazer com o atendimento particular ou aquele oferecido pelas Santas

Casas de Misericórdia, postos de saúde e hospitais universitários.

Assim, desde a década de 70, com o Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira17

17 Não se tem com fidelidade o marco inicial desse movimento social. Ainda sob a vigência da ditadura militar, mas tendo início a abertura política, começaram a surgir em vários municípios experiências de implantação de redes de atenção básica à saúde, através da ação de profissionais da área de saúde coletiva. Através do Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira, os profissionais da saúde puderam denunciar as repercussões do modelo econômico sobre a saúde da população e a irracionalidade do sistema de saúde existente na época. Assim começaram a nascer as propostas de alternativas para um novo sistema de saúde com características democráticas. Por meio destas, ampliou-se o número de defensores das mudanças no sistema de saúde, que

,

já eram empreendidos esforços para um sistema de saúde igualitário.

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23

A Constituição Federal de 1988 atendeu a tais anseios. A saúde foi elencada no seu

art. 6º como um dos direitos sociais. O legislador constituinte separou a saúde da previdência

social, incluindo ambas e a assistência social como ações de seguridade social18

. Em seguida

o constituinte estabeleceu o direito à saúde de forma ampla e abrangente no art. 196:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Assim, ficou expressa a vontade do legislador constituinte de romper definitivamente

com o sistema passado de desigualdade no acesso à saúde, pois, a partir de então, o sistema

passou a ser de acesso universal e igualitário.

A criação do Sistema Único de Saúde – SUS, previsto no art. 198 da Constituição

Federal, é o meio para concretizar tal objetivo, uma vez que tem como princípio e diretriz a

universalidade. O acesso de todo e qualquer cidadão aos serviços de saúde deve ser

obrigatório e gratuito.

Quanto ao sistema de competências na área da saúde, a Constituição de 1988 também

trouxe profundas mudanças. Todos os entes federados têm competência em matéria de defesa

da saúde. É possível encontrar competência material exclusiva da União (art. 21),

competência legislativa privativa da União (art. 22), competência comum da União, Estados,

Distrito Federal e Municípios (art. 23), competência legislativa concorrente da União, Distrito

Federal e Estados (art. 24), competência suplementar dos Estados e Municípios (arts. 24, § 2º,

e 30, I, respectivamente), competência indicativa dos Municípios (art. 30).

2.6 Legislação atual

tiveram a oportunidade de se expressar em 1979, durante o I Simpósio Nacional de Política de Saúde, em que houve elaboração de uma proposta de reorientação desse sistema, tendo como finalidade a estruturação de um Sistema Único de Saúde. 18 Seguridade social “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (artigo 194 da Constituição da República de 1988).

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24

Além da Constituição Federal, hoje o direito à saúde também é tratado em vários tipos

de normas, por isso há quem já defenda um microssistema jurídico19 ou a disciplina jurídica

de Direito da saúde ou Direito Sanitário20

Como norma geral, tem-se a Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990), conhecida como Lei

Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições de promoção, proteção e recuperação da

saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes – “patamar mínimo que

deve ser exigido em todo território nacional” (ROCHA, 1999, p. 40).

.

Os Estados-membros também têm competência para legislar, de forma suplementar,

sobre a matéria. Assim, a norma geral (Lei n. 8.080/90) deve ser uma lei-quadro ou uma

moldura legislativa, enquanto a lei estadual preencherá os claros deixados por aquela, a fim de

aperfeiçoá-la às peculiaridades locais. Em Minas Gerais, por exemplo, vigora a Lei n. 13.317,

de 24/09/1999, conhecida como Código de Saúde.

Os Municípios, como entes mais próximos dos problemas locais, também receberam

da Constituição Federal competência para legislar sobre saúde, desde que trate dos assuntos

de interesse local (art. 30, I) ou complemente a legislação federal e estadual (art. 30, II),

dentre outras atribuições (art. 30, III ao IX).

Aliás, a importância do Município para o direito à saúde foi bastante reforçada a partir

de 1988, através do processo de municipalização desses serviços. Pela análise da Lei n.

8.080/90 (principalmente arts. 15 e 36) é possível verificar que o município constitui a

instância federativa mais próxima do cidadão e base do SUS, possuindo a tarefa de execução,

defesa e proteção da saúde.

Outra importante legislação federal é a Lei n. 8.142/90, que dispõe sobre a

participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS)21

19 A expressão microssistema surgiu com o italiano Natalino Irti, no Direito privado, diante da fase da descodificação (século XX), a fim de designar aquelas leis que compreendem normas sobre certa matéria, mas também normas de outras áreas, como direito administrativo, processual, penal e civil. Trata-se de uma lei quase autônoma, auto-suficiente do ponto de vista hermenêutico, tendo em vista que está baseada em valores e princípios interpretativos próprios. Os principais exemplos de microssistemas jurídicos no ordenamento brasileiro são o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). Por este entendimento, percebe-se que não há ainda que se falar em um microssistema jurídico do direito à saúde, por falta de base jurídica para tal.

e sobre as

transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.

20 Conforme Rocha (1999, p. 50) “o Direito Sanitário ou Direito da Saúde pode ser entendido como o conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público destinada a ordenar a proteção, promoção e recuperação da saúde e a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e asseguradores deste direito”. 21 A Constituição Federal de 1988 ressaltou a importância da participação popular nas decisões sobre planejamento e execução de certas ações, valorizando a democracia e a descentralização da administração pública. Veja-se, por exemplo, um dos objetivos da seguridade social: art. 194, parágrafo único – Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: VII – caráter

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É relevante ainda, dentro deste tema, destacar que está em tramitação no Senado

Federal o projeto de lei n. 619/2007, de iniciativa do Senador Tião Viana, que pretende

consolidar toda legislação sanitária federal, a fim de atender ao que dispõe a Lei

Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 199822

, e ordenar, de forma lógica e sistemática,

os dispositivos legais sobre a matéria, para facilitar o conhecimento, a interpretação, a

aplicação e a alteração dos mesmos, bem como, otimizar o trabalho de todos aqueles que

precisam conhecer, utilizar e fazer cumprir as leis de saúde do País.

democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. Na área da saúde a participação popular é uma de suas diretrizes. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: III – participação da comunidade. 22 A Lei Complementar nº 95, de 1998, determina que a legislação brasileira seja consolidada pela integração, num único diploma legal, de todas as leis pertinentes a uma determinada matéria, revogando-se formalmente as leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados.

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3 CONTEÚDO DO DIREITO À SAÚDE

3.1 Concepção de saúde

Para se discutir a efetividade do direito à saúde, primeiro é preciso saber o que é

considerado saúde e em que consiste esse direito. Conforme explica Rocha (1999), um

conceito de saúde vem sendo discutido há séculos, desde os pensadores da Grécia Antiga aos

dias atuais. Assim, pode ser entendido por dois ângulos: como relacionado ao meio ambiente

e às condições de vida dos homens ou, simplesmente, como ausência de doenças.

O conceito contemporâneo de saúde pública, conforme Sueli Dallari (2003), começou

a ser alinhavado no período Renascentista, com o desenvolvimento do Estado Moderno, após

a experiência das epidemias, o que passou a ser visto como perigo social.

Nessa época, na Alemanha, surgiu a idéia de polícia médica, como a intervenção do

governo para proteger a saúde de seu povo. “O aparato administrativo do Estado deveria

estimular a prática da medicina, da cirurgia, da farmácia, e regulamentar o exercício dessas

atividades para evitar abusos e o charlatanismo” (DALLARI, 2003, p. 367), entre outras

medidas.

É no final do século XVIII, no Estado liberal, que a noção contemporânea de saúde

pública começa a ser mais nítida, aparecendo as primeiras leis sobre vigilância sanitária, que

valorizavam o individualismo dominante e eram limitadas ao estritamente necessário à

segurança individual.

Na segunda metade do século XIX a saúde pública torna-se uma prioridade política.

“Nesse momento, verifica-se que o risco coletivo de contrair doenças sobrepõe-se ao da

própria moléstia, transformando-a de episódio individual em objetivo social, principalmente

por meio da disseminação dos meios estatísticos na avaliação da saúde” (DALLARI, 2003, p.

367).

Assim, no século XX a proteção sanitária faz parte da política do Estado, reforçada

pelo Estado Social de Direito.

No final do século XX surge uma nova concepção de saúde pública, fortemente

influenciada pelo relativo fracasso das políticas estatais de prevenção e pela constatação da

importância decisiva de comportamentos individuais no estado de saúde.

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Atualmente a saúde é reconhecida como um dos direitos fundamentais do ser humano

e conceituada no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde – OMS

(1946) como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência

de doença ou enfermidades”. (tradução nossa) 23

Outra definição de saúde, também da OMS, mais especificamente do seu Escritório

Regional Europeu, possui uma visão funcional e positiva, considerando que, se por um lado,

um indivíduo ou grupo é capaz de realizar aspirações e satisfazer necessidades e, por outro, de

lidar com o meio ambiente, a saúde é um recurso para a vida diária, não o objetivo dela,

abrangendo os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas. Esse conceito

interessa muito aos profissionais de saúde pública, incluindo-se aí os médicos, enfermeiros e

os engenheiros sanitaristas, já que pode ser usada de forma a melhorar a eqüidade dos

serviços de saúde, ou seja, prover cuidados de acordo com as necessidades de cada indivíduo

ou grupo.

No Brasil, a Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90), no seu art. 3º, condiciona a

saúde a um conjunto de fatores básicos de salubridade e um conjunto de ações públicas e de

bens e serviços de cidadania que asseguram condições de vida digna e fortalecem a autonomia

dos sujeitos sociais beneficiários, seguindo o conceito inicial da OMS, numa percepção além

da ausência de doença.

Art. 3º - A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País. Parágrafo Único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

Percebe-se, assim, que o atual conceito de saúde busca como objetivo uma boa

qualidade de vida para as pessoas, ligada não só aos direitos humanos individuais, mas

também ao ambiente em que se encontram. Conclui Germano Schwartz que a saúde pode ser

conceituada como:

Um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de

23 THE STATES to this Constitution declare, in conformity with the Charter of the United Nations, that the following principles are basic to the happiness, harmonious relations and security of all peoples: Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of disease or infirmity. Esse é o conceito de saúde mais difundido. Entretanto, vem sendo alvo de inúmeras críticas, uma vez que torna a saúde algo utópico, não podendo tal definição ser usada como objetivo pelos serviços de saúde.

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aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar. (SCHWARTZ, 2001, p. 43)

Constata-se que o conceito de saúde da OMS, acima citado, bem como o art. 3º da Lei

n. 8.080/90 e as definições de saúde que seguem tal raciocínio, na verdade determinam um

objetivo, uma meta a ser alcançada pela nação. Trata-se de um ideal e não propriamente de

um conceito material.

3.2 Concepção de direito à saúde

O direito à saúde é um direito social fundamental, conforme art. 6º da Constituição da

República de 1988. Há quem entenda, ainda, “que ele se apresenta como direito primário e

absoluto, a partir do qual os demais direitos podem ser exercidos, e por esta razão inviolável”

(LEAL, 2006, p. 64).

Um dos problemas que mais aflige o operador do direito quanto ao direito à saúde é o

seu conteúdo, pois o legislador constituinte apenas fez uma referência genérica (art. 6º e 196).

O que pode ser exigido como direito à saúde? Atendimento médico-hospitalar, fornecimento

de qualquer medicamento, realização de exames de qualquer natureza, atendimento

odontológico, fornecimento de aparelhos dentários, próteses e óculos? Enfim, qualquer ação

relacionada à saúde? É possível exigir, por exemplo, moradia e trabalho para todo cidadão,

como conteúdo do direito à saúde, analisando-se o art. 3º da Lei n. 8.080/90?

Para tentar elucidar o que o legislador constituinte quis dizer com “A saúde é direito

de todos e dever do Estado (...)” (art. 196 da Constituição da República de 1988), buscou-se

as discussões travadas na Assembléia Constituinte de 1987 e na VIII Conferência Nacional de

Saúde, ocorrida em 1986, através de seus Anais, a fim de se analisar os pontos de debate à

época e quais eram as reais reivindicações relacionadas ao direito à saúde.

3.2.1 Reforma sanitária brasileira

O movimento social de Reforma Sanitária iniciou-se no Brasil na década de 70, sem

que se saiba exatamente quando, por ser muito difícil precisar com segurança o marco inicial

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de movimentos desse tipo. Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, pesquisadora da UNB,

afirma que o movimento “originou-se do meio acadêmico, em especial nos Departamentos de

Medicina Preventiva, na década de 1970, período marcado pela repressão ditatorial”

(OLIVEIRA, 2007).

O seu objetivo era reformular o sistema de saúde então vigente, que se mostrava

inadequado, vez “que não conseguia enfrentar problemas sanitários como: quadro de doenças

de todos os tipos, baixa cobertura assistencial da população, ausência de critérios e de

transparência dos gastos públicos etc.” (BARTOLOMEI et al, 2003, p. 189).

A partir da segunda metade da década de 70, em vários municípios, começaram a

surgir experiências de implantação de redes de atenção básica à saúde, a partir da ação de

profissionais da saúde coletiva, que ocupavam importantes espaços institucionais abertos por

novos prefeitos municipais.

Na Conferência Mundial de Alma-Ata, promovida pela OMS, em 1978, surge a

proposta internacional de priorização da atenção e dos cuidados primários de saúde24

Nesse contexto foi desenvolvida a proposta de atenção primária seletiva, para

populações marginais, com recursos marginais, tecnologias baratas e simples, mão-de-obra

com baixa qualificação e desarticulada de um sistema hierarquizado e resolutivo, o que

possibilitaria maior eficiência, satisfação da clientela e impacto sobre as condições de vida e

de saúde.

. Essa

proposta era coerente com a situação do Brasil, pois havia a necessidade de se expandir a

atenção médica a partir de um modelo de baixo custo para as populações excluídas,

especialmente as que viviam nas periferias urbanas e nas zonas rurais.

O estabelecimento do movimento sanitário foi possível com a articulação de vários

atores a uma nova proposta para o setor sanitário (PEDRALVA, 2006):

- movimentos de trabalhadores de saúde, em especial as organizações sindicais dos

médicos;

- o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde – CEBES (1976) e a Associação Brasileira

de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – ABRASCO, promovendo debates, simpósios,

24 O art. 1º da Declaração de Alma-Ata prescreve: “A Conferência reafirma enfaticamente que a saúde – estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade – é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde” (PAIM, 1986, p. 49-50). A idéia de estender os serviços de saúde para todos, mesmo em condições modestas de desenvolvimento, era influenciada pelo Serviço Nacional de Saúde, criado em 1948 na Inglaterra, e pelos países socialistas que provaram essa possibilidade.

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publicações que foram progressivamente sistematizando uma proposta alternativa ao modelo

privatista;

- o surgimento do movimento municipalista, através de Encontros de Secretários

Municipais de Saúde, a partir de 1978, e o surgimento de entidades estaduais e nacional de

secretários (Associação Sebastião de Moraes-SP, COSEMS e o CONASEMS), nutridos por

experiências municipais bem sucedidas, em que foi possível conciliar o acúmulo teórico e a

prática na implantação de sistemas municipais de saúde, como Campinas, Niterói, Londrina,

Piracicaba, Bauru, etc;

- um número pequeno, mas importante, de parlamentares comprometidos, nos

diferentes níveis do poder legislativo;

- surgimento e fortalecimento do movimento popular de saúde, fortemente

influenciado pelas comunidades eclesiais de base da igreja católica e da participação de

militares de esquerda na periferia das grandes cidades (zona leste de São Paulo,

principalmente);

- o fim do bipartidarismo, a democratização e ressurgimento do debate político e de

propostas partidárias;

- o resultado da reforma sanitária experimentada em alguns países, com forte

influência da experiência italiana.

- o surgimento de um novo movimento sindical, autônomo, a partir das greves do ABC

Paulista no final dos anos 70, com destaque e importância para a Central Única dos

Trabalhadores (CUT).

De fundamental importância no movimento reformista foi a VIII Conferência

Nacional de Saúde, ocorrida em Brasília, em 1986 (17 a 21 de março). Além de seu caráter

democrático – pois estavam presentes mais de 4.000 pessoas oriundas dos mais diversos

segmentos sociais e políticos, sendo que desses participantes, 1.000 eram delegados e, dentre

eles, 50% eram representantes da sociedade civil organizada (MINISTÉRIO DA SAÚDE,

Relatório da 8ª. Conferência Nacional de Saúde, 1986, p. 01) –, esse evento político-sanitário

estabeleceu um amplo processo social através do debate com a sociedade civil25

25 Deve-se lembrar que neste período o país estava vivenciando a abertura política e o processo de redemocratização. O Movimento “Diretas Já” que reivindicava eleições diretas, havia ocorrido em 1984. Em 1985 José Sarney assume a Presidência da República, no lugar de Tancredo Neves. Em 1988 a nova Constituição da República é promulgada e, em 1989, ocorre a primeira eleição direta para Presidente da República.

. Essa

afirmação é expressa também nas palavras de Antonio Sérgio da Silva Arouca, na época

Presidente da Fundação Oswaldo Cruz e importante figura na Reforma Sanitária, ao participar

da Conferência “Democracia é Saúde”, dentro da VIII CNS:

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Porque o problema aqui não é o de buscar um modelo de saúde que seja adequado à nossa cultura de brasileiros, tirado do bolso de uma hora para outra, mas sim o de se buscar um sistema de saúde cuja experiência tenha sido gerada nas vivências do trabalho comunitário de bairros, nas práticas dos sindicatos, da Igreja, das secretarias de saúde, estaduais e municipais, que tanta coisa têm enfrentado no sentido de transformar esse sistema, baseados no conhecimento, inclusive, de pessoas que, por assumirem mais a convivência com esse sistema perverso, foram para algum lugar do País e começaram uma experiência concreta, na tentativa de modificá-lo. (AROUCA, 1986, p. 34).

O sucesso da VIII Conferência Nacional de Saúde foi o resultado de um amplo debate

iniciado um ano antes da sua realização. A Conferência deveria representar a voz da

sociedade brasileira. Essa era a idéia principal. Assim, em 1985 se iniciou um movimento de

discussões nos Estados, as pré-conferências estaduais de saúde, com a participação de

representantes dos mais variados segmentos da sociedade. E o debate continuou mesmo após

o término da VIII Conferência, vários assuntos precisavam ser discutidos, a fim de serem

levados para a Assembléia Constituinte que se iniciaria em outubro de 1987.

Os três eixos fundamentais de debate da VIII Conferência Nacional de Saúde eram

Saúde como Direito, Reformulação do Sistema de Saúde e Financiamento do Setor. O seu

resultado principal foi um consenso político que permitiu a elaboração do projeto da reforma

sanitária caracterizado por três aspectos principais:

a) o conceito abrangente de saúde;

b) saúde como direito de cidadania e dever do Estado;

c) a instituição de um Sistema Único de Saúde.

Ainda estabeleceu como princípios da reforma sanitária a universalização,

integralidade, regionalização e hierarquização, descentralização, democratização das

instâncias gestoras, etc.

Na prática, “a Conferência foi considerada a préconstituinte em matéria de saúde e seu

relatório final, no qual foi proposta a implementação do SUS, tornou-se o principal subsídio

para a elaboração do capítulo da Saúde na Assembléia Nacional Constituinte” (OLIVEIRA,

2007), através de grupo de parlamentares apoiados pelo movimento da reforma sanitária.

Assim, o texto constitucional passou a incorporar conceitos, princípios e uma nova

lógica de organização do direito à saúde, baseada no projeto de reforma sanitária, expressos

nos artigos 196 a 200:

a) O conceito de saúde entendido numa perspectiva de articulação de políticas

econômicas e sociais;

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b) A saúde como direito social universal derivado do exercício da cidadania plena e

não mais como direito previdenciário;

c) A caracterização dos serviços e ações de saúde como de relevância pública;

d) A criação de um Sistema Único de Saúde (descentralizado, com comando único em

cada esfera de governo, atendimento integral e participação da comunidade);

e) A integração da saúde à Seguridade Social. (PEDRALVA, 2006).

Assim, pode-se concluir nas palavras de Rodriguez Neto, citado por Oliveira (2007),

que a área da saúde “foi o setor que conseguiu chegar à Assembléia Nacional Constituinte

com a proposta mais discutida, legitimada e completa e que continha o ideário do movimento

sanitário”.

Se, por um lado, o setor da saúde deve ser aplaudido por ter se organizado, inclusive

com a participação popular, e levado suas reivindicações à Assembléia Constituinte, por

outro, deve-se avaliar que, ainda assim, a maioria dos participantes da reforma sanitária,

tendo-se por base a VIII CNS, eram profissionais da área médica. Dessa forma, a noção de

direito à saúde e as discussões travadas foram muito mais ligadas ao conceito ideal de saúde

proposto pela medicina, do que uma discussão jurídica, econômica e social, que inclui fatores

condicionantes desse conceito. E isso prevaleceu na Constituição Federal de 1988 e nas leis

ordinárias posteriores.

3.2.2 O conceito abrangente de saúde

Conforme Maria Ceci Misoczky (2003), citando Eleutério Rodriguez Neto, na

concepção original do projeto reformista a saúde era considerada sob duas conotações. Pela

primeira se considerava a saúde como assistência aos indivíduos, envolvendo as ações

específicas dirigidas a prevenir a ocorrência de doenças e outros agravos e a recuperar ou

restaurar a saúde daqueles que a têm comprometida. A segunda conotação era mais ampla,

incluindo a primeira, e estava relacionada à saúde em si, de cada um e de todos os indivíduos

de uma sociedade.

Assim, a saúde em si mesma é uma situação individual, todavia, devido aos fatores

que a condicionam ou a comprometem, ela também pode ser considerada um fenômeno

social. O Dr. Gabriel Oselka, médico e representante do Conselho Federal de Medicina na

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VIII CNS, ao participar dos debates sobre o tema Saúde, direito de todos e dever do Estado,

assim se manifestou:

Para que isso seja assegurado, entendemos que seja necessário, em primeiro lugar, que se considere saúde em sua plenitude e priorizá-la nas políticas governamentais, através de maciços e contínuos investimentos nas áreas de saneamento básico e de defesa do meio ambiente; na produção de alimentos para consumo interno; na prestação de serviços de saúde, de educação, habitação; garantia de trabalho em condições adequadas de salubridade; níveis compatíveis de salário e condições de lazer, imprescindíveis para a valorização do homem. Em segundo lugar, considerar a saúde como investimento nacional, o que requer uma justa redistribuição de renda e riquezas nacionais, além de garantia plena de acesso à terra e meios de produção para as populações rurais, corrigindo as distorções atuais de injustiça social. Terceiro, em termos do sistema de saúde propriamente dito, entendemos que é preciso garantir a participação da população usuária e das entidades representativas de profissionais da área de saúde no planejamento, gerência e controle das ações de saúde. E, finalmente, é preciso que se garanta que as ações de caráter social, tais como saúde, educação e previdência social sejam de competência do Estado, sendo que a eventual participação da iniciativa privada quando necessária deverá se dar sob a forma de concessão de serviços por parte do Estado. (OSELKA, 1986, p. 124-125).

O Doutor Jairnilson Silva Paim, professor da Faculdade de Medicina da Universidade

Federal da Bahia, destacou a necessidade de se resgatar a idéia do direito à saúde como noção

básica para a formulação de políticas. Com muita sensatez, afirma ele: “Esta se justifica na

medida em que não se confunda o direito à saúde com o direito aos serviços de saúde ou

mesmo com o direito à assistência médica.” (PAIM, 1986, p. 46). (grifos nossos).

Assim, independente de concepções idealistas, a saúde deve ser entendida como

produto de condições objetivas de existência. É o resultado das condições de vida biológica,

social e cultural. Desta forma, segundo Paim, promover saúde, neste contexto, “implica em

conhecer como se apresentam as condições de vida e de trabalho na sociedade, para que seja

possível intervir socialmente na sua modificação.” (PAIM, 1986, p. 47).

De outro lado, o respeito ao direito à saúde envolve mudanças na organização

econômica determinante das condições de vida e trabalho, perpetuadora de desigualdades na

distribuição de bens e serviços. Assim, o direito à saúde de uma determinada coletividade

requer ações articuladas de políticas sociais mais amplas, relativas ao emprego, salário,

previdência, educação, alimentação, ambiente, lazer, etc. Essa afirmação ampara-se, inclusive,

na legislação vigente, podendo ser verificada no art. 3º da Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990), a

Lei Orgânica da Saúde.

O direito à saúde não pode ser confundido, como vem ocorrendo nos tribunais

brasileiros, com os serviços de saúde apenas ou, ainda, mais restritamente, com assistência

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médico-hospitalar e fornecimento de medicamentos. O seu conceito é mais amplo e privilegia

o aspecto das ações preventivas em todas as áreas sociais que, direta ou indiretamente,

influenciarão na saúde dos indivíduos26

Do modo como se vem interpretando o direito à saúde, sua abrangência ficou restrita

e, ao mesmo tempo, dentro desta restrição, abrangente. O paradoxo se dá porque os tribunais

recebem uma quantidade extraordinária de ações judiciais individuais pleiteando tratamentos

médicos, realização de exames, leitos hospitalares e medicamentos. Por outro lado, qualquer

medicamento, independentemente do seu custo, vem a ser pleiteado. E o mesmo se dá com

exames médicos de alta complexidade e tratamentos médicos. Assim, as ações de saúde

curativas requeridas aos tribunais tornam-se abrangentes, mas as ações de saúde preventivas,

que podem atender um número maior de pessoas, ficam restritas.

.

Tais demandas judiciais, em geral julgadas procedentes, porque entendem os doutos

magistrados tratar-se do mais amplo direito à saúde, excluem a possibilidade de realização das

ações preventivas de saúde, o que talvez diminuísse a possibilidade do fornecimento dos

medicamentos e dos tratamentos requeridos judicialmente.

O direito à saúde está ligado à noção de cidadania. Assim, esse direito requer mais do

que a mera doação de alimentos, de remédios e de medicina simplificada. Isso não passa de

assistência social patrocinada pelo antigo Estado Liberal. Para elevar à condição de cidadãos

os milhões de brasileiros em estado de exclusão social, são necessárias políticas sociais

abrangentes, contando com a participação popular, de modo que eles possam lutar pelos seus

direitos e se organizar politicamente para conquistá-los.

3.2.3 Saúde como direito de todos

O art. 196 da Constituição da República, que prescreve “A saúde é direito de todos e

dever do Estado (...)”, em geral tem sido lido como se o direito à saúde pudesse ser exigido do

Estado por qualquer cidadão, brasileiro ou estrangeiro em território nacional,

26 À época da VIII CNS já se discutia sobre a necessidade de se enfatizar as medidas preventivas. Dados daquela época mostram a diferença: “em 1949, 12,9% dos gastos em saúde se faziam para assistência médico-hospitalar e 87,1% para os serviços preventivos, enquanto em 1982, 84,6% dos gastos foram para a assistência médico-hospitalar e apenas 15,4% para os serviços preventivos” (PAIM, 1986, p. 52). A proposta da medicina preventiva foi privilegiada pela Constituição Federal de 1988.

