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e rdade. Será que ela existe? Até que ponto pode-se falar da existência de uma única v e rdade inquestionável? Drummond de- safia o conceito cristalizado sobre o tema. Não há para o poeta indubitável verdade, nem mesmo consegue-se chegar a qualquer con- cepção. A compreensão da verdade desafia a huma- nidade há milhares de anos. Filósofos da antiga Grécia debatiam sua natureza. Discutiam se era real e absoluta, ou relativa e ilusória. Mas o que é verdadeiro? Posso conhecer a ver- dade? A própria pergunta sobre a verdade passa a ser reavaliada e reformulada diante das múltiplas possibilidades de respostas que surgem à medida que o conhecimento é relativizado e as explicações antes intocáveis vão com o passar da história mudando as feições. ANA LUIZA HUPE, CAROLINA SALOMÃO, ISABELLA HEINE E JULIANA SERFATY É tudo mentira! 81 Há mais “verdades” entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia As verdades que os homens contam Verdade A porta da verdade estava aberta, Mas só deixava passar Meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, Porque a meia pessoa que entrava Só trazia o perfil de meia verdade, E a sua segunda metade Voltava igualmente com meios perfis E os meios perfis não coincidiam verdade... Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta, Chegaram ao lugar luminoso Onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades Diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela E carecia optar. Cada um optou conforme Seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade. Corpo.

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Page 1: As verdades que os homens contam - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/21 - as verdade que os homens... · Nenhuma das duas era totalmente bela E carecia optar

e rdade. Será que ela existe? Até que pontopode-se falar da existência de uma únicav e rdade inquestionável? Dru m m o n d de-safia o conceito cristalizado sobre o

tema. Não há para o poeta indubitável verdade,nem mesmo consegue-se chegar a qualquer con-cepção.

A compreensão da verdade desafia a huma-nidade há milhares de anos. Filósofos da antiga

Grécia debatiam sua natureza. Discutiam se erareal e absoluta, ou relativa e ilusória.

Mas o que é verdadeiro? Posso conhecer a ver-dade? A própria pergunta sobre a verdade passa aser reavaliada e reformulada diante das múltiplaspossibilidades de respostas que surgem à medidaque o conhecimento é relativizado e as explicaçõesantes intocáveis vão com o passar da históriamudando as feições.

ANA LUIZA HUPE, CAROLINA SALOMÃO, ISABELLA HEINE E JULIANA SERFATY

É tudo mentira!81

Há mais “verdades” entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia

As verdades que oshomens contam

Verdade A porta da verdade estava aberta,

Mas só deixava passarMeia pessoa de cada vez.Assim não era possível atingir toda a verdade,Porque a meia pessoa que entrava

Só trazia o perfil de meia verdade,E a sua segunda metadeVoltava igualmente com meios perfisE os meios perfis não coincidiam verdade...Arrebentaram a porta.

Derrubaram a porta,Chegaram ao lugar luminoso

Onde a verdade esplendia seus fogos.Era dividida em metades

Diferentes uma da outra.Chegou-se a discutir qual a metade maisbela.Nenhuma das duas era totalmente bela E carecia optar.Cada um optou conformeSeu capricho,sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade. Corpo.

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“Deve-se exigir de mim que procure a verdade,mas não que a encontre” Diderot

Como poeta moderno, Drummond busca atravésda poesia as suas respostas que são os sentimentospessoais, impressões e pensamentos. Ele apontapara a desconstrução de todas as crenças arbi-trárias, indicando a multiplicidade presente nosdiferentes objetos que estão no mundo. Volta-separa o seu universo particular, já dissolvido emuma visão parcial e pessoal sobre a realidade, à suaverdade que não necessariamente é a mesma da detodos que estão lendo este artigo, muito menos dosque habitam este planeta.

Muitos filósofos e amantes dosaber chegaram à conclusão quemais vale a busca da verdade doque propriamente o seu conheci-mento. Vivemos em um eternofluir e destruir de pensamentosque no decorrer da história se autocorrompem, semsabermos com que certeza seguimos adiante.

