as transformaÇÕes e permanÊncias da literatura … · de administração e turismo e orientadora...

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AS TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS DA LITERATURA DE CORDEL NOS TERRITÓRIOS DO RIO DE JANEIRO Carolina Mariano de Oliveira 1 Elis Regina Barbosa Ângelo 2 Resumo Este artigo visa apresentar o projeto de extensão que vem sendo realizado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro intitulado “Identidades e Expressões Populares no Rio de Janeiro: Territórios da Literatura de Cordel” e que tem como objetivo compreender a produção e a manutenção da Literatura de Cordel na cidade, levando em conta, principalmente, o papel da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, da Feira de São Cristóvão e da Fundação Casa de Rui Barbosa como locais de produção, divulgação e preservação do cordel brasileiro. Como metodologia de trabalho adota-se a análise de fontes, a produção de fichas informativas sobre a maior parte dos cordéis em arquivos, a visitação e as entrevistas diretas com os produtores e divulgadores do cordel na atualidade da capital fluminense. Antes, contudo, de expor os caminhos que o projeto segue e os resultados que espera alcançar, pretende-se aqui uma reflexão sobre o papel fundamental da categoria de Patrimônio Imaterial para a perpetuação, ainda que com transformações, dessa forma de expressão literária no contexto cultural brasileiro. Palavras-chave: [patrimônio], [patrimônio imaterial], [identidade], [memória] [literatura de cordel] [territórios]. 1 Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 2 Professora do Programa de Pós Graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade, PPGPACS, do Departamento de Administração e Turismo e Orientadora do BIEXT projeto de Extensão aprovado na UFRRJ: Identidades e Expressões Populares no Rio de Janeiro: Territórios da Literatura de Cordel, 2018. E-mail: [email protected]

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AS TRANSFORMAÇÕES E PERMANÊNCIAS DA LITERATURA DE CORDEL

NOS TERRITÓRIOS DO RIO DE JANEIRO

Carolina Mariano de Oliveira1

Elis Regina Barbosa Ângelo2

Resumo

Este artigo visa apresentar o projeto de extensão que vem sendo realizado na

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro intitulado “Identidades e Expressões Populares

no Rio de Janeiro: Territórios da Literatura de Cordel” e que tem como objetivo compreender

a produção e a manutenção da Literatura de Cordel na cidade, levando em conta,

principalmente, o papel da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, da Feira de São

Cristóvão e da Fundação Casa de Rui Barbosa como locais de produção, divulgação e

preservação do cordel brasileiro. Como metodologia de trabalho adota-se a análise de fontes,

a produção de fichas informativas sobre a maior parte dos cordéis em arquivos, a visitação e

as entrevistas diretas com os produtores e divulgadores do cordel na atualidade da capital

fluminense. Antes, contudo, de expor os caminhos que o projeto segue e os resultados que

espera alcançar, pretende-se aqui uma reflexão sobre o papel fundamental da categoria de

Patrimônio Imaterial para a perpetuação, ainda que com transformações, dessa forma de

expressão literária no contexto cultural brasileiro.

Palavras-chave: [patrimônio], [patrimônio imaterial], [identidade], [memória] [literatura de

cordel] [territórios].

1Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:

[email protected] 2 Professora do Programa de Pós Graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade, PPGPACS, do Departamento

de Administração e Turismo e Orientadora do BIEXT – projeto de Extensão aprovado na UFRRJ: Identidades e

Expressões Populares no Rio de Janeiro: Territórios da Literatura de Cordel, 2018. E-mail:

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1. O patrimônio cultural imaterial no Brasil

De acordo com Clifford (1985) e Pomian (1997)3, a categoria moderna de patrimônio

surgiu com a formação dos Estados Nacionais ao final do século XVIII, diretamente

relacionada ao acúmulo de objetos materiais que, definindo a identidade de um grupo, o

diferenciava de outro. Dessa maneira, durante o período de consolidação das nações, as

políticas em torno da afirmação e preservação de um patrimônio, e neste caso estritamente

material, voltado aos grandes homens e marcos históricos, objetos e edifícios, funcionaram

como um mecanismo fundamental para formação dessas “comunidades imaginadas”

(ANDERSON, 1991).