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independentemente da sua condição econômica. Além disso, tem sido interpretado de forma

ampla, isto é, direito à saúde abrangendo qualquer tipo de necessidade.

Assim, buscando identificar qual é a idéia de “saúde para todos”, pode-se citar Hélio

Pereira Dias, participante da VIII CNS (1986), que à época era assistente jurídico e assessor

do Ministério da Saúde. No texto “Saúde como direito de todos e dever do Estado”, ele cita o

diretor-geral da OMS, Dr. Halfdan Mahler:

“A saúde para todos” significa que a saúde há de ser colocada ao alcance de cada indivíduo em um país determinado; por “saúde” há de entender-se um estado pessoal de bem-estar, ou seja, não só a disponibilidade de serviços sanitários, como também um estado de saúde que permita a uma pessoa levar uma vida social e economicamente produtiva. “A saúde para todos” obriga a suprimir os obstáculos que se opõem à saúde (desnutrição, ignorância, água não potável e habitações não higiênicas), assim como resolver problemas puramente médicos, como de falta de médicos, de leitos hospitalares, de medicamentos e vacinas (...). (MAHLER apud DIAS, 1986, p. 69).

O assessor jurídico do Ministério da Saúde ainda explica que:

A saúde para todos depende do progresso ininterrupto da assistência médica e da saúde pública. Os serviços sanitários devem ser acessíveis para todos mediante atenção primária de saúde, graças a qual se dispõe em cada localidade de atenção médica de base, apoiada por serviços de tratamento mais especializado. Ainda assim, as campanhas de imunização hão de assegurar cobertura total. (DIAS, 1986, p. 69). (grifos nossos)

Portanto, dizer que a saúde é um direito de todos, trata-se de um conceito global e

progressivo. A assistência médica, pura e simplesmente, levada a uma população faminta e

vivendo em moradias precárias, não é saúde. A saúde para todos tem um significado

abrangente, que inclui melhores condições de vida e novas oportunidades, conforme explica o

diretor-geral da OMS:

Quando um governo adota a saúde para todos se compromete a fomentar o progresso de todos os cidadãos em uma ampla frente de desenvolvimento e está resolvido a estimular a cada cidadão para conseguir uma melhor qualidade de vida. O ritmo que o progresso siga dependerá da vontade política. (MAHLER apud DIAS, 1986, p. 70).

Percebe-se, dessa forma, que a interpretação que se faz atualmente do artigo 196 da

Constituição da República de 1988, referente à expressão “saúde para todos”, não condiz com

as discussões que permearam a VIII CNS, que, por sua vez, serviu de base para a Assembléia

Constituinte.

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Verifica-se, ainda, que as reivindicações relacionadas ao setor da saúde estavam

voltadas para a universalidade desse direito, uma vez que o passado próximo mostrava as

desigualdades no atendimento da população, expressas nas dicotomias saúde curativa x saúde

preventiva e saúde previdenciária x saúde assistencial.

O objetivo era garantir que não ocorreriam mais essas distorções, o que apenas

aumentava mais as desigualdades sociais e econômicas. Toda a população (todos), urbana e

rural, inserida ou não no mercado formal, poderia ser atendida sem distinções, ou seja, todos

teriam o mesmo direito

, o que não significa, exatamente, obter serviços médicos pelo Estado,

pois há pessoas que não utilizam o serviço público estatal e, nem, por isso, deixam de ter o

direito à saúde, caso necessitem.

3.2.4 Saúde como dever do Estado

A saúde, como direito social, requer a intervenção do Estado. A garantia dos direitos

sociais é corolário do dever do Estado. Assim sendo, conforme a Profa. Sônia Maria Fleury

Teixeira, “tratar-se-ia de redefinir as relações Estado/sociedade nesta nova conjuntura,

adequando seu aparelho institucional às funções públicas.” (TEIXEIRA, 1986, p. 109).

Essas necessidades sociais são satisfeitas através de atividades específicas,

desenvolvidas pelo Estado, isto é, dos serviços públicos, expressos em prestações de

utilidades materiais e imateriais. Assim, a saúde coletiva, constituída como objetivo

fundamental dos Estados contemporâneos, pressupõe como seu dever proporcionar serviços

públicos aptos àquela finalidade.

Por isso, a saúde é tratada como dever do Estado, pois só assim, segundo Teixeira,

“será possível redefinir a política nacional de saúde de maneira efetiva, atribuindo ao Estado

democrático a competência não só de normatização e financiamento, mas de real controle e

dever de assegurar a universalização do direito à saúde”. (1986, p. 110). Neste sentido, o

objetivo era garantir os direitos sociais rompendo, necessariamente, com a política social

restritiva que vigorava à época, seguindo em direção à universalização do direito à saúde.

Especificamente, isso significava acabar com a estrutura vigente da Previdência, “na

qual o sistema reduziu-se a uma função bancária de compra de serviços”. (TEIXEIRA,

1986, p. 110).

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Discute-se se os serviços de saúde devem ser uma concessão do poder público e se a

saúde pode ser considerada essencialmente como um serviço público. Primeiro cabe

esclarecer que público não é o mesmo que estatal. Assim, o que vigorava anteriormente à

Constituição de 1988 eram os serviços de saúde estatais, que não eram efetivamente públicos,

porque possuíam uma gestão privada.

Quanto à discussão levantada no início do parágrafo anterior, na realidade o

questionamento deve ser feito no sentido de se saber se o Estado capitalista moderno pode

dispensar os efeitos ideológicos de legitimidade conferidos pelo reconhecimento dos direitos

sociais e pela melhoria dos serviços de saúde, numa sociedade marcada por contradições e

desigualdades como a brasileira.

Assim, pode-se concluir que a interpretação do direito à saúde como um direito

absoluto de cada cidadão, para exigir do Estado tudo aquilo que entender compatível com

saúde, não é o que se pretende na Constituição de 1988. Pelo menos, não ainda. Enquanto as

desigualdades sociais forem tão extremas, difícil será conceder medicamentos caros e

tratamentos médicos complexos, gratuitamente para todos os indivíduos, pois sempre uma

parcela da população, que realmente necessita de serviços médicos e remédios gratuitos,

estará sendo prejudicada. Essa não foi a intenção do constituinte nem dos precursores da

reforma sanitária.

Adiciona-se a esse entendimento a própria Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990), que ao

tratar do dever do Estado em relação ao direito à saúde prescreve a sua garantia através da

formulação e execução de políticas econômicas e sociais (art. 2º, § 1º).

O art. 196 (Seção II - Da saúde) da Constituição da República de 1988 deve ser

interpretado de forma sistemática. Assim, deve-se atentar para o inciso III, do parágrafo único

do art. 194, da Constituição:

TÍTULO VIII DA ORDEM SOCIAL Capítulo I DISPOSIÇÃO GERAL Art. 193. [...] Capítulo II DA SEGURIDADE SOCIAL Seção I Disposições gerais Art. 194. [...] Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: [...] III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;

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O Estado brasileiro não pode, nem deve arcar com todos os tipos de tratamentos,

exames e medicamentos para todos. Deve-se ressaltar que a Constituição da República (1988)

prevê a participação, de forma complementar, do serviço privado de assistência à saúde.

Assim, inúmeras pessoas com condições financeiras suficientes, contratantes ou não de planos

de saúde privados, que podem pagar por procedimentos médicos, são atendidas pelo Sistema

Único de Saúde (SUS), seja em serviços de urgência/emergência ou para tratamentos de alta

complexidade, uma vez que não lhes será vedada a assistência27

Neste sentido, pertinente a observação de Salazar, Rodrigues e Nunes Júnior (2003):

.

Temos, dessa forma, uma postura por vezes contraditória, iniciada através da legislação e seguida pela atuação do Poder Público que, de um lado, se diz impossibilitado de implantar os princípios e diretrizes do SUS, especialmente devido à falta de recursos e, de outro, acaba permitindo a transferência do ônus dos tratamentos mais caros ou não cobertos pelas operadoras de planos de saúde exatamente para o sistema público. (NUNES JÚNIOR, RODRIGUES e SALAZAR, 2003, p. 375).

Tais situações precisam ser revistas, bastando a interpretação correta das normas

acima citadas.

3.2.5 O direito à saúde como direito público subjetivo

Atualmente o direito à saúde vem sendo entendido como um direito público subjetivo,

ou seja, o seu titular, o cidadão, pode exigir judicialmente o seu cumprimento pelo Poder

Executivo, que tem o dever de prestá-lo, conforme art. 196 da Constituição da República

(1988). Trata-se, assim, de uma relação obrigacional: credor de um lado, possuindo a

pretensão de exigir seu direito judicialmente; devedor de outro, com o dever de cumprir a

27 A assistência privada à saúde é regulamentada pela Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998 (Lei de Planos de Saúde). O art. 32 da citada lei disciplinou o ressarcimento ao SUS. Assim, sempre que um cliente de plano de saúde for atendido pelo serviço público de saúde, o plano deve reembolsar os gastos ao SUS, exceto se o procedimento não estiver coberto pelo contrato do plano de saúde. A previsão legal de ressarcimento visa impedir o enriquecimento da operadora, que recebe do cliente o valor da prestação contratual, sem cumprir o contrato. Todo o processo de efetivação e normatização do ressarcimento é de responsabilidade da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar. O grande problema é que a ANS não vem atuando como deveria, deixando de receber milhões de reais por ano em ressarcimento do SUS. Tal problema traz impactos negativos nas contas do SUS, diminuindo sobremaneira a prestação de ações e serviços de saúde pelo próprio Estado, prejudicando aqueles cidadãos que não têm condições financeiras de arcar com um plano de saúde e que realmente precisam do serviço público.

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prestação, objeto da obrigação, podendo sofrer uma sanção judicial, caso se torne

inadimplente.

Importante destacar que o direito subjetivo prestacional pode ser dividido em duas

categorias: a) direitos originários a prestações sociais, que são reconhecidos como direito

subjetivo à prestação a partir da norma constitucional de direito fundamental e sem qualquer

intervenção do legislador infraconstitucional; b) direitos derivados a prestações, assim

considerados aqueles que já foram concretizados pelo legislador infraconstitucional, portanto,

já possíveis de gerarem direito subjetivo com base e nos termos da lei.

Neste estudo, questiona-se a possibilidade do direito à saúde ser entendido como

direito originário à prestação.

José Reinaldo de Lima Lopes traz o significado de direito subjetivo conforme a teoria

geral do direito, de acordo com grandes autores do direito comparado:

A essência do direito subjetivo, que é mais do que simples reflexo de um dever jurídico, reside em que uma norma confere a um indivíduo o poder jurídico de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento de um dever jurídico. (KELSEN apud LOPES, 2002, p. 114). Para Alf Ross, o direito subjetivo é uma ferramenta conceitual que permite representar o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas, a saber, as que conectam certa pluralidade acumulativa de conseqüências jurídicas. (LOPES, 2002, p. 115) Hohfeld, jurista norte-americano, descreve o direito subjetivo de três pontos de vista: a) como direito stricto sensu, direito de exigir; b) como liberdade, ou privilégio; c) como imunidade. A relação de direito é sempre entre três termos: duas pessoas e um objeto (ação, omissão, fato ...). (LOPES, 2002, p. 115)

O direito subjetivo individual está sempre ligado ao direito de ação. O interessado

provoca o Poder Judiciário para obter uma sentença e, se necessário, a execução forçada

contra a parte contrária.

Segundo Lopes “é durante o período medieval ainda, sob influência do nominalismo,

que surgem as primeiras intuições em torno do direito subjetivo” (2002, p. 117). Nesse

período há o ressurgimento do comércio, o que significa o nascimento do capitalismo

mercantil, contendo as sementes do individualismo. Assim, o direito subjetivo aparece

vinculado ao individualismo proposto pelo pensamento nominalista28

28 Neste sentido refere-se ao nominalismo de Guilherme de Ockham (século XIII-XIV). O nominalismo de Ockham, de cunho aristotélico, defendia que os termos gerais, chamados universais, não tinham uma existência independente das coisas materiais. Assim, os universais eram meros nomes, signos ou conceitos dados a um grupo de coisas particulares, não existindo fora da mente de quem os pensassem. Tal teoria se contrapunha à teoria realista (ou platonismo), a qual defendia o dualismo metafísico platônico – mundo real x mundo aparente.

.

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É com a modernidade, no Estado Liberal, que o conceito de direito subjetivo é

concretamente formulado como fundamento da ordem jurídica e a propriedade se constitui

como categoria central desse direito, influenciando o Código Civil napoleônico, que, por sua

vez, influenciou os demais códigos da época, inclusive o brasileiro de 1916.

Nas diversas ações judiciais pleiteando prestações do Estado relativas ao direito à

saúde, vem se entendendo possível exigir do Estado o objeto pleiteado, simplesmente com

base nos artigos 6º e 196 da Constituição (1988). Com o temor de ceifar a vida do cidadão, o

juiz ordena que os entes estatais cumpram o dever de dar e fazer tudo aquilo que se relaciona

com o direito à saúde: medicamentos, tratamentos complexos e caros, próteses etc, pois

entendem que se trata de um direito público subjetivo. É a necessidade da “certeza jurídica” e

da “segurança do processo” nas palavras de José Eduardo Faria (2002, p. 96).

O Poder Judiciário e os juristas brasileiros de um modo geral ainda adotam

procedimentos formais de natureza individualista, influenciados por uma cultura normativista

e positivista, o que já vem sendo objeto de questionamentos pelos próprios magistrados, como

se constata no texto da decisão da 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do

Sul, do qual se extrai o seguinte trecho:

É nesse contexto que se deve questionar a posição quase unânime do Judiciário brasileiro (liderada pelo Supremo Tribunal Federal) de interpretar o direito à saúde como um direito individual ilimitado a todo e qualquer tratamento, procedimento ou medicamento. Em número cada vez maior de ações judiciais, nossos juízes vêm ordenando aos serviços públicos de saúde, em todos os níveis da Federação, que financiem tratamentos originariamente não contemplados na política de saúde elaborada pelas respectivas secretarias e Ministério da Saúde. Esses tratamentos muitas vezes são de elevadíssimo custo, disponíveis apenas no exterior e, freqüentemente, tão ou menos eficazes que os disponíveis no sistema público de saúde. Diante da escassez de recursos, a conseqüência dessa interpretação não é, ao contrário do que se poderia imaginar, a ampliação do acesso a serviços de saúde a camadas da população anteriormente excluídas. O resultado inevitável é, na verdade, uma substituição parcial das prioridades de investimento estabelecidas pelos especialistas em saúde pública do Poder Executivo. Ou seja, puxa-se o cobertor da saúde pública para aqueles que conseguiram acessar o Judiciário e se descobre parte daqueles que a política estatal havia originariamente decidido contemplar. (RIO GRANDE DO SUL, TJ. AI 70021991948, Rel. Juíza Maria Isabel de Azevedo Souza, DJ de 19/12/2007).

Assim, acostumados com a idéia do direito subjetivo individual, próprio do Direito

Privado, ao se depararem com a interpretação e aplicação de direitos fundamentais sociais

estabelecidos pela Constituição, esses mesmos juristas só podem entendê-los da forma como Desta forma, Guilherme de Ockham preocupa-se com os seres singulares, ou seja, apenas esses são reais. Para o filósofo, o indivíduo é o que primeiro se conhece e é, unicamente, o objeto autêntico do conhecimento.

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prescreve o art. 189 do atual Código Civil: “Violado o direito, nasce para o titular a

pretensão...”.

Esse entendimento ainda pode ser reforçado pelo disposto no § 1°, do art. 5º, da

Constituição da República (1988), combinado com o inciso XXXV do mesmo artigo, que

possibilita a aplicação imediata dos direitos fundamentais sociais e não podem ser afastados

da apreciação do Judiciário, autorizando os tribunais a assegurarem, no caso concreto, a

eficácia da prestação pretendida. E, se alguém questionar a omissão do legislador quanto ao

conteúdo do direito social, é possível a argumentação, utilizando-se o art. 4º da Lei de

Introdução ao Código Civil, que prevê a atuação do juiz com base na analogia, no costume e

nos princípios gerais de direito29

Entretanto, nem todo direito fundamental social é considerado direito público

subjetivo. Sarlet (2003a) cita como exemplo o direito ao trabalho, expressamente previsto no

art. 6º da Constituição como direito social, mas que, nem por isso, os cidadãos podem

reclamar judicialmente que o Estado lhes conceda um emprego. Na mesma linha de raciocínio

pode-se citar o direito à moradia, também previsto no art. 6º da Constituição da República

(1988) e o direito ao salário mínimo (art. 7º, IV, da CR/88).

.

Germano Schwartz (2001) afirma que o direito à saúde tem caráter individual porque o

indivíduo é quem o exercerá efetivamente. A natureza de direito público subjetivo, segundo o

autor, decorre da sua própria estrutura, que é capaz de fornecer as respostas ao “quando, como

e sob que condições o cidadão-credor vai poder exigir do Estado-devedor a prestação devida”

(2001, p. 70). Schwartz acrescenta, ainda, que Canotilho e Moreira tem entendimento no

sentido de “que sempre que em uma Constituição estiver assinalada a expressão ‘Todos tem

direito de’ é porque o direito ali protegido é direito público subjetivo.” (SCHWARTZ, 2001,

p. 76).

Urge destacar os argumentos levantados pela corrente que não admite os direitos

sociais como direitos subjetivos. O primeiro está vinculado à estrutura jurídico-normativa, ou

seja, a maioria das normas que tratam de direitos sociais é compreendida como de cunho

programático, exigindo a edição de norma infraconstitucional. Celso Antonio Bandeira de

Mello, citado por Sarlet (2003a), entende que o particular não poderá fruir do direito quando a

norma que o prevê for apenas a expressão de uma finalidade a ser cumprida obrigatoriamente

pelo Poder Público, não apontando os meios que devam ser adotados para atingi-la. 29 Sarlet (2001) defende o entendimento de que a definição de direito à saúde virá do legislador federal, estadual e/ou municipal, de acordo com a competência legislativa prevista na Constituição. Até mesmo o Poder Judiciário, segundo o mencionado autor, irá interpretar as normas constitucionais e infraconstitucionais, concretizando esse direito.

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Relacionado ao problema acima, outro argumento relevante, contrário ao direito social

como direito público subjetivo, é a inviabilidade, na maioria das vezes, de se identificar,

apenas com base na norma constitucional, o conteúdo e o alcance da prestação. No tocante ao

direito à saúde não se sabe o que é possível exigir do Estado.

Outro aspecto que merece ser destacado diz com o conteúdo de um direito subjetivo nesta esfera, já que o leque de necessidades é de tal forma amplo, que dificilmente poderá ser abrangido por qualquer normatização constitucional ou infraconstitucional. Além disso, assume relevo (também aqui) o questionamento a respeito do limite da prestação reclamada do particular perante o Estado. Em outras palavras, cuida-se de saber se os poderes públicos são devedores de um atendimento global (toda e qualquer prestação na área da saúde) e, independentemente deste aspecto, qual o nível dos serviços a serem prestados. Em suma, pergunta-se se o particular (qualquer um ou apenas os que comprovarem carência de recursos para a manutenção de um plano de saúde privado?) poderá ter acesso, por exemplo, além dos serviços essenciais na esfera médica a atendimento odontológico, psicológico, fisioterapêutico, etc. Ademais, será o Estado obrigado a prestar saúde de acordo com padrões mínimos, suficientes, em qualquer caso, para assegurar a eficácia das prestações, ou terão os particulares direito a serviços gratuitos da melhor qualidade (equipamento de última geração, quarto privativo em hospitais, etc.)? (SARLET, 2003a, p. 314)

O próprio Sarlet, em outro trabalho, entende o direito à saúde como direito público

subjetivo. Entretanto, esse direito não é amplo e irrestrito:

(...) sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado de modo resumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente – em se cuidando da saúde – da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo. (SARLET, 2001, p. 103)

Complementando a citação acima, o autor, em nota de rodapé, esclarece que um

direito subjetivo a prestações, como é o caso do direito à saúde, não poderá abranger toda e

qualquer prestação, devendo ser restrita ao básico e elementar quando não houver expressa

previsão legal30

Entretanto, os tribunais pátrios, com raras exceções, vêm interpretando os artigos 6º e

196 da Constituição da República (1988) com bastante amplitude. Cabe ao poder público

.

30 De acordo com a Portaria GM/MS nº 1882/97 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1997) são considerados como de atenção básica as seguintes ações, serviços e procedimentos: planejamento familiar; agentes comunitários de saúde; educação sanitária a grupos da comunidade; vacinação; atendimento odontológico básico; atendimento ambulatorial e domiciliar por profissionais do Programa da Saúde da Família (PSF); atendimentos básicos por profissionais de nível médio; pronto atendimento em unidade básica (pequenas cirurgias); assistência a parto domiciliar por médico do PSF; assistência pré-natal; visita domiciliar; inspeção sanitária de alimentos, água, cosméticos, antihipertensivos, antialérgicos, antibióticos, analgésicos, antidepressivos, etc; consultas médicas em especialidades básicas: pediatria, ginecologia, obstetrícia e clínica geral.

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fornecer toda prestação relacionada com o direito à saúde, mesmo que isso traga

conseqüências negativas aos demais cidadãos que também dependem do Estado para receber

tais prestações, às vezes bem inferior àquela reclamada em juízo por um único cidadão.

As pretensões judiciais sobre direito à saúde são sempre relacionadas a tratamentos

complexos e de alto custo, medicamentos e aparelhos/próteses bastante onerosos. Casos que o

Estado não tem como fornecer para todos que necessitam. Assim, aqueles que recorrem ao

Poder Judiciário acabam tendo sua pretensão satisfeita, pois o Poder Executivo não deixa de

cumprir a ordem judicial31. Em alguns casos tal medida acaba sendo viável, cômoda para o

Poder Executivo, pois passa a se preocupar, ou seja, atende apenas àqueles que recorrem

judicialmente32

A intervenção do Poder Judiciário no âmbito de atuação do Poder Executivo implica

transtornos no planejamento orçamentário e econômico do Estado, que se preparou

previamente para determinados gastos na área da saúde e se vê obrigado a ter outros. Esse é

outro argumento contrário aos direitos sociais como direito público subjetivo: a reserva do

possível. Trata-se de um limite fático representado pela escassez de recursos financeiros ou

institucionais para atender a demanda social.

.

33

31 Em reportagem de um jornal local do município de Ribeirão Preto/SP, sob a manchete “Justiça faz Saúde gastar 42,6% a mais em 2007”, pode-se ter a noção do que vem acontecendo em nível nacional: “Além de ter que enfrentar o problema da falta de leitos para internação hospitalar e da falta de recursos para ampliar a assistência em Saúde na cidade, a Secretaria Municipal da Saúde de Ribeirão Preto vê crescer, a cada ano, o volume de despesas com medicamentos, fraldas, dietas especiais e outras terapias que fornece a pacientes por determinação judicial. Com base no princípio Constitucional de que Saúde é um direito de todos e dever do Estado, um número cada vez maior de pessoas ingressa com ações na Justiça requerendo do poder público o custeio de tratamentos de Saúde. No ano passado, foram empenhados R$ 884,1 mil para atender decisões judiciais, segundo o Departamento Administrativo e Financeiro da Secretaria da Saúde. Em 2007, até esta semana, já haviam sido gastos R$ 1.261.332,52, um crescimento de 42,6%. “Esse é um problema seríssimo, que nos preocupa, porque está comprometendo o Orçamento da Secretaria”, declarou o secretário municipal da Saúde, Oswaldo Cruz Franco.

De acordo com informações da pasta, o que mais pesa nessas despesas é a compra de medicamentos que não constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), regulamentada por portaria do Ministério da Saúde. “No começo, eram apenas medicamentos, mas agora estamos com pedidos de compra de fraldas, de órtese, prótese, cadeiras de rodas e outros tipos de aparelhos que o município, sozinho, não têm condições de atender”, afirma Franco. A grande distorção dessas situações de cumprimento de ações judiciais, na visão do secretário, é o fato de a administração atender um número pequeno de pessoas com um grande volume de recursos. “Atender a todos não significa, como preconiza o SUS, dar a mesma coisa para todos, mas sim dar mais a quem precisa mais e menos para quem precisa menos”, critica. Outro fator que chama a atenção do secretário é o fato de as decisões atenderem, com maior freqüência, pacientes de convênios médicos. No caso da compra de medicamentos, 60% das despesas são destinadas a pacientes da rede particular.” (RIBEIRO, 2007). (grifos nossos) 32 Ana Paula de Barcellos se manifesta sobre o assunto da seguinte forma: “O problema está em que, ao imaginar poder buscar, através do Judiciário, toda e qualquer prestação de saúde, cria-se um círculo vicioso, pelo qual a autoridade pública exime-se da obrigação de executar as opções constitucionais na matéria a pretexto de aguardar as decisões judiciais, ou mesmo sob o argumento de que não há recursos para fazê-lo, tendo em vista o que é gasto para cumprir essas mesmas decisões judiciais.” (BARCELLOS, 2002, p. 275). 33 O tema “reserva do possível” será abordado com mais detalhes no item 4.2 deste trabalho.

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Desta forma, se os direitos sociais, como o direito à saúde, não devem ser

interpretados como direitos subjetivos, como, então, devem ser entendidos? Quais ações

garantem esses direitos? Se existe um direito, existe um dever correspondente?

Como visto, as respostas a essas perguntas não podem se reduzir a uma análise

positivista.

