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As sagradas quinas de Portugal para a glória do Senhor Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda Padre Antônio Vieira Óleo sobre tela de autor desconhecido, 1680 x 1280 mm. Casa Cadaval, Muge, Portugal. Edição comentada por Cid Ottoni Bylaardt Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda.

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As sagradas quinas

de Portugal

para a glória do Senhor

Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda

Padre Antônio Vieira

Óleo sobre tela de autor desconhecido, 1680 x 1280 mm. Casa Cadaval, Muge, Portugal.

Edição comentada por Cid Ottoni Bylaardt

Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda.

Ano de 1640. Os holandeses ameaçam invadir a cidade da Bahia pela segunda vez. Em todos os púlpitos da cidade fazem-se rezas e pregam-se sermões contra os holandeses. Este será o último sermão proferido com base no mesmo assunto. Daí o caráter de ultimato a Deus que o sermão apresenta.

O exórdio (abertura) do sermão apresenta o tema que servirá de referência para o desenvolvimento das idéias do autor: o Salmo XLIII do rei Davi.

O Livro dos Salmos, ou Saltério, ou Saltério Davídico, é um conjunto de cento e cinqüenta textos sagrados compostos por vários autores, o mais importante dos quais é o rei Davi. Os salmos são divididos em cinco livros, provavelmente por imitação do Pentateuco, os cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos a Moisés.

Normalmente, os salmos discorrem sobre as misérias pessoais e sociais dos homens, como a dor, a enfermidade, a velhice, as guerras, as pragas, ou sobre a suprema miséria moral, o pecado. Alguns tratam da vinda do Messias, outros são hinos de louvor a Deus. Há ainda os que ensinam como viver de acordo com as exigências divinas.

O Salmo XLIII, terceiro do Livro II, tem um título bem significativo, considerando a matéria do presente sermão de Vieira: O POVO OUTRORA PROTEGIDO POR DEUS E AGORA REPUDIADO INVOCA O SEU AUXÍLIO. É dividido em quatro partes.

Na primeira parte, o povo de Israel relembra, através de Davi, os tempos em que Deus os protegia contra seus inimigos e os guiava em seus sucessos. Deus amava Israel, e os israelitas correspondiam glorificando o Senhor e celebrando seu nome todos os dias.

A segunda parte mostra o lado amargo da relação com Deus. O povo de Israel foi abandonado e confundido, humilhado e escarnecido pelos inimigos. Deus abandonou seu povo amado. Vendestes o vosso povo por um nada, e não enriquecestes com a sua venda. Embora não seja possível determinar com certeza as circunstâncias históricas das desgraças do povo de Israel, supõe-se que a referência seja ou à invasão dos assírios (século VII a.C.), ou à dos babilônios (século VI a.C.), ou à decadência dos séculos V e IV a.C.

Na terceira parte, o povo de Israel demonstra sua perplexidade ante o abandono divino. Israel não esqueceu Deus, não foi infiel a Ele, não acolheu nenhum Deus estranho. Se isso tivesse acontecido, Deus o teria percebido, Ele que penetra os segredos dos corações.

No final, há o Exurge! (Acordai!), em que o rei David envia ao Senhor uma súplica desesperada para que Ele volte a olhar pelos israelitas. Este texto final do Salmo XLIII serve como epígrafe ao “Sermão pelo bom sucesso...” A epígrafe é a transcrição de um texto de outra obra (no caso, a Bíblia), no início da obra em questão, e vai servir de tema ao texto que será exposto. A palavra epígrafe é composta pelo prefixo grego epi- (= ‘posição superior’; ‘sobre’) e o radical, também grego, -grafo (‘descrição’, ‘escrita’).

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O TEXTO COMENTADO DO SERMÃO

Na páginas seguintes, reproduzimos a íntegra do sermão, em caracteres itálicos, com os respectivos comentários, iniciando pela epígrafe e seguindo parágrafo por parágrafo em cada uma de suas cinco partes constituintes.

EPÍGRAFE: TRADUÇÃO DA EPÍGRAFE:

Exurge! Quare obdormis, Domine? Exurge et ne repellas in finem. Quare faciem tuam avertis? Oblivisceris inopiæ nostræ et tribulationis nostræ ? Exurge, Domine, adjuva-nos et redime-nos propter nomen tuum.

(Salmus XLIII)

Acordai! Por que dormis, Senhor? Despertai! Não nos repilais para sempre! Por que escondeis a vossa face? E esqueceis a nossa miséria e a nossa opressão? Levantai-Vos para socorrer-nos e resgatai-nos pela vossa bondade!

II, § 1

Com estas palavras piedosamente resolutas, mais protestando, que orando, dá fim o Profeta Rei ao Salmo XLIII Salmo que, desde o princípio até o fim, não parece senão cortado para os tempos e ocasião presente. O Doutor Máximo S. Jerônimo, e depois dele os outros expositores, dizem que se entende à letra de qualquer reino ou província católica, destruída e assolada por inimigos da Fé. Mas entre todos os reinos do Mundo a nenhum lhe quadra melhor que ao nosso Reino de Portugal; e entre todas as províncias de Portugal a nenhuma vem mais ao justo que à miserável província do Brasil. Vamos lendo todo o Salmo, e em todas as cláusulas dele veremos retratadas as da nossa fortuna: o que fomos e o que somos.

O orador inicia sua prédica partindo do texto final do Salmo XLIII (parte IV), que contém a idéia central do texto que se segue. No parágrafo inicial do sermão, o orador apresenta o tema, que servirá de suporte para a argumentação. O citado salmo foi composto em referência a males que assolavam o antigo povo de Israel, entre os séculos VIII e V a.C., mas o Doutor Máximo S. Jerônimo, e depois dele os outros expositores, entendem que o assunto do salmo se aplica a qualquer nação ou a qualquer povo

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católico ameaçado por inimigos, que são, logicamente, inimigos da Fé. A partir daí, o predicante apossa-se do texto bíblico para aplicá-lo a Portugal, por merecimento maior entre todos os povos do mundo. Coloca-se aqui a questão da predestinação missionária de Portugal, cuja fundamentação lendária é a suposta aparição de Jesus Cristo em pessoa a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique (ver comentário ao quarto parágrafo da parte I). Cristo teria comunicado ao rei português a eleição divina de Portugal para dar início a uma nova era na cristandade e, para a instauração plena da nova orde, o eleito teria que concorrer com seu esforço total.

A referência ao merecimento lusitano, naturalmente, se estende à miserável província do Brasil. É importante observar que o adjetivo miserável não é depreciativo, mas um reforço do que se lê no salmo: inopiæ nostræ (nossa miséria), que Deus está descuidando. Como extensão de Portugal, a província do Brasil também merece que o Senhor cuide de nossa tribulationis.

Nesse exórdio, o orador dá o tom de sua fala a Deus, lembrando que o rei Davi entoa seu salmo usando palavras piedosamente resolutas, mais protestando, que orando. Percebe-se, portanto, que o texto será proferido com a máxima firmeza e em tom de protesto, embora piedosamente, já que o orador vai-se dirigir a Deus diretamente. Vieira procura, logo de início, resguardar-se de quaisquer acusações de desrespeito ao Senhor, principalmente por parte da Santa Inquisição, ao atribuir às sagradas escrituras, cujo texto inspirou a prédica, a responsabilidade do tom rebelde do sermão.

I, § 2

Deus, auribus nostris audivimus, Patres nostri annuntiaverunt nobis: opus, quod operatus es in diebus eorum, et in diebus antiquis. “Ouvimos, (começa o profeta) a nossos pais, lemos nas nossas histórias e ainda os mais velhos viram, em parte, com seus olhos, as obras maravilhosas, as proezas, as vitórias, as conquistas, que por meio dos portugueses obrou em tempos passados vossa onipotência, Senhor.” Manus tua gentes disperdidit, et plantasti eos; afflixisti populos et expulisti eos: “Vossa mão foi a que venceu e sujeitou tantas nações bárbaras, belicosas e indômitas, e as despojou do domínio de suas próprias terras para nelas os plantar, como plantou com tão bem fundadas raízes; e para nelas os dilatar, como dilatou e estendeu em todas as partes do Mundo, na África, na Ásia, na América”, Nec enim in gladio suo possederunt terram, et brachium eorum non salvavit eos; sed dextera tua et brachium tuum et illuminatio vultus tui, quoniam complacuisti in eis: “Porque não foi a força do seu braço, nem a da sua espada a que lhes sujeitou as terras que possuíram e as gentes e reis que avassalaram, senão a virtude de vossa destra onipotente e a luz e o prêmio supremo de vosso beneplácito,, com que neles vos agradastes e deles vos servistes.” Até aqui a relação ou memória

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das felicidades passadas, com que passa o profeta aos tempos e desgraças presentes.

Torna-se evidente aqui a questão da apropriação do discurso bíblico para aplicá-lo ao problema específico de Portugal. O pregador traduz frases do salmo em latim, tentando induzir os ouvintes a acreditarem que o texto do profeta fala realmente das glórias portuguesas, acrescentando expressões referentes às conquistas lusas, dando assim a impressão de que elas de fato apareciam no texto bíblico.

É importante observar que, após cada citação em latim, o autor abre aspas para indicar que em seguida virá uma tradução do latim para o português, e não uma interpretação do texto original, que é o que realmente acontece. É esse um artifício retórico que o pregador utiliza para introduzir definitivamente a referência às glórias lusitanas no discurso.

Pode-se argumentar que o sermão é uma espécie literária eminentemente oral e que, ao ser proferido em púlpito, o ouvinte não enxerga aspas ou quaisquer outros sinais de pontuação. Não se pode esquecer, entretanto, que Vieira conferiu a seus sermões, ao final da vida, uma forma literária, escrita, que é a forma conhecida hoje. Certamente, o sermão que foi proferido em 1640 na Igreja de N. S. de Ajuda não é exatamente este que temos em mãos. Assim como o autor utiliza artifícios gráficos na versão escrita definitiva, não é fora de cogitação que ele tenha utilizado ao vivo artifícios dramáticos com os mesmos objetivos.

A tradução literal do trecho apresentado em latim é: Com os nossos ouvidos, Senhor, ouvimos; os nossos pais contaram as obras que fizestes em seus dias, dias de antanho. O orador acrescenta orações inteiras ao texto original, primeiro para reforçar os testemunhos dos acontecimentos históricos. No presente caso, os acréscimos são: ...lemos nas nossas histórias e ainda os mais velhos viram, em parte, com seus olhos... Os fatos que serão referidos não foram, portanto, apenas ouvidos, como reza o texto original mas lidos e presenciados. Em seguida o orador vai introduzir o objeto de ouvir, ler e ver, que no original são as obras que fizestes em seus dias. Na “tradução” de Vieira, elas se transformam em as obras maravilhosas, as proezas, as vitórias, as conquistas que obrou em tempos passados vossa onipotência. É evidente a reconstrução hiperbólica do texto original, com o intuito de exaltar os feitos mencionados, tornados possíveis pelo poder de Deus. O mais interessante, talvez, e certamente o destaque principal do trecho é o adjunto por meio dos portugueses, inexistente no original, é óbvio.

No primeiro parágrafo do sermão, Vieira estabelece uma relação estreita entre o assunto do salmo e a situação de Portugal, afirmando que, entre todos os reinos do Mundo, a nenhum lhe quadra melhor que ao nosso Reino de Portugal. No presente parágrafo, ele atribui ao próprio texto bíblico a referência aos portugueses, numa manifestação evidente de manipulação lingüística.

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A segunda parte do texto em latim tem a seguinte tradução: Com as vossas mãos extirpastes nações para implantá-los; abatestes as gentes para acrescê-los. No texto de Vieira, o substantivo nações ganhou os adjetivos bárbaras, belicosas e indômitas; constituem acréscimos também a forma como Deus plantou a fé cristã (é isso mesmo?), com tão bem fundadas raízes, e a expandiu para todas as partes do Mundo, na África, na Ásia, na América, numa óbvia referência à expansão ultramarina portuguesa.

As palavras seguintes do salmo dizem: Não foi com a sua espada que conquistaram essa terra, nem com o seu braço que venceram; foi a vossa destra, foi o vosso braço, foi o esplendor de vossa face, porque os amastes. O texto de Vieira não altera substancialmente essa parte, apenas acrescentando-lhe um colorido peculiar a sua verve poética.

O relato das felicidades passadas dos portugueses predispõe os ouvintes a crer na “ingratidão” de Deus para com eles, e anuncia os infortúnios atuais: Até aqui a relação ou memória das felicidades passadas, com que passa o profeta aos tempos e desgraças presentes. Essa última frase sugere que o profeta Davi continua se preocupando com os problemas lusitanos.

I, § 3

Nunc autem repulisti et confundisti nos; et non egredieris Deus in virtutibus nostris: “porém agora, Senhor, vemos isso tudo tão trocado, que já parece que nos deixastes de todo, e nos lançastes de vós, porque já não ides diante de nossas bandeiras, nem capitaniais como dantes os nossos exércitos.” Avertisti nos retrorsum post inimicos nostros, et qui oderunt nos, diripiebant sibi: “Os que tão costumados érqamos a vencer e triunfar, não por fracos, mas por castigados, fazeis que voltemos as costas a nossos inimigos (que são como açoite de vossa justiça, justo é que lhes demos as costas), e perdidos os que antigamente foram despojos do nosso valor, são agora roubo da sua cobiça: Dedisti nos tanquam oves escarum et in gentibus dispersisti nos. “Os velhos, as mulheres, os meninos, que não têm forças nem armas com que se defender, morrem como ovelhas inocentes ás mãos da crueldade herética, e os que podem escapar à morte, desterrando-se a terras estranhas, perdem a casa e a pátria.” Posuisti nos opprobrium vicinis nostris, subsannationem et derisum his, qui sunt in circuitu nostro: “Não fora tanto para sentir, se, perdidas fazendas e vidas, se salvara ao menos a honra; mas também esta a passos contados se vai perdendo; e aquele nome português, tão celebrado nos anais da fama, já o herege insolente com as vitórias o afronta, e o gentio de que estamos cercados, e que tanto o venerava e temia, já o despreza.”

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Nessa altura, o predicante já passa à segunda parte do salmo, desprezando os versículos 5 a 9.

A tradução do versículo 10 apresentado em latim é a seguinte: Agora, porém, nos repelis e confundis; e já não saís, senhor, à frente de nossos exércitos. O texto de Vieira mantém a essência do original, embora acrescente elementos para torná-lo mais impressionante.

Prossegue o orador com o versículo 11, que se traduz: Fazei-nos voltar as costas aos nossos inimigos; e carregam-se de despojos os que nos odeiam. Vieira aqui insere algumas imagens e introduz um pequeno comentário ao texto bíblico.