No Brasil, a primeira ação em torno do reconhecimento e preservação patrimonial se

deu com a Constituição de 1937, que através do decreto-lei nº 25 definiu que patrimônio

cultural constituiria o conjunto de bens móveis e imóveis do país cuja conservação seria de

interesse público e estaria sob a responsabilidade do Estado. Fala-se aqui no futuro do

pretérito porque, na realidade – e isso tudo tem a ver com a europeização do Brasil no período

de formação da identidade nacional – o que ocorreu foi uma prática elitista e conservadora de

proteção legal voltada aos monumentos e arquiteturas ligados ao período colonial e imperial

brasileiro, sendo deixadas de lado quaisquer formas de representação social originalmente

nacionais.

Segundo Silva (2011), nas décadas seguintes as críticas a essas práticas

segregacionistas realizadas pelo IPHAN foram exaustivas e, somadas aos efeitos da Carta de

Veneza4, na década de 1970 consolidou-se no Brasil que: 1) a responsabilidade pela

3Autores citados por José Reginaldo Santos Gonçalves em “O patrimônio como categoria de pensamento” in.

ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Lamparina, 2009. p. 26. 4Resultado do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos ocorrido em

maio de 1964 em Veneza, numa parceria do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios Históricos com a

UNESCO. A carta abrange os aspectos que devem ser levados em consideração nos processos de

patrimonialização, indo além do caráter palpável dos bens e dando voz a aspectos subjetivos que os cercam.

Documento acessado no portal do IPHAN. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br

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conservação do patrimônio cultural nacional deveria passar a ser compartilhada entre União,

Estados e Municípios e 2) o número de bens patrimonializados deveria se expandir5.

Apesar desse passo considerável na discussão do patrimônio brasileiro, a grande

reviravolta aconteceu com a Constituição Federal de 1988, quando as propostas supracitadas

foram legalmente afirmadas, reconheceu-se a importância popular nas políticas de

patrimonialização e ampliou-se o conceito de patrimônio cultural. Segundo o artigo 216 da

Carta (2003), passou a abranger “os bens de natureza material ou imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Além dos edifícios, monumentos,

objetos, conjuntos históricos e artísticos que já eram reconhecidos, entraram para o jogo

modos de fazer e viver, formas de expressão, documentos, objetos voltados às manifestações

artístico-culturais.

Se neste momento a noção de patrimônio imaterial começou a ganhar espaço, seu

reconhecimento definitivo se deu pelo decreto 3551/2000 que, dentre suas medidas, repensou

os instrumentos e as condições de tombamento e organizou oficialmente a documentação de

bens de natureza imaterial, adotando o registro e o inventário como duas novas ferramentas de

preservação. A última grande ação de consolidação dessa categoria se deu em 2005, quando

foi criado pelo IPHAN o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, superando, de vez, a

visão engessada e conservadora de que memória só deve ser preservada se estiver

materializada em pedra e cal.

Conhecendo as transformações pelas quais passou o conceito de patrimônio, pensemos

agora na importância da categoria de patrimônio imaterial no processo de valorização das

culturas populares. Como já dito anteriormente, para a conservação de bens imateriais foi

criado o sistema de registros, separado em livros de acordo com a natureza. Dentre eles está o

Livro de Registro das Formas de Expressão, a fim de guardar as expressões artísticas e

culturais de grupos sociais em geral: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e

lúdicas que sejam, por esses grupos, consideradas importantes na construção e na afirmação

de suas culturas, memórias e identidades6. A partir de então, expressões populares

5 SILVA, Paulo Sérgio da. “Patrimônio Cultural imaterial: conceito e instrumentos legais de tutela na atuam

ordem jurídica brasileira”. In: XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: ANPUH, 2011. p. 2. 6 Retirado do portal do IPHAN. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/122

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significativas para uma comunidade (nação, região, povoado) podem e devem ser pensadas

como passíveis de patrimonialização.