3.2.6 O direito à saúde como norma programática

As constituições dos séculos XVIII e XIX, em regra, regulavam apenas a organização

básica do poder estatal. No século XX, em face do advento do Estado Social, as constituições

passaram a trazer normas definidoras de fins e tarefas do Estado, isto é, normas

programáticas34

, pois estão impedidas de regular detalhadamente a vida social, o que fica

destinado à legislação infra-constitucional. Confirmando essa idéia, Sarlet faz referência ao

Prof. Gomes Canotilho, afirmando que as normas de cunho programático “correspondem às

exigências do moderno Estado Social de Direito, sendo, portanto, inerentes à dinâmica de

uma Constituição dirigente” (SARLET, 2003a, p. 281). No mesmo sentido se manifesta

Bonavides:

Fórmula de compromisso, esse Estado se define constitucionalmente pela índole programática das disposições de princípio dos textos constitucionais que engendrou, objeto logo mais de minudente exame. Disso deriva a extrema heterogeneidade e conseqüente precariedade que pelo menos em sua fase inicial costumavam estampar as primeiras Constituições do Estado social. (BONAVIDES, 2005, p. 228)

Os constitucionalistas do Estado liberal, juntamente com os positivistas, construíram o

conceito jurídico de Constituição. Paulo Bonavides (2005) afirma que a programaticidade

dissolveu esse conceito. Nesse momento volta à tona o debate, em maior grau, da eficácia das

normas constitucionais. Percebe-se nos textos constitucionais a queda do grau de juridicidade,

refletida na programaticidade, postulados abstratos e teses doutrinárias. O caráter da

Constituição passa a ser preponderantemente político, deixando de ser jurídico. Essa

34 Embora as normas programáticas sejam preponderantes nas Constituições elaboradas no Estado Social, tais normas também foram utilizadas em época anterior, conforme Paulo Bonavides: “... porquanto os dois modelos – o oitocentista (Constituições revolucionárias do século XVIII) e o weimariano – guardam esse traço comum: ambos enunciam de maneira programática os princípios fundamentais de uma nova ordem constitucional; o do século XVIII, o Estado liberal, vitorioso pelos caminhos da Revolução; o de Weimar, o Estado social, em gestação, que aspirava também ao triunfo, mas pelas vias de compromisso”. (BONAVIDES, 2005, p. 230).

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desorientação inicial trouxe problemas sérios relativos à conversão dos princípios sociais

enunciados pela Constituição em direitos subjetivos correlatos, levando o “velho Direito

Constitucional a entrar em crise” (BONAVIDES, 2005, p. 233).

Essa crise trouxe conseqüências que se verificam contemporaneamente, como o drama

jurídico do legislador constituinte, que se vale de normas de direitos acionáveis (direitos

subjetivos) e de normas-princípios ou, normas auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis, sendo

que essas últimas ficarão dependentes da interposição de atuação do legislador

infraconstitucional, que criará normas específicas, instituições e serviços públicos para a plena

satisfação da garantia constitucional.

Outra conseqüência da programaticidade constitucional se consubstancia na

abrangência de toda a esfera material da sociedade, o que o Estado liberal deixara afastado. A

Constituição passa a ser “portadora de uma determinada concepção de vida ou de um

determinado sistema de valores, exprimindo componentes espirituais de uma realidade

cultural: é o conceito de Constituição formulado por Smend” (BONAVIDES, 2005, p. 234).

Os legisladores passam a elaborar as leis dirigidos por tal sistema de valores.

As normas constitucionais que prevêem direitos sociais são vistas como

programáticas, dependendo sempre de uma ação posterior para serem implementadas, ou seja,

não são auto-aplicáveis. Veja-se, por exemplo, a posição de José Reinaldo de Lima Lopes:

Os novos direitos, que aliás nem são tão novos visto que já se incorporaram em diversas constituições contemporâneas, inclusive brasileiras anteriores a 1988, têm característica especial. E esta consiste em que não

são fruíveis, ou exeqüíveis individualmente. Não quer isto dizer que juridicamente não possam, em determinadas circunstâncias, ser exigidos como se exigem judicialmente outros direitos subjetivos. Mas, de regra, dependem para sua eficácia, de atuação do Executivo e do Legislativo por terem o caráter de generalidade e publicidade. Assim é o caso da educação pública, da saúde pública, dos serviços de segurança e justiça, do direito a um meio ambiente sadio, o lazer, a assistência aos desamparados, a previdência social, e outros previstos no artigo 6º., no artigo 7º., sem contar as disposições dos incisos do artigo 170, do artigo 182, do artigo 193, do artigo 225, e muitas outras espalhadas ao longo do corpo de toda a Constituição de 1988. (LOPES, 2002, p. 129) (grifo nosso)

Para Sarlet (2003a) as normas de cunho programático têm, como traço comum, uma

“baixa densidade normativa” ou “uma normatividade insuficiente para alcançarem plena

eficácia”, tendo em vista que estabelecem programas, finalidades e tarefas, dirigidas ao

Estado ou ao legislador para serem concretizadas. Contudo, salienta o próprio autor, todas as

normas de direitos fundamentais, mesmo as de cunho programático, são dotadas de

eficácia jurídica. Assim, sem qualquer intermediação do legislador, tais normas acarretam a

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revogação de atos normativos anteriores e contrários à nova norma constitucional; contêm

imposições que vinculam ao legislador, que não pode se afastar do que foi pré-estabelecido

pela norma; constituem parâmetros de interpretação, integração e aplicação das normas

jurídicas; geram, no mínimo, direito subjetivo na sua dimensão negativa, isto é, possibilita ao

indivíduo exigir do Estado que este se abstenha de atuar contrariamente ao que foi

estabelecido na norma de direito fundamental.

Ricardo Lobo Torres (1989) entende que os direitos correspondentes ao status

positivus libertatis, relacionados à garantia do mínimo existencial35

, efetivados através de

prestações positivas de bens e serviços, não necessitam de regulamentação

infraconstitucional, pois se vinculam à própria organização estatal, sendo as despesas

respectivas cobertas com a arrecadação dos tributos de natureza não-contraprestacional. Essa

é a principal diferença entre os direitos que compreendem o mínimo existencial e os direitos

econômicos e sociais, vez que esses dependem integralmente de regulamentação

infraconstitucional. Assim se manifesta Torres:

As normas constitucionais sobre os direitos econômicos e sociais são meramente programáticas, restringem-se a fornecer as diretivas ou a orientação para o legislador e não têm eficácia vinculante. (...) Os direitos econômicos e sociais existem, como já vimos, sob a “reserva do possível” ou da “soberania orçamentária do legislador”. (TORRES, 1989, p. 44-45).

Entretanto, a Constituição brasileira de 1988 prevê a aplicação imediata de todas as

normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (§ 1°, do art. 5º). Assim, se os direitos

sociais, como o direito à saúde, são considerados direitos fundamentais positivos, as normas

que os regulam na atual Constituição são auto-aplicáveis, ou seja, não dependem de

complementação infraconstitucional.

Analisando as posições acima e o artigo constitucional ora citado, pode-se concluir

que as normas de direito fundamental social são relativamente auto-aplicáveis, isto é, para os

casos citados por Sarlet tais normas possuem eficácia jurídica. Todavia, por serem normas

programáticas não têm plena eficácia, dependendo do legislador infraconstitucional, por

exemplo, para definir o conteúdo de tais direitos e as políticas públicas para o seu exercício.

O problema da eficácia jurídica de normas que prevêem direitos humanos tem origem

na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no preâmbulo das

35 O tema “mínimo existencial” será objeto de análise no item 4.1 deste trabalho. Por ora, deve ser compreendido como o conjunto de prestações materiais, garantido pelo Estado, indispensáveis para assegurar aos indivíduos uma vida digna.

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Constituições francesas e européias e nas demais que incorporaram os direitos do homem em

seu texto. Conforme Cláudio Ari Mello,

Discute-se se esses “direitos” compartilham dos atributos inerentes à categoria de direitos subjetivos, desenvolvida no direito privado, ou se se restringem a ideais filosóficos e culturais, a exortações axiológicas endereçadas ao legislador. Discute-se, enfim, se esses direitos são jurídicos e se podem beneficiar-se da eficácia atribuída às normas jurídicas pelo instrumento da justicialidade. (MELLO, 2001, p. 253)

A positivação dos direitos sociais prestacionais através de normas de cunho

programático apenas se justifica, conforme Sarlet (2003a), devido à sua natureza

competencial, ou seja, são direitos que dependem da disponibilidade de meios e da

implementação e execução de políticas públicas sócio-econômicas.

A conseqüência desse entendimento é que as prestações de direitos sociais não

poderiam ser exigidas judicialmente. Por não serem direitos subjetivos individuais (na sua

dimensão positiva), não se aplica a eles o art. 189 do Código Civil: “Violado o direito, nasce

para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os

artigos 205 e 206”, pois não se sabe responder qual a ação cabível; quem é o seu titular; quem

é o devedor. Assim, a polêmica que se coloca é se os direitos sociais, dependentes de

prestações positivas, podem ser exigidos diretamente com base nas normas constitucionais,

como vem ocorrendo nos tribunais.

Diante desse entendimento, os artigos 6º e 196 da Constituição da República (1988),

que garantem o direito fundamental à saúde, são vistos como normas programáticas e,

portanto, de eficácia limitada. Assim, o direito fundamental à saúde exige norma

infraconstitucional regulamentadora para o seu exercício. Por outro lado, tais normas já estão

vigentes desde 1990, como as Leis n. 8.080 e 8.142.

No caso do art. 196 da Constituição Brasileira (1988), os defensores de que essa

norma seja programática fundam-se no fato de que o direito à saúde implica alocação de

recursos materiais e humanos, dependendo, portanto, da disponibilidade de recursos públicos,

sujeitos à discussão e aprovação pelo legislador infraconstitucional. De acordo com esse

raciocínio, somente mediante planejamento e políticas públicas esse direito social pode ser

efetivado. Aliás, bem clara é sua redação nesse sentido:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (grifos nossos)

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O legislador infraconstitucional (Lei n. 8.080/90) seguiu os ditames da Constituição da

República (1988):

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (grifos nossos)

Essa interpretação já vem sendo adotada, mesmo que em grau mínimo, pelos

julgadores. Em decisão monocrática, a Ministra Ellen Gracie deferiu a suspensão de tutela

antecipada em ação civil pública, que determinava ao Estado de Alagoas o fornecimento de

medicamentos necessários para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e

pacientes transplantados (BRASÍLIA, STF, STA 91, DJU 05/03/2007). Entendeu a ilustre

julgadora, que o art. 196 da Constituição, em princípio, refere-se à efetivação de

políticas públicas na área da saúde para toda a sociedade e não para situações

individuais.

Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados "(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)" (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. (BRASÍLIA, STF, STA 91, Ministra Ellen Gracie, DJU de 05/03/2007). (grifos nossos)

Embora a decisão não mencione “norma programática”, é possível entender que assim

interpretou a Ministra Ellen Gracie quanto ao art. 196, da Constituição da República (1988).

As políticas públicas dependem do Legislativo e do Executivo para serem efetivadas, ou seja,

ao julgar esse caso, a presidente do STF tratou de afastar o entendimento do direito à saúde

como direito público subjetivo, isto é, de caráter individual.

Não se pode esquecer que os direitos sociais, como o direito à saúde, surgiram

juridicamente como forma de proteção aos mais pobres. Para que tais direitos sejam

efetivados, há, realmente, a necessidade da intervenção ativa do Estado através de políticas

públicas dirigidas aos diversos segmentos da sociedade.

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Entretanto, o problema ocorre quando o poder público não realiza essas políticas, pois

as normas de cunho programático que disciplinam direitos sociais não podem ter apenas

função meramente legitimadora, isto é, apenas vigência formal, mas não material. No dizer de

José Eduardo Faria, “servem para conquistar o silêncio, o apoio, a lealdade e a subserviência

dos segmentos sociais menos favorecidos (...)” (2002, p. 99).

Seguindo-se o entendimento de que tais direitos foram incluídos na Constituição

através de normas programáticas, os cidadãos não têm nenhum meio de exigi-los? Não podem

se socorrer do Poder Judiciário quando o Poder Legislativo e o Poder Executivo se omitem no

planejamento e execução das políticas públicas? Essas perguntas ainda precisam ser

respondidas.

3.2.7 O direito à saúde como direito fundamental

Inicialmente cabe clarear a confusão comumente realizada na utilização indistinta das

expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”. Conforme esclarece Sarlet os

direitos fundamentais são também direitos humanos, pois o “seu titular sempre será o ser

humano” (SARLET, 2003a, p. 33). Entretanto, a explicação mais comum para a distinção dos

termos é que:

(...) o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2003a, p. 33-34).

De acordo com essa distinção, o direito à saúde pode ser considerado direito

fundamental (assegurado constitucionalmente), bem como direito humano (reconhecido e

protegido na esfera internacional).

Para Alexandre de Moraes, citado por Luiz Cietto (2002), os “direitos humanos

fundamentais” possuem as seguintes características: imprescritibilidade, inalienabilidade,

irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e

complementariedade.

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50

Os direitos fundamentais passaram por diversas transformações desde o seu

reconhecimento nas primeiras Constituições. Essas mutações se referem ao seu conteúdo,

titularidade, eficácia e efetivação. A evolução histórica levou à clássica classificação dos

direitos fundamentais36 em “gerações”37

Os direitos de primeira dimensão são também chamados de direitos de defesa, já que,

em regra, exigem uma não intervenção ou um não impedimento, por parte do Estado, de uma

ação do cidadão, isto é, compreendem as liberdades clássicas. Os direitos de segunda

dimensão (econômicos, sociais e culturais) estão relacionados aos direitos prestacionais, pois

consistem em uma prestação juridicamente normativa ou material do Estado. Também estão

incluídos como direitos de segunda geração as denominadas liberdades sociais, como o direito

de greve. Os direitos de terceira dimensão (direitos transindividuais; direitos de fraternidade e

solidariedade) destinam-se a proteger grupos humanos, tais como a família, o povo, a nação.

Caracterizam-se pela titularidade coletiva ou difusa, como o direito ao meio ambiente e ao

consumidor, mas a sua efetivação depende de esforços e responsabilidades em escala até

mundial (SARLET, 2003a). Existe, ainda, uma tendência a se reconhecer uma quarta geração

de direitos fundamentais, que está relacionada à bioética e aos avanços dessa área, como a

manipulação genética.

.

O direito à saúde, regra geral, é classificado como direito fundamental de segunda

dimensão38

, estando incluído entre os direitos sociais, por serem esses os que atribuem ao

Estado um comportamento ativo na realização da justiça social, garantido por prestações aos

indivíduos. Mas há quem entenda, ainda, que ele também pode ser classificado como direito

de terceira geração.

36 A classificação dos direitos fundamentais em gerações foi apresentada pelo francês Karel Vasak, em 1979, baseando-se nas fases de reconhecimento dos direitos humanos. Em princípio a classificação foi dividida em três gerações, fundando-se na marca predominante dos eventos históricos e das inspirações axiológicas que a elas deram identidade. Cruz explica que a classificação de Vasak “não passa de uma forma acadêmica de facilitar a reconstrução histórica da luta pela concretização dos direitos fundamentais” (2007, p. 337), reforçando a idéia de Sarlet (2003c) quanto à indivisibilidade dos direitos fundamentais. 37 Existe uma discordância na esfera terminológica quanto aos termos gerações e dimensões dos direitos fundamentais. A trajetória histórica dos direitos fundamentais leva a um processo cumulativo e complementar de direitos, assim, a crítica à expressão gerações se justifica porque o termo equivale à substituição. Ingo Wolfgang Sarlet entende que o termo mais adequado é dimensões: “Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementariedade e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina.” (SARLET, 2003a, p. 50). 38 Germano Schwartz (2001) entende que o direito à saúde, na realidade, pode ser classificado em todas as gerações de direitos fundamentais.

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51

Não se pode negar que a saúde é direito difuso – já que inexiste determinação de seus titulares, e o bem jurídico (a saúde) é indivisível. Logo, é direito difuso, conforme as regras do art. 81, I, do Código de Defesa do Consumidor pátrio, e, portanto, patrimônio da humanidade. A conseqüência é que ninguém pode, em relação a ela, avocar propriedade. (SCHWARTZ, 2001, p. 54).

Os direitos fundamentais também podem ser classificados em direitos de defesa

(negativos) e direitos a prestações (positivos), de acordo com a clássica fórmula de Alexy

(1997)39

Os direitos fundamentais positivos são os direitos sociais, que requerem uma ação do

Estado, comumente efetuada através dos serviços públicos. Assim, os direitos sociais teriam o

exercício limitado, pois sempre dependeriam de regulamentação, além de recursos financeiros

e outros meios materiais, enquanto os direitos fundamentais negativos seriam exercidos

independentemente de qualquer ação estatal

. Os primeiros, também chamados direitos de liberdade ou individuais, se relacionam

com a limitação constitucional ao poder do Estado, permitindo ao cidadão regular condutas

sem a interferência de terceiros e do Estado.

40. Deve-se ressaltar que essa divisão entre

direitos negativos e positivos, fundada no critério econômico, como visto, vem sendo

questionada, mas ainda sim deve ser considerada pela sua relevância prática, obedecendo à

uma dialética da recíproca complementação41. Assim, Sarlet (2003c) firma o posicionamento

de que os direitos fundamentais podem exercer a dimensão defensiva e prestacional,

inclusive, simultaneamente42

39 “De acuerdo com la interpretación liberal clásica, los derechos fundamentales ‘están destinados, ante todo, a asegurar la esfera de la libertad del individuo frente a intervenciones del poder público; son derechos de defensa del ciudadano frente a Estado’. Los derechos de defensa del ciudadano frente al Estado son derechos a acciones negativas (omisiones) del Estado. Pertenecen al status negativo em sentido amplio. Su contrapartida son los derechos a acciones positivas del Estado, que deben ser incluídas em el status positivo em sentido estricto.” (ALEXY, 1997, p. 419)

, dependendo da perspectiva argumentativa defendida em juízo.

Esse também o posicionamento de Cruz, ao explicar que “não há como se pretender apartar os

direitos individuais dos direitos sociais, como, por exemplo, na discussão da extensão das

cláusulas pétreas da Constituição (art. 60, § 4º, inciso IV).” (CRUZ, 2007, p. 337).

40 A presente tese vem sendo questionada, principalmente com base na obra de Stephen Holmes e Cass Sunstein, The Cost of Rights – Why Liberty Depends on Taxes, tendo em vista que todos os direitos, mesmo aqueles considerados negativos, são sempre positivos, pois implicam custos para que se tornem efetivos. Desta forma, conforme afirma Sarlet, há indícios de “uma superação da já clássica distinção traçada entre direitos negativos (ou direitos de defesa) e direitos positivos (direitos a prestações).” (SARLET, 2003c, p. 438). 41 Neste ponto, Cruz (2007) adverte para o fato de que esse entendimento deve se dar nos termos da filosofia da linguagem, superando uma compreensão semântica dos direitos fundamentais e adentrando em uma construção discursiva dos mesmos ao longo do processo de aplicação do Direito. 42 “Assim, por exemplo, o direito à saúde será direito negativo quando se cuida de afastar (direito de defesa) eventuais condutas que venham a violar a saúde das pessoas, mas será direito a prestações (isto é, direito positivo) quando se estiver a considerar um direito de acesso aos serviços e bens na área da saúde.” (SARLET, 2003c, p. 440).

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A fundamentalidade, característica intrínseca dos direitos fundamentais, de acordo

com Alexy, seguido por Canotilho (SARLET, 2003a), possui dois sentidos: formal e material.

A fundamentalidade formal se relaciona ao direito constitucional positivo, isto é, com

a proteção do texto constitucional e, conforme a Constituição de 1988, os direitos

fundamentais possuem as seguintes características: encontram-se no ápice do ordenamento

jurídico, estão submetidos aos limites formais (procedimento legislativo) e materiais

(cláusulas pétreas) da reforma constitucional, são normas de aplicação imediata.

Os direitos fundamentais são caracterizados como elemento constitutivo da

Constituição material, integrando normas sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade.

Tal aspecto caracteriza a fundamentalidade material. Assim, de acordo com Sarlet, “somente a

análise do seu conteúdo permite a verificação de sua fundamentalidade material” (2003a, p.

83). Significa que podem existir outros direitos fundamentais não constantes no catálogo do

art. 5º da Constituição, o que fica bem claro na leitura do § 2°desse artigo. Trata-se de uma

conceituação aberta, mas que permite a adaptação do direito constitucional positivo à medida

que a realidade social e cultural se modifica. Assim, baseado em R. Alexy e mantendo a

abertura material acima descrita, Sarlet propõe a seguinte definição:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo). (SARLET, 2003a, p. 85)

O direito à saúde é direito fundamental. Não só pelo fato de estar expresso na Lei n.

8.080/90 (BRASIL, 1990)43

Pelo aspecto da fundamentalidade formal, o direito à saúde está positivado no texto

constitucional (arts. 6º e 196). No sentido da fundamentalidade material várias justificativas

podem ser trazidas, tais como: a) o direito à saúde está inserido no art. 6º, como direitos

sociais (Capítulo II), ao lado dos direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I), da

nacionalidade (Capítulo III), dos direitos políticos (Capítulo IV) e do regramento dos partidos

políticos (Capítulo V), todos constantes do Título II, nominado por Direitos e Garantias

, mas também no sentido da fundamentalidade formal e material

acima expostos.

43 Lei 8.080/90, art. 2º: A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

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Fundamentais; b) a concepção material aberta prevista no § 2° do art. 5º, permite interpretar

os direitos sociais como direitos fundamentais, uma vez que esses podem estar em qualquer

parte do texto; c) a doutrina internacional reconhece a fundamentalidade aos direitos sociais,

portanto ao direito à saúde. Sueli Dallari, citada por Schwartz (2001), reforça esse fato ao

mencionar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, em seu art. 25, enumera a

saúde como uma das condições necessárias à vida digna, isto é, reconhece o direito humano

fundamental à saúde.

3.2.8 O direito à saúde e o princípio da dignidade da pessoa humana

O fundamento principal de um conceito material dos direitos fundamentais está no

princípio da dignidade da pessoa humana. Aliás, o fato de as modernas Constituições

possuírem capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais é uma grande conquista na

valorização da pessoa humana.

Os direitos fundamentais sociais, conforme Sarlet (2003b), constituem exigência e

concretização da dignidade da pessoa humana, pois o fornecimento das prestações estatais

visa à igualdade e liberdade material, o que, em última análise, trata-se da proteção do

indivíduo contra as necessidades de ordem material e a garantia de uma existência com

dignidade. Significa que o Estado não tem apenas o dever de se abster de condutas ofensivas à

dignidade da pessoa humana, mas, também, o dever de promover esta dignidade. Segundo

Cláudio Ari Mello,

Com os direitos sociais, no quadro de uma sociedade liberal, não se busca uma igualdade material radical, típica do ideal comunista, mas uma igualdade material relativa, que oportunize a máxima isonomia de recursos possível e reduza efetivamente a desigualdade econômica e cultural entre os indivíduos a um nível compatível com a dignidade humana. (MELLO, 2001, p. 244).

A Constituição brasileira de 1988 elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento

do Estado Democrático de Direito, conforme previsão expressa no art. 1º, III, além de ser o

fim buscado pela ordem econômica (art. 170). Dessa forma, a dignidade da pessoa humana

como princípio transmite a idéia de alicerce do sistema jurídico, orientando as normas

jurídicas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua interpretação. No sistema

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jurídico brasileiro a valorização da pessoa humana é a razão fundamental para a estrutura de

organização do Estado e para o Direito.

Não só o Estado, mas toda a ordem comunitária, todas as entidades privadas e os

indivíduos estão vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, tanto na sua

dimensão negativa (dever de abstenção), quanto na dimensão positiva (condutas tendentes a

proteger a pessoa humana).

Embora os requisitos para uma vida com dignidade sejam considerados variáveis

conforme cada sociedade e época, pode-se afirmar que quanto mais vinculados estejam os

direitos sociais ao princípio da dignidade da pessoa humana, tanto mais esses direitos serão

importantes para a efetiva fruição de uma vida digna. Ingo Wolfgang Sarlet formulou uma

conceituação jurídica de dignidade da pessoa humana, nos seguintes termos:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2004, p. 59-60)44

.

Assim, o direito à saúde é indissociável da dignidade da pessoa humana, pois se esse

direito for violado, o próprio direito à existência física e, portanto, o direito à vida, também o

será. De acordo com Guerra e Emerique (2006), o princípio da dignidade da pessoa humana

no Brasil presta-se para o reconhecimento de pretensões essenciais à vida humana, o que vem

ao encontro da garantia do mínimo existencial, como a satisfação de condições mínimas para

uma vida digna.

De acordo com essa idéia, o direito à saúde faz parte desse mínimo existencial, sem o

qual a existência digna de qualquer indivíduo estará ameaçada, bem como o exercício do

direito de liberdade. Entretanto, deve-se esclarecer que a dignidade da pessoa humana não

deve ser interpretada de forma minimalista, a confundir sua materialidade com o mínimo

existencial, que também não pode ser reduzido ao direito de subsistir.

44 No conceito proposto por Sarlet, ao exigir as garantias para condições existenciais mínimas para uma vida saudável, o próprio autor também propõe como critério de vida saudável, por ser um conceito aberto, os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde, referindo-se a um completo bem-estar físico, mental e social. Prevalecendo tal critério orientador, percebe-se a estreita relação entre o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana.

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Tem-se, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana serve de vetor

interpretativo para o direito à saúde, bem como inspira todo o ordenamento jurídico do Estado

democrático de direito no Brasil.

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56

4 O DIREITO À SAÚDE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

Neste capítulo pretende-se analisar os aspectos normalmente defendidos nos tribunais

para conceder ou negar prestações estatais relativas ao direito à saúde, tais como a garantia do

mínimo existencial e a reserva do possível. Objetiva-se também a análise de acórdãos, de

forma exemplificativa, demonstrando como os tribunais vêm interpretando esse direito. Por

derradeiro, será analisada uma nova forma de interpretação dos direitos fundamentais sociais,

a fim de tornar o direito à saúde mais efetivo.

4.1 A garantia estatal do mínimo existencial

O mínimo existencial tem sido compreendido como o conjunto de prestações

materiais, garantido pelo Estado, indispensáveis para assegurar aos indivíduos uma vida

digna. Seu fundamento está nas condições para o exercício da liberdade, pois sem o mínimo

necessário à sobrevivência, o homem não tem, sequer, as condições iniciais da liberdade. A

saúde é elemento imprescindível para a dignidade de qualquer ser humano, sem a qual não há

como desfrutar do direito de liberdade.

A garantia do mínimo existencial tornou-se objeto de análises dos estudiosos

brasileiros há pouco tempo. De acordo com Sarlet (2007), o primeiro ensaio sobre o tema data

de 1989, escrito por Ricardo Lobo Torres.

O tema começou a ser discutido na Alemanha, tendo como primeiro nome na

doutrina o publicista Otto Bachof, no início da década de 1950. Esse autor sustentou “a

possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos

mínimos para uma existência digna” (SARLET, 2007, p. 100). O seu entendimento era no

sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana necessitava, além da garantia da

liberdade, de um mínimo de segurança social, ou seja, recursos materiais para uma existência

digna.

Logo após a formulação de Bachof, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha,

em decisão de 24/06/1954, reconheceu ao indivíduo carente o direito subjetivo de auxílio

material por parte do Estado. O argumento baseava-se no postulado da dignidade da pessoa

humana, tendo em vista que o indivíduo deve ser reconhecido como titular de direitos e

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obrigações, o que constitui, preliminarmente, a obrigação de manutenção das suas condições

de existência. Poucos anos depois o legislador alemão regulamentou em nível

infraconstitucional um direito a prestações no âmbito da assistência social.