Compare-se a interpretação de Vieira com a tradução do versículo 12: Vós nos entregastes como ovelhas para o talho, e nos dispersastes entre as nações.

O versículo 13 do salmo, omitido por Vieira, tem as seguintes palavras: Vendestes o vosso povo por um nada, e não enriquecestes com a sua venda. A omissão certamente está relacionada á sugestão de que Deus abandonou seu povo por razões comerciais.

Em seguida vem o versículo 14: Vós nos fizestes opróbrios de nossos vizinhos, escárnio e ludíbrio para os que estão ao redor de nós. Vieira, em sua interpretação, lamenta a afronta ao celebrado nome português. Estão aí expostas as chagas da desgraça lusitana, que no momento se traduz na ameaça de invasão da cidade de Salvador pelos insolentes hereges holandeses, o que certamente provoca o desprezo do gentio pelos portugueses.

I, § 4

Com tanta propriedade como isto descreve Davi neste Salmo nossas desgraças, contrapondo o que somos hoje ao que fomos enquanto Deus queria, para que na experiência presente cresça a dor por oposição com a memória do passado. Ocorre aqui ao pensamento o que não é lícito sair à língua, e não falta quem discorra tacitamente, que a causa desta diferença tão notável foi a mudança de monarquia. Não havia de ser assim (dizem) se vivera um D. Manuel, um D. João o terceiro, ou a fatalidade de um Sebastião não sepultara com ele os reis portugueses. Mas o mesmo Profeta no mesmo Salmo nos dá o desengano desta falsa imaginação: Tu es ipse rex meus et Deus meus: qui mandas salutes Jacob. O Reino de Portugal, como o mesmo Deus nos declarou na sua fundação, é reino seu e não nosso: Volo enim in te et in semine tuo imperium mihi stabilire, e como Deus é o rei: Tu es ipse rex meus et Deus meus; e este rei é o que manda e o que governa: Qui mandas salutes Jacob, ele que não se muda, é o que causa estas diferenças, e não os reis que se mudaram. À vista, pois desta verdade certa e sem engano, esteve um pouco suspenso o nosso Profeta na consideração de tantas calamidades até que para remédio delas o mesmo Deus, que o alumiava, inspirou um conselho altíssimo, nas palavras que tomei por tema:

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No parágrafo acima, o pregador enfatiza a dor portuguesa do presente ao compará-la com o esplendor português do passado. Quando ele menciona a suposição de que a causa desta mudança tão notável foi a mudança de monarquia, ele se refere ao tempo em que Portugal foi governado pelos três Filipes da Espanha, no período de 1580 a 1640. A restauração portuguesa ocorreu em dezembro de 1640, e este sermão foi proferido em maio do mesmo ano; Portugal estava ainda, portanto, sob o domínio dos espanhóis.

Os monarcas portugueses citados foram os três que antecederam imediatamente o período de dominação espanhola. Com a morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, na África, em 1578, assumiu o trono português o ancião cardeal D. Henrique, último representante da família de Avis, que sobreviveu no trono por apenas dois anos. A disputa dinástica então ocorrida foi vencida por Filipe II da Espanha, cujo exército invadiu Portugal.

Embora diga que Ocorre aqui ao pensamento o que não é lícito sair à língua, Vieira não se furta a debitar aos espanhóis o ônus do fracasso lusitano no mencionado período. Naturalmente, as palavras, segundo ele, não saíram de sua boca; existe um sujeito indeterminado (dizem) por trás dessa subversiva colocação. O predicante não afirma, mas sugere que um Manuel, um João ou um Sebastião com certeza valeriam bem mais do que três Filipes.

Para dissipar qualquer mal entendido, o pregador cita novamente o salmo do rei Davi, que nos dá o desengano desta falsa imaginação: nem Manuel, nem João, nem Sebastião, nem Filipe; o verdadeiro rei é Deus, é dele o reino de Portugal. Sois o meu rei e o meu Deus, o autor das vitórias de Jacó. A causa, portanto, das atuais infelicidades não é a mudança dos reis, mas um desígnio divino. Na verdade, desejo fortificar meu império em ti e em tua descendência.

Se o responsável pelos reveses é Deus, só Ele é que pode estornar o débito, e começa por iluminar Davi, inspirando-lhe um conselho altíssimo. Esse altíssimo conselho constitui a síntese do tema do sermão.

I, § 5

Exurge, quare obdormis, Domine? Exurge, et ne repellas in finem. Quare faciem tuam avertis, oblivisceris inopiæ nostræ et tribulationis nostræ? Exurge, Domine, adjuva nos et redime nos propter nomen tuum. Não prega Davi ao povo, não o exorta ou repreende, não faz contra ele invectivas, posto que bem merecidas; mas todo arrebatado de um novo e extraordinário espírito, se volta não só a Deus, mas piedosamente atrevido contra ele. Assim como Marta disse a Cristo: Domine, non est tibi curæ? Assim estranha Davi reverentemente a Deus, e quase o acusa de descuidado. Queixa-se das desatenções de sua misericórdia e providência, que isso é considerar a Deus dormindo: Exurge, quare obdormis, Domine? Repete-lhe que acorde e que não deixe chegar os danos

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ao fim, permissão indigna de sua piedade: exurge et ne repellas in finem. Pede-lhe a razão por que aparte de nós os olhos e não volta o rosto: Quare faciem tuam avertis, e por que se esquece de nossa miséria e não faz caso de nossos trabalhos: Oblivisceris inopiœ nostri et tribulationis nostrœ? E não só pede de qualquer modo esta razão do que Deus faz e permite, senão que insta a que lha dê, uma e outra vez: Quare obdormis? Quare oblivisceris? Finalmente, depois destas perguntas, a que supõe que não tem Deus resposta, e destes argumentos com que presume o tem convencido, protesta diante do tribunal de sua justiça e piedade, que tem obrigação de nos acudir, de nos ajudar e de nos libertar logo; Exurge, Domine, adjuva nos et redime nos. E para mais obrigar ao mesmo Senhor, não protesta por nosso bem e remédio, senão por parte da sua honra e glória: Propter nomen tuum.

O citado Davi coloca nas mãos de Deus toda a responsabilidade pelos funestos acontecimentos. Vieira o cita o tempo todo, como se fosse o profeta, e não ele próprio, o pregador, quem estivesse admoestando Deus por deixar os portugueses na mão. Depois de chamar a atenção de Deus, fala de sua piedade e justiça, e diz que ele tem que “nos” ajudar para seu próprio bem.

É importante notar o cuidado que Vieira tem de se cingir às palavras do Velho Testamento, para não ter problemas com a própria Igreja, reiterando a todo momento que as palavras proferidas são mais do autor do salmo do que suas próprias. Não obstante, são evidentes as adequações que ele procura fazer das palavras bíblicas a seu próprio objetivo de defender a soberania temporal portuguesa sobre a miserável província do Brasil.

I, § 6

Esta é, Todo-Poderoso e Todo-Misericordioso Deus, esta é a traça de que usou para render vossa piedade, quem tanto se conformava com vosso coração. E desta usarei eu também hoje, pois o estado em que nos vemos, mais é o mesmo que semelhante. Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar com os homens; mais alto hão de sair as minhas palavras ou as minhas vozes: a vosso peito divino se há de dirigir todo o sermão. É este o último de quinze dias contínuos, em que todas as igrejas desta Metrópole, a esse mesmo trono de vossa patente Majestade, têm representado suas deprecações; e, pois, o dia é o último, justo será que nele se acuda também ao último e único remédio. Todos estes dias se cansaram debalde os oradores, evangélicos em pregar penitência aos homens: e, pois, eles se não converteram, quero eu, Senhor, converter-vos a vós. Tão presumido venho da vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós somos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido.

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Nesse parágrafo, o predicante expõe a traça, ou o plano que ele vai seguir para defender suas idéias, o que constitui o intróito na estrutura do sermão. Partindo da estratégia usada por Davi para conquistar a proteção de Deus, Vieira afirma que essa será também a maneira pela qual ele tentará o apoio do Senhor.

Durante quinze dias seguidos, vários pregadores usaram do púlpito nas igrejas de Salvador para sensibilizar o público e para conseguir o engajamento divino na luta contra os holandeses. Para Vieira, este é o derradeiro recurso de que dispõem os portugueses para somar forças contra os holandeses. O orador dá a entender que todos os esforços anteriores foram no sentido de fazer com que os homens se convertessem à causa lusitana.

A situação agora é diferente: quero eu, Senhor, converter-vos a vós. Tão presumido venho da vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós somos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido. Os homens são os pecadores, Deus é que se arrepende. A misericórdia e o amor de Deus são tão poderosos, tão profundos, que só a sua “conversão” tornará possível a salvação dos portugueses.

I, § 7

O que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva nos et redime nos. Mui conformes são estas petições ambas ao lugar e ao tempo.

I, § 8

Em tempo que tão oprimidos e tão cativos estamos, que devemos pedir com maior necessidade, senão que nos liberteis: Redime nos? E na casa da Senhora da Ajuda, que devemos esperar com maior confiança, senão que nos ajudeis: Adjuva nos? Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fora só nossa e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas como a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de vossa honra e glória, e pelo crédito de vosso nome Propter nomen tuum razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei de argüir, vos hei de argumentar; e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei de convencer. Se chegar a me queixar de vós e a acusar as dilatações de vossa justiça, ou as desatenções de vossa misericórdia: Quare obdormis? Quare oblivisceris? Não será esta vez a primeira em que sofrestes semelhantes excessos a quem advoga por vossa causa. As custas de toda a demanda também vós, Senhor, as havei de pagar, porque me há de dar vossa mesma graça as razões com que vos hei de argüir, a eficácia com que vos hei de apertar e todas as armas com que vos hei de render. E se

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para isto não bastam os merecimentos da causa, suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja ajuda plenamente confio. Ave Maria.

Nesses parágrafos finais, o pregador deixa claro o objetivo do sermão, que é pedir ajuda ao senhor pelo bom sucesso dos portugueses contra os holandeses. Mas ele deixa claro que não vai pedir como quem pede um favor; ele vai protestar, argumentar, exigir justiça, e já vai se desculpando logo por possíveis excessos contra o nome do Senhor. Ele fala também sobre as custas de toda a demanda, que serão pagas por Deus, como se seu sermão fosse na realidade uma petição de Direito, racional, com fatos e argumentos para provar a Deus que ele deve por justiça ser português naquele momento.

Aqui se evidencia novamente o jogo de palavras de que se utiliza Vieira para convencer os ouvintes ou, no caso, ao próprio Deus. Se o objetivo fosse alcançar algum benefício para os homens, independentemente de sua nacionalidade, ele pediria favor e misericórdia, com a maior humildade. Considerando, entretanto, que o grande favorecido será o Senhor, é mister que a justiça divina prevaleça, custe o que custar, e não que uma mera solicitação humana seja atendida.

No final dessa primeira parte aparece a invocação, em que o orador pede a ajuda da Virgem Santíssima, para que ele consiga atingir seus objetivos.

IIII, § 1

Exurge, quare obdormis Domine? Querer argumentar com Deus e convencê-lo com razões, não só dificultoso assunto parece, mas empresa declaradamente impossível, sobre arrojada temeridade. O homo, tu qui es, qui respondeas Deo? Nunquid dicit figmentum ei qui se finxit: Quid me fecisti sic? “Homem atrevido diz São Paulo homem temerário, quem és tu, para que te ponhas a altercar com Deus? Porventura o barro que está na roda e entre as mãos do oficial, põe-se às razões com ele e dize-lhe: por que me fazes assim?” Pois se tu és barro, homem mortal, se te formaram as mãos de Deus da matéria vil da terra, como dizes ao mesmo Deus: Quare? quare? Como te atreves a argumentar com a sabedoria divina, como pedes razão à sua Providência do que te faz ou deixa de fazer? Quare obdormis? Quare faciem tuam avertis? Venera suas permissões, reverencia e adora seus ocultos juízos, encolhe os ombros com humildade a seus decretos soberanos, e farás o que te ensina a Fé e o que deves à criatura. Assim o fazemos, assim o confessamos e assim o protestamos diante de vossa Majestade infinita, imenso Deus, incompreensível bondade: Justus es, domine, et rectum judicium tuum. Por mais que nós não saibamos entender vossas obras, por mais que não possamos

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alcançar vossos conselhos, sempre sois justo, sempre sois santo, sempre sois infinita bondade: e ainda nos maiores rigores de vossa justiça, nunca chegais com a severidade do castigo aonde nossas culpas merecem.

O pregador utiliza, tanto no final da primeira parte quanto nesse início da segunda, o verbo argumentar. O próprio desenvolvimento ou corpo do sermão é conhecido como argumento. Em geral, considera-se a argumentação uma parte integrante do texto dissertativo, ou seja, o momento ou momentos em que o locutor lança mão de estratégias para convencer o ouvinte. Othon Moacir Garcia estabelece uma distinção entre dissertação e argumentação:

Se a primeira tem como propósito principal expor ou explanar, explicar ou interpretar idéias, a segunda visa sobretudo a convencer, persuadir ou influenciar o leitor ou ouvinte. Na dissertação, expressamos o que sabemos ou acreditamos saber sobre determinado assunto; externamos nossa opinião sobre o que é ou que nos parece ser. Na argumentação, além disso, procuramos principalmente formar a opinião do leitor ou ouvinte, tentando convencê-lo de que a razão está conosco, de que nós é que estamos de posse da verdade. (GARCIA, 1972, p. 361)

É isso exatamente que Vieira pretende: convencer. Conforme o plano anunciado, o pregador desdobra suas idéias principais, realçando-as com exemplos, casos bíblicos, alegorias, sentenças de religiosos ou moralistas pagãos (como Sêneca) e algumas vezes por afetos (expansões devotas).

O orador parte de uma proposição para desenvolver seus argumentos: Querer argumentar com Deus e convencê-lo com razões é não só difícil, como impossível. É grande o atrevimento daqueles que ousam desafiar o Senhor, assim como é infinita a bondade e a justiça divina. Vieira procura enfatizar de tal forma esta idéia que ele carrega de imagens e cores o que seria a tradução do texto de São Paulo na Epístola aos Romanos.

A tradução literal do texto em latim é: Mas, ó homem, quem és tu para responderes a Deus? Porventura o vaso de barro diz a quem o fez: Por que me fizeste assim? Em sua paráfrase do texto bíblico muito mais do que uma tradução , Vieira transforma o substantivo homem (em latim homo) em homem atrevido, homem temerário, para realçar a inconseqüência de quem assim se dirige ao senhor; o vaso de barro (lat. figmentum) metamorfoseia-se em o barro que está na roda e entre as mãos do oficial, conferindo movimento e vida ao vaso inanimado; a criatura vaso de barro não apenas diz (lat. dicit) a seu criador, mas antes põe-se às razões com ele.