É partindo desse princípio que se pretende pensar a Literatura de Cordel como a forma

de expressão literária de maior representatividade do nordeste brasileiro e, por isso, reforçar a

necessidade de seu registro como patrimônio junto ao IPHAN.

2. A Literatura de Cordel como Patrimônio Cultural Imaterial

Vindo da Europa, o Cordel chegou a América Latina através dos colonizadores

espanhóis e portugueses e seu nome está diretamente ligado à forma como os folhetos eram

comercializados em Portugal: após impressos, eram amarrados e pendurados em cordéis e

expostos em feiras de rua, motivo pelo qual ficou conhecido no Brasil também como “Folheto

de Feira”.

Em sua origem europeia, a literatura de cordel divulgava histórias tradicionais e

narrativas medievais de romance, cavalaria e conquistas, por exemplo. Por isso, em seus

primeiros momentos no Brasil, Santos (2005) nos apresenta que o cordel, sofrendo essas

influências, não se diferenciava muito das produções portuguesas. Com o tempo essas

influências foram perdendo força e, a partir do século XIX, a literatura popular em versos

tornou-se independente, apresentando características próprias e deixando de lado as tradições

europeias. Segundo Santos (2005):

De modo geral os folhetos de cordel são textos em versos com impressão em

folhas de papel de baixa qualidade dobradas e encadernadas, com capas

ilustradas em xilogravuras, desenhos ou ainda imagens de jornais cujo

formato é quase sempre 11x16 cm, com 8, 16, 32 e 64 páginas. Os folhetos

de cordel são impressos, tradicionalmente, em oficinas de tipografia.

(SANTOS, 2005, p. 86).

Foi na região nordeste que a Literatura de Cordel se consolidou no Brasil, muito por

conta das difíceis condições de seca, pobreza e resignação em que se encontrava. Ao final do

século XIX começaram a surgir editoras especializadas na produção dessas publicações

populares, preservando a característica de impressão em folhetos e a harmonização poética

tradicional, mas agora com temáticas novas: as condições de vida, as secas e enchentes,

romances e tragédias do cotidiano – assuntos próprios da realidade sertaneja eram abordados

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nos cordéis. Isso fez com que a identidade do povo nordestino fosse construída no imaginário

popular e, por isso, o Cordel representa, até hoje, uma referência e uma fonte histórica para

conhecer as tradições e costumes, modos de viver e pensar da comunidade sertaneja.

Sabendo da importância da Literatura de Cordel na afirmação e manutenção da

identidade do nordeste, não é difícil responder a pergunta “por que tornar patrimônio?”.

Reconhecer a Literatura de Cordel como um patrimônio cultural imaterial do Brasil é

reconhecer seu significado para a comunidade em torno da qual se firmou; é dar voz a um

povo que foi e, ainda hoje, é estereotipado pela pobreza e simplicidade; é afirmar que a

literatura popular também é erudita; é manter viva a memória e a história de um povo e,

assim, do país.

Em 2010, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel enviou ao IPHAN um pedido

de registro da Literatura de Cordel como patrimônio cultural de natureza imaterial. Tendo

sido o pedido julgado pertinente pelo Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan e pela

Câmara de Patrimônio Imaterial do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural7, o processo

está em andamento desde então e espera-se que até o final do ano de 2018 seja concluído.

3. A Literatura de Cordel nos Territórios do Rio de Janeiro

O projeto “Identidades e Expressões Populares no Rio de Janeiro: Territórios da

Literatura de Cordel” conta com uma equipe de docentes e discentes da Universidade Federal

Rural do Rio de Janeiro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Faculdade de

Educação da Baixada Fluminense.

Levando em consideração a importância da Literatura de Cordel, que ao mesmo tempo

em que mantém memórias vivas, traz consigo um caráter de atualidade, o projeto aqui

apresentado tem como objetivo geral dar visibilidade a esses territórios que existem no Rio de

Janeiro e se encontram repletos da expressão literária nordestina de Cordel. Além disso,

busca compreender a produção de cordel na atualidade; pensar sobre a preservação do

patrimônio cultural nordestino por meio desses lugares de memória; desenvolver material

informativo e didático-pedagógico sobre a Literatura de Cordel e ainda produzir um conteúdo

audiovisual sobre esses espaços, a fim de torná-los mais visíveis frente à sociedade.