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha também consagrou a garantia do

mínimo existencial na década de 1970, reconhecendo a obrigação do Estado, como direito

fundamental, em garantir condições mínimas para uma existência digna, o que integra o

conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito como uma de suas principais

tarefas. Sarlet cita o seguinte trecho da decisão:

certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social. [...] Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos concidadãos, que, em virtude de sua precária condição física e mental, se encontram limitados nas suas atividades sociais, não apresentando condições de prover a sua própria subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições mínimas para uma existência digna e envidar esforços necessários para integrar estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais. (SARLET, 2007, p. 101)

Apesar da posição acima citada, o mínimo existencial pode ser expresso sob dois

aspectos: prestacional e garantístico. O aspecto prestacional é o acima descrito e tem caráter

de direito social, sendo exigível do Estado. O aspecto garantístico diz que alguns direitos

devem ceder perante a garantia de meios que satisfaçam as condições mínimas da existência

digna do indivíduo, como por exemplo, o pagamento de impostos.

Ainda baseada na discussão alemã da garantia estatal do mínimo existencial, a

doutrina sustenta que não é possível quantificar a dignidade e que o valor da prestação

assistencial dirigida a garantir as condições mínimas de existência está condicionado às

flutuações socioeconômico vigentes, bem como às expectativas e necessidades atuais. Por

outro lado, há a certeza de que o mínimo existencial não coincide com a garantia da mera

sobrevivência física45

45 Essa preocupação é para evitar que a concretização dos direitos sociais seja reduzida ao mínimo vital, pois se o entendimento for dirigido nesse sentido, indicando um parâmetro de mínimo existencial próximo ao limiar da pobreza, o que se estará é mantendo as desigualdades sócio-econômicas, o que fere o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

.

Segundo Puccini e Cecílio (2004), o ótimo no provimento de um direito social é sempre um ponto em fuga. O mínimo é “identificado com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção, acompanhado por supressão ou cortes de atendimentos. Já o básico, “expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável ao que a ela se acrescenta. O básico requer investimentos sociais de qualidade que preparem o terreno para o surgimento de outras necessidades, que questionem os limites da própria estrutura social e das relações sociais vigentes.” (PUCCINI e CECÍLIO, 2004, p. 1.349).

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Todavia, se a garantia do mínimo existencial está além da garantia do mínimo vital,

qual é o seu conteúdo? A doutrina e a jurisprudência alemã, segundo Sarlet (2007), entendem

que há várias formas de realizar esta obrigação, deixando ao legislador a tarefa de dispor

sobre a forma da prestação, seu montante, as condições para sua fruição, entre outras

considerações. Nos casos de omissão legislativa, os tribunais é que devem decidir o padrão

existencial mínimo. Neste sentido pode-se citar, no âmbito do direito à saúde, a decisão

proferida pelo STF, na ADPF n. 45, donde se extrai o seguinte trecho:

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. (BRASÍLIA, STF. ADPF 45/MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05/05/2004) (grifos nossos)

Sarlet (2007) relata que, sobre o objeto e conteúdo do mínimo existencial, vem se

firmando posição no sentido de que devem guardar sintonia com uma compreensão adequada

do direito à vida e da dignidade da pessoa humana como princípio constitucional

fundamental. E acrescenta, neste raciocínio, a dignidade da pessoa humana somente estará

assegurada quando a todos for possível uma vida saudável46

A Constituição brasileira de 1988 não previu expressamente a garantia estatal do

mínimo existencial, mas os direitos sociais englobam essa dimensão, ressaltando que devem

ser concretizados além do mínimo vital. Entretanto, como esclarece Sarlet (2007), a previsão

constitucional dos direitos sociais não exclui do mínimo existencial a sua condição de direito-

garantia fundamental autônomo, ou seja, os outros direitos sociais devem ser interpretados

conforme essa garantia.

.

46 “Saudável”, de acordo com o dicionário Aurélio, significa “conveniente à saúde” (FERREIRA, 2004), entre outras explicações relacionadas ao termo saúde.

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Destaca-se também que essa garantia está compreendida em princípios

constitucionais diversos, tais como o da igualdade47

Retornando à controvérsia sobre o objeto e conteúdo do mínimo existencial, outro

fator que influencia essa garantia é a escassez de recursos, que deve ser entendida, de forma

geral, como a incapacidade de satisfazer, simultaneamente, todos os objetivos pretendidos

pelos indivíduos que deles necessitam. Por exemplo, na área da saúde existem filas de pessoas

aguardando órgãos para transplantes. Entretanto, não há órgãos suficientes para atender a

todos simultaneamente, por isso existe uma fila de espera e, à medida que são

disponibilizados, as cirurgias vão acontecendo.

e do respeito à dignidade humana.

Líllian Emerique (2006), baseando-se em Salvador Barberá, entende que posturas

absolutas em relação a qualquer objetivo concreto devem ser abandonadas, devendo-se definir

graus de cumprimento de cada um, incluídos os de satisfação de distintos direitos, permitindo,

assim, arbitrar entre uns e outros em cada momento e, progressivamente, ir aumentando as

cotas de satisfação dos diversos direitos. A autora esclarece ainda, que Salvador Barberá

aceita a existência de mínimos absolutos, isto é, alguns direitos devem ser priorizados. Tal

posicionamento se explica no sentido de que o tratamento diferenciado na concretização dos

direitos só pode se sustentar em sociedades onde as cotas mínimas de satisfação de direitos

estejam garantidas. “Só uma vez solucionadas as situações de pobreza desesperada pode-se ter

políticas distributivas sofisticadas”. (EMERIQUE, 2006, p. 13).

Assim, alguns autores vislumbram um núcleo de direitos que se consubstanciam no

mínimo existencial. Deve-se ressaltar, entretanto, que o mínimo existencial varia no espaço e

no tempo.

Para Torres, “o mínimo existencial é direito protegido negativamente contra a

intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais”

(1989, p. 35). Conforme esse autor, o mínimo existencial é composto pelo status negativus

libertatis, status positivus libertatis e status positivus socialis. Os dois primeiros ligados ao

direito à liberdade: o negativo impede o exercício do poder tributário estatal considerando-se

a situação econômica do indivíduo, como, por exemplo, as imunidades fiscais; o positivo se

consubstancia nos serviços públicos (prestações positivas assistenciais) dirigidos diretamente

47 Segundo Ricardo Lobo Torres, o princípio da igualdade assegura a proteção contra a pobreza absoluta, vez que esta é conseqüência da desigualdade social. “A igualdade, aí, é a que informa a liberdade, e não a que penetra nas condições de justiça, tendo em vista que esta vai fundamentar a política orçamentária dirigida ao combate à pobreza relativa”. (TORRES, 2005, p. 70). Para Torres, a pobreza absoluta deve ser combatida, obrigatoriamente, pelo Estado. A pobreza relativa está relacionada a causas de produção econômica ou de redistribuição de bens e será minorada conforme as possibilidades sociais e orçamentárias. Ressalta ainda o autor, que são expressões sem definição apriorística, pois variam no tempo e no espaço.

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à manutenção da liberdade do indivíduo, tais como: prestação jurisdicional; educação

primária; saúde pública; subvenções e auxílios financeiros a entidades filantrópicas e

educacionais, públicas ou privadas; entrega de bens públicos (roupas, remédios, alimentos)

em casos de calamidade pública ou em programas de assistência à população carente.

Torres (1989) ressalta que não se deve confundir o status positivus libertatis e o

status positivus socialis48. Esse é “constituído pelas prestações estatais entregues para a

proteção dos direitos econômicos e sociais e para a seguridade social” (Torres, 1989, p. 40) e

compreendem o fornecimento de serviço público inessencial (educação secundária e superior,

saúde curativa, moradia, etc.) e subvenções sociais na forma de prestações financeiras em

favor dos mais pobres. A sua concretização depende da situação econômica do país, portanto,

quanto mais rico o Estado, mais abrangentes serão essas prestações49, que, pelo que foi

exposto, não são obrigatórias, no que diferem das prestações do status positivus libertatis,

essas sim, constituindo, para esse autor, direitos públicos subjetivos50

Embora Torres construa um abismo entre a garantia do mínimo existencial e os

direitos sociais, Scaff (2005) vê entre eles vários pontos de contato quando analisa sociedades

periféricas, como a brasileira, devido à sua enorme desigualdade econômica e social. Assim, o

autor se manifesta, reforçando seu pensamento:

.

Neste sentido, é imperioso notar que o conceito de mínimo existencial ancorado no primado da liberdade deve possuir maior amplitude naqueles países que se encontram na periferia do capitalismo. Afinal, só pode exercer com plenitude a liberdade, mesmo no âmbito do mínimo existencial, quem possui capacidade para exercê-la. E para que seja possível este exercício de liberdade jurídica é necessário assegurar a liberdade real (Alexy), ou a possibilidade de exercer suas capacidades (Amartya), através dos direitos fundamentais sociais. (SCAFF, 2005, p. 218).

Assim, Scaff contraria Torres, ao admitir que, para assegurar o mínimo existencial no

âmbito positivo (status libertatis positivus), é necessário que os direitos sociais sejam

48 Ricardo Lobo Torres entende que os direitos sociais não são direitos fundamentais. “Estremam-se da problemática do mínimo existencial os direitos econômicos (arts. 174 a 179 da CF de 1988) e sociais (arts. 6º e 7º), que se distinguem dos fundamentais porque dependem da concessão do legislador, estão despojados do status negativus, não geram por si sós a pretensão às prestações positivas do Estado, carecem de eficácia erga omnes e se subordinam à idéia de justiça social” (TORRES, 1989, p. 33-34). Para o autor citado, direitos fundamentais são apenas os direitos da liberdade, por conseguinte, relacionados ao mínimo existencial nas dimensões negativus libertatis e positivus libertatis. 49 Neste ponto Torres introduz a teoria da reserva do possível, isto é, a efetivação dos direitos relativos ao status positivus socialis está condicionada à situação orçamentária do país, o que não ocorre com as prestações do status positivus libertatis. 50 Assim, o Prof. Fernando Facury Scaff (2005), após estudo do texto de Torres, conclui que os direitos sociais não possuem correlação com o mínimo existencial, uma vez que dependem da política econômica de cada Estado, não gerando direito público subjetivo.

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entendidos como direitos fundamentais. Caso contrário, afirma o autor, “os direitos

fundamentais serão letra morta, pois se configurarão em liberdades jurídicas, sem

possibilidade fática de exercício por grande parte da sociedade” (SCAFF, 2005, p. 219).

Para Sarlet (2003a), o núcleo de direitos que constitui o mínimo existencial

compreende como necessários à garantia de uma existência digna, no mínimo, quatro direitos

fundamentais sociais, consagrados na Constituição brasileira de 1988: salário mínimo,

assistência social, previdência social e saúde. Segundo o referido autor, na base dos direitos

sociais supracitados se encontra a necessidade de preservar a vida humana tanto no aspecto

físico do indivíduo, quanto no aspecto de sobrevivência que atenda aos mais elementares

padrões de dignidade.

Sarlet (2003a) cita também a proposta formulada pelo publicista germânico Dieter

Murswiek, que dividiu as prestações em quatro grupos:

a) prestações sociais em sentido estrito, tais como a assistência social, aposentadoria,

saúde, fomento da educação e do ensino, etc.;

b) subvenções materiais em geral, não previstas no item anterior;

c) prestações de cunho existencial no âmbito da providência social (Daseinsvorsorge),

como a utilização de bens públicos e instituições, além do fornecimento de gás, luz, água,

etc.;

d) participação em bens comunitários que não se enquadram no item anterior, como,

por exemplo, a participação (no sentido de quota-parte), em recursos naturais de domínio

público.

Barcellos (2002) entende que há um núcleo de condições materiais que compõe a

noção de dignidade, isto é, condições elementares necessárias à existência humana (mínimo

existencial). A autora entende como necessário o consenso a respeito do conteúdo mínimo

existencial, tendo em vista as diferentes concepções dentro de uma sociedade pluralista sobre

dignidade humana. Assim, o seu entendimento sobre o conteúdo do mínimo existencial, que

para ela tem o mesmo significado de núcleo material do princípio da dignidade humana,

corresponde:

ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um seu próprio desenvolvimento. (BARCELLOS, 2002, p. 197-198).

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Seguindo esse entendimento, Ana Paula de Barcellos (2002) propõe uma composição

para o mínimo existencial, baseando-se no exame sistemático da Constituição brasileira de

1988, com quatro elementos: educação fundamental, saúde básica, assistência aos

desamparados e acesso à Justiça. Segundo a autora, esse núcleo da dignidade da pessoa

humana possui eficácia jurídica positiva e são reconhecidos pelo Poder Judiciário como

direitos públicos subjetivos.

É possível entender as propostas acima de mínimo existencial com o objetivo de se

evitar a total ineficácia dos direitos sociais, contudo, definir aprioristicamente limites de cada

direito social, bem como prioridade entre eles tendo como parâmetro o mínimo vital, pode

levar à subjetividade de quem se encarregue por tais definições.

Verifica-se, pelo que foi exposto sobre a garantia do mínimo existencial, que o

direito à saúde sempre estará inserido nessas condições indispensáveis à dignidade da pessoa

humana. Entretanto, o problema que continua sem resposta é o conteúdo do mínimo

existencial e, por conseqüência, do direito à saúde, até porque, como demonstrado, sempre

que se trata da efetividade de um direito social, como no caso do direito à saúde, esbarra-se

em questões de cunho financeiro, objeto de estudo no próximo item.

4.2 O problema da reserva do possível

O conceito de “reserva do possível” também é proveniente do direito alemão,

aparecendo pela primeira vez em uma decisão da Corte Constitucional da Alemanha

afirmando que direitos subjetivos a prestações materiais pelo Estado estão sujeitos à

disponibilidade dos seus recursos51

De acordo com Ana Paula de Barcellos, “a expressão reserva do possível procura

identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das

necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas” (2002, p. 236).

. Daí a tendência de negar ao Poder Judiciário a análise de

direitos fundamentais sociais, uma vez que a efetivação de tais direitos depende sempre da

disponibilidade orçamentária, o que está localizado no campo discricionário das decisões

políticas, através da composição dos orçamentos públicos.

51 A decisão mencionada refere-se ao caso numerus clausus. O Tribunal Constitucional Alemão indeferiu o pedido para obrigar o Estado a criar uma quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos. Desta forma, o indivíduo deve reclamar prestação estatal que se mantenha nos limites do razoável.

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No Brasil, há algum tempo vem sendo discutido o problema da escassez de recursos

como um obstáculo para a efetivação de direitos sociais, em específico do direito à saúde,

objeto do presente trabalho.

A discussão ficou mais acirrada com a decisão do Ministro Celso de Mello, no

Supremo Tribunal Federal, da Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental n. 45, publicada em 04/05/2004. O ministro afirmou, categoricamente, que a

cláusula de reserva do possível, como limite à concretização do direito à saúde, por falta de

recursos financeiros, não pode ser invocada pelo Estado para exonerar-se de tal obrigação.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (BRASÍLIA, STF. ADPF 45/MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 05/05/2004)

A crítica que aqui se coloca é à redação do art. 196, da Constituição da República de

1988, mais uma vez transcrito neste trabalho:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Conforme já explicado linhas acima, o direito à saúde tem como diretrizes,

expressamente trazidas na Constituição da República (arts. 196 e 198), o atendimento integral

e o acesso igualitário e universal das ações e serviços de saúde. Também, conforme já

reforçado, a interpretação que mais tem sido aplicada ao art. 196 é de que toda e qualquer

necessidade relativa à saúde, seja a mais simples ou a mais complexa, a menos ou a mais

onerosa, pode ser exigida por qualquer cidadão, seja ele pobre ou rico, criança, adulto ou

idoso. Luiz Cietto faz a seguinte referência ao artigo constitucional em análise:

Este generoso e compreensivo conceito estabelece, desde logo, um compromisso com o princípio da universalidade da prestação dos serviços e ações, e mais, sob os auspícios e responsabilidades estatais. No plano discursivo, o Estado assume os riscos em prol da cidadania e do reconhecimento da saúde como direito social. No campo das realidades fáticas, e diante da frieza assustadora do espectro das possibilidades, seria o caso de se indagar: este dispositivo é viável ou constitui mera utopia? (CIETTO, 2003, p. 94-95)

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Gustavo Amaral, ao abordar o tema do direito universal à saúde e a escassez de

recursos, cita o médico infectologista David Uip, professor da Faculdade de Medicina da USP

e diretor de uma entidade de apoio a aidéticos, que assim se manifestou em entrevista ao

jornal Folha de São Paulo em 29/05/1998:

Acho que isso é um engano de retórica: não há recursos para atender todos com dignidade. Acho que o Estado tem de saber até onde pode chegar, e a sociedade devia ter de se virar para fazer o resto. O modelo já está pronto. (...). Se você tira do SUS as 41 milhões de pessoas que têm plano de saúde, o atendimento para quem fica vai melhorar. (UIP apud AMARAL, 2001, p. 36)

Para que o artigo constitucional ora discutido fosse plenamente efetivado, no sentido

em que é interpretado, necessário seria um país ideal, sem qualquer desigualdade econômica e

social, pois, do contrário, o seu objetivo é inatingível.

A tal conclusão é possível chegar tendo em vista que o direito à saúde, mesmo como

um corolário do direito à vida, sofre limitações, que não são apenas financeiras. Outros

recursos também são escassos para sua efetividade, tais como órgãos para transplante, pessoal

especializado e equipamentos para atendimento a todos.

Conforme Gustavo Amaral (2001, p. 133), “dizer que um bem é escasso significa que

não há o suficiente para satisfazer a todos”. Assim, conseqüência da escassez é a alocação de

recursos, que possui critérios estudados pela justiça distributiva e seus princípios.

O problema da escassez de recursos (não só financeiros, frise-se), não assola somente

o Brasil, como destaca Gustavo Amaral, citando John F. Kilner:

Há hoje um mito, que países prósperos como os Estados Unidos não precisam se preocupar com o problema da seleção de pacientes, já que há recursos suficientes para todos. (...) Outros recursos não financeiros, como órgãos para transplante, são escassos em relação às necessidades. Novas escassezes, ademais, são inerentes ao progresso da tecnologia. Em outras palavras, critérios de seleção de pacientes são desesperadoramente necessários hoje em todos os lugares e continuarão a sê-lo no futuro. (KILNER apud AMARAL, 2001, p. 137).

Mesmo que o país tenha bons recursos financeiros, não pode gastá-los sem

determinados critérios, mesmo que tenha como fundamento o direito à saúde. Um exemplo é

a Inglaterra, como cita Dworkin:

Na Inglaterra, por exemplo, os médicos do sistema nacional de saúde são obrigados a distribuir recursos escassos como máquinas de diálise renal e órgãos para transplante, e têm elaborado diretivas informais que contemplam a idade, o estado geral de saúde, a qualidade de vida e as perspectivas dos possíveis pacientes, bem

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como as perspectivas de cuidados adequados proporcionados pela família ou pelos amigos. (DWORKIN, 2005, p. 447)

Entretanto, no Brasil, o maior problema, com certeza, continua sendo a escassez de

recursos financeiros. Os cidadãos exigem do Estado todo e qualquer tratamento/medicamento

para salvar vidas, uma vez que a Constituição da República (1988) garante este direito no art.

196. Não se importam com o custo do tratamento/medicamento, até porque, “algumas pessoas

podem pensar que quando a saúde e a vida estão em jogo, qualquer referência a custo é

repugnante, ou até imoral”. (AARON & SCHWARTZ apud AMARAL, 2001, p. 136).

A própria ética médica, que garante a liberdade do médico para indicar qualquer

tratamento/medicamento, não importando o seu custo, mas do qual espere resultado positivo

para o paciente, contribui para a escassez de recursos financeiros na área da saúde52

Já foi dito anteriormente que o problema da escassez de recursos não assola somente o

Brasil. Dworkin, na obra “A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade” (2005),

tratando da igualdade no acesso à saúde, ou seja, de uma justiça ideal para a assistência

médica, abre um capítulo para tratar exclusivamente da escassez de recursos financeiros para

a saúde nos Estados Unidos.

.

Conforme a narrativa de Dworkin (2005), há um consenso de que os Estados

atualmente gastam muito com a saúde e que os serviços médicos têm distribuição injusta. Há

cerca de quarenta milhões de americanos que recebem assistência médica inadequada ou não

a recebem. E aqueles que hodiernamente possuem seguro saúde virão a perdê-lo devido ao

desemprego ou serão vítimas de enfermidades não cobertas pelo seguro (DWORKIN, 2005).

Diante de tais considerações o autor americano questiona-se: “Mas quanta assistência

médica uma sociedade razoável deve tornar acessível a todos? (...) Como decidir qual é o

nível mínimo de assistência médica que a justiça exige que até os mais pobres tenham?”

(DWORKIN, 2005, p. 431-432). A pergunta justifica-se, vez que ele entende que uma

assistência médica de padrão muito elevado não pode ser garantida para todos. Assim também

se posiciona Gustavo Amaral:

Escassez, divisibilidade e homogeneidade dos meios materiais desafiam a visão igualitária do tratamento igual para todos. O postulado igualitário de oferecer tudo a todos, como na França, onde há a admissão universal no jardim de infância, pode levar a um custo infactível, se, por exemplo, forem exigidos os padrões noruegueses de relação professor e área por criança. Dilema similar podemos ver no Brasil, onde

52 O Código de Ética Médica expressa bem a liberdade do médico: art. 16º – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital, ou instituição pública, ou privada poderá limitar a escolha, por parte do médico, dos meios a serem postos em prática para o estabelecimento do diagnóstico e para a execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

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há um sistema público de educação que se expande para chegar à universalidade, mas com padrão inferior ao necessário para dar aos alunos igualdade de oportunidades (...). (AMARAL, 2001, p. 135-136)

Dworkin (2005) cita o plano de saúde apresentado ao Congresso pelo então presidente

dos Estados Unidos, Bill Clinton, em 1993. O plano não foi adotado, mas previa uma espécie

de racionamento da assistência médica, oferecendo um pacote básico que estaria garantido

para quase todos. Alguns serviços foram especificados pormenorizadamente: programa

abrangente de vacinação infantil, exames físicos de rotina em intervalos diversos conforme a

faixa etária, mamografia a cada dois anos para mulheres a partir de 50 anos. Por outro lado,

alguns tipos específicos de tratamento foram excluídos do pacote, como a maioria das

cirurgias plásticas estéticas.

Porém, a cláusula de racionamento mais importante era extremamente abstrata,

estipulando “que a assistência médica só fizesse parte do pacote básico se fosse ‘necessária e

apropriada’, e criava o National Health Board (Conselho Nacional de Saúde)” (DWORKIN,

2005, p. 432). O mencionado Conselho é que analisaria quais tipos de tratamentos seriam

necessários e apropriados e em quais circunstâncias.

Críticos ao plano alegavam a sua desnecessidade, por entenderem que há recursos

financeiros suficientes nos Estados Unidos para dar a todas as pessoas todos os tipos de

tratamentos, bastando eliminar os desperdícios e a ganância no sistema de saúde americano

(DWORKIN, 2005). Porém, verifica-se que o maior custo com a saúde deriva dos novos

meios de diagnósticos de alta tecnologia, nem sempre tão benéficos para fundamentar o alto

custo, o que justifica o racionamento.

Para tentar responder aos questionamentos “quanto a sociedade deve gastar com

assistência médica em geral?” e “como se deve distribuir a assistência médica?”, Dworkin

passa a analisar dois princípios para um ideal de justiça na assistência médica:

a) princípio do resgate: denominação criada pelo próprio Dworkin (2005), trata-se da

apologia dos médicos para uma justiça ideal na medicina. De acordo com essa idéia, a vida e a

saúde são os bens mais importantes, conforme definição de René Descartes, devendo os

demais serem sacrificados em favor daqueles. Assim, a assistência médica deve ser

distribuída com eqüidade, não devendo ser negada a ninguém. Esse princípio é totalmente

contrário ao racionamento de assistência médica, pois, à primeira pergunta, a resposta é: gaste

tudo que puder para a melhora da saúde ou expectativa de vida. Entretanto, Dworkin (2005),

entende que hoje essa resposta é inaceitável, vez que a ciência criou formas caríssimas de

assistência médica. Quanto à segunda questão, de acordo com o princípio do resgate,

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aceitando-se o racionamento por necessidade, o seu fundamento não deve ser dinheiro. Assim,

“o impulso igualitário do princípio afirma que a assistência médica deve ser distribuída

segundo a necessidade.” (DWORKIN, 2005, p. 435).

Neste ponto também concorda Gustavo Amaral, que em sua obra Direito, escassez &

escolha (2001) trabalha a alocação de recursos escassos na saúde como escolhas trágicas, pois

a negação de direitos pode levar a grande sofrimento ou, até mesmo, à morte. Segundo

Amaral, “as decisões alocativas são basicamente de duas ordens: quanto disponibilizar e a

quem atender” (2001, p. 148).

b) “seguro prudente” ideal

Com tudo isso, Dworkin tenta mostrar que as próprias pessoas teriam que escolher os

seus planos de saúde, avaliando quais serviços querem receber e o quanto podem pagar. Dessa

forma, conclui que a maioria das pessoas prudentes optaria por um seguro de saúde mais

básico. Assim, o que transforma o sistema de saúde americano em injusto, conforme

Dworkin, é o fato de as pessoas escolherem diversas formas de seguro saúde, com variados

serviços, muitas vezes de alto custo, enquanto outras não conseguem ter acesso ao básico. Por

isso, para Dworkin, “o sistema universal de saúde deve garantir, com toda a justiça, que todos

a tenham” (2005, p. 443).

: nesse princípio, Dworkin, primeiro, tenta imaginar uma

sociedade sem desigualdades, ou seja, “a distribuição de riquezas e rendas seja tão justa

quanto lhe é possível ser” (DWORKIN, 2005, p. 438). Além disso, nessa sociedade

imaginária, a distribuição se faz justa de acordo com a opinião de cada um, seja ela qual for,

mas o autor já adianta que seja um critério mediano, isto é, longe dos extremos entre os ricos

e os pobres. Outra característica dessa sociedade é o conhecimento, por todos, das

informações que só os médicos possuem sobre tratamentos avançadíssimos na medicina. E,

por último, aquelas informações utilizadas pelos seguros-saúde para determinar os seus

preços, como, por exemplo, probabilidade de contrair doença, fossem inexistentes.

Continuando sua reflexão, Dworkin deixa a saúde totalmente para o mercado. O governo não

oferece qualquer tipo de assistência médica e essas despesas não são dedutíveis.

A proposta de Dworkin consiste em um padrão em que haveria certos limites na

cobertura universal. Os valores economizados com a assistência à saúde de tratamentos de

alto custo, numa cobertura universal, seriam aplicados em outras áreas, garantindo melhores

condições de vida para a população, o que poderia, até, evitar tais doenças graves e

complexas, diminuindo o alto custo da saúde.