Esses recursos de retórica são freqüentemente utilizados por Vieira, cuja tática é maravilhar, chocar os ouvintes.

Aqui é introduzida uma boa dose de suspense através de um aparente paradoxo: se o predicante havia sustentado no intróito que iria protestar e argumentar com Deus, como é que ele agora afirma ser isso impossível? E se sua intenção inicial era argüir e apertar e render o Senhor, donde procede a afirmativa de que ele, o locutor, venera suas permissões,

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reverencia e adora seus ocultos juízos, encolhe os ombros com humildade a seus decretos soberanos? Diante do que havia dito anteriormente, como é que ele pode afirmar que qualquer castigo divino é menor do que o merecimento dos homens? Como diz o salmo CXVIII: Vós sois justo, Senhor, e retos, os vossos juízos.

Seriam essas afirmações incoerentes com o propósito do pregador? Teria sido ele acometido de um repentino ataque de arrependimento por causa de sua arrogância com a figura divina? Vejamos como Vieira desvenda essa aparente contradição.

II, § 2

Se as razões e argumentos da nossa causa as houvéramos de fundar em merecimentos próprios, temeridade fora grande, antes impiedade manifesta, querer-vos argüir. Mas nós, Senhor, como protestava o profeta Daniel: Neque enim in justificationibus nostris, proternimus preces ante faciem tuam, sed in miserationibus tuis multis: os requerimentos e razões deles, que humildemente presentamos ante vosso divino conspecto, as apelações ou embargos que interpomos à execução e continuação dos castigos que padecemos, de nenhum modo os fundamos na presunção de nossa justiça, mas todos na multidão de vossas misericórdias: In miserationibus tuis multis. Argumentamos, sim, mas de vós para vós; apelamos, mas de Deus para Deus de Deus justo para Deus misericordioso. E como do peito, Senhor, vos hão de sair todas as setas, mal poderão ofender vossa bondade. Mas porque a dor quando é grande sempre arrasta o afeto, e o acerto das palavras é o descrédito da mesma dor, para que o justo sentimento dos males presentes não passe os limites sagrados de que fala diante de Deus e com Deus, em tudo o que me atrever a dizer seguirei as pisadas sólidas dos que em semelhantes ocasiões, guiados por vosso mesmo espírito, oraram e exoraram vossa piedade.

A proposição apresentada no primeiro parágrafo da segunda parte exige uma condição para se afirmar verdadeira: é que ela seja fruto de um pedido em benefício próprio, ou seja, o homem que questiona Deus em causa própria já perdeu a razão a priori.

O pregador quer deixar claro que não é esse o seu caso. Aplica-se aqui a fala do profeta Daniel, que assim se traduz: Não fazemos estas deprecações fundados em alguns merecimentos da nossa justiça, prostrando nossas preces diante de tua face, mas sim na multidão das tuas misericórdias.

O pregador não apenas diz que não advoga em benefício próprio, como afirma que quem fala por sua boca nem é ele mesmo, senão Deus, que vai questionar a si próprio. E, como um locutor dominado pela dor fala com sentimento, e como só a razão pode-se sobrepor à dor, a fala do pregador-Deus com Deus mesmo deverá basear-se em pisadas sólidas de

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grandes figuras que, enfrentando situações semelhantes, recorreram ao Senhor.

II, § 3

Quando o povo de Israel no deserto cometeu aquele gravíssimo pecado de idolatria, adorando o ouro das suas jóias na imagem bruta de um bezerro, revelou Deus o caso a Moisés, que com ele estava, e acrescentou irado e resoluto, que daquela vez havia de acabar para sempre com uma gente tão ingrata, e que a todos havia de assolar e consumir, sem que ficasse rasto de tal geração: Dimitte me, ut irascitur furor meus contra eos et deleam eos. Não lhe sofreu, porém, ao coração ao bom Moisés ouvir falar em destruição e assolação de seu povo; põe-se em campo, opõe-se à ira divina e começa a arrazoar assim: Cur, Domine, irascitur furor tuus contra populum tuum? “E bem, Senhor, por que razão se indigna tanto a vossa ira contra o vosso povo?” Por que razão, Moisés?! E ainda vós quereis mais justificada razão a Deus? Acaba de vos dizer que está o povo idolatrando; que está adorando um animal bruto; que está negando a divindade ao mesmo Deus e dando-a a uma estátua muda, que acabaram de fazer sua mãos, e atribuindo-lhe a ela a liberdade e triunfo com que os livrou do cativeiro do Egito, e sobre tudo isso ainda perguntais a Deus por que razão se agasta: Cur irascitur furor tuus?

Na seqüência de sua argumentação, coerente com seu propósito de basear-se em fatos irrefutáveis, o locutor se utiliza de uma ilustração, narrando o episódio bíblico da adoração do bezerro de ouro pelo povo de Israel. Sentindo-se traído, o Senhor enfureceu-se com a idolatria e vociferou a Moisés: Deixa que o furor da minha indignação se acenda contra eles, e que eu os consuma.

Ao invés de se desesperar, Moisés argumenta com Deus, fazendo-o ver que não há razão para tanto furor. Aqui, o pregador questiona Moisés: com tão evidente traição ao Senhor, quem mereceria mais o castigo divino do que o povo de Israel? Como se atreve Moisés a responder assim a Deus?

A resposta vem no parágrafo seguinte:

II, § 4

Sim, e com muito prudente zelo; porque ainda que da parte do povo havia muito grandes razões de ser castigado, da parte de Deus era maior a razão que havia de o não castigar: Ne, quæso, dá razão Moisés ne, quæso, dicant Ægyptii: Callide eduxit eos, ut interficeret in montibus et deleret e terra. Olhai, Senhor, que porão mácula os egípcios em vosso ser, e, quando menos, em vossa verdade e bondade. Dirão que, cautelosamente e à falsa fé, nos trouxestes a este deserto, para aqui nos tirardes a vida a todos e

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nos sepultardes. E com esta opinião divulgada e assentada entre eles, qual será o abatimento de vosso santo nome, que tão respeitado e exaltado deixastes no mesmo Egito, com tantas e tão prodigiosas maravilha do vosso poder? Convém logo, para conservar o crédito, dissimular o castigo e não dar com ele ocasião àqueles gentios e aos outros, em cujas terras estamos, ao que dirão: Ne, quæso, dicant.

O orador abre este parágrafo para defender a atitude de Moisés. Não que os israelitas não merecessem o castigo; ao contrário, está provado que mereciam, e dos mais terríveis. Ocorre que um motivo maior sobrepõe-se à necessidade do castigo: o próprio nome de Deus. Moisés expõe a razão de sua atitude (tradução): Não permitas, te rogo, que digam os egípcios: Ele os fez retirarem-se (do Egito) astutamente para os matar nos montes, e para os extinguir da terra. Após registrar a fala de Moisés a Deus em latim, Vieira não cuida em fazer uma tradução livre entre aspas como aconteceu até aqui; para maior liberdade de interpretação e explicação, ele faz uma paráfrase do texto bíblico para sublinhar o acerto de Moisés ao questionar o Senhor.

O castigo é necessário; entretanto, sua aplicação diminui o Senhor diante dos gentios (no caso, os egípcios); o castigo, portanto, não deve ser aplicado. Esse é um raciocínio dialético em que a primeira proposição (tese) é negada pela segunda (antítese), chegando-se pelo método dedutivo à conclusão (síntese).

Ao final do parágrafo, o orador dirige a ilustração à causa que o aflige, mencionando os gentios e os outros, em cuja terra estamos. Está sugerida a analogia: os egípcios são os nossos nativos e negros, Israel é o império português.

II, § 5

Desta maneira arrazoou Moisés em favor do povo; e ficou tão convencido Deus da força deste argumento, que no mesmo ponto revogou a sentença, e, conforme o texto hebreu, não só se arrependeu da execução, senão ainda do pensamento: Et poenituit Dominum mali, quod cogitaverat facere populo suo. “E arrependeu-se o Senhor do pensamento e da imaginação que tivera de castigar o seu povo”.

A ilustração termina com a até agora mais fiel tradução de um trecho bíblico empreendida por Vieira. Veja-se a tradução literal: E arrependeu-se o Senhor do mal que cogitara fazer a seu povo. Está provado, portanto, que aquela situação permitiu ao homem questionar um desígnio divino para preservar a justiça e o nome de Deus.

No parágrafo seguinte, aplica-se a ilustração à situação que se quer retratar.

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II, § 6

Muita razão tenho eu logo, Deus meu, de esperar que haveis de sair deste sermão arrependido, pois sois o mesmo que éreis, e não menos amigo agora, que nos tempos passados. De vosso nome: Propter nomen tuum. Moisés disse-vos: Ne, quæso, dicant: “Olhai, Senhor, que dirão”. E eu digo e devo dizer: Olhai, senhor, que já dizem. Já dizem os hereges insolentes com os sucessos prósperos, que vós lhes dais ou permitis; já dizem que porque a sua, que eles chamam religião, é a verdadeira, por isso Deus os ajuda e vencem; e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece e somos vencidos. Assim o dizem, assim o pregam, e ainda mal, porque não faltará quem os creia.

A situação de Moisés e seu povo era grave, e Deus aquiesceu em preservar os hebreus para não se desonrar a si próprio. A situação dos portugueses e seu império é gravíssima; mantendo-se a analogia, mais motivo ainda terá o Senhor para estar ao lado dos portugueses.

O pregador está certo de que vai fazer Deus arrepender-se de não ajudar os portugueses, e, conseqüentemente, reverter o quadro a seu favor, pois, se Deus deu razão a Moisés por ele ter-lhe lembrado o que os egípcios poderiam dizer (hipótese), caso o povo de Israel fosse castigado, a situação presente é pior: os “hereges” holandeses já andam a dizer (certeza) que a sua é a verdadeira religião, já que Deus está a seu lado.

Foi enunciado o perigo que corre o reino de Deus; cumpre pintá-lo com cores tão fortes que não paire a menor dúvida sobre que atitude deve tomar o Senhor.

II, § 7

Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra a vossa Fé?! É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome?! Que diga o herege (o que treme de o pronunciar a língua), que diga o herege, que Deus está holandês?! Oh não permitais tal, Deus meu, não permitais tal, por quem sois! Não o digo por nós, que pouco ia em que nos castigásseis; não o digo pelo Brasil, que pouco ia em que o destruísseis; por vós o digo, e pela honra de vosso santíssimo nome, que tão imprudentemente se vê blasfemado: Propter nomen tuum. Já que o pérfido calvinista dos sucessos que só lhe merecem nossos pecados faz argumento da religião, e se jacta insolente e blasfemo de ser a sua verdadeira, veja ele na roda dessa mesma fortuna, que o desvanece, de que parte está a verdade. Os ventos e tempestades, que descompõem e derrotam as nossas armadas, derrotem e desbaratem as suas; as doenças e pestes, que diminuem e enfraquecem os nossos exércitos, escalem as suas

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muralhas e despovoem os seus presídios, os conselhos que, quando vós quereis castigar, se corrompem, em nós sejam alumiados e neles enfatuados e confusos. Mude a vitória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas, triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e desenganada a perfídia, que só a fé romana, que professamos, é Fé, e só ela a verdadeira e a vossa.

Espera-se que o Senhor jamais permita a desonra de seu próprio nome. As punições são absolutamente desimportantes para o pregador, mas se os portugueses forem castigados com a vitória holandesa, o que realmente vai triunfar é a oposição ao reino de Deus, a qual recende a enxofre.

É preciso que os protestantes holandeses, huguenotes hereges, pérfidos, insolentes, blasfemos, sejam derrotados pelos elementos, pelas doenças, pelos homens e por Deus, para que saibam onde está a verdadeira religião.

II, § 8

Mas ainda há mais quem diga: Ne, quæso, dicant Ægiptii: Olhai, Senhor, que vivemos entre gentios, uns que o são, outros que o foram ontem; e estes que dirão? Que dirá o Tapuia bárbaro, sem conhecimento de Deus? Que dirá o Índio inconstante, a quem falta a pia afeição da nossa Fé? Que dirá o Etíope boçal, que apenas foi molhado com a água do batismo sem mais doutrina? Não há dúvida de que todos estes, como não têm capacidade para sondar o profundo de vossos juízos, beberão o erro pelos olhos. Dirão, pelos efeitos que vêem, que a nossa Fé é falsa, e a dos holandeses a verdadeira, e crerão que são mais cristãos, sendo como eles. A seita do herege torpe e brutal concorda mais com a brutalidade do bárbaro; a largueza e soltura da vida, que foi a origem e o fomento da heresia, casa-se mais com os costumes depravados e corrução do gentilismo; e que pagão haverá que se converta à fé que lhe pregamos, ou que novo cristão já convertido, que se não perverta, entendendo e persuadindo-se uns e outros que no herege e premiada a sua lei, e no Católico se castiga a nossa? Pois se estes são os efeitos, posto que não pretendidos, de vosso rigor e castigo, justamente começado em nós, por que razão se ateia e passa com tanto dano aos que não são cúmplices das nossas culpas? Cur irascitus furor tuus? Por que continua sem estes reparos o que vós mesmos chamastes furor? E por que não acabai já de embainhar a espada de vossa ira?

Assim como os egípcios podem duvidar da verdade e da bondade de Deus, também os gentios brasileiros (os índios, os negros, os mestiços) podem descrer da fé católica. Se a questão fosse apenas de descrença,

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talvez fosse possível administrar o revés; ocorre que, no presente caso, há uma terrível agravante: os gentios, os negros, os bárbaros, os que não crêem no cristianismo, esses certamente serão mais atraídos pela heresia holandesa, que é premiada, do que pela santa fé católica, que ora é castigada.

Tal atração se justifica por dois motivos principais: a vitória holandesa, que fará aos ignorantes crer que é a deles a verdadeira religião, e a própria ignorância dos gentios, que os torna mais parecidos com os holandeses; seus costumes depravados e corruptos são mais consoantes com a seita do herege torpe e brutal (o protestantismo).

Vieira atribui o advento do protestantismo à largueza e soltura da vida, em contraste com o catolicismo, que, segundo ele sugere, reflete o profundo dos vossos juízos. Ao fazer essas referências ao calvinismo, Vieira incorre evidentemente em uma falácia, raciocinando com extrema competência sobre dados falsos, ou, na melhor das hipóteses, não passíveis de comprovação.

Entretanto, o opositor não está presente para proceder à réplica, e a última coisa que se espera é que qualquer de seus fiéis conteste suas palavras, e ele sabe disso, o que acaba tornando o sofisma um importante elemento de sua argumentação.