7Informação obtida no portal oficial do Governo do Brasil. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/noticias-

destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/cordel-literatura-diversao-e-informacao/10883

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Na busca por lugares de memória (NORA, 1993) da Literatura de Cordel no Rio de

Janeiro, o projeto se volta para a Academia Brasileira de Literatura de Cordel como um

território de produção, para a Fundação Casa de Rui Barbosa como um território de

preservação e para o Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas como um

território de divulgação dessa que seria uma das formas mais autênticas da expressão literária

popular.

A Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que hoje está localizada no bairro de

Santa Teresa, no Rio de Janeiro, foi fundada no dia 7 de setembro de 1988 por Gonçalo

Ferreira da Silva (presidente), Apolônio Alves dos Santos (vice-presidente) e Hélio Dutra,

(diretor cultural). Apesar de sua criação e mesmo já possuindo mais de 13 mil títulos de

cordéis, a consolidação estrutural da Academia só ocorreu dois anos depois, com o apoio da

Federação das Academias de Letras do Brasil e após a parceria com Umberto Peregrino,

fundadores da Casa de Cultura São Saruê e grande amante da Literatura de Cordel, que

decidiu transferir seu acervo cultural para a ABLC.8 No dia da inauguração da Academia,

Gonçalo declamou:

Da inspiração mais pura

No mais luminoso dia

Porque Cordel é cultura

Nasceu nossa Academia

O céu da literatura

A casa da poesia 9

A Feira de São Cristóvão existe desde 1945, com a chegada de retirantes de vários

estados do nordeste para trabalhar no Rio de Janeiro. Foram os encontros entre os imigrantes

e seus conterrâneos, regados à música e comida típicas de suas terras, que deram origem à

Feira, que, em 2003 foi transferida do Campo para o Pavilhão de São Cristóvão, formando

hoje o Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. O espaço abriga quase 700

barracas com comida típica, artesanato, ingredientes e temperos da culinária regional, além de

objetos do folclore nordestino e, como se busca estudar aqui, exposições e vendas de cordéis.

8Retirado do site oficial da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Disponível em:

http://www.ablc.com.br/a-ablc/historia/ 9Retirado do estatuto presente no site oficial da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Disponível em:

http://www.ablc.com.br/a-ablc/estatuto/

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Em 2010 a Feira foi tombada como patrimônio cultural imaterial pelo então presidente Luís

Inácio Lula da Silva.10

Um ano após a morte de Rui Barbosa, em 1923, a casa onde morava em Botafogo foi

comprada pelo governo com tudo o que havia dentro e transformada no Museu Casa de Rui

Barbosa. Inaugurado em 13 de agosto de 1930 pelo Presidente da República Washington

Luís, é considerado o primeiro museu-casa do Brasil, dedicado a uma personalidade. O

objetivo era cultuar e divulgar a obra e a vida de Rui Barbosa de Oliveira (1849-1923) –

jornalista, jurista, político e diplomata brasileiro – através da conservação dos móveis e

objetos da família, da biblioteoca e de sua extensa produção intelecutal reunida em arquivos.

Contudo, em 1966, a Instituição teve sua personalidade jurídica alterada pela Lei n.º

4.943, tornando-se a Fundação Casa de Rui Barbosa, buscando, além dos objetivos prévios,

promover o desenvolvimento da cultura, da pesquisa e do ensino. Desde então, sob o

título Literatura Popular em Verso, vem desenvolvendo um conjunto de medidas para a

promoção da literatura de cordel, que compreendem desde levantamentos bibliográficos e

organização de coleções, à preservação de documentos preciosos na iminência de se perderem

e publicação de uma extensa bibliografia, composta por catálogos, antologias e estudos

especializados.11

A missão mais relevante dessas instituições em relação ao Cordel é perpetuar na

atualidade as identidades do povo nordestino. Constituem-se como lugares de memória,

acumulando em si vestígios e registros referentes a um passado que merece preservação. São

territórios que mantém viva a cultura popular e ainda contém um caráter museológico, visto

que integram em seus espaços arquivos, bibliotecas e objetos que, no geral, são fundamentais

para salvaguardar a memória.