Esse entendimento corrobora, inclusive, o conceito de saúde proposto pela OMS e

presente na Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990), que vai além da ausência de doenças, uma vez

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que os recursos remanescentes poderiam ser aplicados em alimentação, moradia, saneamento

básico, meio ambiente, trabalho, educação, transporte e geração de renda, que são fatores

determinantes e condicionantes da saúde.

O autor americano também entende que qualquer órgão público encarregado da

supervisão da distribuição de assistência médica deveria decidir quais tratamentos médicos

são necessários e apropriados, devendo fazer parte do pacote básico. Todavia, essas decisões

deveriam ser fundamentadas nas mais recentes documentações médicas e passar

constantemente por reformulações (DWORKIN, 2005).

Assim, pode-se concluir com o próprio Dworkin acerca dos dois padrões:

O princípio do resgate insiste que a sociedade deve oferecer tal tratamento sempre que houver possibilidade, por mais remota, de salvar uma vida. O princípio do seguro prudente equilibra o valor estimado do tratamento médico com outros bens e riscos: presume que as pessoas talvez pensem que levam uma vida melhor quando investem menos em medicina duvidosa e mais para tornar a vida bem-sucedida ou agradável, ou para proteger-se contra outros riscos, inclusive econômicos, que também possam arruinar sua vida. (DWORKIN, 2005, p. 446)

Assim, ao responder às duas perguntas iniciais com o segundo modelo, tem-se para a

primeira: “como nação devemos gastar tanto quanto os indivíduos gastariam, coletivamente,

em tais condições” (DWORKIN, 2005, p. 446); quanto à segunda, “que devemos usar a

despesa agregada para garantir que tenhamos todos, individualmente, o que aquelas pessoas

teriam” (DWORKIN, 2005, p. 447).

A proposta de Dworkin mostra-se viável, a fim de acabar com discussões judiciais no

Brasil sobre o dever do Estado em fornecer todo tipo de tratamento, medicamentos e próteses

requeridos. Como já assinalado linhas acima, os tribunais brasileiros têm firmado posição no

sentido de julgar procedentes tais pedidos, tendo em vista que o direito à saúde é um direito

público subjetivo e a cláusula de reserva do possível, isto é, a escassez de recursos financeiros

não pode ser motivo para não concretizar esse direito, como demonstrado na decisão da

ADPF n. 45/04 (BRASÍLIA, STF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05/05/2004).

Por outro lado, será que o Poder Judiciário está apto a tratar desse tema? A cláusula

da reserva do possível não seria um tema restrito à área econômica? Existem magistrados que

pensam nessa possibilidade, pois, se decidirem favoravelmente ao cidadão, percebem que

estarão interferindo no orçamento estatal, o que é matéria da ordem do Poder Executivo e

Legislativo, discutida e disposta em lei.

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CONSTITUCIONAL - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO - ILEGITIMIDADE PASSIVA ESTADO E MUNICÍPIO - NÃO CARACTERIZAÇÃO - AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR - INOCORRÊNCIA - DIREITO À SAÚDE - APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA DISTRIBUTIVIDADE E DA SELETIVIDADE - INDEFERIMENTO. - Tanto o ente estatal quanto o municipal possuem legitimidade para figurarem no pólo passivo da ação de fornecimento de medicamento, haja vista que, o direito à saúde é prestado aos cidadãos através de um sistema único, integrado por uma rede regionalizada e hierarquizada, composta por todos os entes federados, em que o poder é descentralizado. Não há que se falar em ausência de interesse processual, quando se encontra presente o binômio necessidade-utilidade do provimento jurisdicional. Para a concretização do direito à saúde o poder público deve agir seletiva e distributivamente, não sendo possível ao magistrado determinar que o ente estatal suporte os custos de medicamentos que não foram previamente selecionados mediante critérios técnicos que indicam as necessidades mais prementes da população, sob pena de o Judiciário imiscuir-se na esfera de competência do Legislativo e do Executivo, interferindo no orçamento dos entes estatais e até mesmo na política de distribuição de saúde a todos os cidadãos, priorizando o direito de uns em detrimento do de muitos. (MINAS GERAIS, TJ. Ap. 1.0439.05.047806-4/001, Rel. Juiz Dídimo Inocêncio de Paula, DJ de 08/11/2007) (grifos nossos).

Ao realizar as políticas públicas determinadas pela legislação constitucional e

infraconstitucional, o poder público necessita de planejamento, que consiste em estudos

prévios e deliberações dos representantes de diferentes áreas, a fim de determinar as ações que

serão atendidas com o orçamento disponível. Assim também é feito na área da saúde.

Exemplo disso são os planos de saúde elaborados pelo Poder Executivo, entre eles, o de Belo

Horizonte (Plano Municipal de Saúde de Belo Horizonte - PMS-BH) para o quadriênio

2005/2008, o qual será analisado no item sobre planejamento estatal, neste trabalho. Outro

exemplo consiste na relação de medicamentos disponíveis gratuitamente pelo SUS (Portaria

n. 2.577/GM, de 27/10/2006, que aprova o Componente de Medicamentos de Dispensação

Excepcional). De acordo com a portaria citada, o objetivo é disponibilizar medicamentos no

âmbito do SUS para tratamentos que sigam os critérios a seguir:

a) doença rara ou de baixa prevalência, com indicação de uso de medicamento de alto

valor unitário ou que, em caso de uso crônico ou prolongado, seja um tratamento de custo

elevado; e

b) doença prevalente, com uso de medicamento de alto custo unitário ou que, em caso

de uso crônico ou prolongado, seja um tratamento de custo elevado desde que:

b.1 - haja tratamento previsto para o agravo no nível da atenção básica, ao qual o

paciente apresentou necessariamente intolerância, refratariedade ou evolução para quadro

clínico de maior gravidade, ou

b.2 - o diagnóstico ou estabelecimento de conduta terapêutica para o agravo estejam

inseridos na atenção especializada.

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Importante ressaltar que a mesma Portaria estabelece critérios para a inclusão de novos

medicamentos na relação, o que reafirma a necessidade de estudos e discussão sobre a

matéria:

8. A avaliação quanto à incorporação de novos medicamentos ocorrerá a partir dos preceitos da Medicina Baseada em Evidências e deverá demonstrar a eficácia e segurança do medicamento, além de vantagem com relação à opção terapêutica já disponibilizada (maior eficácia ou segurança ou menor custo) e/ou oferecer concorrência dentro de um mesmo subgrupo, como estratégia reguladora de mercado. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2006)

Significa dizer que, às vezes, é impossível ao magistrado determinar que o Poder

Executivo forneça determinados medicamentos, pois lhe faltam conhecimentos técnicos. Tal

afirmativa pode ser ilustrada pela reportagem “Super remédios para quem?”, da revista Época

(SEGATTO, 2005). A matéria trouxe a questão sobre os novos medicamentos, de alto custo,

como esperança para a cura ou sobrevida de muitas pessoas. Mas quem deveria pagar a conta

de tais medicamentos?

Os mais importantes congressos médicos internacionais têm revelado o surgimento de uma terceira medicina, baseada em drogas altamente inovadoras, eficazes e com poucos efeitos colaterais - porém, acessíveis apenas aos muito ricos. Para ter acesso a elas, o cidadão comum tem poucas opções: exigi-las da saúde pública, por meio de processos na Justiça, ou buscá-las através de estudos clínicos nas instituições de ponta. (...) O debate sobre o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado torna-se ainda mais acirrado quando a questão envolve as chamadas doenças raras, que afetam poucos brasileiros, mas podem ser tratadas com drogas que custam uma fábula. Um exemplo é a hipertensão pulmonar, que acomete um ou dois pacientes a cada milhão de habitantes, segundo estatísticas internacionais. Um dos poucos recursos é o transplante de pulmão, mas a maioria dos pacientes morre na fila. Outra opção é o tratamento com Tracleer, da Actelion, remédio ainda não comercializado no Brasil porque o fabricante e o Ministério da Saúde não chegaram a um consenso sobre o preço. Nos Estados Unidos, o custo médio mensal do tratamento é de US$ 3.500. O remédio não cura, mas aumenta a sobrevida do paciente em até três anos e garante qualidade de vida. Em todas as instâncias do Poder, quem administra os recursos da Saúde tem em mente a seguinte questão: com o dinheiro destinado ao tratamento de um único paciente, quanto eu poderia comprar de sulfato ferroso para acabar com a anemia de uma enorme parcela da população? De fato, indagações desse tipo norteiam a construção de políticas de saúde - mas não fazem sentido no âmbito individual. Quem sofre de uma doença quer usufruir o direito ao tratamento garantido pela Constituição, tenha uma moléstia raríssima ou o mais banal dos resfriados. A artista plástica Maria do Rosário Costa Mauger conseguiu na Justiça o fornecimento do Tracleer, que tem de ser importado e fornecido pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. ''Com apenas um mês de tratamento voltei a subir escadas e a reviver de fato'', diz. (SEGATTO, 2005)

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Essa citação é apenas para demonstrar que as decisões judiciais no sentido de

obrigarem o Estado a fornecer qualquer tipo de medicamento, tratamento ou aparelho/prótese,

por entender que o direito à saúde é um direito individual, como acima já foi tratado, leva a

sérias conseqüências de ordem financeira estatal, uma vez que o ente federado prepara-se para

determinadas despesas na área da saúde e passa a ter outras ordenadas pelo Judiciário. Esse é

o verdadeiro sentido da reserva do possível. Por outro lado, se for verificado que o ente estatal

não está destinando o mínimo de recursos previsto constitucionalmente para a saúde pública,

aí sim é defensável que o Poder Judiciário condene o ente inadimplente a prestar os serviços

indispensáveis.

Assim, a cláusula de reserva do possível não pode ser compreendida como obstáculo

para a efetividade do direito à saúde pelo Poder Judiciário e, sim, como parâmetro para que o

juiz tenha cautela, prudência e responsabilidade quando estiver diante da omissão da

Administração Pública, verificando se a prestação exigida pelo cidadão é razoável (dentro dos

critérios de mínimo existencial e reserva do possível) em relação ao que se pode esperar do

Estado para atendê-la.

4.3 O direito à saúde nos tribunais

No decorrer deste trabalho já foram analisados vários pontos levantados como

problemas para se reclamar judicialmente a efetividade do direito à saúde.

Um deles é o entendimento de que as normas que regulam direitos sociais

prestacionais devam ser qualificadas como leges imperfectae ou, ainda, que tais direitos

podem ser considerados direitos relativos, porque geram direitos subjetivos apenas com base

na legislação infraconstitucional regulamentadora. Dessa forma, o direito à saúde não seria

um direito subjetivo originário da Constituição de 1988, mas o art. 196 deveria ser entendido

como norma programática. A corrente contrária, que vem se mostrando majoritária, é no

sentido de interpretar o direito à saúde como direito público subjetivo, podendo qualquer

indivíduo exigir do Estado todas as prestações necessárias para a promoção e/ou recuperação

de sua saúde.

Outra dificuldade é a falta de conteúdo do direito à saúde, isto é, não se sabe quais as

prestações que o Estado realmente deveria fazer para garantir tal direito. Assim, na maioria

dos casos, o Poder Judiciário defere os pedidos para não ser considerado o vilão desta história,

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mas alguns magistrados já vêm admitindo decisões contrárias, no sentido de limitar as

prestações a que o Estado está obrigado, como, por exemplo, no caso dos medicamentos

restritos às listas do Ministério da Saúde.

Por outro lado, a escassez de recursos financeiros, mas não se esquecendo que existem

outras necessidades no SUS, como mão-de-obra especializada e equipamentos modernos, é

outro obstáculo que se coloca frente ao Poder Judiciário, pois ao deferir tais pedidos interfere

no planejamento orçamentário realizado pelos Poderes Executivo e Legislativo, o que é

considerado como violação do princípio da separação de poderes.

Diante disso, pretende-se, neste tópico, analisar como o Poder Judiciário vem se

manifestando frente aos pedidos de efetivação do direito à saúde, através de alguns acórdãos

colacionados.

O primeiro aspecto, relacionado à eficácia do art. 196 da Constituição, leva a duas

posições: uma no sentido de que se trata de norma programática, ou seja, de baixa eficácia,

não gerando direito subjetivo a prestações; a segunda, de que o direito à saúde é direito

público subjetivo, originário da própria Constituição, tratando-se de direito fundamental

social.

No primeiro caso (norma programática), pode ser citada a decisão da Ministra Ellen

Gracie, no processo de Suspensão de Tutela Antecipada (STA) n. 91, da qual se extrai o

seguinte trecho:

Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados "(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)" (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. (BRASÍLIA, STF. STA 91, Min. Ellen Gracie, DJ de 05/03/2007).

Para a segunda posição, direito à saúde como direito público subjetivo, entre tantas

decisões, pode ser citada a do STF, da lavra do Ministro Celso de Mello, no Agravo

Regimental no Recurso Extraordinário n. 393.175-0/RS, cuja ementa é bem detalhada:

PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR

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RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes. (BRASÍLIA, STF. RE-AgR. 393175-0/RS, DJ de 02/02/2007) (grifos nossos).

Quanto ao segundo obstáculo indicado para a concretização do direito à saúde, isto é,

o conteúdo das prestações estatais, interessante é a decisão da 22ª Câmara Cível do Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Sul, que provoca a necessidade de limitação ao conteúdo do

direito à saúde no que concerne ao fornecimento de medicamentos.

SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. RELAÇÃO NACIONAL. LISTA DO GESTOR ESTADUAL DO SUS. 1. Segundo a Constituição da República, o direito à saúde efetiva-se (I) pela

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implantação de políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doenças e (II) pelo acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, assegurada prioridade para as atividades preventivas. 2. O direito social à saúde, a exemplo de todos os direitos (de liberdade ou não) não é absoluto, estando o seu conteúdo vinculado ao bem de todos os membros da comunidade e não apenas do indivíduo isoladamente. Trata-se de direito limitado à regulamentação legal e administrativa diante da escassez de recursos, cuja alocação exige escolhas trágicas pela impossibilidade de atendimento integral a todos, ao mesmo tempo, no mais elevado standard permitido pela ciência e tecnologia médicas. Cabe à lei e à direção do SUS definir seu conteúdo em obediência aos princípios constitucionais. 3. O serviço público de saúde está sujeito a apenas um regime jurídico descentralizado no qual as ações e as atividades são repartidas entre os entes da Federação. 4. No âmbito do SUS, a assistência farmacêutica compreende os medicamentos essenciais (RENAME) e os medicamentos excepcionais constantes das listas elaboradas pelo Ministério da Saúde. Em princípio, não tem a pessoa direito de exigir do Poder Público medicamento que não consta do rol das listas elaboradas pelo SUS, balizadas pelas necessidades e disponibilidades orçamentárias. 5. A distribuição dos medicamentos obedece à descentralização. Compete ao Estado do Rio Grande do Sul o fornecimento dos medicamentos excepcionais constantes da Portaria nº 2.577/06 do Ministério da Saúde e os especiais constantes da relação da Portaria nº 238, de 2006, da Secretaria Estadual da Saúde. Aos Municípios compete o fornecimento dos medicamentos essenciais constantes da Portaria 2.475/2006 do Ministério da Saúde (RENAME). Recurso provido em parte. (RIO GRANDE DO SUL, TJ. AI 70021991948, Rel. Juíza Maria Isabel de Azevedo Souza, DJ de 19/12/2007) (grifos nossos)

Entretanto, a maioria das decisões continua sendo no sentido de interpretar o art. 196

da Constituição da forma mais abrangente possível, como se nota, apenas

exemplificativamente, entre tantos que poderiam ser aqui arrolados, o acórdão da 7ª Câmara

Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, contrariando totalmente a decisão do tribunal

gaúcho, acima citada:

APELAÇÃO CÍVEL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO, DOS ESTADOS E DO MUNICÍPIO. SAÚDE. DIREITO GARANTIDO CONSTITUCIONALMENTE. LIMITAÇÃO POR PORTARIA. DESCABIMENTO. - Excepcionalmente, a demanda proposta como cautelar pode ser processada e julgada com caráter de processo cognitivo, independente da propositura de ação principal, quando demonstrado o conteúdo satisfativo do provimento buscado. - A responsabilidade dos entes políticos com a saúde e a integridade física dos cidadãos é conjunta e solidária, podendo a parte necessitada dirigir seu pleito ao ente da federação que melhor lhe convier. - Comprovada a imprescindibilidade de utilização de determinado medicamento por pessoa necessitada, este deve ser fornecido de forma irrestrita, sendo que a limitação do atendimento a determinadas moléstias previamente definidas em Portaria ofende o direito à saúde, garantido constitucionalmente, que deve ser amplo e integral. (MINAS GERAIS, TJ. Ap. 1.0439.05.043594-0/001, Rel. Juíza Heloísa Combat, DJ de 16/10/2007) (grifos nossos)

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A escassez de recursos, em geral definida no âmbito financeiro como “reserva do

possível”, como já afirmado anteriormente, vem sendo objeto de constantes discussões pelos

juristas, podendo-se verificar claramente a divergência entre os tribunais. A paradigmática

decisão do Ministro Celso de Mello, na ADPF n. 45, não poderia deixar de ser citada, em

primeiro lugar, neste trabalho. Sua ementa configura-se conforme abaixo:

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). (BRASÍLIA, STF. ADPF 45/MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 05/05/2004)

Assim, a posição do Supremo Tribunal Federal é no sentido de não poder limitar os

direitos vinculados ao mínimo existencial com o argumento da cláusula de reserva do

possível, o que vem sendo seguido por muitos tribunais, como o de Minas Gerais na decisão

da 5ª Câmara Cível, cuja ementa é:

CONSTITUCIONAL. OMISSÃO DO PODER EXECUTIVO NO FORNECIMENTO DE SERVIÇO DE RELEVÂNCIA PÚBLICA DE TRANSPORTE DE DOENTES. DETERMINAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PARA CUMPRIMENTO DE DEVER CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DE PODERES E À CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL. O Ministério Público, como defensor dos interesses da sociedade perante o Estado, possui legitimidade para zelar pelo efetivo cumprimento dos serviços de relevância pública assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (art. 129, inciso II cumulado com art. 197, da CF). Ademais, a sua atuação para assegurar a prestação de serviço de relevância pública encontra amparo no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e nos direitos sociais fundamentais à vida e à saúde. Um pedido, que concretiza objetivos, princípios e direitos fundamentais da República e que se harmoniza com o Estado Social e Democrático de Direito, consagrado pela Constituição da República de 1988, não pode ser considerado juridicamente impossível. A judicialização de política pública, aqui compreendida como implementação de política pública pelo Poder Judiciário, harmoniza-se com a Constituição de 1988. A concretização do texto constitucional não é dever apenas do Poder Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário. É certo que, em regra a implementação de política pública, é da alçada do Executivo e do Legislativo, todavia, na hipótese de injustificada omissão, o Judiciário deve e pode agir para forçar os outros poderes a cumprirem o dever constitucional que lhes é imposto. A mera alegação de falta de recursos financeiros, destituída de qualquer comprovação objetiva, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao Município de Teófilo Otoni de prestar serviço de relevância pública correlacionado com a área de saúde. Assim, a este caso não se aplica à cláusula da Reserva do

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Possível, seja porque não foi comprovada a incapacidade econômico-financeira do Município de Teófilo Otoni, seja porque a pretensão social de transporte público na área de saúde se afigura razoável, estando, pois, em plena harmonia com o devido processo legal substancial. Louve-se a atuação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais na defesa permanente dos direitos sociais da população carente que, por ser menos favorecida do ponto econômico, social, político e cultural, é constante esquecida pelos donos do poder, sendo apenas lembrada em épocas eleitorais. (MINAS GERAIS, TJ. Ap. 1.0686.02.040293-5/001, Rel. Juíza Maria Elza, DJ de 12/11/2004).

O acórdão supracitado enaltece o Ministério Público e o Poder Judiciário como

“verdadeiros salvadores da pátria” no Estado Democrático de Direito. Entretanto, embora

importante para a salvaguarda de direitos fundamentais, como o direito à saúde, a função do

Ministério Público deveria ser a de, primeiro, fiscalizar o cumprimento das prestações

necessárias, bem como o uso adequado do orçamento e, se for constatado o descumprimento

ou desvio dos recursos financeiros, aí sim deve atuar para a concretização do direito

fundamental não satisfeito. Já o Poder Judiciário tem a função de julgar, no caso de direitos

sociais, obedecendo a critérios de possibilidade e razoabilidade, a fim de que o Estado venha a

atender o maior número de pessoas53

Decisões mais recentes vêm denegando o direito à saúde com base na cláusula de

reserva do possível, tendo em vista que a judicialização de políticas públicas causa transtornos

ao orçamento dos entes estatais. Esse foi o entendimento dos desembargadores da 3ª Câmara

Cível do Tribunal de Justiça mineiro:

.

CONSTITUCIONAL - APELAÇÃO - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO E TRATAMENTO - DIREITO À SAÚDE - APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA DISTRIBUTIVIDADE E DA SELETIVIDADE - INDEFERIMENTO- Para a concretização do direito à saúde o poder público deve agir seletiva e distributivamente, não sendo possível ao magistrado determinar que o ente estatal suporte os custos de medicamentos que não foram previamente selecionados mediante critérios técnicos que indicam as necessidades mais prementes da população, sob pena de o Judiciário imiscuir-se na esfera de competência do Legislativo e do Executivo, interferindo no orçamento dos entes estatais e até mesmo na política de distribuição de saúde a todos os cidadãos, priorizando o direito de uns em detrimento do de muitos. (MINAS GERAIS, TJ. Ap. 1.0024.05.773780-1/001, Rel. Juiz Manuel Saramago, DJ de 13/12/2007) (grifos nossos)

53 Neste aspecto pode-se fazer referência a Kelsen (2003), ao se manifestar sobre o problema de configuração da função jurisdicional. Assim, alerta para o fato de que, se o objetivo é restringir o poder dos tribunais e, consequentemente, seu caráter político, o legislador deve “limitar o máximo possível a discricionariedade que as leis concedem à utilização daquele poder.” (KELSEN, 2003, p. 262). E acrescenta que as normas constitucionais definidoras de conteúdo de leis futuras, principalmente sobre direitos fundamentais, não devem ser formuladas em termos demasiado gerais, a despeito de uma transferência de poder do legislativo para o judiciário.

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Nesse acórdão deve-se ressaltar o voto do Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula,

contrariando o voto vencido do relator, do qual se destaca a seguinte parte:

Neste quadro, tenho que a questão relativa à condenação do Estado ao fornecimento de medicamentos aos administrados deve ser apreciada com a maior cautela possível, pois indubitavelmente envolve a priorização de alguns direitos em detrimentos de outros. Por essa razão, revisando meu anterior posicionamento e a despeito do majoritário entendimento jurisprudencial em sentido contrário, entendo inviável a determinação judicial para que o ente público forneça a determinada pessoa medicamentos não integrantes da lista básica do SUS, pois implicaria no privilégio do direito de um em detrimento do de muitos. Ressalte-se que não se está aqui a ignorar o caráter fundamental do direito à saúde. É preciso ter em mente, todavia, que ao se opor esse direito ao poder público, não se pode deslembrar das necessidades de toda uma comunidade, sob pena de restar violado o princípio da isonomia. (grifos nossos)

Constata-se que os juízes começam a se preocupar com a extensão que suas decisões

podem ter em relação às demais prestações estatais, também imprescindíveis para a

sociedade, muitas, inclusive, relacionadas ao próprio direito à saúde.

Com a demonstração das decisões judiciais acima citadas, pode-se verificar a

divergência que paira entre os tribunais no que se refere ao direito à saúde. Dúvidas como as

indicadas no início deste tópico são solucionadas de forma diversificada, com decisões em

sentidos diferentes, o que favorece alguns e prejudica outros. É certo que cada caso deve ser

analisado individualmente, com base nas provas levadas aos autos, havendo sempre uma

resposta adequada para cada um. Mas o que se tem visto nos tribunais, em geral, é a

prevalência de uma determinada posição, com acórdãos de redação idêntica às decisões

anteriormente adotadas, identificando-se com o sistema judicial americano de precedentes54

.

4.3.1 Formas de se defender judicialmente o direito à saúde

54 Pode-se exemplificar com o voto do Min. Celso de Mello no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286-8/RS: “Nem se diga, de outro lado, que a decisão ora questionada – notadamente quanto à alegada ofensa aos arts. 2º e 198, parágrafo único, ambos da Constituição Federal – estaria em desconformidade com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal no exame desse específico aspecto da questão. Cabe referir, neste ponto, que tais argumentos, deduzidos e ora renovados pela parte agravante, já foram repelidos em sucessivas decisões proferidas por eminentes Juízes desta Colenda Turma, no julgamento de outras causas idênticas à que emerge do processo em análise (...).” (BRASÍLIA, STF, REAgR 271.286-8, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 24/11/2000). (grifos nossos)

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Embora o direito à saúde seja classificado como direito social, voltado, portanto, para

atender a toda sociedade, os indivíduos, interpretando-o como direito público subjetivo,

ajuízam ações individuais para garanti-lo.

Algumas dessas ações são propostas pelo procedimento ordinário com pedido de tutela

antecipada e, outras, através do mandado de segurança, com o entendimento de que o direito à

saúde é líquido e certo, havendo violação pelo secretário de saúde municipal ou estadual

quando um serviço ou medicamento não é fornecido ou não há leito hospitalar disponível para

internação.

Conforme já afirmado acima, o direito à saúde é um direito social. Portanto, sua

interpretação deve ser diferenciada daquela relacionada à violação de um direito individual,

tal como um direito obrigacional ou de propriedade, por exemplo. Schwartz cita Cruz, que

assim se manifesta:

O controle social sobre as ações e serviços de saúde pode ser exercido de diferentes maneiras; todavia, é necessário compreender que esse é um processo de interesse coletivo, no qual cada um deverá cumprir a sua parte em benefício do bem comum. A mobilização popular é o instrumento maior de alcance de controle social. No caso específico da saúde, o controle social efetiva-se tanto por meio dos órgãos encarregados das garantias individuais e coletivas, como por instrumentos legais. (CRUZ apud SCHWARTZ, 2001, p. 122)

Assim, quais meios judiciais devem ser utilizados para garantir o direito à saúde

quando o Estado não cumpre sua função?

Para aqueles que consideram o direito à saúde como direito individual55

Em caráter coletivo, o que se considera mais viável para atingir a finalidade de um

direito social, isto é, a correção das desigualdades sociais, o direito à saúde pode ser

defendido em mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, CF/88). São legitimados ativos

os partidos políticos com representação no Congresso Nacional e as organizações sindicais,

entidades de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um ano, em defesa

dos interesses de seus membros ou associados. O seu objetivo é impossibilitar a execução de

ameaça contra direito ou anular ato ilegal violador de direito.