Uma vez compreendido o terrível perigo por que passa a fé católica, espera-se que o Senhor aplaque sua ira contra os defensores da verdadeira religião e decida pela eliminação dos holandeses. Para consolidar a decisão divina, outros fortes argumentos virão a seguir.

II, § 9

Se tão gravemente ofendido do povo hebreu, por um que dirão dos egípcios lhe perdoastes; o que dizem os hereges, e o que dirão os gentios, não será bastante motivo para que vossa rigorosa mão suspenda o castigo e perdoe também os nossos pecados, pois, ainda que grandes, são menores? Os hebreus adoraram o ídolo, faltaram à Fé, deixaram o culto do verdadeiro Deus, chamaram deus e Deuses a um bezerro: e nós, por mercê de vossa bondade infinita, tão longe estamos e estivemos de menor defeito ou escrúpulo nesta parte, que muitos deixaram a pátria, a casa, a fazenda, e ainda a mulher e os filhos, e passam em suma miséria desterrados, só por não viver nem comunicar com homens que se separaram da vossa Igreja. Pois, Senhor meu e Deus meu, se por vosso amor e por vossa Fé, ainda sem perigo de a perder ou arriscar, fazem tais finezas os portugueses: Quare oblivisceris inopiæ nostræ? Et tribulationis nostræ? Por que vos esqueceis de tão religiosas misérias, de tão católicas tribulações? Como é possível que se ponha Vossa Majestade irada contra estes fidelíssimos servos, e favoreça a parte dos infiéis, dos excomungados, dos ímpios?

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Nesse parágrafo, o locutor traça um paralelo entre a situação dos hebreus, contida no antigo testamento, e a dos portugueses, pesando cuidadosamente os fatos de um e outro caso.

Os hebreus fizeram uma terrível contravenção, cometeram gravíssima ofensa ao Senhor, e o simples “que dirão os egípcios” invocado por Moisés bastou para que Deus os perdoasse.

Os portugueses também ofenderam ao Senhor com grandes pecados, embora infinitamente menores do que os dos hebreus, que praticaram uma heresia das piores. Esse tipo de pecado os portugueses jamais praticariam; ao contrário, eles são capazes dos maiores sacrifícios, incluindo o abandono de todos os pertences e dos seres queridos, só para fugir da heresia.

Embora pecadores, os portugueses são extremamente religiosos, católicos, fiéis incondicionais do Senhor. Tão fiéis que até suas misérias e tribulações são religiosas e católicas.

Além da leveza relativa dos pecados lusitanos, há um outro agravante: o não perdão de Deus acarreta automaticamente o favorecimento aos holandeses. Isso significa que, além de perder os portugueses, que, com todas as deficiências, são seus fidelíssimos servos, o Senhor vai ganhar holandeses infernais, hereges a toda prova.

A estratégia do locutor é demonstrar que se Deus perdoa um grande pecado por um pequeno motivo, por que não perdoar pequenos pecados por um grande motivo?

Os argumentos estão lançados. O predicante agora vai argüir o Senhor.

II, § 10

Oh! Como nos podemos queixar neste passo, como se queixava lastimado Jó, quando, despojado dos sabeus e caldeus, se viu, como nós nos vemos, no extremo da opressão e miséria: Nunquid bonum tibi videtur, si calumnieris me et opprimas me opus manuum tuarum et consilium impiorum adjuves? Parece-vos bem, Senhor, parece-vos bem isto? Que a mim que sou vosso servo, me oprimais e aflijais, e aos ímpios, aos inimigos vossos os favoreçais e ajudeis? Parece-vos bem que sejam eles os prosperados e assistidos de vossa providência, e nós os deixados de vossa mão? Nós os esquecidos de vossa memória? Nós o despojo de vossa ira? Tão pouco é desterrarmo-nos por vós e deixar tudo? Tão pouco é padecer os trabalhos, pobrezas, e os desprezos que elas trazem consigo, por vosso amor? Já a Fé não tem merecimento? Já a piedade não tem valor? Já a perseverança não vos agrada? Pois se há ainda tanta diferença entre nós, ainda que maus, e aqueles pérfidos, porque os ajudais a eles, e nos desfavoreceis a nós? Nunquid bonum tibi videtur: “A vós, que sois a mesma bondade, parece-vos bem isto?”

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Coerente com sua declaração de se basear em situações bíblicas semelhantes à que ele enfrenta no momento, Vieira cita Jó, que, numa situação de extrema penúria, assim se dirige ao Senhor (tradução): Porventura parece-te bem caluniares-me e oprimires-me a mim que sou obra de tuas mãos, e favoreceres os desígnios dos ímpios?

Esse parágrafo encerra a segunda parte com uma série de dramáticas indagações do pregador a Deus sobre se é justo que os portugueses, tão servis ao Senhor, sejam castigados, enquanto os inimigos do Senhor, os infiéis, excomungados, ímpios holandeses, são beneficiados.

III

III, § 1

Considerai, Deus meu e perdoai-me, se falo inconsideradamente considerai a quem tirais as terras do Brasil e a quem as dais. Tirais estas terras aos portugueses, a quem no princípio as destes; e bastava dizer a quem as destes, para perigar o crédito de vosso nome, que não podem dar nome de liberal mercês com arrependimento. Para que nos disse S. Paulo, que vós, senhor, “quando dais, não vos arrependeis”: Sine pœnitentia enim sunt dona Dei? Mas deixado isto à parte: tirais estas terras àqueles mesmos portugueses a quem escolhestes entre todas as nações do Mundo para conquistadores da vossa Fé, e a quem destes por armas como insígnia e divisa singular vossas próprias chagas. E será bem, Supremo Senhor e Governador do Universo, que às sagradas quinas de Portugal e às armas e chagas de Cristo, sucedam as heréticas listas de Holanda, rebeldes a seu rei e a Deus? Será bem que estas se vejam a tremular ao vento vitoriosas, e aquelas abatidas, arrastadas e ignominiosamente rendidas? Et quid facies magno nomini tuo? E que fareis (como dizia Josué) ou que será feito de vosso glorioso nome em casos de tanta afronta?

O pregador parte da proposição de que os desígnios divinos são imutáveis, portanto Deus não pode voltar atrás quando concede uma graça. As terras do Brasil foram dadas por Deus a Portugal, e a simples menção de que o Senhor as havia dado faz perigar a credibilidade da palavra divina, pois não há liberalidade em se conceder uma graça, ou um favor, e depois o retirar.

A fala de S. Paulo na Epístola aos romanos traduz-se como: Porque os dons, e a vocação de Deus são imutáveis. Se são imutáveis, a simples possibilidade de que haja uma mudança de portugueses para holandeses na preferência divina é algo impensável em termos de manutenção da glória e do nome do Senhor.

É preciso considerar aqui que a expansão portuguesa é vista como

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uma determinação histórica de origem divina: expandir Portugal significa ampliar o cristianismo, fazendo-o chegar às terras mais remotas do mundo. Assim, o trabalho dos príncipes, de conquistar novas terras, só pode ser sacramentado e validado com o trabalho missionário. Nas palavras de Vieira, as chagas de Cristo constituem a própria insígnia das armas do exército português, o que leva a uma associação óbvia: assim como o sofrimento de Cristo (chagas) libertou o mundo, a ação dos portugueses (armas) vai libertar o restante dos povos incultos e pagãos.

Vieira faz uma referência à lenda de que as cinco chagas de Cristo estariam representadas pelos cinco pontos brancos (besantes) dentro de cada uma das quinas (escudos) azuis que figuravam na bandeira portuguesa do século XVII (bandeira de D. Sebastião), e que foram mantidas na bandeira portuguesa atual. Na lendária batalha de Ourique (ver comentário ao § 4 da parte 1), Jesus Cristo teria dito a D. Afonso Henriques: Com este sinal, vencerás! As cinco quinas representariam os cinco reis mouros derrotados por D. Afonso. Ainda segundo a tradição lendária, duplicando as chagas da quina do meio e somando-as às demais, chega-se ao número 30, que representaria os 30 dinheiros que Judas recebeu por ter traído Cristo.

Entretanto, o pregador supõe que se admita a hipótese de que Deus retire de Portugal a graça outrora concedida, o que em si já é algo intolerável. Removido esse absurdo, um absurdo ainda maior se apresenta: a afronta que os holandeses representam ao nome do Senhor. Conforme indaga Josué (Josué, VII, 9): E que farás tu ao teu grande nome?

As sagradas quinas, que figuram na bandeira de Portugal, opõem-se às heréticas listas horizontais da bandeira da Holanda — uma azul, uma branca e uma vermelha. Com tanta heresia, é justo que os holandeses consigam a vitória e que profanem o nome do Senhor?

Bandeira de El-Rei Dom Sebastião

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Bandeira atual de Portugal, em que são mantidas as quinas e os besantes da bandeira de Dom Sebastião

III, § 2

Tirais também o Brasil aos portugueses, que assim estas terras vastíssimas, como as remotíssimas do Oriente, as conquistaram à custa de tanta vida e tanto sangue, mais por dilatar vosso nome e vossa ,Fé (que esse era o zelo daqueles cristianíssimos reis) que por amplificar e estender seu império. Assim fostes servido que entrássemos nestes novos mundos, tão honrada e tão gloriosamente, e assim permitis que saiamos agora (quem tal imaginaria de vossa bondade!), com tanta afronta e ignomínia! Oh! Como receio que não falte quem diga como os egípcios: Callide eduxit eos, ut interficeret et deleret e terra. Que a larga mão com que nos destes tantos domínios e reinos não foram mercês de vossa liberalidade, senão cautela e dissimulação de vossa ira, para aqui fora e longe de nossa Pátria nos matardes, nos destruirdes, nos acabardes de todo. Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no Oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhamos, as hajamos de perder assim? Oh! Quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!

Nesse parágrafo, Vieira descreve o sacrifício terrível que Portugal empreendeu para conquistar as terras que iriam ampliar a cristandade.

Longe de ser apenas uma figura de retórica, a afirmação do orador de que as conquistas portuguesas tinham por objetivo maior dilatar vosso nome e vossa Fé (que esse era o zelo daqueles cristianíssimos reis) é reflexo de uma crença na predestinação portuguesa de cristianizar o mundo.

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No "2º Sermão de Santo Antônio", Vieira refere-se ao tamanho geográfico de Portugal como motivo metafórico da necessidade de expansão lusitana:

Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer toda a terra; para nascer, Portugal: para morrer, o mundo. (VIEIRA, 1951, pp. 72-73)

Se Deus deu a Portugal tão minúsculo território, a razão é apenas uma: os filhos daquela terra tinham por missão ampliá-Ia, com o único objetivo de engrandecer a glória e o nome do Senhor.

D. João I (1357-1433), fundador da dinastia de Avis e pai do Infante D. Henrique, criador da Escola de Sagres, afirmava que, embora as conquistas lhe trouxessem honra e proveito, ele só se lançaria a elas se fosse a serviço de Deus. O marco histórico do início da expansão ultramarina portuguesa é a tomada de Ceuta (1415), em que os portugueses derrotaram os árabes infiéis.

Ao se referir aos mares nunca dantes navegados, Vieira faz uma citação intertextual de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (Canto primeiro, estrofe 1, verso 3). A epopéia Os Lusíadas é considerada o maior poema épico da língua portuguesa. Nele, Camões canta as glórias do povo português, celebrando as grandes navegações e a expansão em nome da Fé.

As conquistas portuguesas, portanto, são empreendidas pelos reis e suas armadas, celebradas pela arte superior da poesia, e abençoadas por Deus, grande arquiteto dos feitos lusitanos.

Com tantos patrocinadores e apoiadores de peso, com tantos sacrifícios, sofrimentos, mortes, se tudo isso pode ser jogado fora por uma "irresponsabilidade" divina, terá valido a pena?

O predicante cita Moisés (Êxodo, XXXII, 12): Ele os fez sair astutamente para os matar, e para os extinguir da terra. Aqui, Vieira se refere à possível ação divina - maldosa e premeditada, diga-se de passagem - contra os interesses portugueses como uma aniquilação, um extermínio de tudo aquilo que Portugal representa para a cristandade, tudo isso representado por uma possível invasão da Bahia, o que, aliás, já havia acontecido vinte e seis anos antes.

É importante observar como o pregador se refere a Deus, e a aparente artimanha que Ele utiliza para, primeiro, ajudar os portugueses e depois varrê-los da face da terra. O que parecia ser mercês de vossa liberalidade, graças, ajudas, favores divinos, é na realidade cautela e dissimulação de vossa ira, isto é, Deus teria feito os portugueses saírem de seu pequeno território para esmagá-los fora de seus domínios.

A se confirmar essa impressão, o orador lamenta ter Portugal feito tantos sacrifícios para nada.

III, § 3

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Mais santo que nós era Josué, menos apurada tinha a paciência, e, contudo, em ocasião semelhante, não falou (falando convosco) por diferente linguagem. Depois de os filhos de Israel passarem às terras ultramarinas do Jordão, como nós a estas, avançou parte do exército a dar assalto à cidade de Hai, a qual nos ecos do nome já trazia o prognóstico do infeliz sucesso que os israelitas nela tiveram; porque foram rotos e desbaratados, posto que com menos mortos e feridos, do que nós por cá costumamos. E que fazia Josué à vista desta desgraça? Rasga as vestiduras imperiais, lança-se por terra, começa a chamar ao Céu: Heu! Domine Deus, quid voluisti traducere populum istum Jordanem fluvium, ut traderes nos in manus Amorrrei? "Deus meu e Senhor meu, que é isto? Para que nos mandastes passar o Jordão e nos metestes de posse destas terras, se aqui nos haveis de entregar nas mãos dos amorreus e perder-nos? Utinam mansissemus trans Jordanem! "Oh! Nunca nós passáramos tal rio!"

Vieira ilustra aqui seus argumentos com a passagem bíblica de Josué e os Israelitas. Guiado por Deus, Josué e seu povo procuram a terra prometida. Atravessando o rio Jordão, eles dizimam a população de Jericó com a ajuda de Deus e aí se estabelecem. Animados com a vitória, tentam imediatamente subjugar a cidade de Hai, menor e menos protegida que a derrotada Jericó. O descuido e a precipitação dos israelitas são punidos por Deu? e os invasores são repelidos, rotos e desbaratados.

Josué, diante da derrota, reclama a Deus (Josué, VII, 7): Ah, Senhor Deus, por que quiseste tu que este povo passasse o rio Jordão, para nos entregares nas mãos dos amorreus, e para nos perderes? Oxalá que nós tivéssemos ficado na outra banda do Jordão.

