as relações perigosas-choderlos de laclos

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1 CHODERLOS DE LACLOS LIGAÇÕES PERIGOSAS Texto integral EDITORES ASSOCIADOS TÍTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM PREFÁCIO DO REDATOR Esta obra, ou antes, esta colecção, que o público achará talvez ainda volumosa em demasia, não contem todavia mais do que um pequeno número das cartas que compunham a totalidaDE da correspondência de onde foi extraída. Encarregado de a pôr em ordem pelas pessoas a cujas mãos chegou, e que eu sabia terem a intenção de a publicar, pedi apenas, como prémio dos meus cuidados, a permissão de suprimir tudo o que me parecesse inútil; e de facto conservei apenas as cartas que me pareceram necessárias, quer para a compreensão dos acontecimentos, quer para o desenvolvimento dos caracteres. Se acrescentarmos a este ligeiro trabalho o de repor por ordem as cartas que deixei ficar, ordem para a qual eu próprio quase sempre segui a das datas, e, enfim, algumas notas curtas e raras, e que, na sua maior parte não têm outro objectivo senão o de indicar a origem de algumas citações ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer, ter-se-á inteiramente ideia da parte que tive nesta obra. A minha missão não ia mais longe. Eu tinha proposto alterações mais consideráveis, quase todas relativas à pureza de dicção ou de estilo, contra a qual se encontrarão muitas faltas. Desejei também ser autorizado a cortar diversas cartas demasiado longas, e das quais algumas tratam separadamente, e quase sem transição, assuntos absolutamente estranhos uns aos outros. Este trabalho, que não foi aceite, não seria bastante sem dúvida para dar mérito à obra, mas ter-lhe-ia pelo menos tirado parte dos defeitos. Foi-me objectado que eram as próprias cartas que se pretendia. * Devo prevenir também que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas que intervêm nestas cartas; e que, se no número daqueles que lhes substituí, se encontrarem nomes que pertençam a alguém, terá sido unicamente por erro da minha parte, e do qual não se deverá tirar qualquer conclusão. (N. do A.) dar a conhecer, e não apenas uma obra feita segundo as cartas; que seria tanto contra a verosimilhança como contra a verdade que, de oito á dez pessoas que colaboraram nesta correspondência, todas escrevessem com igual pureza. E à minha réplica de que, longe disso, não havia, pelo contrário, nenhuma que não tivesse cometido erros graves, foi-me respondido que

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1

CHODERLOS DE LACLOS

LIGAÇÕES PERIGOSAS

Texto integral

EDITORES ASSOCIADOS

TÍTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES

TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM

PREFÁCIO DO REDATOR

Esta obra, ou antes, esta colecção, que o público achará talvez

ainda volumosa em demasia, não contem todavia mais do

que um pequeno número das cartas que compunham a totalidaDE

da correspondência de onde foi extraída. Encarregado de a

pôr em ordem pelas pessoas a cujas mãos chegou, e que eu sabia

terem a intenção de a publicar, pedi apenas, como prémio dos

meus cuidados, a permissão de suprimir tudo o que me parecesse

inútil; e de facto conservei apenas as cartas que me pareceram

necessárias, quer para a compreensão dos acontecimentos, quer

para o desenvolvimento dos caracteres. Se acrescentarmos a este

ligeiro trabalho o de repor por ordem as cartas que deixei ficar,

ordem para a qual eu próprio quase sempre segui a das datas, e,

enfim, algumas notas curtas e raras, e que, na sua maior parte

não têm outro objectivo senão o de indicar a origem de algumas

citações ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer, ter-se-á

inteiramente ideia da parte que tive nesta obra. A minha

missão não ia mais longe.

Eu tinha proposto alterações mais consideráveis, quase todas

relativas à pureza de dicção ou de estilo, contra a qual se

encontrarão muitas faltas. Desejei também ser autorizado a cortar

diversas cartas demasiado longas, e das quais algumas tratam

separadamente, e quase sem transição, assuntos absolutamente

estranhos uns aos outros. Este trabalho, que não foi aceite,

não seria bastante sem dúvida para dar mérito à obra, mas

ter-lhe-ia pelo menos tirado parte dos defeitos.