, Schwartz

(2001) indica o habeas corpus, o mandado de segurança individual, o mandado de injunção

individual e o habeas data, dependendo do caso, para obter a garantia desse direito. Além

desses meios, o autor cita ainda a representação ao Ministério Público e os institutos de defesa

previstos no Código de Defesa do Consumidor, como a inversão do ônus da prova.

55 Não é o caso da posição defendida neste trabalho, uma vez que a todo tempo defende-se o direito à saúde como direito fundamental social.

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O mandado de injunção coletivo (art. 5º, LXXI, da CR/88)56

Instrumento processual próximo ao mandado de injunção é a ação direta de

inconstitucionalidade por omissão, prevista na Constituição da República, em seu art. 102, I,

a, combinado com o art. 103, § 2°

é o meio de se efetivar

direito social quando inexiste norma regulamentadora, isto é, a falta da legislação inviabiliza

seu exercício. Pode ser impetrado por sindicatos e entidades de classe. De acordo com

Cittadino, o objetivo do mandado de injunção “é a aplicabilidade da justiça por eqüidade, a

decisão do juiz como o instrumento de integração entre a omissão pública e o cidadão no caso

concreto” (2000, p. 51).

57

O mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão são

meios judiciais para obrigar o poder público (Legislativo e Executivo) a prestações de cunho

normativo. A maior diferença entre os dois institutos processuais é que o mandado de

injunção possui sentença com efeito inter partes. Já a ação direta de inconstitucionalidade por

omissão opera efeitos erga omnes.

. Sua finalidade é advertir o poder público (Legislativo e

Executivo) para que pratique o ato necessário, a fim de dar plena eficácia à norma

constitucional.

Existia, já na Assembléia Nacional Constituinte, uma enorme preocupação em se

efetivar os direitos sociais que seriam expressamente garantidos na Constituição de 1988.

Quando o Senador Ruy Barcelar propôs a sugestão de norma constitucional n. 367-1, de

03/04/87, inserindo o mandado de injunção, a justificativa que a acompanhou foi:

Não basta a mera enunciação de direitos na carta constitucional. De que, na realidade, adianta ao cidadão que a lei suprema do País declare, expressamente, o direito, por exemplo, à educação ou à saúde, se o Estado não é compelido a pôr em prática o mandamento constitucional. (CITTADINO, 2000, p. 52-53).

Assim, o mandado de injunção tem por finalidade a concretização do direito, pelo

Poder Judiciário, sem a norma regulamentadora, enquanto a ação direta de

inconstitucionalidade por omissão é apenas uma advertência.

56 Art. 5º (...), LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; (BRASIL. Constituição, 1988). 57 Art. 103 (...), § 2°: Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. O mandado de injunção, os direitos sociais e a justiça constitucional. (BRASIL. Constituição, 1988)

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Entretanto, o mandado de injunção teve sua utilização frustrada após o julgamento do

Mandado de Injunção n. 107-DF, pelo STF, cujo relator foi o ex-Ministro Moreira Alves58

Essa postura tende a se modificar. No Mandado de Injunção n. 721-DF, julgado pelo

STF, o Min. Marco Aurélio expressou a real natureza mandamental desse instrumento,

concedendo à impetrante o exercício do direito pretendido

,

sob o fundamento de que esse instrumento visava obter do Poder Judiciário a declaração de

inconstitucionalidade da omissão verificada, cientificando o Poder, órgão, entidade ou

autoridade competente pela sua mora. Alegou, ainda, expressamente na decisão, que o

mandado de injunção se assemelha à ação de inconstitucionalidade por omissão, atribuindo-

lhe natureza meramente declaratória.

59

No caso do direito à saúde, a utilização do mandado de injunção coletivo pode se dar

na falta de medidas necessárias à efetividade desse direito, ou seja, na falta de políticas sociais

e econômicas previstas no art. 196 da Constituição (1988). A omissão do poder público, neste

caso, pode ser total, quando nenhuma providência é adotada, ou parcial, quando a medida

efetivada é insuficiente.

.

A ação civil pública, entre outras finalidades, visa suprir a omissão ou lacuna de

políticas públicas, através de medidas judiciais objetivando a defesa dos interesses ou direitos

difusos e para a proteção de interesses coletivos60

58 Cf. BRASÍLIA, STF. MI 107-DF, Rel. Min. Moreira Alves, publicado no DJ de 02/08/1991. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=107.NUME.+E+$MI$.SCLA.&base=baseAcordaos>.

e individuais homogêneos. Os legitimados

ativos são: Ministério Público (art. 129, III, da CR/88 e Lei n. 7.347/85), União, Estados,

Distrito Federal, Municípios, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia

mista ou associação civil legalmente constituída há pelo menos um ano e que inclua entre suas

finalidades institucionais a proteção aos interesses difusos e coletivos. A partir de 16/01/2007,

59 Ementa: “MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO - DECISÃO - BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS - PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral - artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91.” (BRASÍLIA, STF. MI 721-DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 30/11/2007). 60 O direito à saúde é considerado direito difuso e coletivo (direitos transindividuais). Conforme Germano Schwartz “Não se pode negar que a saúde é direito difuso – já que inexiste determinação de seus titulares, e o bem jurídico (a saúde) é indivisível. Logo, é direito difuso, conforme as regras do art. 81, I, do Código de Defesa do Consumidor pátrio, e, portanto, patrimônio da humanidade.” (SCHWARTZ, 2001, p. 54). O Código de Defesa do Consumidor ainda traz, no seu art. 81, o que se deve entender por interesses ou direitos coletivos e interesses ou direitos individuais homogêneos.

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com a publicação da Lei n. 11.448, que alterou o art. 5º da Lei n. 7.347/85, a Defensoria

Pública também se tornou legitimada ativa para propor a ação civil pública61, o que significa

maior acesso à justiça, principalmente aos cidadãos que apresentam insuficiência de recursos,

conforme preceituam os artigos 5º, LXXIV e 134 da Constituição brasileira62

Assim, se o direito à saúde é considerado um direito transindividual, bem como suas

ações e serviços são considerados de relevância pública (art. 197, CR/88) é obrigação do

Ministério Público atuar em sua defesa. Portanto, é pacífico o entendimento de que o

Ministério Público possui legitimidade para promover ação civil pública em prol da saúde

.

63

Deve haver um estreito diálogo entre os Conselhos de saúde e o Ministério Público, a

fim de fiscalizar os gastos com as ações e serviços de saúde

.

64

A posição neste trabalho é de que os direitos sociais devem ser interpretados de forma

que sua efetividade enseje a diminuição da desigualdade social, alcançando a almejada justiça

social. O direito à saúde pode ser pleiteado individualmente ao Poder Judiciário

e sua efetividade. É possível,

com essa ligação, denunciar irregularidades do Poder Executivo, como desvio de verbas ou a

má aplicação, a fim de responsabilizar o inadimplente mediante a Lei de Responsabilidade

Fiscal (Lei n. 101/00). Assim, também, o Tribunal de Contas da União e os Tribunais de

Contas dos Estados têm papel relevante na fiscalização contábil, financeira e orçamentária.

65

61 Deve-se lembrar que a Defensoria Pública já vinha atuando em prol de direitos coletivos dos consumidores, de acordo com a legitimidade conferida pelo art. 82, III do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90).

, quando o

62 Em que pese a Lei n. 11.448/2007 ter incluído a Defensoria Pública no rol de legitimados ativos para a ação civil pública, essa ainda não é uma questão pacífica. Há quem questione a inconstitucionalidade, principalmente os membros do Ministério Público, da legitimação ad causam da Defensoria Pública. Os argumentos levantados para sua inconstitucionalidade são: a) a Defensoria Pública tem por objetivo, conforme a Constituição da República (1988), representar judicialmente os necessitados, não podendo atuar como substituta processual nas hipóteses de interesses ou direitos coletivos; b) a defesa de direitos cujos titulares não são constitucionalmente qualificados como necessitados, tendo em vista que nos direitos difusos há a indeterminabilidade do titular e quanto aos direitos coletivos há a identificação de um grupo ou categoria, de forma que em ambos prepondera a indivisibilidade de seu objeto. Por outro lado, admitir a inconstitucionalidade da legitimidade da Defensoria Pública por entender que ela estaria ferindo sua missão restrita de defesa dos necessitados, pode ensejar, de fato, uma lesão ao direito dessas pessoas, pois entre o titular dos direitos difusos e coletivos (todos) também estão os necessitados. Sobre o assunto cabe destacar que se encontra em tramitação perante o STF, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, a ADI n. 3.943, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), com a participação, como amicus curiae, da Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP), da Associação Nacional de Defensores Públicos da União (ANDPU), do Instituto Brasileiro da Advocacia Pública (IBAP) e da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Para um melhor estudo dos argumentos acima expostos, conferir o artigo do promotor de justiça Renato Franco de Almeida, Legitimidade da Defensoria Pública para ação civil pública: inconstitucionalidade, na Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 44, p. 36-44, jan./mar. 2009. 63 Conferir os precedentes do STJ: REsp 688.052-RS, DJ 17/8/2006; REsp 822.712-RS, DJ 17/4/2006; REsp 854.557-RS, DJ 18/10/2007; REsp 715.266-RS, DJ 12/2/2007; REsp 741.369-RS, DJ 12/2/2007; REsp 734.493-RS, DJ 5/2/2007; REsp 750.409-RS, DJ 11/12/2006; REsp 700.853-RS, DJ 21/09/2006. 64 Conforme art. 33 da Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990), é função dos Conselhos de saúde fiscalizar os recursos financeiros do Sistema Único de Saúde. 65 Saliente-se que para se atingir a justiça social, melhor seria não ter que recorrer ao Poder Judiciário, mas sim que os próprios indivíduos, através de discussões, definissem as ações e serviços de saúde prioritários e que os Poderes Legislativo e Executivo os executassem.

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indivíduo não consegue a prestação material requerida diretamente, pois se trata de direito

subjetivo, todavia, tendo em vista a sua finalidade, o ideal são ações de caráter coletivo, a fim

de que a decisão abranja o maior número de pessoas possível66

.

4.4 Uma nova interpretação para os direitos fundamentais sociais

Os direitos sociais foram formulados, como o próprio nome diz, numa perspectiva

social, isto é, diferente dos direitos fundamentais individuais, que são atribuídos aos cidadãos

considerados individualmente. Sobre a matéria, assim se expressa o Prof. José Reinaldo de

Lima Lopes:

Ora, tipicamente os novos direitos sociais, espalhados pelo texto constitucional, diferem em natureza dos antigos direitos subjetivos. Não se distinguem apenas por serem coletivos, mas por exigirem remédios distintos. Mais ainda, têm uma implicação política inovadora na medida em que permitem a discussão da justiça geral e da justiça distributiva, para retomarmos a distinção clássica. (LOPES, 2001, p. 127)

Por essa razão, os direitos sociais requerem ações do Estado, que se concretizam

através de políticas públicas capazes de atender às expectativas geradas pela normatização de

cada um desses direitos. Essas políticas são elaboradas observando-se exatamente a

socialização dos riscos, através de tratamentos diferenciados, buscando-se uma justiça social

(distributiva)67

O problema é que as normas que regulam direitos fundamentais sociais não podem ser

interpretadas da mesma forma que as normas que regulam direitos fundamentais individuais.

José Eduardo Faria alerta para o fato de que o Judiciário está preparado para lidar somente

com questões rotineiras, tratando “o sistema jurídico com um rigor lógico-formal tão intenso

.

66 Essa também parece ser a posição do Prof. Liton Lanes Pilau Sobrinho, da Universidade de Passo Fundo: “Certamente, a pressão popular pela promoção da justiça, com fundamento nas demandas coletivas, por exemplo, na questão da saúde pública, é sempre maior, pois já não se espera mais o ingresso de ações individuais. Ora, o fato de o interesse passar à coletividade faz com que as classes sociais se organizem e acessem o Judiciário para ver efetivados seus direitos”. (PILAU SOBRINHO, 2002, p. 316). 67 “Três idéias básicas perpassam toda a teoria da justiça social, no que concerne à sua operacionalização. Seja a primeira a de que a redistribuição de rendas seria obtida pelo processo social espontâneo, baseado no desenvolvimento econômico e na economia social de mercado. A segunda consiste na transferência de recursos da classe rica para a pobre, de modo que a totalidade dos indivíduos que compõem a camada mais baixa da sociedade venha a enriquecer. A última é a de que certas instituições sociais (Igreja, sindicatos, empresas, entidades não-governamentais) participam do processo de redistribuição de rendas.” (TORRES, 2001, p. 275-276)

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que inibe os magistrados de adotar soluções fundadas em critérios de racionalidade

substantiva [...]” (FARIA, 2002, p. 99). Assim, segundo Faria (2002), há uma hesitação dos

magistrados em relação à interpretação e aplicação dos direitos sociais, ao terem que se

posicionar sobre o sentido e o conteúdo das normas que expressam tais direitos. José Eduardo

Faria ainda critica o Judiciário, afirmando que se trata de uma “Justiça burocraticamente

inepta, administrativa e processualmente superada” (FARIA, 2002, p. 99), ineficiente diante

dos novos tipos de conflitos, ou seja, “conflitos de caráter intergrupal, intercomunitário e

interclassista” (FARIA, 2002, p. 99). Para resolver esses conflitos é necessário mediar os

diferentes interesses coletivos.

Os direitos sociais têm por fim compensar as desigualdades sociais, ou seja, “não

configuram um direito de igualdade (...), são, isto sim, um direito das preferências e das

desigualdades” (FARIA, 2002, p. 105). Assim, as normas que os regulam acabam por entrar

em conflito com o caráter formalista das leis e do pensamento jurídico pátrio, voltado, ainda,

para o sistema jurídico-positivo qualificado pelo individualismo do Estado Liberal clássico.

Para se chegar ao equilíbrio entre os diversos interesses coletivos, equacionando

direitos e deveres, a flexibilidade e a adaptabilidade às mudanças sócio-econômicas são

critérios que devem ser sempre observados. Assim, critérios apriorísticos e rígidos, como os

estabelecidos por Ana Paula de Barcellos (2002)68

não podem ser levados em consideração

neste novo modelo de interpretação dos direitos sociais, como salienta Sarlet:

Outrossim, argumenta-se que alto grau de adaptabilidade dos direitos sociais, já que umbilicalmente ligados à conjuntura socioeconômica, tem por conseqüência o fato de que uma formulação mais determinada e completa fatalmente acarretaria uma rápida superação da norma pela realidade, colocando em risco a desejável estabilidade constitucional. (SARLET, 2003a, p. 299)

Constata-se que os magistrados ainda não estão preparados para essa nova

hermenêutica, pois lhes falta o conhecimento técnico e a experiência para compreender os

novos institutos jurídicos e a complexa situação sócio-econômica-política sobre a qual o

Executivo é obrigado a atuar. Neste sentido, Sarlet, baseando-se no publicista suíço J.-P.

Müller, explica: 68 Barcellos estabelece, no tocante à saúde, a seguinte escala de prioridades, como núcleo rígido do mínimo existencial: (i) a prestação do serviço de saneamento; (ii) o atendimento materno-infantil; (iii) as ações de medicina preventiva; e (iv) as ações de prevenção epidemiológica. (2002, p. 281). “Assim, quando se cuida do mínimo existencial em saúde, se está tratando das prestações de saúde que podem ser judicialmente exigidas do Poder Público, a serem prestadas diretamente por ele ou pelo particular com custeio público, caso a Administração não possa ou não tenha meios de executar a prestação”. (BARCELLOS, 2002, p. 277). Essa limitação significa que o indivíduo não poderá exigir do Estado, judicialmente, prestações que não estejam disponíveis na rede pública de saúde.

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Falta aos Juízes a capacidade funcional necessária para, situando-se fora do processo político propriamente dito, garantir a efetivação das prestações que constituem o objeto dos direitos sociais, na medida em que estas se encontram na dependência, muitas vezes, de condições de natureza macroeconômica, não dispondo, portanto, de critérios suficientemente seguros e claros para aferir a questão no âmbito estrito da argumentação jurídica. (SARLET, 2003a, p. 298)69

Para Lopes (2001, p. 132), a compreensão das políticas públicas depende da

compreensão do regime das finanças públicas, isto é, normas constitucionais relativas à

tributação, ao orçamento e ao capítulo das finanças públicas propriamente dito (arts. 163 a

169 da Constituição da República de 1988). São normas relacionadas ao planejamento do

Estado, que, em geral, tem seu estudo relegado a um segundo plano pelos juristas.

As políticas públicas podem ser de várias espécies: políticas sociais de prestações de

serviços essenciais e públicos (como exemplo, os serviços de saúde, educação, segurança

pública, justiça, prestados diretamente pelos entes estatais), políticas sociais compensatórias

(por exemplo, previdência, assistência social, seguro-desemprego, bolsa-família), políticas de

fomento (créditos e incentivos), reformas de base (reforma urbana e agrária), políticas de

estabilização monetária, entre outras.

A efetivação desses direitos requer uma mensuração dos interesses coletivos, o que

implica “uma ‘sociologização’ da interpretação e aplicação das leis e dos códigos” (FARIA,

2002, p. 107). Essa interpretação já é uma realidade que pode ser vista no plano do direito

contratual e do direito de propriedade, institutos típicos do direito privado que foram

flexibilizados pelo pensamento de solidariedade.

Ricardo Lobo Torres (2001) diferencia os mínimos sociais (existencial), direitos que

se situam no campo da liberdade e dos direitos fundamentais, e o máximo social, que são os

direitos sociais, integrantes da idéia de justiça. Afirma o autor, que no Estado democrático de

direito impõe-se a garantia do mínimo existencial em sua dimensão máxima, o que acarreta a

minimização dos direitos sociais (status positivus socialis). Desta forma, o Estado deve

priorizar os direitos que compreendem o mínimo existencial, só realizando os direitos sociais

até o ponto em que não se comprometa o processo econômico nacional, os direitos

fundamentais, nem se neutralizem as prestações por conflitos internos.

69 No parágrafo citado, Sarlet se referia à cláusula de reserva do possível como argumento oposto ao direito social.

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Torres (2001) admite, ainda, que em países em desenvolvimento, como o Brasil, os

direitos fundamentais e o mínimo existencial têm uma extensão maior70

Segundo Torres (2001) o art. 196 da Constituição (1988) prevê a saúde preventiva

como direito fundamental. Já o art. 6º, prevê a saúde curativa, como direito social. Ambas

foram confundidas e o sistema único de saúde, que seria universal e gratuito, tornou-se

utópico e ineficaz, pois transferiu para terceiros a responsabilidade do seu financiamento,

deixando a classe média para os planos privados de assistência médica.

, pela necessidade de

proteção estatal aos bens essenciais à sobrevivência das populações mais carentes, o que

caracteriza uma desinterpretação dos mínimos sociais e a maximização dos direitos sociais. O

autor exemplifica, exatamente, com a saúde pública.

De acordo com o ensinamento de Torres (2001), o art. 196 da Constituição estaria

dentro do mínimo existencial, isto é, a saúde preventiva deve ser priorizada pelo Estado. Em

contrapartida, as questões de saúde curativa, por se tratar de direito social e, por isso,

dependente de escolhas orçamentárias, devem ser analisadas a partir dos critérios elaborados

pela teoria da justiça, mas, segundo o autor, elas “estão inteiramente obscurecidas entre nós

pela proclamação demagógica da universalidade e da igualdade no atendimento!” (TORRES,

2001, p. 288).

Por isso, os tribunais não podem continuar julgando pretensões que buscam uma

variedade de ações individuais do Estado relativas ao direito à saúde (curativa), concedendo-

as sem qualquer preocupação com as conseqüências ulteriores. Tais decisões não auxiliam a

alcançar o objetivo dos direitos sociais, que é a gradual transformação do presente e

formação do futuro, bem como os objetivos da Constituição da República Brasileira de

1988 (art. 3º): construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento

nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação.

A função do Judiciário neste contexto é outra. Sendo o Judiciário parte integrante do

Estado, cabe a ele controlar e exigir do Executivo a efetivação dos programas previstos nas

normas constitucionais, para intervir ativamente na esfera social. É através da aplicação dos

direitos sociais que se alcançará o aperfeiçoamento do processo político, econômico e cultural

do país. Neste sentido, importante é a crítica de José Eduardo Faria aos magistrados

brasileiros:

70 Deve-se ressaltar que Ricardo Lobo Torres não admite os direitos sociais (status positivus socialis) como direitos fundamentais.

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Se toda a corporação judicial não renovar sua cultura técnico-profissional, permanecendo atrelada a uma visão-de-mundo liberal-clássica, sem compreender que quanto mais programáticas forem as normas dos direitos sociais, maior é o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciais, o Judiciário corre o sério risco de ver a ordem jurídico-positiva fragmentada e despedaçada por uma sociedade dividida, contraditória e explosiva; uma sociedade que, nos segmentos mais desfavorecidos, não tem achado socorro tanto na Constituição quanto na imensa profusão de leis e códigos em vigor. (Faria, 2002, p. 111).

Neste sentido cabe destacar o texto de Cláudio Ari Mello (2001), Os direitos sociais e

a teoria discursiva do Direito, em que o autor desenvolve uma concepção pragmática das

normas constitucionais de direitos sociais sujeita a um processo discursivo.

Primeiramente, o autor expõe a classificação dos direitos fundamentais sob três

perspectivas básicas: dimensional, dogmática e de direito positivo. A concepção pragmática

desenvolvida por Mello (2001) está estritamente ligada à classificação dogmática, que permite

compreender as diferenças existentes na estrutura e na função jurídicas dos direitos

fundamentais. Essa classificação distingue os direitos fundamentais em direitos de defesa,

direitos à prestação e direitos de participação.

Em geral, os direitos sociais, como já assinalado, são classificados como direitos à

prestação, isto é, “têm como objeto o poder de exigir do Estado o provimento de condições

materiais, serviços e instituições capazes de suprir bens e interesses pertinentes à situação

econômica, social e cultural dos indivíduos” (MELLO, 2001, p. 246).

De acordo com o mesmo autor, as normas constitucionais também podem ser

classificadas em normas auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis. Essa classificação somada à

anterior gera dificuldades no que concerne à efetividade de normas constitucionais que

prevêem direitos sociais. Assim, essas normas dependeriam de uma ação do Poder Legislativo

ou do Executivo para lhe completarem a eficácia, isto é, para concretizar o direito social

previsto. Por isso, Mello propõe uma nova forma de interpretação dessas normas

constitucionais, a fim de não desestimular a concretização dos direitos sociais.

A concepção que desenvolvo a seguir pretende esboçar uma teoria pragmática das normas constitucionais, orientada para além do significado estático do enunciado normativo, a fim de apreender a dinâmica da eficácia da norma quando posta em ação. (...) o núcleo do estudo é composto pelas normas que, historicamente, receberam conceitos semânticos redutores da eficácia normativa, notadamente as assim chamadas normas programáticas. (MELLO, 2001, p 257).

Segundo o autor, as normas constitucionais definidoras de direitos sociais possuem

uma estrutura nomodinâmica, vez que sua efetivação carece da comunicação com elementos

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metanormativos, o que significa dizer que tais normas, frequentemente, não possuem a

estrutura suficiente para gerar a eficácia prevista. Diante das classificações semânticas que

consideram as normas constitucionais de direitos sociais não auto-aplicáveis, tais direitos não

poderiam ser exigidos judicialmente.

A concepção pragmática das normas constitucionais, defendida por MELLO (2001),

está baseada na teoria do agir comunicativo de Habermas.

Parece-me que essa debilidade normativa pode ser superada a partir de uma concepção pragmática das normas constitucionais definidoras de direitos sociais, que a sujeite a um processo discursivo onde os participantes do debate apresentem racionalmente seus argumentos, de modo aberto e livre de coações, externas e internas, e visando ao mútuo entendimento, para que ao final prevaleça o melhor argumento. A vantagem dessa teoria é que nenhum direito social é ineficaz na partida, no plano abstrato e estático do enunciado normativo. Todo e qualquer direito social previsto na Constituição Federal é normativamente capaz de gerar direitos subjetivos, e a garantia efetiva dos direitos deverá ser aferida, sem limites preestabelecidos dogmaticamente, dentro dos processos de discursos públicos e, para o que interessa mais de perto ao nosso tema, dentro de processos judiciais da jurisdição constitucional. (MELLO, 2001, p. 262).

De acordo com a concepção pragmática acima descrita, a eficácia da norma

constitucional de direito social não é extraída diretamente do seu enunciado, mas sim do

resultado do processo judicial marcado por uma ética discursiva. Propõe-se às partes do

processo um agir comunicativo voltado para o entendimento mútuo, através dos argumentos

trazidos, debatidos e investigados livremente. Se essa mediação não for alcançada

consensualmente, o juiz decidirá mediante uma fundamentação racional, atenta a todo debate

travado no processo.

Mello (2001) chega a citar o caso dos ajuizamentos de ações com o objetivo de obter a

condenação do Estado ao fornecimento de medicamentos ou tratamento médico. Em geral, de

acordo com uma hermenêutica progressista, os pedidos são julgados procedentes. Entretanto,

o autor chama a atenção para a complexidade da questão quando, por exemplo, uma ação

coletiva objetive o custeio de procedimentos de alto custo financeiro, como no caso de

transplantes de medula óssea para todos os portadores de leucemia.

Nessas situações, guiando-se pela teoria pragmática ou discursiva das normas

constitucionais de direitos sociais, o processo judicial exigirá um debate aberto prévio,

condicionado por condutas de ética discursiva dirigidas ao entendimento mútuo. Ambas as

partes apresentarão seus argumentos e suas provas, inclusive o ente federativo que poderá

oferecer “possibilidade de soluções alternativas mais acessíveis, ou da impossibilidade de

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custeio através de recursos públicos, em face das limitações orçamentárias, ou da existência

doutras prioridades na aplicação de recursos públicos” (MELLO, 2001, p. 266).