A estratégia do orador continua sendo a de magnificar os feitos e sofrimentos dos portugueses em relação às passagens bíblicas, para justificar sua maneira de se dirigir a Deus. Assim, Josué, que se revoltou contra o Senhor, era mais santo que nós; as perdas dos israelitas em sua escaramuça contra a cidade de Hai, embora enormes, apresentaram menos mortos e feridos, do que nós por cá costumamos. Até suas vestes de general Josué rasgou em penitência pela derrota, jogando-se ao chão e reclamando aos céus a injustiça divina.

O pregador não rasga as vestes nem se joga por terra, mas quer deixar claro que, diante do episódio bíblico, as reivindicações portuguesas ao Senhor são mais que justificadas.

III, § 4

Assim se queixava Josué a Deus, e assim nos podemos nós queixar, e com muito maior razão que ele. Se este havia de ser o fim de nossas navegações, se estas fortunas nos esperavam nas terrras conquistadas: Utinam mansissemus trans Jordanem! Prouvera a vossa Divina majestade que nós nunca saíramos de

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Portugal, nem fiáramos nossas vidas às ondas e aos ventos, nem conhecêramos ou puséramos os pés em terras estranhas! Ganhá-Ias para as não lograr, desgraça foi e não ventura, possuí-Ias para as perder, castigo foi de vossa ira, Senhor, e não mercê, nem favor de vossa liberalidade. Se determináveis dar estas mesmas terras aos piratas de Holanda, por que lhas não destes quando eram agrestes e incultas, senão agora? Tantos serviços vos tem feito esta gente pervertida e apóstata, que nos mandastes primeiro cá por seus aposentadores; para lhe lavrarmos as terras, para lhe edificarmos as cidades, e depois de cultivadas e enriquecidas lhas entregardes? Assim se hão de lograr os hereges e inimigos da Fé, dos trabalhos portugueses e dos suores católicos? En queis consevimus agros? "Eis aqui para quem trabalhamos há tantos anos!"

Se Josué pode-se queixar da má sorte ocasionada pelo abandono de Deus, mais razão tem Vieira de fazê-lo, dadas as circunstâncias. É importante notar que o orador pinta o insucesso português como se ele já tivesse realmente acontecido, com o objetivo de tomar mais presente e real a possível desgraça, para impressionar os ouvintes e convencer a Deus.

Diante de tanta ingratidão, melhor fora não ter Portugal saído de seus domínios para levar a grandeza do Senhor aos povos incultos. Oxalá que nós tivéssemos ficado na outra banda do Jordão! Ao renunciar à expansão, os portugueses, embora não acumulassem glórias, pelo menos não teriam o supremo dissabor de conhecer a desgraça da derrota favorecida por Deus.

Nas palavras de Vieira, os holandeses são apóstatas — os que abandonaram a religião e a fé —, pervertidos, piratas, hereges, inimigos da fé. Com tanta adjetivação contrária, eles teriam tido a proteção de Deus, que fez com que os portugueses trabalhassem por eles.

Vieira constrói, com a referência aos aposentadores, uma metáfora da condição portuguesa em relação aos holandeses. Os aposentadores eram as pessoas enviadas antes do rei, em alguma viagem deste, para designar e arrumar os aposentos reais e tomar outras providências. Assim, as gloriosas jornadas lusitanas pelo mundo afora nada mais seriam do que simples atos de lacaios para prover o conforto de seu senhor, no caso, os holandeses.

Ao final do parágrafo, Vieira faz sua segunda referência (a primeira foi a Camões) a um texto não-bíblico, citando um verso das Bucólicas, de Virgílio, para expressar sua decepção em relação à inutilidade das grandes obras portuguesas.

III, § 5

Mas pois vós, Senhor, o quereis e ordenais assim, fazei o que fores servido. Entregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhes as índias, entregai-lhes as Espanhas (que não são menos perigosas as conseqüências do Brasil perdido); entregai-lhes quanto temos e

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possuímos (como já lhes entregastes tanta parte); ponde em suas mãos o Mundo; e a nós, aos portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e lembro a Vossa majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais.

O pregador nesse momento parece dar-se por vencido. Utilizando o recurso da gradação, Vieira magnifica as possíveis perdas portuguesas para os holandeses, da menor para a maior terra em importância e território: o Brasil, as índias, as Espanhas (Portugal sob o domínio espanhol), o Mundo. A gradação também é utilizada para descrever as ações de Deus contra os portugueses: deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos.

Neste parágrafo, Vieira refere-se claramente à união compulsória de Portugal com a Espanha, e inclui os espanhóis na socialização da derrota. Já que é inevitável a desgraça maior, que seja feita a vontade de Deus, mas é necessário que Ele não esqueça que seus filhos portugueses e espanhóis, a partir de então, não estarão mais à sua disposição para atendê-lo nas necessárias expansões da Fé.

D. João IV, restaurador da coroa portuguesa

III, § 6

Não me atrevera a falar assim, se não tirara as palavras da boca de Jó, que como tão lastimado, não é muito entre muitas vezes nesta tragédia. Queixava-se o exemplo da paciência a Deus (que nos quer Deus sofridos, mas não insensíveis), queixava-se do tesão de suas penas demandando e altercando, porque se lhe não havia de remitir e afrouxar um pouco o rigor delas; e como a todas as réplicas e instâncias o Senhor se mostrasse inexorável, quando já não teve mais que dizer, concluiu assim: Ecce nunc in pulvere dormiam, et si mane me quæsieris, non subsistam. Já que não quereis, Senhor, desistir ou moderar o tormento, já que não quereis senão continuar o rigor e chegar com ele ao cabo, seja muito embora; matai-me, consumi-me, enterrai-me: Ecce nunc in pulvere dormiam; mas só vos digo e vos lembro uma coisa: que "se me buscardes amanhã, que me não haveis de achar": Et si mane me quoosieris, non subsistam. Tereis aos sabeus, tereis aos caldeus, que sejam o roubo e o açoite de vossa casa; mas não achareis a um

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Jó que a sirva, não achareis a um Jó que a venere, não achareis a um Jó, que ainda com suas chagas a não desautorize. O mesmo digo eu, Senhor, que não é muito rompa nos mesmos afetos, quem se vê no mesmo estado. Abrasai, destruí, consumi-nos a todos; mas pode ser que um dia queirais espanhóis e portugueses, e que os não acheis. Holanda vos dará os apostólicos conquistadores, que levem pelo mundo os estandartes da cruz; Holanda vos dará os pregadores evangélicos, que semeiem nas terras dos bárbaros a doutrina católica e a reguem com o próprio sangue; Holanda defenderá a verdade de vossos Sacramentos e a autoridade da Igreja romana; Holanda edificará templos, Holanda levantará altares, Holanda consagrará sacerdotes e oferecerá o sacrifício de vosso Santíssimo Corpo; Holanda, enfim, vos servirá e venerará tão religiosamente, como em Amsterdão, Meldeburgo e Flisinga e em todas as outras colônias daquele frio e alagado inferno se está fazendo todos os dias.

Neste parágrafo final da terceira parte, Vieira utiliza como ilustração bíblica a história de Jó, cuja desgraça compara às desventuras portuguesas. Para justificar suas invectivas contra o Senhor, ele se refere a Jó como exemplo de paciência, e,devido aos seus sofrimentos, e suas lamentações, não é muito entre muitas vezes nesta tragédia, ou seja, a presença constante de Jó no relato das amarguras lusitanas não é excessiva, dada sua semelhança com os fatos abordados.

Segundo o Antigo Testamento, Jó era um homem rico, feliz, justo, bom e fiel a Deus. Para fazê-lo amaldiçoar o Senhor, Satanás destrói sua fortuna e provoca a morte de seus sete filhos e três filhas. Ainda assim, sua confiança em Deus não se abala: Nu saí do ventre de minha mãe, e nu voltarei para lá. O Senhor o deu, o Senhor o tirou: como foi do agrado do Senhor, assim sucedeu. Bendito seja o nome do Senhor (Jó, I, 21). Mesmo mantendo-se firme em sua fé, em seguida seu corpo ficou coberto de feridas e coceiras terríveis. Mais tarde, recebeu a visita de três velhos amigos, que não cessaram de culpá-lo por sua própria desgraça; sendo Deus justo, esses sofrimentos só podiam advir de algum pecado terrível. Jó continuou protestando sua inocência, e, sem entender a causa do ódio divino sobre si, lamenta-se profundamente. Ao final, Jó se arrepende das amargas palavras que dirigiu a Deus, e é compensado de todas as perdas anteriores.

Vieira apropria-se do discurso bíblico para adequá-lo a sua petição. Examinando uma e outra situação, percebemos que o orador distorce os fatos para que eles sirvam a seu argumento. No capítulo VII, versículo 21 do Livro de Jó, ao final de sua lamentação, o personagem-título, cansado de pedir e reclamar ao Senhor do tesão de suas penas, ou seja, da violência de seus sofrimentos, proclama: Eis aí agora vou dormir no pó; e se tu me buscares pela manhã, não subsistirei. A troca do verbo subsistir (Iat. subsistam) pelo verbo achar, embora não distorça tanto o significado, já modifica o tom das palavras bíblicas. Jó queria dizer que sua mísera existência por pouco se esvairia, e quando Deus dele se lembrasse, ele já não existiria. Em nenhum momento a história bíblica de Jó explicita as

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palavras: mas não achareis a um Jó que a sirva, não achareis a um Jó que a venere, não achareis a um Jó, que ainda com suas chagas a não desautorize. Essas não são as palavras de Jó; são uma interpretação tendenciosa do orador, para sustentar sua argumentação. Jó, na verdade, mesmo em meio a seu lamento, não se furta a buscar Deus e ser por Ele buscado: Tu me chamarás, e eu te responderei. Tu estenderás a tua destra para a obra de tuas mãos (Jó, XIV, 15).

Já o tom de Vieira é bastante afrontoso, bem condizente com o espírito barroco, que busca o contraste para provocar o efeito: à revolta indignada opor-se-á a súplica fervorosa, para impressionar os fiéis. O tom com que o pregador proclama que pode ser que um dia queirais espanhóis e portugueses, e que os não acheis contém uma boa dose de revanche, inexistente na fala de Jó ao pronunciar a frase: se tu me buscares pela manhã, não subsistirei. É evidente a intenção de Vieira de deixar bem claro que o grande perdedor no caso da vitória holandesa será Deus.

Ao final do parágrafo, o pregador enumera sarcasticamente as obras que perpetrarão os holandeses pelo mundo afora para "engrandecer" o Senhor, e termina dizendo que serão as mesmas que eles já fazem na Holanda, aquele frio e alagado inferno, referência ao clima e à umidade do país, em sua maior parte abaixo do nível do mar, tudo isso presidido certamente por Satanás, e seus infernais desígnios.

IV

IV, § 1

Bem vejo que me podeis dizer, Senhor, que a propagação de vossa Fé e as obras de vossa glória não dependem de nós, nem de ninguém, e que sois poderoso, quando faltem homens, para fazer das pedras filhos de Abraão. Mas também a vossa sabedoria e a experiência de todos os séculos nos tem ensinado, que depois de Adão nos criastes homens de novo, que vos servis dos que tendes neste Mundo, e que nunca admitis os menos bons, senão em falta dos melhores. Assim o fizestes na parábola do banquete. Mandastes chamar os convidados que tínheis escolhido, e porque eles se escusaram e não quiseram vir, então admitistes os cegos e mancos; e os introduzistes em seu lugar: Cæcus et claudus introduc huc. E se esta é, Deus meu, a regular disposição de vossa providência divina, como a vemos agora trocada e tão diferente conosco? Quais foram estes convidados e quais foram estes cegos e mancos? Os convidados fomos nós, a quem primeiro chamastes para estas terras, e nela nos puseste a mesa, tão franca e abundante, como de vossa grandeza se poderia esperar. Os cegos e mancos são os luteranos e calvinistas, cegos sem fé e mancos sem obras, na reprovação das quais consiste o principal erro da sua heresia. Pois se nós, que fomos os convidados, não nos escusamos nem duvidamos de vir, antes rompemos por muitos inconvenientes em

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que pudéramos duvidar; se viemos e nos assentamos à mesa, como nos excluís agora e lançais fora dela e introduzis violentamente os cegos e mancos, e dais os nossos lugares ao herege? Quando em tudo o mais foram eles tão bons como nós, ou nós tão maus como eles, por que nos não há de valer pelo menos o privilégio e prerrogativa de vossa providência e mudais as leis de vossa justiça conosco?

Quando Jó, no limiar de seus padecimentos, desafia o Senhor para que este preste contas dos males que lhe fizera, Deus o advertiu de que Ele é quem havia feito todo o universo, e não havia de dar satisfações aos mortais. No início deste parágrafo, Vieira lembra que essas mesmas palavras divinas podiam voltar-se contra ele, pois Deus tem poder para tudo, até para fazer das pedras filhos de Abraão. O patriarca Abraão é conhecido por ter tido apenas dois filhos em cento e setenta e cinco anos, o que constituiu o problema mais sério de sua vida, e um comprometimento à sua descendência. A Deus, basta querer que até uma pedra transforma-se em algo precioso.

Embora consinta no poder ilimitado de Deus, o locutor lembra, para justificar suas queixas, que o Senhor sempre escolheu os melhores homens para seu serviço, e cita o exemplo da Parábola da grande ceia. Um homem convidou a muitas pessoas para um grande banquete, e cada um, inventando uma desculpa, escusou-se de comparecer. Irado, o homem ordenou a seu servo: Sai logo às praças, e às ruas da cidade: e traze-me cá quantos pobres, e aleijados, e cegos, e coxos achares (S. Lucas, XIV, 21). A lição cristã da parábola é que os que forem chamados a servir ao Senhor devem entregar-se por inteiro; se tal não acontecer, Deus prontamente chamará outros para seu Reino.

Na fala de Vieira, os escolhidos são os portugueses, e os cegos e os mancos são os holandeses, cegos sem fé e mancos sem obras. Aliás, o grande pecado dos holandeses, segundo o locutor, é exatamente a negação da Fé e das obras do Senhor.

A grande incoerência divina no presente caso, conforme Vieira, é o fato de que, diferentemente dos convidados da parábola, os portugueses não só aceitaram o chamado do Senhor, como tiveram de se submeter a terríveis sacrifícios para atender ao convite. Como se justifica então a atual preferência pelos holandeses? Se, na pior das hipóteses, eles fossem tão bons como nós, ou nós tão maus como eles, mesmo assim deveria prevalecer a lei divina de preservar os que primeiro foram chamados e se entregaram por inteiro ao serviço do Senhor.