Foi-me objectado que eram as próprias cartas que se pretendia.

* Devo prevenir também que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas

que intervêm nestas cartas; e que, se no número daqueles que lhes substituí,

se encontrarem nomes que pertençam a alguém, terá sido unicamente por erro

da minha parte, e do qual não se deverá tirar qualquer conclusão. (N. do A.)

dar a conhecer, e não apenas uma obra feita segundo as cartas;

que seria tanto contra a verosimilhança como contra a verdade

que, de oito á dez pessoas que colaboraram nesta correspondência,

todas escrevessem com igual pureza. E à minha réplica

de que, longe disso, não havia, pelo contrário, nenhuma

que não tivesse cometido erros graves, foi-me respondido que

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todo o leitor razoável esperaria seguramente encontrar erros

numa colecção de cartas de alguns particulares, visto que em

todas as que se têm publicado de diferentes autores estimados, e

mesmo de alguns académicos, não se encontrava nenhuma totalmente

ao abrigo desta censura. Estas razões não me persuadiram

e achei-as, como as acho ainda, mais fáceis de dar que de

receber; mas não me competia mandar, e submeti-me. Somente

me reservei o direito de protestar e de declarar que não era essa

a minha opinião; o que faço neste momento.

Quanto ao mérito que esta obra possa ter, talvez me não

caiba explicá-lo, pois a minha opinião não deve nem pode ter

influência sobre a de ninguém. Entretanto, todos os que, antes

de começar uma leitura, ficam satisfeitos por saber aproximadamente

com o que podem contar, esses, dizia eu que continuem:

os outros farão melhor em passar imediatamente para a

obra em si; sabem já o que lhes basta.

O que posso dizer antes do mais é que se a minha intenção

foi, como reconheço, dar a conhecer estas cartas, estou todavia

muito longe de esperar daí um êxito: e que não se tome esta sinceridade

da minha parte pela modéstia fingida de um autor;

pois declaro com a mesma franqueza que, se esta colecção não

me tivesse parecido digna de ser oferecida ao público, eu não me

teria ocupado dela. Tratemos de conciliar esta aparente contradição.

O mérito de uma obra compõe-se da sua utilidade ou do

agrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando

disso é susceptível; mas o êxito, que não prova sempre o mérito,

deve-se frequentemente mais à escolha do assunto que à sua

execução, ao conjunto dos motivos que apresenta do que à

maneira como eles são tratados. Ora contendo esta colecção,

como o seu título anuncia, as cartas de toda uma sociedade, reina

nela uma diversidade de interesse que enfraquece o do leitor.

Além disso, sendo quase todos os sentimentos que aí se exprimem

fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar

um interesse que não seja o de curiosidade sempre muito abaixo

do de sentimento, e que, sobretudo, conduz menos à indulgência

e deixa tanto mais aperceber as faltas que se encontram nos

pormenores, quanto estes se opõem constantemente ao desejo

que unicamente se quer satisfazer.

Estes defeitos são talvez resgatados, em parte, por uma qualidade

que do mesmo modo tem origem na natureza da obra; é a

variedade dos estilos; mérito que um autor atinge dificilmente,

mas que se apresentava aqui por si próprio, e que ao menos exclui

o aborrecimento da uniformidade. Algumas pessoas poderão

ainda esperar encontrar para seu proveito um número assaz

grande de observações, ou novas ou pouco conhecidas, e que se

encontram dispersas nestas cartas. E nisso se resume, segundo

creio, tudo que se pode esperar como motivos de agrado, usando

aliás de um juízo extremamente favorável.