Nesse processo de conservar a história de sujeitos, a cultura e os bens mais

importantes do nordeste, a Literatura de Cordel se propõe como uma ferramenta de

fundamental importância, pois representa essa realidade popular com um toque artístico e

poético – através do ritmo, das rimas e de recursos gráficos, como as xilogravuras – que

proporcionam uma leitura prazerosa e facilitam a apreensão dos conteúdos transmitidos nos

10Retirado do site oficial da Feira de São Cristóvão. Disponível em: http://www.feiradesaocristovao.org.br/ 11Retirado do site oficial da Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/

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cordéis. Dessa maneira, preservar e disseminar a Literatura de Cordel é manter viva a história

e a memória sertaneja. Pensar isso para fora da região nordeste e, neste caso especificamente,

nos territórios do Rio de Janeiro, é ainda mais significativo, pois representa não só a

resistência, mas também a disseminação para as outras regiões de uma cultura nacionalmente

marginalizada, levando em consideração o eurocentrismo presente na formação dos Estados

Nacionais do século XIX.

No que diz respeito à metodologia utilizada para observar a contextualização do

Cordel nesses territórios do Rio de Janeiro, é preciso levar em consideração a maneira como

estes são identificados. Como já dito anteriormente, a Academia Brasileira de Literatura de

Cordel é entendida aqui como o principal território de produção do cordel, visto que em suas

cadeiras atuam oficialmente poetas e cordelistas que continuam se dedicando a criação e,

consequentemente, a perpetuação da Literatura no Rio de Janeiro. Por conta disso, o método

de estudo da ABLC escolhido é a produção de entrevistas com o maior número de cordelistas

atuantes e a participação em eventos da Academia, a fim de recuperar memórias, entender

como se dá essa produção na atualidade e acompanhar de perto essa instituição oficial, seus

desdobramentos e influências na sociedade.

Na Feira de São Cristóvão, apontada como um território de divulgação da Literatura

de Cordel, o trabalho de campo consiste na observação do espaço como um todo, colhendo

desde informações estéticas até entrevistas com visitantes, lojistas e cordelistas que vendem e

apresentam seus cordéis no local, com o propósito de compreender a relação desses com a

Feira, buscando entender a importância deste território 1) na recuperação das memórias

daqueles que vieram do nordeste; 2) na formação identitária dos poetas que são naturais do

estado do Rio de Janeiro e 3) na interação do público com a Literatura de Cordel.

No cordel praticado no Rio de Janeiro, o tema do combate gira em torno do

próprio migrante que assume o papel do valente em sua luta para sobreviver

no novo ambiente físico e social. Jogando com o real e o imaginário, o

combate travado pelo migrante na cidade grande tem como objetivo último

a salvação: salvação utópica inscrita no plano da narrativa que traz como

personagens os nordestinos, moradores dos morros e das periferias do Rio

de Janeiro, viajantes nos trens urbanos, operários nas obras, em suma, uma

galeria de tipos que busca, com humor e coragem, vencer as dificuldades do

dia a dia na cidade.(NEMER, 2012, p.15)

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A Feira já foi um espaço de produção, conforme menciona Nemer (2012), onde

participavam diversas vozes e escritas dessa arte popular. A forma de lidar com o novo

território e suas representações, favorece narrativas de poder, de afirmação e mesmo de

interação social, na qual sujeitos demonstram suas habilidades e mesmo suas histórias,

memórias e anseios, assim como suas inquietações e desajustes por meio da literatura. Ela

passa a ser também reivindicatória de sentidos nessa nova realidade migrante.

As transformações na cidade, e mesmo as mudanças nos espaços da feira modificaram

a produção do cordel e as realidades do mesmo no Rio de Janeiro. Os indícios dessa

transformação vão sendo percebidos na formação de novas formas de produção do cordel,

muitas vezes no seio da s casas, na rua e nos recantos mais distanciados desse território que

outrora já foi de produção desse sentido.