IV, § 2

Aquelas dez virgens do vosso Evangelho todas se renderam ao sono, todas adormeceram, todas foram iguais no mesmo descuido: Dormitaverunt omnes et dormierunt. E, contudo, a cinco delas passou-lhes o esposo por este defeito, e só porque conservaram as

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alâmpadas acesas, mereceram entrar às bodas, de que as outras foram excluídas. Se assim é, Senhor meu, se assim o julgastes então, (que vós sois aquele Esposo Divino), por que não nos vale a nós também conservar as alâmpadas da Fé acesas, que no herege estão tão apagadas e tão mortas? É possível que haveis de abrir as portas a quem traz as alâmpadas apagadas, e as haveis de fechar a quem as tem acesas? Reparai, Senhor, que não é autoridade do vosso divino tribunal que saíam dele no mesmo caso duas sentenças tão encontradas. Se às que deixaram apagar as alâmpadas se disse: Nescio vos; se para elas se fecharam as portas: Clausa est janua; quem merece ouvir de vossa boca um Nescio vos tremendo, senão o herege, que vos não conhece? E a quem deveis dar com a porta nos olhos, senão o herege, que os tem tão cegos? Mas eu vejo que nem esta cegueira, nem este desconhecimento, tão merecedores de vosso rigor, lhes retarda o progresso de suas fortunas, antes a passo largo se vêm chegando a nós suas armas vitoriosas, e cedo nos baterão às portas desta vossa cidade ...

O exemplo bíblico aqui utilizado por Vieira é a Parábola das dez virgens. Designadas para receber o esposo e a esposa para celebrar o casamento, as dez virgens tomaram suas alâmpadas e saíram a esperá-los. As cinco sensatas levaram bastante azeite para suas lâmpadas, enquanto as outras, fátuas, esqueceram-no. Como a espera foi longa, todas caíram no sono, só acordando no momento em que o esposo estava prestes a chegar. Começaram a tosquenejar todas, e assim vieram a dormir (S. Mateus, XXV, 5). Quando chegou, ele encontrou apenas as cinco prudentes com as lâmpadas acesas, porque as insensatas haviam saído em busca de mais combustível. Aquelas foram admitidas nas bodas, e estas tiveram as portas fechadas ante si. Clausa est janua, fechou-se a porta.

A parábola alude à vinda de Jesus Cristo para salvar os homens: Por isso estai vós também preparados: porque não sabeis em que hora tem de vir o Filho do homem (S. Lucas, XXIV, 44). Os que se descuidarem não entrarão no Reino de Deus. Nescio vos, não vos conheço.

Transpondo o texto bíblico para a realidade que quer evidenciar, Vieira relaciona Portugal às virgens prudentes e Holanda às virgens descuidadas. Portugal tem as lâmpadas da fé acesas; Holanda as tem apagadas e mortas. Considerando o evangelho, o locutor não pode admitir que o Senhor proceda de forma diferente no presente caso, privilegiando a insensatez em detrimento da prudência.

Do mais justo tribunal do mundo, não podem sair sentenças tão encontradas, ou seja, que vão uma de encontro à outra; em resumo, desencontradas, como diríamos hoje.

Com toda a sua cegueira infiel, com todo seu desconhecimento da verdadeira doutrina, os holandeses não estão tendo portas fechadas para si, e se aproximam inexoravelmente da cidade de Salvador.

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IV, § 3

Desta vossa cidade — disse; mas não sei se o nome do Salvador, com que a honrastes, a salvará e defenderá; nem sei se estas nossas deprecações, posto que tão repetidas e continuadas, acharão acesso a vosso conspecto divino, pois há tantos anos que está bradando ao Céu a nossa justa dor, sem a vossa clemência dar ouvidos a nossos clamores.

O pregador manifesta sua dúvida sobre se o nome da cidade — Salvador — será eficaz para salvá-Ia dos invasores, pois há tantos anos os agredidos clamam aos céus por uma intervenção divina, e no entanto Deus não toma providência nenhuma.

A expressão como já outra vez não defendeu refere-se à invasão holandesa na Bahia em 1624, episódio que Vieira presenciou e que marcou profundamente sua adolescência.

IV, § 4

Se acaso for assim (o que vós não permitais), e está determinado em vosso secreto juízo que entrem os hereges na Bahia, o que só vos represento humildemente e muito deveras, é que antes da execução da sentença repareis bem, Senhor, no que vos pode suceder depois, e que o consulteis com vosso coração, enquanto é tempo; porque melhor será arrepender agora, do que quando o mal passado não tenha remédio. Bem estais na intenção e alusão com que vos digo isto, e na razão, fundada em vós mesmo, que tenho para o dizer. Também antes do dilúvio estáveis vós muito colérico e irado contra os homens, e por mais que Noé orava em todos aqueles cem anos, nunca houve remédio para que se aplacasse vossa ira. Romperam-se, enfim, as cataratas do céu, cresceu o mar até os cumes dos montes, alagou-se o mundo todo; já estaria satisfeita vossa justiça. Senão quando, ao terceiro dia, começaram a boiar os corpos mortos, e a surgir e aparecer em multidão infinita aquelas figuras pálidas, e então se representou sobre as ondas a mais triste e funesta tragédia que nunca viram os anjos, que homens que a vissem não os havia. Viste vós também (como se o vísseis de novo) aquele lastimosíssimo espetáculo, e posto que não chorásseis, porque ainda não tínheis olhos capazes de lágrimas, enterneceram-se, porém, as entranhas de vossa Divindade, "com tão intrínseca dor": Tactus dolore cordis intrinsecus que, do modo que em vós cabe o arrependimento, vos arrependestes do que tínheis feito ao Mundo; e foi tão inteira a vossa contrição, que não só tivestes pesar do passado, senão propósito firme de nunca mais o fazer: Nequaquam ultra maledicam terres propter homines.

O texto em que se assenta o presente paralelismo de Vieira é o do dilúvio. A devassidão dos homens no princípio dos tempos levou Deus a

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destruir a terra com um grande dilúvio, como castigo. Noé foi escolhido para construir uma grande embarcação e nela proteger sua família e um casal de cada animal existente no mundo, para a perpetuação das espécies.

Após a destruição quase total, Deus declarou que nunca mais castigaria os homens daquela forma tão trágica: Não amaldiçoarei mais a terra por causa dos homens (Genesis, VIII, 21).

O pregador atribui tal declaração ao arrependimento de Deus pela tragédia provocada. Na realidade, não se configura no texto bíblico nenhum arrependimento divino pela mais triste e funesta tragédia que nunca viram os anjos. O texto do Genesis dá a entender que o Senhor simplesmente chegou à conclusão de que não valia a pena destruir o mundo por causa dos homens, porque o espírito e o pensamento do coração do homem são inclinados para o mal desde a mocidade (Genesis, VIII, 21).

Vieira distorce também a situação em que o texto da Bíblia é empregado, para fortalecer seu argumento. Quando ele cita a expressão E tocado interiormente da dor (Genesis, VI, 6, do latim, Tactus dolore cordis intrinsecus), ele atribui a Deus essa declaração num momento de profundo arrependimento pelo lastimosíssimo espetáculo por Ele provocado, em que suas entranhas se enterneceram com tão intrínseca dor que Ele teria decidido nunca mais tomar semelhante atitude.

O texto citado, entretanto, aparece em outro momento do mesmo episódio, antes do dilúvio, quando Deus toma exatamente a decisão de destruir os homens, e sua dor é provocada pela constatação da maldade e da corrupção humanas. A expressão ilustra, portanto, mais um momento de ira do que de arrependimento de Deus.

De qualquer forma, Vieira considera que Deus infligiu aos homens uma terrível punição por sua iniqüidade, uma causa justa, portanto, e se arrependeu amargamente do que havia feito.

Fazendo um paralelo com sua causa, nem tão depravados são os portugueses que mereçam tamanha derrota, e o favorecimento aos hereges certamente provocará arrependimento, e então poderá ser tarde demais.

IV, § 5

Este sois, Senhor, este sois; e pois sois este não vos tomeis com vosso coração. Para que é fazer agora valentias contra ele, se o seu sentimento, e o vosso as há de pagar depois? Já que as execuções de vossa justiça custam arrependimentos à vossa bondade, vede o que fazeis antes que o façais, não vos aconteça outra. E para que o vejais com cores humanas, que já vos não são estranhas, dai-me licença que eu vos represente primeiro ao vivo as lástimas e misérias deste futuro dilúvio, e se esta representação vos não enternecer e tiverdes entranhas para o ver sem grande dor, executai-o embora.

Nesse parágrafo, Vieira separa Deus de seu coração, que não deve ser contrariado. Fazer justiça é a parte racional dos castigos, mas se fazer

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justiça produz desgraças tais que conduzem ao arrependimento, é melhor refletir mais antes de fazê-Ia.

Prevendo os danos que a invasão holandesa pode fazer no coração de Deus, o orador se propõe pintar para Ele, com cores humanas, todas as desgraças que a chegada dos estrangeiros vai causar à Fé cristã. Segundo o orador, essa é a sua última cartada: se, após a representação que se vai fazer, Deus continuar impassível, que Ele proceda então à execução de sua justiça.

IV, § 6

Finjamos, pois (o que até fingido e imaginado faz horror): finjamos que vem a Bahia e o resto do Brasil a mãos dos holandeses; que é o que há de suceder em tal caso? — Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores e de hereges; não perdoarão a estado, a sexo nem a idade; com os fios dos mesmos alfanjes medirão a todos; chorarão as mulheres, vendo que se não guarda decoro à sua modéstia; chorarão os velhos, vendo que não se guarda respeito a suas cãs; chorarão os nobres, vendo que se não guarda cortesia à sua qualidade; chorarão os religiosos e veneráveis sacerdotes, vendo que até as coroas sagradas os não defendem; chorarão finalmente todos, e entre todos mais lastimosamente os inocentes,porque nem a esses perdoará (como em outras ocasiões não perdoou), a desumanidade herética. Sei eu, Senhor, que só por amor dos inocentes dissestes vós alguma hora, que não era bem castigar a Nínive. Mas não sei que tempos, nem que desgraça é esta nossa, que até a mesma inocência vos não abranda. Pois também a vós, Senhor, vos há de alcançar parte do castigo (que é o que mais sente a piedade cristã), também a vós há de chegar.

Vieira começa aqui a representar o seu teatro de misérias que se apossarão de Salvador com a chegada dos hereges. O sofrimento será tão grande que todos chorarão. Principalmente os inocentes. E em nome dos inocentes, o pregador lembra a passagem de Jonas, do Antigo Testamento, em que o profeta recebeu de Deus a missão de dirigir-se a Nínive, orgulhosa capital da Assíria, para alertar seus habitantes de que sua falta de fé e ignorância das coisas de Deus os levaria à destruição. Com o arrependimento sincero dos ninivitas, foi-lhes concedida a misericórdia divina, por causa principalmente dos inocentes.

O pregador faz um paralelo entre os inocentes de Nínive e os inocentes de Salvador: aqueles foram perdoados; os de cá parece que vão ser castigados.

Mais uma vez, o locutor não perde a chance de lembrar que parte do castigo será sofrido pelo próprio Deus, o que provoca mais sentimento entre os verdadeiros cristãos.

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IV, § 7

Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras; arrebatarão essa custódia, em que agora estais adorado dos anjos; tomarão os cálices e vasos sagrados, e aplicá-los-ão a suas nefandas embriaguezes; derrubarão dos altares os vultos e as estátuas dos santos, deformá-las-ão a cutiladas, e metê-las-ão no fogo; e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas, nem às imagens tremendas de Cristo crucificado, nem às da Virgem Maria.

Continua aqui o pregador a enumerar as desgraças advindas da invasão holandesa, descrevendo no presente parágrafo as profanações que os invasores certamente praticarão aos bens sagrados da igreja: os objetos, as imagens, os altares, nada resistirá à fúria herética dos sacrílegos.

IV, § 8

Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo; mas nas da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e o amor de Filho. No Monte Calvário esteve esta Senhora sempre ao pé da cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis, nenhum se atreveu a lhe tocar nem a lhe perder o respeito. Assim foi e assim havia de ser, porque assim o tínheis vós prometido pelo Profeta: Flagellum non appropinquabit tabernaculo tuo. Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes então do respeito e decoro de vossa Mãe, como consentis agora que se lhe façam tantos desacatos? Nem me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem, Imagem somente da mesma Virgem era a Arca do testamento, e só porque Oza a quis tocar, lhe tirastes a vida. Pois se então havia tanto rigor para quem ofendia a imagem de Maria, por que o não há também agora? Bastava então qualquer dos outros desacatos às coisas sagradas, para uma severíssima demonstração vossa, ainda milagrosa. Se a Jeroboão, porque levantou a mão para um Profeta, se lhe secou logo o braço milagrosamente, como aos hereges, depois de se atreverem a afrontar vossos santos, lhes ficam ainda braços para outros delitos? Se a Baltasar, por beber pelos vasos do templo, em que não se consagrava vosso sangue, o privastes da vida e do reino, por que vivem os hereges, que convertem vossos cálices a usos profanos? Já não há três dedos que escrevam sentença de morte contra sacrílegos?!

Este parágrafo é inteiro dedicado às afrontas que os holandeses cometerão contra as imagens das igrejas. Que Jesus permita maus feitos à sua própria imagem, compreende-se, porque sua infinita bondade as permitiu em seu próprio corpo durante a Paixão. O que não se pode entender é que Ele permita sacrilégios dirigidos a sua mãe, que não fora desacatada sequer pelos romanos aos pés da cruz do filho no monte Calvário.

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O locutor cita o Salmo XC, 10: De tua tenda não se há de acercar nenhum flagelo (do latim Flagellum non appropinquabit tabernaculo tuo), dando a entender que o versículo se refere a alguma medida protetora explicitada por Deus à mãe de Jesus, quando na realidade a intenção do salmista é mostrar como são protegidos e guardados aqueles que confiam no Senhor. a pregador aqui mais uma vez se apropria de uma passagem do Antigo Testamento para adequá-Ia a sua tentativa de preservação da imagem da Virgem Maria, e por extensão da cidade de Salvador e do império português.

As palavras do pregador assumem um tom de repreensão a Deus, por permitir tal sacrilégio, como se ele já estivesse realmente ocorrendo.

Ao rebater a possível objeção de que a imagem da Virgem Maria, e não a própria pessoa, é que estaria ameaçada de profanação, o locutor cita a passagem bíblica de Oza e a Arca do Testamento.

A Arca do Testamento, ou Arca da Aliança, ou Arca de Deus era uma caixa que continha as pedras em que estavam gravados os dez mandamentos de Deus. Oza (2º Livro de Samuel, VI, 1-11) conduziu o carro que levava a Arca, na primeira tentativa de Davi para trazê-Ia de Cariatiarim para Jerusalém. Durante o percurso, ao refugarem os bois, aza perdeu o equilíbrio e estendeu a mão para amparar-se na Arca, pelo que caiu instantaneamente morto.