A utilidade da obra, que porventura será ainda mais contestada,

3

parece-me todavia fácil de estabelecer. Julgo pelo menos

que é prestar um serviço aos costumes divulgar os meios que

empregam os que os têm maus para corromper os que os têm

bons, e creio que estas cartas poderão concorrer eficazmente

para esse fim. Encontrar-se-á também nelas a prova e o exemplo

de duas verdades importantes que dir-se-ia serem desconhecidas,

tão pouco elas são praticadas: a primeira, que toda a mulher

que consente em receber no seu meio um homem sem moral

acaba por se tornar a sua vítima; a outra, que é pelo menos imprudente

toda a mãe que admita que outra pessoa além dela

tenha a confiança de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo

poderiam também aprender aqui que a amizade que as pessoas

de maus costumes parecem dedicar-lhes tão facilmente não é

mais que uma perigosa cilada, tão fatal à sua felicidade como à

sua virtude. Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso,

que anda sempre tão perto da medida justa; e, longe de

aconselhar esta leitura à mocidade, parece-me mais importante

afastar dela todas as deste género. A época em que tal leitura

pode deixar de ser perigosa e tornar-se útil parece-me ter sido

bem escolhida, para o seu sexo, por uma boa mãe não apenas

inteligente, mas de inteligência bem guiada. "Julgo", me dizia

ela, depois de ter lido o manuscrito desta correspondência,

"que prestarei um bom serviço a minha filha, dando-lhe este livro

no dia do seu casamento." Se todas as mães de família pensarem

isto da obra, felicitar-me-ei eternamente por tê-la publicado.

Mas, partindo ainda desta suposição favorável, afigura-se-me

sempre que esta colecção deve agradar a pouca gente. Os

homens e as mulheres de costumes depravados terão interesse

em denegrir uma obra que pode ser-lhes prejudicial; e como não

lhes falta astúcia, talvez se lembrem de pôr do seu lado os rigoristas,

alarmados pelo quadro de maus costumes que não houve

receio de apresentar-lhes. Os que se julgam espíritos fortes não

terão qualquer interesse por uma mulher devota, que por isso

mesmo será para eles uma mulher sem importância, enquanto

que os devotos ficarão descontentes por verem sucumbir a virtude,

queixando-se do fraco poder com que é mostrada a religião.

Por sua vez, as pessoas de gosto delicado hão-de enfastiar-se

com o estilo demasiado simples e defeituoso de algumas

destas cartas, enquanto que o comum dos leitores, seduzido

pela ideia de que tudo o que é impresso é o fruto de um trabalho,

julgará ver em algumas outras a maneira dificilmente conseguida

de um autor que se mostra por detrás da personagem

que fala a seu mandado.

Enfim, talvez venha a dizer-se, na generalidade, que cada

coisa não vale senão no lugar onde está colocada; e que, se ordinariamente

o estilo demasiado castigado dos autores tira de facto

toda a graça às cartas de sociedade, as negligências destas se

tornam verdadeiros erros e as tornam insuportáveis, uma vez

entregues à publicação.

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Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem

ter fundamento; creio também que me seria impossível responder-lhes,

e mesmo sem ir além da extensão de um prefácio. Mas

deve compreender-se que, se me fosse necessário responder a

tudo, seria isso sinal de que a obra não responderia a nada; e

que, se eu assim o pensasse, teria suprimido ao mesmo tempo o

prefácio e o livro.

PRIMEIRA PARTE

CARTA I

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

no convento das Usulinas de...

Bem vês, minha boa amiga, que cumpro a minha palavra, e

que as toucas e laços não ocupam todo o meu tempo; sempre

me há-de ficar algum para ti. Mas olha que só hoje vi mais adereços

do que nos quatro anos que passámos juntas; e creio que a

orgulhosa Tanvillel terá maior aborrecimento com a minha

primeira visita, em que eu conto perguntar por ela, do que ela

pensou que nos causaria todas as vezes que vinha ver-nos

in fiorch.

A Mamã consultou-me sobre todos os pormenores; trata-me

muito menos como pensionista do que noutro tempo.

Tenho uma criada de que disponho, e escrevo-te a uma secretária

muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechar

tudo o que quiser. A Mamã disse-me que a verei todos os dias

logo que ela se levante; que bastará que eu esteja penteada para

jantar, porque estaremos sempre sós, e que então ela me dirá a

hora em que devemos juntar-nos à tarde. O resto do tempo está

à minha disposição, e tenho a minha harpa, o meu desenho e

livros como no convento; só não estará a madre Perpétua para

ralhar comigo, e dependerá apenas de mim estar sempre sem

fazer nada: mas como não tenho a minha Sofia para conversar e

para rir, prefiro então ocupar-me dela.