Segundo o autor, esse modelo acentua o caráter democrático:

A adoção de um modelo comunicacional aberto e dialógico permite, ao contrário, o acréscimo da legitimidade de uma decisão pela eficácia ou ineficácia de um direito fundamental social tomada em processo judicial que atenda a esses pressupostos. O caráter democrático é acentuado, na medida em que a solução reflete o melhor argumento, resultante de um debate potencialmente aberto a todos os afetados pela decisão, a qual, na medida em que é fruto da participação de todos, deve ser compreendida como uma decisão tomada pelos próprios participantes, ainda que contra sua vontade original. (MELLO, 2001, p. 266)

Habermas, citado por Mello, assegura:

Sob condições do discurso, que obrigam cada um a assumir a perspectiva dos demais membros e até de todos os outros, é possível uma modificação racionalmente motivada das tomadas de posição originais. Como participantes de um tal processo de formação discursiva da opinião e da vontade, os cidadãos se conscientizam de seu direito de autodeterminação. (HABERMAS apud MELLO, 2001, p. 267)

Neste sentido, percebe-se que ao adotarem uma hermenêutica progressista, os tribunais

têm tentado efetivar os direitos sociais, como no caso do direito à saúde, julgando procedentes

os mais diversos pedidos relacionados ao fornecimento de medicamentos não constantes da

lista do Ministério da Saúde e de equipamentos/próteses, tratamentos médicos de alto custo e

complexidade, vagas em hospitais, etc. Entretanto, não se verifica em tais processos a ética

discursiva. Os magistrados julgam procedentes simplesmente porque está previsto na

Constituição Federal, isto é, guiam-se pela teoria semântica. Falta-lhes exatamente a

responsabilidade de assumir, como citado acima, a perspectiva dos demais membros, o que

deixa de legitimar a criação do direito.

O sentido dos direitos fundamentais é diferente em cada Constituição e em cada época.

Dessa forma, os participantes do discurso, incluindo o juiz, precisam interpretar os direitos

fundamentais tal qual a realidade constitucional concretamente existente, buscando

harmonizar a “tensão entre a validade do direito e a faticidade do real” (MELLO, 2001, p.

272).

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5 DIREITO À SAÚDE E POLÍTICA FINANCEIRA

5.1 Política neoliberal e Estado mínimo

As transformações da sociedade conduziram à superação do Estado Liberal, impondo

ao Estado, como forma de justificação e legitimação de seus poderes, a promoção do bem-

estar efetivo dos cidadãos e a supressão das desigualdades. Assim surgiu o Estado Social, que

trouxe um crescente aumento das funções públicas para a concretização das demandas

coletivas. Mas esse modelo paternalista mostrou-se ineficiente para concorrer com a iniciativa

privada na prestação de determinados serviços. O Estado Social entrou em crise ao mesmo

tempo em que surgia a ideologia do Estado Neoliberal, o que se tornou uma tendência

mundial.

Conforme Sarlet (2003a), através da política e da economia do “Estado mínimo”71

No Brasil, que não fugiu a essas alterações a partir da década de 90, impôs-se a

necessidade de um novo modelo de gestão administrativa, que visasse à eficiência e qualidade

dos serviços a serem prestados. É o chamado modelo gerencial de Administração Pública, que

substitui o modelo burocrático, voltando-se mais para os processos de controle do que

propriamente para os resultados. É a lógica do mercado que passa a regular a atividade estatal.

Essas mudanças implicaram uma redução na atuação direta do Estado, tanto na realização dos

direitos sociais quanto na intervenção econômica.

,

propalada pelo neoliberalismo, verifica-se o enfraquecimento do Estado democrático de

Direito e, por conseguinte, dos direitos fundamentais. O mesmo autor ainda esclarece que o

ideário neoliberal prescreve a diminuição do Estado, caracterizada principalmente pela

desnacionalização, desestatização, desregulação e redução gradativa da intervenção estatal no

domínio econômico e social.

O serviço público é uma forma de instrumentalização dos direitos sociais. Com a

redução da atuação positiva de alguns Estados, cresce o aprofundamento da desigualdade e da

classe de excluídos. No Brasil existem pessoas que sem a intervenção estatal não têm 71 Em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo, Ana Cláudia Finger (UFPR) esclarece que o espanhol Gaspar Ariño Ortiz foi o precursor da teoria do “Estado mínimo”, perfeitamente compatível com a ideologia neoliberal. Acrescenta que o autor espanhol também inovou com um novo modelo de serviço público, buscando evidenciar a falência do serviço público nos seus moldes tradicionais. Cf. FINGER, Ana Cláudia. Serviço público: um instrumento de concretização de direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 232, p. 59-82, abr./jun. 2003.

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condições de sobreviver e, na esfera da saúde é essencial a atuação do Estado através dos

serviços públicos.

Um exemplo do impacto do neoliberalismo na área da saúde pode ser identificado na

Grã-Bretanha. O Serviço Nacional de Saúde (National Health Service – NHS) foi um dos

primeiros e, por algum tempo, um dos melhores sistemas de assistência médica fornecida pelo

Estado. No final da década de 40 iniciou a prestação de serviços, que era bem abrangente,

incluindo oftalmologia e odontologia para todos, gratuitamente, financiada pelos impostos.

No início da década de 1990, o NHS ainda era um sistema de sucesso. As estatísticas

de saúde pública na Grã-Bretanha estavam na média da OCDE (Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e o sistema era econômico, uma vez que, sendo

o único comprador de remédios, equipamentos e outros suprimentos médicos, podia impor

fortes negociações aos fornecedores.

Entretanto, o avanço da medicina e o envelhecimento da população fizeram aumentar

o orçamento do NHS. Em 1982 a administração Thatcher começou a considerar as opções de

privatização da assistência médica, como a adoção de seguro de saúde privado pela

população. Em vez disso, por pressão da sociedade, as medidas foram no sentido de

terceirizar os serviços hospitalares básicos, como limpeza, alimentação, lavanderia e a criação

de uma nova hierarquia de administradores gerais nos hospitais, sustentados por empresários,

com a meta de suplantar o poder dos médicos, além do corte de gastos abaixo do crescimento

das necessidades. A conseqüência foi a piora dos serviços.

Quanto aos pacientes (...), encontravam enfermeiros e pessoal de apoio estressados e de moral baixo e tempos de espera cada vez maiores só para consultar um especialista. Por exemplo, em 1994 a espera média para consultar um cirurgião otorrinolaringologista era de três meses e um ortopedista, de seis meses – e às vezes a espera subseqüente pela cirurgia podia ser ainda maior. As pessoas viviam com dor ou incapacidade crescentes e, às vezes, morriam antes de serem tratadas. (LEYS, 2004, p. 210).

Diante dessa situação, o interesse pela assistência médica privada foi estimulado e

rapidamente se expandiu na década de 1980. Várias tentativas do governo para melhorar o

NHS não tiveram êxito. Em 1997, com a entrada do governo trabalhista, novas mudanças

foram introduzidas no sistema de saúde da Grã-Bretanha, o que foi denominado Novo NHS

(The New NHS), mas que mantinha a idéia de assistência médica baseada no mercado. O

principal impulso do Novo NHS era voltar o sistema para a assistência primária,

consubstanciada nos serviços de saúde da família.

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Se em um país desenvolvido como a Grã-Bretanha, onde as desigualdades sociais não

são tão desafiantes, as conseqüências da política do neoliberalismo foram tão graves, como a

violação do princípio da universalização na saúde, no Brasil a situação poderia chegar a um

nível insustentável. Deve-se lembrar que a Constituição da República brasileira permite o

serviço privado de saúde, mas de forma complementar ao SUS, nos termos do art. 199.

Dessa forma, percebe-se que países como o Brasil ainda não estão preparados para o

modelo político e econômico do “Estado mínimo”, sob pena de enfraquecimento dos direitos

fundamentais sociais.

5.2 Recursos públicos para saúde

Primeiramente é necessário citar o que a Constituição de 1988 traçou para a saúde em

termos de financiamento público.

Art. 198 (...) § 1° O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

O § 1° do art. 198, originariamente, era o parágrafo único. Em 2000, ou seja, doze

anos após a promulgação da Constituição, a Emenda Constitucional n. 29, conhecida como

“Emenda da Saúde”, inseriu os §§ 2° e 3°, com seus respectivos incisos.

Art. 198 (...) (...) § 2° A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3°; II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3°. § 3° Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada 5 (cinco) anos, estabelecerá: I – os percentuais de que trata o § 2°; II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus

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respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.

O intuito, com a Emenda Constitucional n. 29/2000, era destinar mais recursos para a

área da saúde. Tendo em vista aquelas alterações, à época também foi acrescentado o art. 77

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelecendo os percentuais mínimos

de que trata o § 2° do art. 198, a fim de que a lei complementar indicada no § 3° do mesmo

artigo fosse elaborada, no prazo de 4 anos.

Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão equivalentes: I – no caso da União: a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento; b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB; II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, doze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; e III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3°. § 1° Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que apliquem percentuais inferiores aos fixados nos incisos II e III deverão elevá-los gradualmente, até o exercício financeiro de 2004, reduzida a diferença à razão de, pelo menos, um quinto por ano, sendo que, a partir de 2000, a aplicação será de pelo menos sete por cento. § 2° Dos recursos da União apurados nos termos deste artigo, quinze por cento, no mínimo serão aplicados nos Municípios, segundo o critério populacional, em ações e serviços básicos de saúde, na forma da lei. § 3° Os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinados às ações e serviços públicos de saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade serão aplicados por meio de Fundo de Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do disposto no art. 74 da Constituição Federal. § 4° Na ausência de lei complementar a que se refere o art. 198, § 3°, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo. (grifos nossos)

Assim, além dos problemas provocados pela escassez de recursos financeiros, a falta

de regulamentação do art. 198 da Constituição, ou seja, a lei complementar indicada no seu §

3°, é outro entrave para a efetivação do direito à saúde, nos termos constitucionais.

Até a data de fechamento deste trabalho, a lei complementar citada no art. 198 da

Constituição não havia sido promulgada. Entretanto, o projeto de lei n. 1/03, do deputado

federal Roberto Gouveia, pretende regulamentar a Emenda Constitucional n. 29/2000.

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Uma subemenda ao projeto (SSP-1), de autoria do deputado federal Guilherme

Menezes, foi votada e aprovada pela Câmara em 31/10/2007 e seguiu para o Senado. De

acordo com esse projeto aprovado, a União deverá vincular ao aumento anual de gastos com a

saúde a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Para os Estados, Distrito Federal e

Municípios, a subemenda mantém a previsão constitucional (12% e 15%, respectivamente).

Além disso, a fim de não haver desvio das verbas destinadas especificamente para a

saúde, são listadas as despesas que devem ser consideradas como ações e serviços públicos de

saúde e outras que não poderão ser custeadas com tais recursos.

Assim, as ações permitidas são: vigilância em saúde (inclusive epidemiológica e

sanitária); a capacitação de pessoal do Sistema Único de Saúde (SUS); a produção, aquisição

e distribuição de medicamentos, sangue e derivados e outros; a gestão do sistema público de

saúde; as obras na rede física do SUS e a remuneração de pessoal ativo em exercício no setor.

As ações não consideradas no cálculo dos recursos mínimos para a saúde são despesas

como o pagamento de inativos e pensionistas; serviços de saúde para servidores; merenda

escolar; limpeza urbana e remoção de resíduos; ações de assistência social e obras de infra-

estrutura, entre outras.

O projeto original (1/2003) prevê, ainda, que a distribuição dos recursos deverá ficar a

cargo dos respectivos Conselhos de Saúde, segundo critérios objetivos e técnicos, a fim de

reduzir o desequilíbrio inter-regional, tanto no que se refere à qualidade dos serviços, quanto a

garantir que o esforço da sociedade seja bem conduzido, aplicando-se os seus recursos em

ações realmente necessárias e de maneira apropriada.

Os recursos da saúde devem ser depositados nos Fundos de saúde de cada ente

federado, cuja movimentação deve ser fiscalizada pelos conselhos de saúde, conforme art. 33

da Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990). Os gastos com a saúde deverão estar previstos nos planos

de saúde.

Dessa forma, aguarda-se a votação pelo Senado da subemenda de projeto de lei acima

citada, a fim de que mais uma conquista seja efetuada para o direito à saúde.

5.3 Políticas públicas

Em todo este trabalho várias vezes se mencionou a expressão “políticas públicas”.

Para que fique mais claro, é necessário que se esclareça o que este termo significa. As

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políticas públicas são linhas de ação do Estado que concretizam direitos sociais garantidos em

lei. Trata-se, portanto, de ações coletivas realizadas pelo Poder Executivo, expressas através

de planos e programas normativos elaborados pelo Poder Legislativo, após prévio

planejamento.

Santos (2006) cita a definição de políticas públicas por Maria Paula Bucci, como

sendo:

a coordenação dos meios à disposição do Estado, harmonizando as atividades estatais e privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. (...) o que há de comum em todas essas políticas e suas acepções, dando sentido ao agrupamento delas sob o mesmo conceito jurídico, é o processo político de escolha de prioridades para governo (BUCCI apud SANTOS, 2006, p. 79).

Assim, o conceito de políticas públicas é mais amplo que o de serviço público72

Constata-se, portanto, que as políticas públicas são respostas do Estado às

necessidades da população, expressas em compromissos públicos de atuação

(planos/programas) para determinados setores, dentro de certo lapso temporal.

, pois

abrange as funções de coordenação e de fiscalização de agentes públicos e privados. Marília

Lourido dos Santos (2006) admite que a concepção de políticas públicas está baseada em três

elementos: a busca por metas, objetivos ou fins; a utilização de meios ou instrumentos legais e

o prolongamento no tempo, isto é, trata-se da realização de uma atividade e não de um

simples ato, o que caracteriza a sua dinamicidade, podendo definir políticas públicas “como o

conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um fim público determinado”

(SANTOS, 2006, p. 80).

As políticas públicas na área de saúde devem ser derivadas de discussões oriundas das

conferências e dos conselhos de saúde, nas três esferas do governo, objeto de planejamento, a

fim de conciliar as necessidades e o orçamento, expressas através de planos que

compreendam o conceito bastante amplo de saúde previsto no art. 3º da Lei n. 8.080/90

(BRASIL, 1990), isto é, alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho,

renda, educação, transporte, lazer e o acesso a bens e serviços essenciais.

72 De acordo com Celso Antonio Bandeira de Mello, serviço público é “toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes, sob o regime de direito público instituído pelo Estado em favor de interesses que houver definido como próprios no sistema normativo.” (MELLO apud SANTOS, 2006, p. 80).

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Dessa forma, o constituinte de 1988 consagrou a descentralização na gestão e

elaboração das políticas públicas, o que permite à sociedade interferir efetivamente nas

decisões do governo, optando por ações de acordo com as reais necessidades.

Assim, as políticas públicas na área da saúde devem seguir as seguintes diretrizes:

universalização do acesso aos serviços de saúde; prioridade para diagnósticos, como base para

ações preventivas em geral e de prevenção epidemiológica; complementaridade do setor

privado conveniado; descentralização combinada com participação da sociedade civil.

As políticas públicas devem ser constituídas por ações articuladas e contínuas a fim de

que os resultados na área da saúde sejam alcançados. A prioridade passou a ser a prevenção,

sem prejudicar o acesso aos serviços assistenciais ou de saúde curativa (art. 198, da

Constituição Federal), por isso as políticas públicas devem ser amplas, abrangendo vários

setores.

5.4 Planejamento estatal

De acordo com Gilberto Bercovici “o planejamento coordena, racionaliza e dá uma

unidade de fins à atuação do Estado” (2005, p.69). Não se trata de uma intervenção

conjuntural ou casuística, mas sim da busca de transformação do status quo econômico e

social. No dizer de Eros Grau (2003), com o planejamento, atos que antes eram praticados de

forma aleatória, passam a ser produzidos sob um novo padrão de racionalidade. Segundo

Fábio Konder Comparato, o planejamento:

(...) Supõe o desenvolvimento da técnica previsional, a capacidade de formular objetivos possíveis e de organizar a conjunção de forças ou a mobilização de recursos – materiais e humanos – para a sua consecução. (COMPARATO apud GRAU, 2003, p. 301)

Embora tenha conteúdo técnico, o planejamento na esfera pública é um processo

político, que pressupõe negociação e decisão políticas entre os vários membros da Federação

e setores sociais.

Trata-se de um processo indispensável, que deve ser seguido pelo Poder Público,

assim como se faz no setor privado. As empresas privadas bem estruturadas trabalham com

planejamento, no qual fixam metas, objetivos a serem cumpridos em determinado período de

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tempo, bem como limites para gastos, por exemplo, entre outras medidas a serem adotadas

para o sucesso empresarial.

Através do planejamento estatal discutem-se modelos de desenvolvimento sustentável,

abordando as condições econômicas, sociais, políticas, culturais, tecnológicas, religiosas,

climáticas e geográficas de cada região ou localidade, a fim de orientar as políticas públicas.

Nos municípios, o planejamento deve objetivar racionalidade e coerência, além de

outros pressupostos, como participação da sociedade, inclusive dos excluídos, através de

instâncias alternativas de poder; descentralização das decisões e ações; objetivos, metas e

programas traçados de acordo com as necessidades reais da comunidade local; eficiência na

aplicação dos escassos recursos de qualquer espécie; corpo técnico capaz para contribuir nos

procedimentos e mecanismos de controle do comportamento estatal dentro dos poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário (CLARK , 2005).

5.4.1 Lei do Plano

O plano diferencia-se do planejamento. Plano ou Lei do Plano é o resultado do

planejamento. Trata-se de um documento comprometido com objetivos políticos e

ideológicos, conforme traçados no planejamento, seguindo o princípio da legalidade, uma vez

que, como lei, é debatido e aprovado pelos representantes do povo, dando, portanto, caráter

democrático ao planejamento.

Um dos grandes problemas é a vinculação do Poder Público ao planejamento, já que o

principal modo de controle da atividade planejadora é a vinculação do plano ao orçamento.

Segundo Gilberto Bercovici,

A realização do plano depende de sua previsão orçamentária, ainda que parcial. A implementação dos planos dá-se por meio da realização dos investimentos públicos que devem estar explicitados nos orçamentos, executando de modo imediato ou a curto prazo os objetivos de médio e longo prazos contidos nos planos. (BERCOVICI, 2005, p. 79).

Para amenizar ou mesmo solucionar esse problema, três leis orçamentárias são

previstas na Constituição Federal (art. 165): o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o

orçamento anual, devendo estar todas interligadas e compatibilizadas com o planejamento

global.

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O plano Plurianual ou Lei do Plano, no Município, deverá ser elaborado no primeiro ano de mandato do Chefe do Executivo, com vigência durante os três anos seguintes do exercício do poder político e mais um ano do mandato posterior, de seu sucessor ou de sua reeleição (art. 35, § 2º., I do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF). Já a Lei de Diretrizes Orçamentárias ou “plano anual de curto prazo que define prioridades para o exercício seguinte, devendo ser orientadora e guia da elaboração do orçamento” (SANTANA, 1998:166), deve ser elaborada em um ano para vigorar no ano seguinte, como na Lei do Orçamento. (CLARK, 2005, p.186)

Verifica-se que modernamente tende-se a adequar o planejamento ao orçamento.

Todavia, isso não pode ocorrer, pois, assim, o plano perde sua característica fundamental, que

é fixar as diretrizes para atuação do Estado. A lei orçamentária denominada plano plurianual é

uma simples previsão de gastos. É claro que se deve ter mecanismos de controle dos gastos

públicos, mas não se pode fazer isso em detrimento da busca do desenvolvimento, seja geral

ou setorial, como no caso da saúde.

A Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990), ao tratar do financiamento do SUS, prevê que o

seu planejamento e orçamento se darão de forma ascendente, iniciando-se nos municípios até

o nível federal. Devem ser ouvidos os órgãos deliberativos – os Conselhos e as Conferências

de Saúde – e compatibilizadas as necessidades da política de saúde com a disponibilidade de

recursos em planos de saúde de cada ente federado (art. 36 da Lei 8.080/90).

O §1º do artigo 36 da Lei 8.080/90 prevê os planos de saúde como base das atividades

e programações de cada nível de direção do SUS. Os planos de saúde seguirão as diretrizes

delineadas pelo Conselho Nacional de Saúde, onde serão fixados, após as discussões que

foram realizadas na fase de planejamento, os objetivos e metas a serem alcançados para este

setor dentro de determinado prazo. Como exemplo, pode-se citar o Plano Municipal de Saúde

de Belo Horizonte (PMS-BH) para o quadriênio 2005-2008, que demonstra claramente, em

sua apresentação, o que acabou de ser expresso acima.

A Secretaria Municipal de Saúde tem o prazer de apresentar à cidade a versão 2005-2008 do Plano Municipal de Saúde. Trata-se já do resultado de um sem número de rodadas de discussão de todos os setores integrantes da secretaria e dos membros do Conselho Municipal de Saúde, a partir dos debates dos relatórios de gestão e financeiro e das peças orçamentárias que também balizaram este documento. Além da detida análise da realidade sanitária do município e conjuntural do SUS, neste momento, foram estruturantes para a elaboração deste plano as ferramentas do planejamento estratégico, que a atual direção da secretaria adotou para guiar os seus passos neste período de governo. Este é o primeiro princípio que queremos abordar, o da consistência técnica, que significou a descrição dos principais problemas de saúde encontrados, de operações para o seu enfrentamento, de prazos e de responsáveis, sempre visando a integração de mais de uma área da gestão e o acúmulo histórico de cada setor. Reforçamos também o caminho desenhado e aprovado na cidade de articulação do conjunto das políticas públicas, no sentido de

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melhorar a qualidade de vida e saúde da população de Belo Horizonte. (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2005, p.13) (grifos nossos).

O PMS-BH ainda informa na sua apresentação que outro princípio adotado foi o da

coerência com a realidade do SUS na atualidade e seu financiamento. Assim, embora

identificadas as várias necessidades no setor através de diálogos com a sociedade, explica-se

no plano que houve a nítida decisão de embasar as propostas nas possibilidades concretas de

viabilização financeira e de sua execução, a fim de não tornar o plano apenas mais um papel,

cumprindo seu caráter formal.

Para o Município de Belo Horizonte, trabalhar a questão do planejamento e a

formulação do plano no setor de saúde apenas reforça a necessidade desse documento para a

garantia do direito à saúde73

Cada ente federativo deve destinar, conforme previsão constitucional, um determinado

percentual fixo, mínimo, de recursos financeiros para a área da saúde

.

74

É necessário ao Estado implantar políticas públicas para, progressivamente, efetivar os

direitos sociais constitucionalmente previstos. Clémerson Merlin Clève sustenta tese nesse

sentido:

, que deverá constar

das leis orçamentárias acima citadas. Assim, o planejamento deve começar sabendo-se quais

valores o ente federativo tem para os gastos públicos nesta área. Em seguida, é necessário

saber o que mais precisa de desenvolvimento na área de saúde, dando-se prioridade e

destacando como objetivo e meta a ser cumprida, o que constará no Plano.

[...] incumbe ao poder público consignar na peça orçamentária as dotações necessárias para a realização progressiva dos direitos. Não se trata de adiar a sua efetividade. Trata-se de estabelecer de modo continuado as ações voltadas para a sua realização num horizonte de tempo factível. (CLÈVE, 2006, p. 37).

O planejamento deve ser realizado por representantes políticos e da sociedade nas

mais variadas áreas. Verifica-se, assim, a importância da participação popular nesse processo.

Ninguém melhor do que o próprio cidadão, seja individualmente (como numa votação do

Orçamento Participativo Digital) ou através de associações (como Associações de Bairro ou

os Conselhos Municipais), para indicar as prioridades em cada área social, direcionando os

investimentos que devem ser realizados. Essa é a melhor forma de efetivação dos direitos

73 Dessa forma, garantir a saúde de cidadãos e cidadãs, de maneira organizada, planejada no tempo e no espaço, com metas e objetivos a serem alcançados e avaliados, na formulação de um Plano de Saúde (nacional, estadual ou municipal) é também, portanto, uma confirmação do direito à saúde. (PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE, 2005, p.15) 74 Art. 198, §§ 2º e 3º da Constituição Federal e art. 77 do ADCT.

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sociais. Essa também é a posição de Clémerson Merlin Clève (2006) ao afirmar a necessidade

da participação social nos processos de elaboração e controle da execução orçamentária.

Segundo ele, “incumbirá à sociedade civil consciente da singularidade dos direitos de

satisfação progressiva, escolher a velocidade dos gastos sociais e proceder às escolhas viáveis

dentro de um quadro de escassez de recursos.” (CLÈVE, 2006, p. 37)

Dessa forma, através da idéia de planejamento como um processo realizado com a

participação popular, pode-se alcançar a chamada justiça distributiva. Os tributos arrecadados

de todos os setores da sociedade auxiliam na estrutura do governo, mas, também, como se viu

acima, na efetivação de direitos sociais instrumentalizados pelos serviços e políticas públicas.

Assim, os recursos financeiros do Estado, que são escassos (reserva do possível),

devem ser utilizados para concretização dos direitos sociais através de serviços públicos

prioritários (mínimo existencial) que serão indicados pela própria sociedade, através da sua

participação efetiva, alcançando um dos objetivos da Constituição brasileira de 1988, que é a

justiça social (art. 3º, I).

Percebe-se, assim, a importância do planejamento, através de deliberações entre todos

os setores interessados, como se verá no próximo capítulo, a fim de se formular um plano de

saúde que possa ser concretizado, efetivando o direito à saúde, sem a necessidade da

intervenção constante do Poder Judiciário nas esferas do Executivo e do Legislativo.

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6 PARTICIPAÇÃO POPULAR

Um dos assuntos mais debatidos na Reforma Sanitária foi a necessidade, em todas as

esferas governamentais, da participação da comunidade através dos Conselhos de Saúde, que

tem por objetivo realizar avaliações e propor ações no setor, a serem executadas pelo Poder

Público.

Assim, dois pontos chaves no projeto eram o controle social e a gestão participativa no

setor da saúde. Confirmando esse ideal, Mariana Oliveira (2006) afirma que as proposições da

reforma sanitária apontavam a democratização do setor como pedra de toque, ou seja, há na

sociedade variados interesses, nem sempre no mesmo sentido, havendo a necessidade de

canais para essas múltiplas demandas e espaços para a negociação de alternativas.

Dessa forma, levando-se em consideração o momento vivenciado à época da VIII

CNS, com a redemocratização, cuja vontade popular era participar, discutir e decidir, a

Constituição de 1988 privilegiou os espaços de discussão, como os conselhos e as

conferências de saúde, objeto de estudo no próximo item.

6.1 Conselhos de saúde

No momento da Constituinte houve forte pressão dos movimentos sociais sanitaristas

para a introdução de novos instrumentos de participação social na formulação, execução e

fiscalização das políticas públicas de saúde.

Um dos itens constantes na proposta de reforma do sistema de saúde, formalizada

pela VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), foi a idéia de controle social do SUS. O art.

198 da Constituição Federal de 1988 firmou esse ideal de democratização dos espaços

decisórios, consagrando a participação da comunidade como diretriz do SUS, o que foi

reafirmado pela Lei n. 8.080/90 (BRASIL, 1990) e, posteriormente, pela Lei n. 8.142/90

(BRASIL, 1990)75

75 O art. 11 da Lei n. 8.080/90 regulamentava a participação popular, mas foi vetado pelo então Presidente da República, Fernando Collor de Mello, demonstrando a resistência quanto à implementação das conquistas da Reforma Sanitária, já inseridas na Constituição Federal de 1988. A Lei n. 8.142/90 retomou quase literalmente o dispositivo vetado.