Este é um dos impasses não só das engenhosasteorias, como também do jornalismo diário nodever de relatar a verdade dos fatos. Como ser fielao ocorrido? Embora descrever o objeto em si, sem

que o sujeito interrompa a veracidade da ação sejauma das premissas do jornalismo com credibili-dade, não existem meios de transmissão de umainformação que não passem pela mente de um serhumano que carrega em si uma história de vida, emesmo sobre muitas tentativas de ser uma tábularasa, não se estaria imune a ela. No fim, somostodos reféns de nós mesmos. Cada um com seusparticulares caprichos, miopias e ilusões.

“Aquele que duvida e não investiga torna-senão só infeliz, mas também injusto” Pascal

Mentira tem perna curtaSegundo o jornalista Arthur Dapieve, professor do

curso de jornalismo da PUC-Rio,o jornalismo se faz baseado emfatos, portanto para seu exercícioa verdade é fundamental. Con-tudo, é difícil se chegar a umaverdade completa, uma vez quehá sempre uma parte da notícia

que não se consegue apurar. Para o jornalista, abusca pela verdade completa pode ser bem pertur-badora. Relatos, fatos, dados, números e apuraçõeslevam o repórter a chegar o mais próximo possíveldo que é verdadeiro. “Então quando você vê qual-quer assunto que esteja sujeito à celeuma, aquilo

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“Para o jornalista, a buscapela verdade completa pode

ser bem perturbadora” Arthur Dapieve

Diderot

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que os jornais, os sérios e cons-cienciosos, publicam, são apenasuma parte da verdade. Parte daverdade está sob suspeita, nãoparece verdadeira”, pondera ojornalista.

Dapieve relata que, quandotrabalhou como editor, deixou de publicar matériaspor apresentarem relatos que, aparentemente, nãose sustentavam. Certa vez, ele conta que umrepórter chegou à redação com uma entrevista deum sujeito que se dizia terrorista ligado ao grupoislâmico Hezbollah: “O repórter era ótimo, confiá-vel, ganhador de prêmios, mas a substância damatéria não me dava garantias de que aquilo eraverdade. Então preferi não publicar”, conta.

O jornalista ressalta que há uma linha tênueentre opinião e inverdade. Mentiras não podem serpublicadas nos jornais. O que é legítimo numademocracia é opinar a favor ou contra, a partir deuma informação. Há diferentes visões a partir deum só fato.

Ele acrescenta que a manipulação de uma notícianão é a distorção de um fato e sim um corte da rea-lidade, que acontece quando é conveniente deixara verdade de lado. “A revista Veja tem uma cam-panha anterior ao governo Lula contra o MST. Oque a Veja fala é verdade, só que ela faz um recortee deixa de contar o outro lado, porque se o que elafalasse fosse apenas mentira, não se sustentaria”,exemplifica Dapieve.

Jornalisticamente, mentira tem perna curta.

Em verdade, vos digoA verdade não é uma

abstração intelectual, é umacontemplação à import â n c i ado que existe dentro dos sere s .Para os cientistas, a verdade éc o n s t ruída, enquanto que parareligiosos, é absoluta. Dife-rentemente da visão re l i g i o s aclássica, o arcebispo da Igre j aO rtodoxa do Rio de Janeiro ,Olinda e Recife, Dom Cri-sóstimo, discorda da verd a d eabsoluta dogmatizada, aquela

imutável. “A verdade existe comoalgo que paira no ar, mas ela pre-cisa ser descoberta. Cada um temuma vocação, as pessoas pre-cisam descobri-la e desenvolvê-la– essa é a verdade de cada um”,explica o arc e b i s p o .

S o b re a ciência, ele comenta que ela descobrev e rdades soltas, que se fecham em si mesmas, nãosão dimensionadas no cosmos. Ele diz que a ver-dade é a busca sem julgamentos, o pecado fazp a rte e a mentira aumenta a distância ao caminhoque cada um deve seguir. “São demais os perigosdessa vida. O problema não é vivê-los, a buscapela verdade é perd o a r-se a si mesmo. Existemvários caminhos para isso, o importante é re l i g a r-se, ter referências, não segui-los individualmente”,c o n c l u i .