Vieira utiliza-se do exemplo para reafirmar o sacrilégio que é profanar a imagem de Maria; entretanto, a arca em si não apresenta nenhuma relação direta com a imagem da mãe de Cristo.

Jeroboão, (3º Livro dos Reis, XIII, 1-6), soberano das tribos do norte de Israel, levantou a mão em direção a um profeta de Deus que recriminava seus atos de apostasia, e seu braço secou imediatamente.

Baltasar (Daniel, V, 1-31), o último rei caldeu da Babilônia, promovia uma festa suntuosa para sua corte, utilizando os vasos sagrados tirados do templo arruinado de Jerusalém, e desafiando o Senhor a puni-lo, quando, no meio da orgia, apareceu uma mão que começou a escrever estranhas palavras na parede. Daniel, chamado a traduzir os escritos misteriosos, disse que eles significavam a morte de Baltasar e a perda de seu reino para os medos e persas. Na mesma noite, Baltasar morre fulminado e Dario, o medo, conquista a Babilônia.

IV, § 9

Enfim, Senhor, despojados assim os templos e derrubados os altares, acabar-se-á no Brasil a cristandade católica; acabar-se-á o culto divino; nascerá erva nas igrejas, como nos campos; não haverá quem entre nelas. Passará um dia de Natal, e não haverá memória de vosso nascimento; passará a Quaresma e a Semana Santa, e não se celebrarão os mistérios de vossa Paixão. Chorarão as pedras da rua, como diz Jeremias que choravam as de Jerusalém destruída: Vice Sion lugent, eo quod non sint qui veniant ad

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solemnitatem. Ver-se-ão ermas e solitárias, e que as não pisa a devoção dos fiéis, como costumava em semelhantes dias. Não haverá missas, nem altares, nem sacerdotes que as digam; morrerão os católicos sem confissão nem sacramentos; pregar-se-ão heresias nestes mesmos púlpitos, e em lugar de São Jerônimo e Santo Agostinho, ouvir-se-ão e alegar-se-ão neles os infames nomes de Calvino e Lutero; beberão a falsa. doutrina os inocentes que ficarem, relíquias dos portugueses; e chegaremos ao estado que, se perguntarem aos filhos e netos dos que aqui estão: — Menino, de que seita sois? Um responderá: — Eu sou calvinista; outro: — Eu sou luterano.

Conforme a cena pintada pelo orador, à destruição das imagens, dos utensílios e dos altares sagrados, seguir-se-á o desaparecimento da religião católica no Brasil; só restarão luteranos e calvinistas.

A referência bíblica aqui apresentada é a das Lamentações de Jeremias, I, 4: As ruas de Sião choram, porque não há quem venha às solenidades (tradução). O episódio refere-se à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor da Babilônia em 506 a.C., para acabar com as freqüentes revoltas dos reis de Judá. A cidade foi arrasada, inclusive o templo, e seus habitantes foram levados para a Mesopotâmia.

Tal é o quadro que Vieira compara à possível destruição de Salvador pelos holandeses. Será então o império do protestantismo e do luteranismo, e a fé católica será esquecida.

IV, § 10

Pois isto se há de sofrer, Deus meu? Quando quisestes entregar vossas ovelhas a São Pedro, examinaste-lo três vezes se vos amava: Diliges me, diliges me, diliges me? E agora as entregais desta maneira, não a pastores, senão aos lobos?! Sois o mesmo, ou sois outro? Aos hereges o vosso rebanho? Aos hereges as almas? Como tenho dito, e nomeei almas, não vos quero dizer mais. Já sei, Senhor, que vos haveis de enternecer e arrepender, e que não haveis de ter coração para ver tais lástimas e tais escravos. E se assim é (que assim o estão prometendo vossas entranhas piedosíssimas), se é que há de haver dor, se é que há de haver arrependimento depois, cessem as iras, cessem as execuções agora, que não é justo vos contente antes o de que vos há de pesar em algum tempo.

O exemplo deste parágrafo é a aparição de Jesus aos pescadores no lago de Tiberíades, em que Ele repete a Simão Pedro três vezes a pergunta: Tu me amas? Só após certificar-se do amor de Pedro, Jesus entrega-lhe seu rebanho: Apascenta os meus cordeiros.

O orador pretende demonstrar que Deus está usando pesos e medidas diferentes no caso dos portugueses. Ao extremo cuidado de entregar seus cordeiros a quem realmente o amava, no caso de Pedro, opõe-se o descuido perigoso de permitir que hereges estrangeiros assumam o rebanho do Brasil.

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Mais uma vez, Vieira lembra que a atitude do Senhor não é a mesma de outras ocasiões, e que se Ele deixar de ser Ele, as ações daí advindas certamente provocarão arrependimento. Sendo assim, é melhor suspender o castigo e salvar os portugueses e brasileiros.

IV, § 11

Muito honrastes, Senhor, ao homem na criação do mundo, formando-o com vossas próprias mãos, informando-o e animando-o com vosso próprio alento e imprimindo nele o caráter de vossa imagem e semelhança. Mas parece que logo desde aquele mesmo dia vos não contentastes dele, porque de todas as outras coisas que criastes, diz a escritura que vos pareceram bem: Vidit Deis quod esset bonum; e só do homem o não diz. Na admiração desta misteriosa reticência andou desde então suspenso e vacilando o juízo humano, não podendo penetrar qual fosse a causa por que, agradando-vos com tão pública demonstração todas as vossas obras, só do homem, que era a mais perfeita de todas, não mostrásseis agrado. Finalmente, passados mais de mil e setecentos anos, a mesma escritura, que tinha calado aquele mistério, nos declarou que vós estáveis arrependido de ter criado o homem: Pœnituit eum quod hominem fecisset in terra, e que vós mesmo disseste, que vos pesava: Pœnitet me fecisse eos; e então ficou patente e manifesto a todos o segredo que tantos tempos tínheis ocultado. E vós, Senhor, dizeis que vos pesa e que estais arrependido de ter criado o homem; pois essa é a causa por que logo desde o princípio de sua criação vos não agradastes dele, nem quisestes que se dissesse que vos parecera bem, julgando, como era razão, por coisa muito alheia de vossa sabedoria e providência, que em nenhum tempo vos agradasse nem parecesse bem aquilo de que depois vos havíeis de arrepender e ter pesar de ter feito: Pœnitet me fecisse.

O parágrafo contém uma reflexão sobre a criação do mundo, e especialmente do homem. A expressão E viu Deus que isto era bom (em lat. Vidit Deus quod esset bonum) aparece em várias passagens do livro de Genesis, quando o Senhor comenta a criação da luz, água, terra e árvores de frutos, dia e noite, estações, anos, estrelas, animais.

De acordo com o pregador, a expressão acima só não se aplica à criação do homem, o que sugere que Deus não se agradou de sua última obra. Em verdade, após criar o homem, no sexto dia, Deus comentou: E viu Deus todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas (Genesis, I, 31). Está sugerida, portanto, a satisfação do Senhor com a criação do homem, diferentemente do que Vieira quer fazer acreditar.

Pouco antes de promover o dilúvio, insatisfeito com a maldade dos homens, Deus arrependeu-se de ter criado o homem no mundo (Genesis, VI, 6), prenuncia sua destruição e proclama: porque me pesa de os ter criado (Genesis, VI, 7).

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Conforme o pregador, a segunda declaração de Deus esclarece e confirma a impressão do sexto dia da criação: não agradou ao Senhor ter criado o homem, e Ele se arrependeu.

Para Vieira, Deus estaria pressentindo a possibilidade do arrependimento desde o início, e por isso se omitiu sobre a validade ou não de ter criado o homem, não manifestando sua opinião. É necessário relembrar que o pregador omite intencionalmente a frase do livro de Genesis que manifesta o agrado de Deus com a criação de todas as coisas, incluindo o homem.

A proposição defendida por Vieira é que Deus já sabe a priori se se vai arrepender ou não de alguma de suas ações; se Ele não manifestou agrado do que fez, é porque certamente vai-se arrepender do feito.

IV, § 12

Sendo, pois, esta a condição verdadeiramente divina e a altíssima razão de estado de vossa providência — não haver jamais agrado do que há de haver arrependimento; e sendo também certo nas piedosíssimas entranhas de vossa misericórdia, que se permitirdes agora as lástimas, as misérias, os estragos que tenho representado, é força que vos há de pesar depois e vos haveis de arrepender, arrependei-vos, misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos de vossa piedade, ide à mão à vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas de vossa ira, e não permitais tantos danos, e tão irreparáveis. Isto é o que vos pedem, tantas vezes prostradas diante do vosso divino acatamento, estas almas tão fielmente católicas, em nome seu e de todas as deste Estado. E não vos fazem esta humilde deprecação pelas perdas temporais, de que cedem, e as podeis executar neles por outras vias; mas pela perda espiritual eterna de tantas almas, pelas injúrias de vossos templos e altares, pela exterminação do sacrossanto sacrifício de vosso corpo e sangue, e pela ausência insofrível, pela ausência e saudades desse Santíssimo Sacramento, que não sabemos quanto tempo teremos presente.

Considerando que o desagrado inicial leva ao arrependimento, e que a cena pintada pelo pregador logicamente fará Deus se arrepender de ter permitido a invasão holandesa, melhor será se o Senhor se arrepender enquanto é tempo, pois tanto menor será o estrago que lhe pesará nos ombros.

Mais uma vez, Vieira reitera o fato de que as perdas temporais não constituem o objeto que o move a pedir tanto e tão insistentemente pelos portugueses, mas sim a perda espiritual eterna de tantas almas, e o perigo que corre a fé católica.

V V, § 1

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Chegado a este ponto, de que não sei nem se pode passar, parece-me que nos está dizendo vossa divina e humana bondade, Senhor, que o fizéreis assim facilmente, e vos deixaríeis persuadir, convencer destas nossas razões, senão que está clamando por outra parte vossa divina justiça; e como sois igualmente justo e misericordioso, que não podeis deixar de castigar, sendo os pecados do Brasil tantos e tão grandes. Confesso, Deus meu, que assim é, e todos confessamos que somos grandíssimos pecadores. Mas tão longe estou de me aquietar com esta resposta, que antes estes mesmos pecados muitos e grandes são um novo e poderoso motivo dado por vós mesmo para mais convencer vossa bondade.

Neste ponto, o pregador confessa haver colocado todos os seus argumentos para convencer Deus, e julga que Ele atenderia a todas as razões reclamadas, não fosse um grande motivo: os pecados dos homens, que estão a merecer um castigo correspondente.' Vieira concorda absolutamente com essa preocupação divina, já que ele próprio e todos os que pisam as terras brasileiras são grandíssimos pecadores.

Para o predicante, entretanto, esses grandes pecados da gente brasileira e portuguesa são, antes de uma causa definitiva para permitir a invasão dos estrangeiros, um grande motivo para melhor convencer Deus a perdoar-lhes.

v, § 2

A maior força de meus argumentos não consistiu em outro fundamento até agora, que no crédito, na honra e na glória de vosso santíssimo nome: Propter nomen tuum. E que motivo posso eu oferecer mais glorioso ao mesmo nome, que serem muitos e grandes os nossos pecados? Propter nomen tuum, Domine, propitiaberis peccato meo: multum est enim: "Por amor de vosso nome, Senhor, estou certo dizia Davi — que me haveis de perdoar meus pecados, porque não são quaisquer pecados, senão muitos e grandes." Multum est enim. Oh! Motivo digno só do peito de Deus! Oh! Conseqüência que só na suma bondade pode ser forçosa! De maneira que, para lhe serem perdoados seus pecados, alegou um pecador a Deus que são muitos e grandes. Sim; e não por amor do pecador, e nem por amor dos pecados, senão por amor da honra e glória do mesmo Deus, a qual quanto mais e maiores são os pecados que perdoa, tanto maior é e mais engrandece e exalta o seu santíssimo nome: Propter nomen tuum, domine, propitiaberis peccato meo: multum est enim. O mesmo Davi distingue na misericórdia de Deus grandeza e multidão. A grandeza: Secundum magnam misericordiam tuam; a multidão: Et secundum multitudinem miserationum tuarum. E como a grandeza da misericórdia divina é imensa e a multidão de suas misericórdias infinita; e o imenso não se pode medir, e o infinito contar; para que uma e outra, de algum modo, tenha proporcionada matéria de glória, importa à mesma grandeza da misericórdia que os pecados

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sejam grandes e à mesma multidão das misericórdias, que sejam muitos: Multum est enim. Razão tenho eu logo, Senhor, de me não render à razão de serem muitos e grandes nossos pecados. E razão tenho também de instar em vos pedir a razão por que não desistis de os castigar: Quare obdormis? Quare faciem tuam avertis? Quare oblivisceris inopiæ et tribulationis nostræ?

O orador tem insistido no fato de que todos os seus argumentos são dirigidos ao engrandecimento da honra e da glória de Deus. Sendo assim, um grande motivo para Deus manifestar sua bondade é o fato de que todos nós somos grandes pecadores. A coisa se explica assim: já que o motivo maior de toda essa conversa é a glória do Senhor, quanto mais e maiores forem os pecados lusitanos e brasileiros, mais deverá Deus se empenhar em seu perdão, e assim sua glória vai-se engrandecer muito mais.

Vieira cita o salmo XXIV, 11, que se traduz: Por causa de vosso nome, Senhor, perdoai o meu pecado, que é grande. O pedido de perdão do pecador a Deus só vai aumentar a glória divina, porque a grandeza e a exaltação do nome de Deus é diretamente proporcional à imensidão ou quantidade dos pecados perdoados.