Ainda não são cinco horas; não devo estar com a Mamã senão

às sete: ora aqui está um grande intervalo, para o caso em

que tivesse alguma coisa a dizer-te! Mas ainda não me falaram

* Pensionista do mesmo convento.

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de nada; e sem os preparativos que vejo fazer, e a quantidade de

costureiras que vêm por minha causa, julgaria que ninguém

pensa em casar-me, e que é mais um disparate da boa Josefina.

Mas a verdade é que a Mamã me disse tantas vezes que uma

menina deve ficar no convento até casar, que julgo que Josefina

tem razão, visto que ela me fez sair de lá.

Acaba de parar uma carruagem à porta, e a Mamã mandou-me

que fosse ter com ela imediatamente. Se fosse o senhor?

Ainda não estou vestida, a minha mão treme e o meu coração

bate. Perguntei à criada de quarto se sabia quem estava com

minha mãe: "Ora", disse ela, "é o senhor C..." e ria. Oh! Creio

que é ele. Voltarei com certeza a contar-te o que se passou. O

nome já eu sei. Não devo fazer esperar. Adeus, até daqui a um

momento.

Como te vais rir da pobre Cecília! Oh! Como fiquei envergonhada!

Mas tu terias caído como eu. Quando entrei nos aposentos

da Mamã, vi um senhor vestido de preto, de pé, por

detrás dela. Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me

poder mexer do meu lugar. Podes imaginar como eu o examinava!

"Senhora", disse ele a minha mãe, saudando-me, "trata-se

na verdade de uma menina encantadora, e sinto melhor do que

nunca o valor dos vossos obséquios". A estas palavras tão positivas"

tomou-me um tal tremor que não me podia suster; deparei

com uma poltrona e sentei-me nela, toda vermelha e confusa.

Mal eu me tinha sentado, eis que o homem se lança a meus

pés. Então a tua pobre Cecília perdeu a cabeça; eu estava, como

disse a Mamã, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lançando

um grito agudíssimo;... olha, como naquele dia do trovão.

A Mamã soltou uma gargalhada e disse-me: "Então, que

tem? Sente-se e dê o seu pé a esse senhor." Na verdade, minha

querida amiga, o senhor era um sapateiro. Não posso dizer-te

como fiquei envergonhada; por felicidade só ali estava a Mamã.

Julgo que, quando for casada, não voltarei a servir-me daquele

sapateiro.

Hás-de convir que já sei muitas coisas! Adeus. São perto de

seis horas, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me

vestir. Adeus, minha querida Sofia; gosto tanto de ti como

quando estava no convento.

1 Rodeira do convento.

P. S . - Não sei por quem enviar esta carta; por isso espero

que Josefina venha.

Paris, 3 de Agosto de 17* *.

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CARTA II

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

no castelo de..

Volte, meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode

o senhor fazer em casa de uma velha tia cujos bens lhe estão

garantidos? Parta imediatamente; é-me preciso aqui. Tive uma

excelente ideia, e desejo confiar-lhe a execução. Estas palavras

deveriam bastar-lhe; e, muito honrado pela minha escolha, devia

vir, com solicitude, receber de joelhos as minhas ordens.

Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois que

deixou de aproveitá-las; e na alternativa de um ódio eterno ou

de uma excessiva indulgência, a sua felicidade quer que a minha

bondade a conduza. Desejo pois instruí-lo sobre os meus projectos:

mas jure-me que como fiel cavaleiro não correrá nenhuma

aventura sem que esta seja levada ao fim. Ela é digna de um herói:

o senhor servirá o amor e a vingança; será enfim uma astúcia

a mais a pôr nas suas memórias: sim, nas suas memórias,

pois eu quero que elas sejam publicadas um dia, encarrego-me

de as escrever. Mas deixemos isso, e voltemos ao que me preocupa.