A verdade das sensaçõesNos primórdios da existência do homem, os sere s

humanos eram agressivos e violentos, não tinhamleis. Estas foram criadaspara conter a violênciados homens. As leis sãonecessárias para que ohomem viva em so-ciedade, mas elas re-primem os instintoshumanos mais primi-tivos e agressivos. Asmesmas normas quec o n t rolam os instintosoprimem a livre expre s-são do ser humano,aprisionando-o numafalsa sensação de liber-dade. O homem passaa viver em função da moral, que é o resultado desseaprisionamento.

De acordo com a filósofa Claudia Castro, pro f e s-sora do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, oconceito de verdade anterior a Nietzsche eramoralista. A partir do filósofo alemão, a verd a d edeixou de ser científica, passou a ser uma ficçãoque deve ser entendida como tal. “A verdade éuma mentira sem a qual não conseguiríamos

É tudo mentira!83

“A verdade é uma mentirasem a qual não

conseguiríamos viver,a verdade é arte”

Claudia Castro

“A verdade libert a r-vos-á” E v a n g e l h o

de S. João

“A única verdade é arealidade” Aristóteles

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v i v e r, a verdade é arte. Através da arte, podemose x p ressar o que em nós é singular, o que sentimos,mas não conseguimos expressar em palavras”,explica a professora. Para ela, a verdade não é

uma obra da ciência, mas sim uma experiência dotempo e para alcançá-la, “é preciso largar o pen-samento, experimentar as sensações que o mundoo f e rece”, conclui.

A VERDADE NO TEMPOAletheia se refere ao que as coisas são; veritas aos fatos que foram; emunah se

refere às ações e coisas que serão. A nossa concepção de verdade é uma síntesedessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes, como na aletheia, aosfatos passados e à linguagem, como na veritas, e às coisas futuras, como nae m u n a h. Também se refere à própria realidade, como aletheia, à linguagem,como veritas, e à confiança-esperança, como na e m u n a h.

FONTE: http://www.consciencia.net – Texto: Renato Kress. Acesso: 07/11/05

A VERDADE GREGAEm grego a palavra para verdade é

aletheia e significa o não oculto, nãoescondido, não dissimulado. O ver-d a d e i ro é o que se manifesta aos

olhos do corpo e do espírito, a verdade é a manifestação daquilo que é ouexiste tal como é. O verdadeiro, neste sentido, se opõe ao falso, pseudos,que é o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que parece ser e não écomo parece. Verdadeiro é o evidente, numa acepção quase ‘visual’ dapalavra, o ‘verdadeiro’ é claro, delineado, estruturado, visível.

A VERDADE LATINA Em latim, verdade se diz veritas e se refere

à precisão, ao rigor e à exatidão de umrelato, no qual se diz com detalhes, por-m e n o res e fidelidade o que aconteceu.

Verdadeiro se refere, portanto, à linguagem enquanto narrativa de fatos acon-tecidos, se refere a enunciados que dizem fielmente as coisas tais como foramou aconteceram. Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a lin-guagem enuncia os fatos reais.

A VERDADE HEBRAICAEm hebraico verdade se diz e m u n a h e sig-

nifica confiança. Agora são as pessoas e éDeus quem são verd a d e i ros. Um Deus ver-d a d e i ro ou um amigo verd a d e i ro são

aqueles que cumprem o que prometem, são fieis à palavra dada ou a um pactofeito; enfim, não traem a confiança.

A verdade se relaciona com a presença, com a espera de que aquilo que foiprometido ou pactuado irá cumprir-se ou acontecer. Emunah é uma palavrade mesma origem que amém, que significa que assim seja. A verdade é umacrença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que seráou virá. Sua forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão maisperfeita é a profecia.

VERDADES

A L E T H E I A

VE R I TA S

EMUNAH

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