Ao focar-se para a Fundação Casa de Rui Barbosa, que não é um espaço destinado

somente a isso, mas que contém um acervo com cerca de nove mil folhetos, podemos

entendê-la como um território de preservação da Literatura de Cordel no Rio de Janeiro. O

acervo disponibilizado pela Fundação conta com uma coleção única no mundo, que foi

iniciada por doações: Orígenes Lessa e Sebastião Nunes Batista entregaram à instituição

inúmeros folhetos publicados nas duas primeiras décadas do século XX, sendo a maior parte

do grande poeta Leandro Gomes de Barros.12 Devido à antiguidade e raridade de muitas

dessas obras, fez-se necessário um projeto de restauração e preservação dos folhetos, que teve

como um dos frutos a criação de uma base de dados online onde estão disponíveis para

consulta, e, onde boa parte desses cordéis está digitalizada.13

Tendo isso em vista, a metodologia de estudo da Casa de Rui Barbosa consiste na

catalogação de todos esses cordéis em uma planilha por autor, data e local, tema, métrica e

resumo da obra, o que permite uma busca facilitada para estudos futuros, uma análise das

diferenças e semelhanças entre esses cordéis históricos e um ensaio das rupturas e

permanências que ocorreram ao longo do tempo, levando em consideração as produções do

nordeste no século XX e as contemporâneas no Rio de Janeiro.

12NEMER, SYLVIA. Memórias do cordel. In: XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio, Memória e Patrimônio.

Rio de Janeiro: ANPUH, 2010. p. 4. 13Retirado da página oficial do Cordel no site da Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em:

http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/index.html

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Mesmo ainda não finalizado, o projeto já nos mostra respostas e clareia nossos

caminhos para a compreensão do Cordel nesses territórios. Uma série de entrevistas foi

realizada com poetas, cordelistas e repentistas vindos de diversos lugares: Zé Salvador,

Ednaldo Santos, Gerson da Viola, Miguel Bezerra, Isael de Carvalho e Severino Onorato14

deram depoimentos sobre suas vidas e a relação com o Cordel no Rio de Janeiro. Foi possível,

a partir dessas narrativas, perceber a importância da Feira de São Cristóvão – sobretudo da

Feira antiga, ainda fora do Pavilhão – no que diz respeito à ligação desses homens com a

Literatura de Cordel. A maioria imigrante, vinda do Nordeste nas décadas de 60 e 70, via na

Feira um ponto de encontro com o Nordeste deixado para trás.

Dentre as entrevistas realizadas, algumas palavras de José Washington de Souza

devem ser consideradas mais atentamente. Nascido na cidade de Tianguá, no Ceará, Zé

Salvador, como gosta de ser chamado, se mudou para Fortaleza em 1973, onde ficou por

quatro anos. Em 76 comprou uma passagem para conhecer o Carnaval do Rio, passeou,

gastou o dinheiro que tinha para voltar e, por conta disso, acabou ficando pela cidade. Apesar

da presença do Cordel em sua vida desde a infância, nas feiras que frequentava no Ceará e

nas reuniões de família, somente nos anos 2000 Zé Salvador começou a se dedicar a esse

estilo literário – tendo, até então, voltado seus esforços produtivos para a poesia. No entanto,

destaca que seu primeiro contato com o cordel no Rio de Janeiro foi através da Feira de São

Cristóvão: "(...) quando eu cheguei cá no Rio eu vinha assistir a Feira, quando exisitiam

vários cordelistas (...) vinha sempre aqui comer, ver cordel, lembrar do nordeste, né."

(SALVADOR, 2018).

Diferente de outros cordelistas – que se mostraram pessimistas quanto ao futuro do

Cordel – Zé Salvador apresentou uma postura confiante no que diz respeito a sua

sobrevivência no estado do Rio de Janeiro:

Eu ouvi (...) 'eu gosto muito de cordel, mas o cordel tá morrendo né?’. Eu

digo ‘não!’, ‘menos verdade!’. Isso é uma balela. Você quer ouvir Cordel,

vai na Feira de São Cristóvão, vai na Zona Oeste, vai na ABLC (...). As

pessoas dizem que o Cordel não existe no Rio de Janeiro. Menos verdade!