. Boaventura de Souza Santos, citado por Bartolomei et al, pronuncia-se no

sentido de que “a Constituição foi capaz de incorporar novos elementos culturais, surgidos na

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sociedade, na institucionalidade emergente, abrindo espaço para a prática da democracia

participativa” (SANTOS apud BARTOLOMEI et al, 2003, p. 190).

A vontade de participação no governo, na área da saúde, é tão forte na atual

Constituição brasileira (1988), que se pode até falar em “democracia sanitária” (DALLARI,

2003).

Assim, três instituições caracterizam a democracia sanitária no Brasil: as conferências,

os conselhos (art. 1º da Lei 8.142/90) e os fundos de saúde.

As conferências de saúde devem ser realizadas a cada quatro anos, nos três níveis da

federação, com a participação paritária dos vários segmentos sociais (usuários, representantes

do governo, dos prestadores de serviço e dos profissionais de saúde), com o objetivo de

avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política sanitária nos

níveis correspondentes, com a responsabilidade do Poder Executivo para convocá-la ou,

extraordinariamente, pela própria conferência ou pelo Conselho de Saúde.

Os conselhos de saúde são órgãos colegiados que funcionam em caráter permanente e

deliberativo, com a participação paritária de representantes do governo, prestadores de

serviço, profissionais de saúde e usuários. Seu objetivo é formular estratégias e controlar a

execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos

e financeiros, e suas decisões serão homologadas pelo Poder Executivo.

Os fundos de saúde devem ser geridos por um Conselho com a participação paritária

dos usuários (50%) e de representantes do governo, dos prestadores de serviços e dos

profissionais de saúde, sendo seu funcionamento supervisionado pelo respectivo conselho de

saúde.

Desta forma, percebe-se que a legislação, tanto constitucional quanto ordinária, trouxe

mecanismos adequados para o exercício da chamada “democracia sanitária”. E mais, todos

eles foram implementados no Brasil. Entretanto, Dallari (2003) alerta para o fato de que essas

instituições da democracia sanitária encontraram uma sociedade que “não mais se interessa

com igual força pelos movimentos de ampliação da cidadania e um Estado não habituado a ter

suas ações controladas” (DALLARI, 2003, p. 370-371). Exemplo disso encontra-se na falta

de regulamentação, até a presente data, da Emenda Constitucional n. 29/2000, que trata do

financiamento da saúde.

Constata-se que, mesmo em tão pouco tempo, a participação popular foi efetivamente

inserida no sistema de saúde brasileiro. De acordo com Dallari (2003), em 2001, nos mais de

5.000 municípios brasileiros, 99% tinham um conselho de saúde e o fundo de saúde,

realizando periodicamente uma conferência de saúde. A consulta pública também faz parte do

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cotidiano da ANS e da ANVISA, que são agências reguladoras relacionadas ao setor da

saúde.

O controle social exercido pelos conselhos de saúde constitui um processo de

interação entre diversos atores, com diferentes interesses, muitas vezes divergentes. Assim,

cada participante deve reconhecer, tolerar e respeitar as diferenças do outro, desenvolvendo

negociações claras e democráticas (COSTA E NORONHA, 2003). Assim, diante desse

espaço de poder, conflito e negociação, importante é preocupar-se com o acesso e o uso das

informações, bem como de outros recursos de poder, a fim de que tais institutos democráticos

não sejam instituídos apenas como mera formalidade, exigida pela legislação para repasse de

verbas.

A gestão participativa, que deve ser entendida como “a orquestração de um conjunto

de políticas construídas em parceria com a sociedade” (MISOCZKY, 2003, p. 338), pressupõe

o funcionamento dos conselhos e das conferências, a fim de pautar as políticas de saúde.

Para alcançarem seus objetivos, os conselhos precisam ser compostos por sujeitos

políticos e sociais atuantes, dotados de representatividade e legitimidade. Os representantes de

cada segmento social são eleitos pelos representados, o que caracteriza democracia

representativa. Por outro lado, esses mesmos representantes devem manter um vínculo

permanente com o respectivo segmento representado, que deve controlá-lo diretamente bem

como pode revogar seu mandato, o que caracteriza democracia direta.

Os conselhos não devem ser vistos pelos administradores públicos como

questionadores ou incômodos. “O gestor comprometido com a gestão participativa suporta a

atuação do conselho e lhe confere poder e respeito” (COSTA E NORONHA, 2003, p. 363).

Eles podem, inclusive, ser aliados do governo na luta por recursos ou decisões que favoreçam

a saúde da população. Assim, podem ser encontradas características de poder executivo e

legislativo nos conselhos de saúde, pois auxiliam a Câmara Municipal na elaboração de leis,

bem como o Prefeito na execução das leis e, ainda, a ambos na condução dos assuntos de

saúde no município.

Desta forma, os usuários, através dos conselhos, passam a ser atores sociais,

responsáveis pelas decisões do governo, deixando de ser atores passivos e alheios. Essa

parece ter sido a intenção dos participantes da VIII CNS, como se pode constatar na palestra

do Prof. Jairnilson Silva Paim:

A garantia dos direitos sociais não deve reduzir os cidadãos a meros peticionários da administração ou da burocracia. Ou seja, a prestação de serviços por parte do Estado não pode deslocar a participação política dos cidadãos para reivindicações

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específicas, a mercê das oscilações comportamentais da tecno-burocracia. A transparência dos aparelhos de Estado à informação do público, o controle público dos serviços estatais e a gestão pública das instituições (mesmo as empresas privadas) é que poderão contracenar com os riscos do “estatismo autoritário” ou “democracia autoritária” e romper os limites da participação dos cidadãos na vida política. (PAIM, 1986, p. 57).

Ainda, sobre a importância dos conselhos de saúde, como arena de discussão e

aproximação entre o governo e a sociedade, Costa e Noronha afirmam:

Os Conselhos podem representar um avanço na organização do Estado, colocando-o sob o controle permanente da sociedade permitindo, por meio de um novo estatuto jurídico-institucional e da participação direta da população, que se estabeleçam novos padrões de relacionamento da comunidade com o governo e os serviços de saúde. Esta proposta de organização do Estado está no bojo do que hoje se denomina Gestão Participativa. (COSTA E NORONHA, 2003, p. 362)

Um problema frequentemente colocado é a especificidade/tecnicidade do assunto,

dificultando o diálogo entre os conselheiros. Os usuários ficam dependentes dos profissionais

de saúde para exercerem efetivamente sua função e o seu poder decisório. Entretanto,

conforme ressaltam Costa e Noronha (2003), as capacidades e habilidades dos representantes

dos usuários são diferentes e não devem ser confundidas com a dos técnicos ou gestores

institucionais. “Apesar de frequentemente confundidas, as capacitações para conselheiros

devem ser claramente definidas, tomando como base o perfil desejável para cada conselheiro,

de acordo com as aspirações sobre a saúde de seus representados” (COSTA E NORONHA,

2003, p. 363).

Assim, as diferenças de necessidades e de visão de mundo de cada setor representado

nos Conselhos geram disputa de poder, o que não pode ser obstáculo para afastá-los de sua

finalidade, que é a promoção da justiça social e a melhoria do nível e situação da saúde da

população representada.

Hoje há também outro tipo de preocupação envolvendo a participação popular, que

nasce com o movimento pela humanização da saúde76

76 De acordo com Puccini e Cecílio (2004), essa intenção humanizadora nos serviços de saúde se traduz em diferentes proposições, tais como melhorar a relação médico-paciente, denunciar a “mercantilização” da medicina, implementar novos procedimentos na atenção psiquiátrica, na realização do parto (programa da mãe-canguru), entre outras. “Abandona-se o foco da preocupação epistemológica de construção de uma ciência isenta, neutra e reconciliada com o humanismo clássico, para se procurarem respostas no processo social e político dialógico entre os sujeitos.” (PUCCINI e CECÍLIO, 2004, p. 1.349).

. Trata-se da “possibilidade de abrir a

organização para o cidadão indo além da mensuração de graus quantitativos de satisfação,

incorporando a opinião e reivindicações da população (...).” (PUCCINI e CECÍLIO, 2004, p.

1349). Busca-se, com isso, uma tomada de consciência mútua dos profissionais de saúde e

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dos cidadãos no processo de desenvolvimento de novas finalidades e projetos comuns para a

saúde.

6.1.1 A esfera pública de Habermas e o direito à saúde no Brasil

O setor de saúde apresenta o maior exemplo de “esfera pública” no Brasil. Desde os

movimentos que constituem a chamada Reforma Sanitária, que se iniciam antes da VIII CNS,

passando por essa, que se tornou um grande debate entre todos os segmentos da saúde,

envolvendo, inclusive, grande representatividade dos usuários, até os conselhos atualmente

existentes, nas três esferas de governo, entre outros mecanismos de debates existentes na área

da saúde, percebe-se a existência de espaços civis que implicam a legitimação das normas

sobre a matéria sanitária.

O modelo procedimental de interpretação constitucional, formulado por Habermas,

estabelece uma relação interna entre autonomia privada e autonomia pública. Para o autor ora

citado, a justiça não deve se vincular a um modelo distributivo (de direitos iguais – liberal; ou

de benefícios sociais – comunitário), considerando o cidadão apenas como destinatário de

bens. O objetivo é dar aos indivíduos a possibilidade real de escolher entre as alternativas

possíveis, assegurando, assim, a igual oportunidade para o exercício das liberdades

individuais. Conforme Cittadino, “quando os cidadãos vêem a si próprios não apenas como os

destinatários, mas também como os autores do seu direito, eles se reconhecem como membros

livres e iguais de uma comunidade jurídica.” (2000, p. 209).

A esfera pública para Habermas significa a formação de uma opinião pública crítica.

Nesse paradigma, esfera pública deve ser considerada:

como uma periferia cujos estímulos sitiam o centro político: cultivando razões normativas, ela afeta todas as partes do sistema político sem pretender conquistá-lo. Passando através dos canais das eleições gerais e das várias formas de participação, opiniões públicas são convertidas em poder comunicativo que autoriza o legislativo e legitima agências regulatórias, ao mesmo tempo que uma crítica publicamente mobilizada das decisões judiciais impõe uma maior exigência de justificação sobre um judiciário envolvido com um amplo desenvolvimento do direito. (HABERMAS apud CITTADINO, 2000, p. 211)

Assim, as opiniões públicas devem sair das esferas públicas (periferias), passando

pelos canais de participação estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito e exercer

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influência e controle sobre o centro político, formado pelos Poderes Legislativo, Executivo e

Judiciário. O paradigma procedimental pressupõe o compromisso com o processo político

deliberativo, assegurando a produção e a interpretação dialógica do direito.

Destarte, essa é a idéia adotada na democracia sanitária. Por meio de discussões nas

esferas públicas compreendidas pelos conselhos, conferências e fundos de saúde, as opiniões

convertidas em poder comunicativo autorizam o legislativo a votar, por exemplo, os planos de

saúde, e a administração pública a distribuir os recursos financeiros recebidos, de forma mais

adequada.

Pessoas com uma condição subjetiva comum (usuários, médicos, profissionais da área

sanitária), apropriam-se do espaço público, normativamente controlado pela autoridade,

podendo transformá-lo pelo debate, inclusive criticando o poder estatal. Essa garantia de

mediação para as relações entre Estado e sociedade torna lícita a reivindicação coletiva dos

representantes dos diversos segmentos.

No âmbito do processo discursivo os diversos interesses são afirmados e submetidos a

uma avaliação crítica. Todos esses atos comunicativos ficam submetidos a pretensões de

validade. Os sujeitos que participam do processo dialógico, através da reflexão e da crítica,

devem romper com suas validades subjetivas, regadas por seus próprios valores, de forma que

a interação comunicativa seja alcançada por meio de acordo fundamentado nas razões

apresentadas, prevalecendo a força do melhor argumento. O acordo racionalmente motivado

representa o interesse de todos os participantes do processo. Trata-se, portanto, de normas

válidas, pois encontram o assentimento de todos os participantes do discurso77

Neste ponto, retornando à proposta de Dworkin, trabalhada nesta dissertação sob o

aspecto da reserva do possível (princípio do seguro prudente ideal), importante é o

esclarecimento do autor americano sobre a necessidade de participação de representantes de

diversos grupos para tomar as decisões de quais serviços de assistência médica devem fazer

parte do pacote básico, tais como médicos e especialistas da área de saúde, mas, também, de

leigos de diversas idades e partes do país e, ainda, de estilos de vida diferentes. Conclui

Dworkin que:

.

A comunidade comprometida com a igualdade de recursos, de modo que o povo possa tomar suas próprias decisões acerca da vida que melhor lhe convier, incentiva,

77 “Pelo princípio da soberania popular entende-se a exigência de que a legislação expresse a vontade da totalidade dos cidadãos, ou seja, que deixem de ser meramente destinatários do Direito, mas tornem-se seus co-autores. Aqui, através de uma nova concepção de paradigma jurídico, Habermas reconstrói a relação entre a autonomia privada e a autonomia pública, dissociadas, até então, nas concepções liberal e comunitarista.” (CRUZ, 2004, p. 163)

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em vez de subverter, os princípios adequados da responsabilidade individual. (...) O plano de saúde elaborado para respeitar as decisões dos cidadãos como seguradores prudentes é, de fato, igualitário. Mas é o oposto do paternalismo. (Dworkin, 2005, p. 449)

Diante desse paradigma procedimental, caberia ao judiciário proteger o processo de

criação democrática do direito, velando pelo respeito aos procedimentos democráticos de

formação da opinião e da vontade políticas, uma vez que o seu resultado (acordo

racionalmente motivado) supõe um princípio de universalização (U), segundo o qual “toda

norma válida deve satisfazer a condição de que os efeitos laterais de seu cumprimento geral

para a satisfação dos interesses de cada indivíduo possam ser aceitos sem coação por todos os

afetados” (HABERMAS apud CITTADINO, 2000, p. 94).

Os direitos fundamentais sociais, como o direito à saúde, são requisitos

procedimentais da democracia, já que são pressupostos do discurso jurídico, bem como

conseqüência desse mesmo procedimento discursivo, na garantia de participação para a sua

própria construção substantiva, isto é, da elaboração do código jurídico (CRUZ, 2006). Souza

Neto adverte,

A teoria democrático-deliberativa chama justamente a atenção para a necessidade de que o Judiciário possa concretizar, além desses [mínimo existencial], também os direitos sociais que são condições para uma participação igualitária na vida pública. Observe-se que essa igual possibilidade de participar não assume no âmbito dessa teoria um caráter meramente formal, de igual tratamento legal pelo Estado, independentemente das condições reais de existência. [...] Mas, note-se bem: o tipo de igualdade material exigida pela democracia não é uma igualdade absoluta, mas a igualdade material relativa suficiente para que possamos deliberar quais são as diferenças que consideramos justas. (SOUZA NETO apud CRUZ, 2006, p. 146)

Constata-se, atualmente, o fortalecimento da democracia participativa, já que a

democracia representativa, em geral, atende apenas aos anseios do grupo de representados.

Magalhães (2003) admite que uma forma para se resgatar e fortalecer a democracia

representativa é o fortalecimento da participação popular através da criação de mecanismos

que ofereçam permeabilidade ao poder do Estado, através de canais de participação cada vez

maiores, citando, como exemplo, o orçamento participativo.

Outro mecanismo de permeabilidade ao poder, citado por Magalhães (2003), são os

conselhos municipais, que funcionam como canais de participação popular permanente. Esse

autor defende ainda que a democracia social e participativa deve começar através do poder

local, isto é, nos municípios, pois esse é o caminho para se incluir o povo como cidadãos.

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Os movimentos e os mecanismos adotados na área da saúde demonstram claramente a

adoção do novo conceito de cidadania. Esse novo conceito de cidadania significa ampliação

do conceito passado, englobando a representação, liberdade e participação, transferindo-a do

plano político institucional ao da sociedade como um todo. Assim, de acordo com Maria Célia

Paoli, citada por José Geraldo de Sousa Júnior na VIII CNS:

A cidadania expressa nestes termos é a condição constitutiva do que Maria Célia Paoli chama de “espaço civil”: algo que “se situa a meio caminho do domínio compreendido pela noção de cidadania no sentido estrito – a igualdade jurídica de cada indivíduo perante a lei na defesa de seus direitos e no cumprimento de suas obrigações – e a ação política propriamente dita, enquanto estratégias organizadas de reivindicações coletivas, ou seja: que o conjunto de experiências comuns a grupos sociais diversos, vividas no seio da dimensão privada, possa se expressar na esfera pública de modo autônomo e organizado. (SOUSA JÚNIOR, 1986, p. 64).

Dessa forma, a noção de cidadania se vê revigorada por um significado liberatório,

que se originou nas lutas do homem por sua emancipação social, abrangendo o direito à

igualdade de expressão de interesses na esfera pública, como direito à expressão da

identidade, como promessa de representação no poder e, ainda, a exclusão do privilégio.

Verifica-se, assim, a importância da participação popular no setor da saúde. Os

mecanismos já existem, basta aos indivíduos tomarem ciência de seu direito de participar e de

sua responsabilidade quanto às decisões (acordos) apresentadas, pois essas devem representar

o interesse e o assentimento de todos os participantes do processo.

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7 CONCLUSÃO

O presente trabalho abordou temas controvertidos no direito à saúde, e que, em geral,

ameaçam a sua efetividade.

Primeiro abordou-se o aspecto histórico do direito à saúde no Brasil, verificando-se

que os três modelos de saúde se desenvolveram no país. O sistema do previdencialismo, que

vigorou da década de 1920 até a Constituição de 1988, trouxe duas grandes dicotomias,

reforçando a desigualdade social e econômica, uma vez que os trabalhadores urbanos do

mercado formal, que pagavam contribuição previdenciária, eram beneficiados com o

atendimento médico do setor privado, onde prevalecia a medicina curativa, enquanto os

trabalhadores rurais e do mercado informal ficavam na dependência do serviço de saúde

pública, cujo objeto consistia em medidas de caráter coletivo, como as campanhas sanitárias.

Diante dessa clara divisão de tarefas e clientelas, começam a surgir no Brasil

movimentos pela universalização do sistema sanitário, a fim de que todos possam ser

atendidos, sem preferências, pelo sistema público de saúde. O marco deste movimento foi a

VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1986, cujos eixos fundamentais de

discussão foram a saúde como direito, reformulação do sistema de saúde e financiamento do

setor.

O resultado dessa conferência foi um consenso político, permitindo a elaboração do

projeto da reforma sanitária, caracterizado por três eixos principais: o conceito abrangente de

saúde; saúde como direito de cidadania e dever do Estado; a instituição de um sistema único

de saúde. Ainda foram estabelecidos como princípios do direito à saúde: universalização,

integralidade, regionalização e hierarquização, descentralização, democratização das

instâncias gestoras.

O relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde serviu de base para a

elaboração do capítulo da saúde na Constituição de 1988, a primeira a contemplar

expressamente esse direito.

Não há dúvida de que essa foi uma grande conquista para a sociedade na área da

saúde. Entretanto, outros entraves surgiram, e, quase vinte anos após a promulgação da

Constituição (1988), o direito à saúde, garantido a todos como dever do Estado de forma

universal, não é realmente acessível a todos que dele dependem.

A definição contemporânea de saúde é aquela adotada pela Organização Mundial de

Saúde – OMS, considerando o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não

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apenas a ausência de doença ou enfermidades. Tal conceito é criticado, vez que torna a saúde

algo utópico. Ademais, formulado por profissionais da área médica, despreza outros fatores

que a determinam.

Além disso, conforme exposto no trabalho, o direito à saúde pode ser entendido sob o

aspecto da saúde preventiva, inerente ao mínimo existencial, e saúde curativa, incluída no rol

de direitos sociais. De acordo com esse entendimento, a saúde preventiva deve sempre ser

atendida pelo Estado, como direito público subjetivo, não devendo haver qualquer obstáculo

para sua concretização, nem mesmo a alegação de reserva do possível, pois está relacionada

ao direito de liberdade (status positivus libertatis).

A saúde curativa, sendo considerada direito social (status positivus socialis), deve ser

interpretada num conceito global e progressivo, a fim de eliminar desigualdades sociais, isto

é, está estreitamente relacionada ao conceito de justiça social ou de igualdade de

oportunidades.

De acordo com o entendimento de Torres (2001) sobre mínimo existencial e suas

dimensões de status positivus libertatis e status positivus socialis, propõe-se uma nova

classificação em direitos sociais lato sensu e direitos sociais stricto sensu, considerando-se,

ainda, que todos os direitos sociais são direitos fundamentais, o que Torres não admite.

Assim, os chamados direitos que compreendem o mínimo social seriam direitos sociais stricto

sensu, voltados para um caráter mais urgente, sem os quais o indivíduo tem a própria

existência ameaçada. Os direitos sociais lato sensu englobariam os demais, também

necessários, mas que podem ser exercidos progressivamente, na medida do desenvolvimento

econômico da sociedade. Tais critérios não pretendem determinar um conteúdo a priori para

cada uma das classificações, porque dependerá de aspectos sócio-econômicos das distintas

comunidades.

A expressão “todos” do art. 196 da Constituição (1988), deve ser lida nas dimensões

do art. 194, também da Constituição (1988), que estabelece a seletividade e distributividade

na seguridade social, da qual a saúde faz parte. Por outro lado, “todos” significa que ninguém

pode deixar de ser atendido pelo serviço público por não contribuir com a previdência social.

Essa é a verdadeira universalidade no sistema de saúde.

A “saúde como dever do Estado” (art. 196, Constituição 1988) deve ser entendida de

forma a extinguir com a estrutura anteriormente vigente, em que a previdência social

comprava do setor privado os serviços de assistência médica e fornecia àqueles que para ela

contribuíam.

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Assim, o Estado deve prestar os serviços de saúde através de políticas sociais e

econômicas, de forma a privilegiar a saúde preventiva, mas também atender à saúde curativa,

buscando beneficiar o maior número de pessoas que realmente precisem desses serviços e não

possam adquiri-los no mercado privado, conforme o princípio da seletividade e

distributividade.

O direito à saúde é direito público subjetivo, ou seja, pode ser exigido do Estado.

Entretanto, essa exigência deve buscar atender a uma coletividade de pessoas. Pretensões

individuais de saúde curativa, como as que são vistas nos tribunais, não resolverão, nem

efetivarão o direito à saúde. A exigência de prestação estatal pela via judicial deve se dar

apenas quando o Estado não estiver realizando as políticas sociais e econômicas previstas na

Constituição ou quando estas forem inadequadas ao propósito aqui delineado.

O art. 196 da Constituição de 1988 é norma programática. Contudo, conforme

alegado pelo Min. Celso de Mello (STF), a sua programaticidade não pode ser obstáculo para

a concretização do direito à saúde. Por isso, na falta de políticas econômicas e sociais que o

efetivem, ou da sua inadequação, cabe ao Judiciário efetivá-lo, mas somente nesta situação.

Assim, deve-se comprovar o inadimplemento estatal.

A garantia do mínimo existencial não deve ser reduzida ao mínimo de sobrevivência, a

fim de não limitar os direitos que a compreendem. Assim, conforme defendido por Torres

(2001), determinados direitos são imprescindíveis à liberdade e dignidade do indivíduo. É

certo que o seu conteúdo é indeterminado e irá depender dos aspectos socioeconômicos de

cada país. No Brasil, por exemplo, a garantia do mínimo existencial não pode abranger todas

as prestações relacionadas ao direito à saúde, o que o torna utópico e ineficaz para muitos

indivíduos.

A reserva do possível é problema enfrentado por todas as nações. Não há como

desconsiderá-la. Entretanto, tendo-se bem definido o que é a garantia do mínimo existencial

(não seu conteúdo, de forma absoluta), a alegação de reserva do possível fica esvaziada. Por

outro lado, os juristas devem ter atenção redobrada neste aspecto, pois se trata de matéria, em

geral, que não afeta ao direito, mas sim à economia e à administração pública. O magistrado,

ao se deparar com esse tema, deve requerer o auxílio de especialistas para auxiliá-lo, bem

como permitir um processo discursivo, em que as partes apresentem racionalmente seus

argumentos, conforme preconiza Cláudio Ari Mello (2001) mediante sua concepção

pragmática das normas constitucionais definidoras de direitos sociais, baseada na ética

discursiva de Habermas.

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É de suma importância a mudança de orientação dos tribunais, que atualmente ainda é

formada de acordo com o caráter formalista das leis, voltado para o sistema jurídico-positivo

qualificado pelo individualismo, próprio do Estado liberal clássico.

O direito à saúde exige o equilíbrio entre diversos interesses coletivos, que devem ser

mensurados, a fim de que sejam alcançados os objetivos previstos na Constituição de 1988,

entre eles, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Os juízes precisam

interpretar esse direito de acordo com a realidade brasileira e não é atendendo demandas

individuais, de saúde curativa, que se conseguirá dar igualdade de oportunidades aos

indivíduos mais necessitados.

Pelo exposto, defende-se que o direito à saúde seja efetivado através das políticas

públicas, o que, aliás, está previsto no art. 196 da Constituição de 1988 (garantido mediante

políticas sociais e econômicas) e na Lei n. 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde). Através das

políticas públicas é possível saber as prioridades e efetuar a previsão de gastos, o que revela

uma forma de compromisso público de atuação para determinado lapso de tempo, como no

caso dos planos de saúde.

Além disso, a participação popular se mostra muito importante para o planejamento

das políticas públicas e é garantida na área da saúde (art. 198 da Constituição de 1988 e Lei n.

8.142/90). Os conselhos e conferências de saúde são a prova de que é possível a democracia

participativa. Falta, ainda, a conscientização da sociedade de que podem e devem participar.

O canal para a participação, o diálogo, está aberto, viabilizando a transformação dos

indivíduos em co-autores sociais. Essa também é uma fórmula de fortalecimento da

democracia representativa.

Não se pode ter a pretensão de que as idéias defendidas neste trabalho levariam a

saúde pública no Brasil a um nível de excelência, o que seria uma utopia. Deve-se ter

consciência da realidade brasileira e propor condições possíveis de serem satisfeitas.

Pretende-se, aqui, é que histórias como as citadas na introdução dessa dissertação não se

repitam tantas e tantas vezes como ocorre hodienarmente, isto é, pessoas morrendo por não

conseguirem o mínimo de prestação no serviço de saúde pública. Assim, objetiva-se que a

parcela da população, que realmente depende do serviço público de saúde, receba-o melhor.

Esse será o verdadeiro sentido da universalidade, integralidade, distributividade e seletividade

do direito à saúde.

O tema do direito à saúde é fascinante e infinito. O seu estudo não se encerra aqui,

mas espera-se que possa contribuir e incentivar outros pesquisadores, a fim de que no futuro o

direito à saúde realmente seja efetivado em sua plenitude.

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