Ao final deste parágrafo, o pregador apresenta habilmente um emaranhado de conceitos envolvendo a palavra razão, em quatro situações: a razão de serem muitos os pecados exige o castigo; entretanto, razão tem Vieira de não se conformar com ele; por isso, o pregador tem razão de questionar o Senhor; o Senhor, por sua vez, deve explicitar sua razão para não desistir do castigo.

v, § 3

Esta mesma razão vos pediu Jó quando disse: Cur non tollis peccatum me um et quare non aufers iniquitatem meam:? E posto que não faltou um grande intérprete de vossas Escrituras que argüisse por vossa parte, enfim se deu por vencido e confessou que tinha razão Jó em vo-la pedir: Criminis in loco Deo impingis, quod ejus, qui deliquit, non miseretur? — diz S. Cirilo Alexandrino — "Basta, Jó, que criminais e acusais a Deus de que castiga vossos pecados? Nas mesmas palavras confessais que cometestes pecados e maldades; e com as mesmas palavras pedis razão a Deus por que as castiga?" Isto é dar razão, e mais pedi-la. Os pecados e maldades, que não ocultais, são a razão do castigo: pois se dais a razão, por que a pedis? — Porque ainda que Deus para castigar os pecados, tem a razão de sua justiça, para os perdoar e desistir do castigo, tem outra razão maior, que é a da sua glória: Qui enim misereri consuevit, et non vulgarem in eo gloriam habet; ob quam causam mei non miseretur? Pede razão Jó a Deus, e tem muita razão de a pedir (responde por ele o mesmo santo, que o argüiu), porque, se é condição de Deus usar de misericórdia, e é grande e não vulgar a glória que adquire em perdoar pecados, que razão tem, ou pode dar bastante, de os não perdoar? O mesmo Jó tinha já declarado a força deste seu argumento nas palavras antecedentes

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com muita energia para Deus muito forte: Peccavi, quid faciam tibi? Como se dissera: "Se eu fiz, Senhor, como homem em pecar, que razão tendes vós para não fazer, como Deus, em me perdoar? Ainda disse e quis dizer mais: Peccavi, quid faciam tibi? "Porque, que mais vos posso fazer?" E que fizestes vós, Jó, a Deus, em pecar? — Não lhe fiz pouco; porque lhe dei ocasião a me perdoar, e perdoando-me, ganhar muita glória. Eu dever-Ihe-ei a ele, como a causa, a graça que me fizer; e ele dever-me-á a mim, como a ocasião, a glória que alcançar.

Por que não me tiras o meu pecado e porque não apagas a minha iniqüidade? Esta é a tradução do latim das palavras de Jó (Jó, VII, 21). Essas palavras antecedem a declaração dele contida no § 6 da parte III, e correspondem ao momento em que Jó está desesperado por não obter resposta de Deus a seus sofrimentos.

S. Cirilo Alexandrino, um dos grandes intérpretes das escrituras, segundo Vieira, teria estudado cuidadosamente o livro de Jó, e terminou por concordar que Jó estava certo em pedir razão a Deus. Aparentemente, o texto de Jó é contraditório: ele afirma que é iníqüo e pecador; ao mesmo tempo, pede a Deus que não o castigue. Ora, todo pecado é merecedor de castigo, conforme a justiça divina; tem razão então Jó em pedir misericórdia?

Num jogo de palavras e idéias, Vieira afirma que Jó dá a Deus razão e pede a Deus razão. Dá razão quando confessa seus pecados: se ele é pecador, razão tem Deus em o castigar; pede razão a Deus quando lhe pergunta o motivo pelo qual Ele não desiste de o castigar. Então, se Jó dá razão a Deus, por que a pede a Ele?

A resposta confirma a proposição maior de Vieira nesta parte: castigar é justiça, perdoar é glória; quanto maiores os pecados, maior a glória de perdoar.

No versículo 20 deste mesmo capítulo VII, Jó pergunta: Aquele, pois, que se habituou a compadecer-se e não tem em si glória vulgar, por que razão se não compadece de mim? (tradução). S. Cirilo dá razão a Jó com um argumento muito simples: Deus é misericordioso; sua glória em perdoar não é vulgar; logo, por que não perdoar?

O pregador termina o parágrafo com um comentário à seguinte pergunta de Jó: Pequei, que te farei eu? (em latim Peccavi, quid faciam tibi?) Essa frase é motivo de uma série de raciocínios sobre castigar e perdoar.

v, § 4

E se é assim, Senhor, sem licença, nem encarecimento; se é assim, misericordioso Deus, que em perdoar pecados se aumenta a vossa glória, que é o fim de todas as vossas ações; não digais que nos não perdoais, porque são muitos e grandes os nossos pecados, que antes porque são muitos e grandes, deveis dar essa grande

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glória à grandeza e multidão de vossas misericórdias. Perdoando-nos e tendo piedade de nós, é que haveis de ostentar a soberania de vossa majestade, e não castigando-nos, em que mais se abate vosso poder, do que se acredita. Vede-o neste último castigo, em que, contra toda a esperança do mundo e do tempo, fizestes que se derrotasse a nossa armada, a maior que nunca passou a Equinocial. Pudestes, Senhor, derrotá-Ia; e que grande glória foi de vossa onipotência, poder o que pode o vento? Contra folium, quod vento rapitur, ostendis potentiam. Desplantar uma nação, como nos ides desplantando, e plantar outra, também é poder que vós cometestes a um homenzinho de Anatote: Ecce constitui te super gentes et super regna, ut evellas et destruas et disperdas et dissipes et œdifices et plantes. O em que se manifesta a majestade, a grandeza e a glória de vossa infinita onipotência, é em perdoar e usar de misericórdia: Qui omnipotentiam tuam, parcendo maxime, et miserando, manifestas? Em castigar, venceis-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar, venceis-vos a vós mesmo, que sois todo poderoso e infinito. Só esta vitória é digna de vós, porque só voss justiça pode pelejar com armas iguais contra vossa misericórdia; sendo infinito o vencido, infinita fica a glória do vencedor. Perdoai, pois, benigníssimo Senhor, por esta glória vossa: Propter magnam gloriam tuam: perdoai por esta glória imensa de vosso santíssimo nome: Propter nomen tuum.

Novamente o locutor desenvolve um raciocínio envolvendo as ações divinas de perdoar e castigar. O grande objetivo de Deus é sua glória; perdoar pecados é motivo de glória; quantos maiores os pecados, maior é a glória de perdoar; logo, não há motivo para o Senhor não perdoar os pecados dos portugueses e brasileiros. Castigar não aumenta a glória de Deus; pelo contrário, a diminui; logo, não há motivo para o castigo.

Vieira cita um exemplo recente de castigo divino, a derrota da armada portuguesa e espanhola para os holandeses em 1639. A grossa expedição, segundo Vieira a maior que já passou a Equinocial, isto é, a linha do Equador, era comandada por D. Fernando Mascarenhas, Conde da Torre, o primeiro português a comandar as armadas da União Ibérica. A armada, com oitenta e sete navios de guerra, tinha como grande objetivo expulsar definitivamente os holandeses do Brasil. A missão fracassou e seu comandante foi preso, perdendo todas as honras e títulos.

Para o predicante, esse castigo divino não aumentou em nada a glória de Deus, como se Portugal fosse uma folha arrebatada pelo poder do vento. A citação é de Jó, XIII, 25: Contra uma folha, que o vento arrebata, ostentas teu poder.

A referência seguinte é a Jeremias, o homenzinho de Anatote, que previu a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, para castigo e purificação de Judá. Deus aparece para ele, quando ele era ainda menino, nomeia-o profeta, e lhe dá poderes: Eis aí te constituí eu hoje sobre as gentes, e sobre os reinos, para arrancares, e destruíres.

Nada disso, entretanto, é manifestação verdadeira da grandeza de

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Deus; só o perdão e a misericórdia é que o glorificam: Que manifestas a tua onipotência perdoando e compadecendo-te.

Ao final, Vieira joga Deus contra Ele mesmo. O Deus que castiga vence criaturas frágeis; o Deus que perdoa vence a si mesmo, e infinita fica a glória do vencedor.

v, § 5

E se acaso ainda reclama vossa divina justiça, por certo, não já misericordioso, senão justíssimo Deus, que também a mesma justiça se pudera dar por satisfeita com os rigores e castigos de tantos anos. Não sois vós, enquanto justo, aquele justo juiz de quem canta o vosso profeta: Deus judex justus, fortis et patiens, nunquid irascitur per singulos dies? Pois se a vossa ira, ainda como de justo juiz, não é de todos nem de muitos, por que se não dará por satisfeita com rigores de anos e tantos anos? Sei eu, Legislador Supremo, que nos casos de ira, posto que justificada, nos manda vossa santíssima Lei que não passe de um dia, e que antes de se pôr o sol tenhamos perdoado: Sol non occidat super iracundiam vestram. Pois se da fraqueza humana, e tão sensitiva, espera tal moderação nos agravos vossa mesma Lei, e lhe manda que perdoe e se aplaque em termo tão breve e tão preciso, vós, que sois Deus infinito e tendes um coração tão dilatado como vossa mesma imensidade, e em matéria de perdão vos propondes aos homens por exemplo, como é possível que os rigores de vossa ira se não abrandem em tantos anos, e que se ponha e torne a nascer o sol tantas e tantas vezes, vendo sempre desembainhada e correndo sangue a espada de vossa vingança? Sol de justiça cuidei eu que vos chamavam as Escrituras, porque, ainda quando mais fogoso e ardente, dentro do breve espaço de doze horas, passava o rigor de vossos raios; mas não o dirá assim este Sol material que nos alumia e rodeia, pois há tantos dias e tantos anos que, passando duas vezes sobre nós de um trópico a outro, sempre vos vê irado.

O perdão engrandece a glória; o castigo satisfaz a justiça. Quanto à justiça, Deus já pode dar-se por satisfeito desde já, pois os portugueses já têm sido castigados por muitos anos.

O versículo 12 do Salmo VII reza: Deus, justo, forte e paciente juiz, todos os dias comina as suas ameaças.

Na Epístola aos Efésios (IV, 26), São Paulo diz: Se vos irardes, seja sem pecar; não se ponha o sol sobre a vossa ira.

A lei de Deus manda que se não dure a ira mais do que um dia; no caso dos portugueses, eles já estão sob a ira divina por muitos anos; mais do que justo, portanto, que o Senhor dê por terminado o período do castigo lusitano.

v, § 6

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Já vos não alego, Senhor, com o que dirá a Terra e os homens, mas com o que dirá o Céu e o mesmo Sol. Quando Josué mandou parar o Sol, as palavras da língua hebraica em que lhe falou, foram, não que parasse, senão que se calasse: Sol tace contra Gabaon. Calar mandou ao sol o valente capitão, porque aqueles resplandores amortecidos com que se ia sepultar no ocaso, eram umas línguas mudas com que o mesmo Solo murmurava de demasiadamente vingativo; eram umas vozes altíssimas, com que desde o Céu lhe lembrava a Lei de Deus, e lhe pregava que não podia continuar a vingança, pois ele se ia meter no ocidente: Sol non occidat super iracundiam vestram. E se Deus, como autor da mesma Lei, ordenou que o Sol parasse, e aquele dia (o maior que viu o mundo) excedesse os termos da natureza por muitas horas e fosse maior, foi para que, concordando a justa lei com a justa vingança, nem por uma parte se deixasse de executar o rigor do castigo, nem por outra se dispensasse no rigor do preceito. Castigue-se o gabaonita, pois é justo castigá-lo; mas esteja o Sol parado até que se acabe o castigo, para que a ira, posto que justa, do vencedor, não passe os limites de um dia.

Após a derrota para os habitantes de Hai (ver III, § 3), Josué recompõe seu exército e retoma a carga sobre a cidade, arrasando-a. Com a destruição de Jericó e Hai, o medo de Josué e seu exército se espalhou pelo país de Canaã. Amedrontado, o rei de Gabaon faz um pacto de não agressão com Moisés, o que desagradou os outros cinco reis de Canaã. Estes partiram para a conquista de Gabaon, que por sua vez pediu auxílio a Josué. Durante a sangrenta batalha, Josué fez o dia alongar-se, para que os inimigos se cansassem sob o sol escaldante. A parada do sol exauriu as forças dos inimigos, e Josué os derrotou.

Aqui Vieira cria uma imagem empregando o verbo calar (lat tace), utilizado por Moisés para fazer o sol parar. Os raios do sol são línguas que, em voz alta, avisam Josué de que ele teria que parar a matança, pois ele, o sol, iria se pôr no ocidente. Assim, foi executado o castigo divino sem alterar a lei de Deus.

v, § 7

Pois se este é, Senhor, o termo prescrito de vossa Lei; se fazeis milagres e tais milagres para que ela se conserve inteira, e se Josué manda calar e emudecer o Sol, porque se não queixe e dê vozes contra a continuação de sua ira, que quereis que diga o mesmo Sol, não parado nem emudecido? Que quereis que digam a Lua e as estrelas, já cansadas de ver nossas misérias? Que quereis que digam todos esses céus criados, não para apregoar vossas justiças, senão para cantar vossas glórias: Cœli enarrant gloriam Dei?

Arrematando a estratégia da justiça e da glória, Vieira admite a execução da justa ira divina, desde que ela obedeça ao período prescrito de um dia. No presente caso, que dirá o sol, que em nenhum momento parou durante os reveses dos portugueses, e a lua e as estrelas, que presenciam o

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tempo todo suas infelicidades?

Segundo o pregador, o sol, a lua, as estrelas, os céus foram criados para testemunharem a glória de Deus, e não sua fúria justiceira. É mister, então, que se dêem por terminadas as ações justiceiras contra os lusos, e que se manifeste a glória divina.

v, § 8

Finalmente, benigníssimo Jesus, verdadeiro Josué e verdadeiro Sol, seja o epílogo e conclusão de todas as nossas razões o vosso mesmo nome: Propter nomen tuum. Se o Sol estranha a Josué rigores de mais de um dia, e Josué manda calar o Sol, porque lhos não estranhe; como pode estranhar vossa divina justiça que useis conosco de misericórdia,depois da execução de tantos e tão numerosos castigos continuados, não por um dia ou por muitos dias de doze horas, senão por tantos e tão compridos anos, que cedo serão doze? Se sois Jesus, que quer dizer Salvador, sede Jesus e sede Salvador nosso. Se sois Sol e Sol de justiça, antes que se ponha o deste dia, deponde os rigores da vossa. Deixai parar o signo rigoroso de Leão, e dai um passo ao signo de virgem, signo propício e benéfico. Recebei influências humanas, de quem recebestes a humanidade. Perdoai-nos Senhor, pelos merecimentos da Virgem Santíssima. Perdoai-nos por seus rogos, ou perdoai-nos por seus impérios; que, se como criatura vos pede por nós o perdão, como Mãe vos pode mandar e vos manda que nos perdoeis. Perdoai-nos, enfim, para que a vosso exemplo perdoemos; e perdoai-nos também a exemplo nosso, que todos desde esta hora perdoamos a todos por vosso amor: Dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris. Amen.

Normalmente, ao final dos sermões, é comum aparecer a peroração, em que o pregador exorta os fiéis a seguirem os ensinamentos aprendidos na prédica. No caso do presente sermão, o final se constitui num fervoroso pedido de perdão a Deus.

Supõe-se que o pregador tenha convencido Deus de que o castigo é necessário, e faz justiça à ira divina, mas os portugueses já foram sobejamente castigados por anos a fio. Uma vez que já foi estabelecida a justiça, o Senhor deve partir para o perdão, que é o que vai realmente glorificar o seu nome.

Uma vez perdoados, os portugueses livram-se da ameaça dos infernais holandeses, e, acima de tudo, contribuem para a glória infinita do Senhor.

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5. Referências bibliográficas

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6. VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Porto: Lello & Irmão, 1951.

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