Existe sim. Nós temos muitos cordelistas bons e filhos do estado do Rio de

Janeiro, não só imigrantes. E eu conheço vários, aonde eu vou tem.

(SALVADOR, 2018)

14 Cordelistas e repentistas que concederam entrevistas ao projeto no dia 20 de maio de 2018.

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A partir de entrevistas e declarações como essa foi possível perceber que há um

consenso entre os cordelistas atuantes no Rio de Janeiro quanto a Academia Brasileira de

Literatura de Cordel e a Feira de São Cristóvão como principais territórios ativos de produção

e divulgação do Cordel na cidade do Rio de Janeiro.

Percebe-se também um anseio pela divulgação do cordel nos variados espaços de

saberes populares, aonde os diálogos vão sendo estreitados por necessidades distintas, seja

pela perspectiva da educação, seja pela reivindicação do universo popular.

Com novos sujeitos e percepções sendo atrelados a esses espaços, como a categoria

gênero, por exemplo, os sentidos vão assumindo novas realidades e formas de representação

da literatura popular. A reivindicação do patrimônio imaterial corrobora com a afirmação de

continuidade e necessidade de manter viva a representação do povo migrante e de suas

produções culturais.

4. Considerações finais

Conhecendo as premissas da pesquisa aqui apesentada, seus objetivos de compreender

e dar visibilidade aos territórios da Literatura de Cordel no Rio de Janeiro e as metodologias

utilizadas para tal, é necessário, por fim, refletir sobre a importância do projeto: levando em

conta a necessidade de socialização do conhecimento e o valor de uma produção com

utilidade social, acredito na relevância desse estudo para a academia, para a sociedade e,

principalmente, para a valorização da Literatura de Cordel como Patrimônio Cultural do

Brasil.

O levantamento realizado a partir do banco de dados da Fundação Casa de Rui

Barbosa tem se mostrado de fundamental significado, visto que, facilitando o acesso à

pesquisa, traz ao conhecimento as principais temáticas abordadas por cada autor – localizados

no tempo e no espaço. Dessa maneira, cordéis como “Vitória dos aliados: a derrota da

Alemanha e a influência espanhola” de João Melquíades Ferreira da Silva ou “Direta jaz na

cova do Satanás”, de Raimundo Santa Helena, podem ser utilizados como fonte para o estudo

não só da Literatura de Cordel e suas questões, mas também de períodos e acontecimentos

históricos relevantes no Brasil e no mundo.

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Além disso, acredita-se que voltar os olhos para esses territórios torna possível

compreender tanto as transformações pelas quais vem passando a produção do Cordel no

Brasil desde o século XIX, quanto as características que permanecem imutáveis; representa,

ainda, a divulgação e o incentivo a essa forma literária que, apesar de nominalmente popular,

demanda talento, comprometimento e erudição em sua produção; configura, também, dar voz

a poetas naturais do Rio de Janeiro, que não passaram pelas vivências da imigração e, por

isso, veem a Literatura de Cordel sob outra ótica; implica, igualmente, na construção e na

preservação de parte da cultura nordestina fora do nordeste.

Por fim, há a necessidade de reconhecimento da arte e dos artistas que a tornam

possível. Seguem alguns versos de Gonçalo Ferreira que, de forma simples, destacam o valor

do estudo do Cordel para poetas e cantadores. Reconhecer a produção de alguém é reconhecer

o próprio ser humano perante a sociedade.

Agora os pesquisadores

Dos mais distantes países

Estudam detidamente

As originais raízes

Da nossa literatura

O que nos deixa felizes15

Referências Bibliográficas

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BRASIL. Constituição 1988. Constituição Federal, coletânea de legislação de direito

ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

15 Versos do folheto Historiologia da Feira Nordestina de Gonçalo Ferreira da Silva (SILVA; s/l; s/e; s/d p. 8)

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