Madame de Volanges vai casar a filha: é ainda um segredo;

mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que ela

escolheu para genro? O Conde de Gercourt. Quem diria que eu

viria a ser prima de Gercourt? Sinto-me possuída de tal furor!...

Pois bem! Não adivinhou ainda? Oh, inteligência lenta! Já lhe

perdoou, pois, a aventura da Intendente? E eu, não tenho razões

para me queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me

acalmar, e a esperança de me vingar lança a serenidade na minha

alma.

Decerto já se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a

importância que Gercourt atribui à sua próxima conquista, e

com a tola presunção que o dispõe a crer que evitará a sorte inevitável.

Conhece as suas ridículas prevenções a favor das educações

claustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridículo, em relação

à modéstia das louras. Eu apostaria, de facto, que, apesar

das sessenta mil libras de renda da pequena Volanges, ele nunca

faria esse casamento se ela fosse morena, ou se não tivesse estado

no convento. Provemos-lhe pois que é apenas um tolo; com

certeza há-de sê-lo um dia, não é isso que me preocupa: mas o

agradável seria que ele começasse por aí. Como nós nos divertiríamos

no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois ele há-de gabar-se;

e depois, se o Visconde chegar a instruir essa rapariguinha,

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será preciso muito pouca sorte se o Gercourt não se tornar

como qualquer outro, a fábula de Paris.

Aliás, a heroína deste novo romance merece todos os seus

cuidados: é na verdade bonita; tem apenas quinze anos, é um

botão de rosa; acanhada, de facto, como já se não usa, e de

modo nenhum afectada: mas vós, os homens, não temeis isso;

além do mais, é senhora de certo olhar langoroso que na verdade

promete muito. Acrescente a tudo isto que sou eu que a recomendo:

não tem mais que agradecer-me e obedecer.

Receberá esta carta amanhã de manhã. Exijo que amanhã

às sete horas da tarde esteja em minha casa. Não receberei ninguém

senão às oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse não

tem cabeça para tamanha empresa. Bem vê que o amor não me

cega. Às oito horas outorgo-lhe a liberdade, e às dez voltará

* Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt

tinha deixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha sacrificado

o Visconde de Valmont, e que foi então que a Marquesa e o Visconde se

ligaram um ao outro. Como esta aventura é muito anterior aos acontecimentos

de que tratam estas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondência que

com ela se liga. (N. do A.)

para cear com o belo objecto, pois a mãe e a filha ceiam sempre

em minha casa. Adeus; passa do meio-dia, em breve deixarei de

me ocupar do Visconde.

Paris, 4 de Agosto de 17* *

CARTA III

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ainda não sei nada, minha boa amiga. A Mamã tinha ontem

muita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar,

os homens principalmente, aborreci-me muito. Toda a gente,

homens e mulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se

a falar ao ouvido; e eu bem via que era de mim que falavam.

Isto fazia-me corar; era coisa em que eu não tinha mão.

Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam para

as outras mulheres, elas não coravam; ou talvez fosse a pintura

que não me deixava ver o seu embaraço, pois deve ser muito difícil

deixar de corar quando um homem nos olha fixamente.

O que mais me inquietava era não saber o que pensavam a

meu respeito. Creio no entanto ter ouvido duas ou três vezes a

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palavra bonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E

isso deve ser verdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra

é parente e amiga de minha mãe. Pareceu-me mesmo que de

repente tinha sentido amizade por mim. Foi a única pessoa que

falou comigo um pouco durante toda a noite. Amanhã ceamos

em casa dela.

Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que

falava de mim, e que dizia a outro: "É preciso deixar amadurecer,

veremos este Inverno." Talvez seja esse que deve casar comigo;

mas sendo assim, não será antes de quatro meses! Bem

desejaria saber de que se trata.

Chegou agora Josefina, e diz-me que está com pressa. Mas

quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que

essa senhora tem razão!

Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da

Mamã; não sei como isso aconteceu, mas adormeci quase a seguir.

Acordou-me uma estrepidosa gargalhada. Não sei se riam de

mim, mas assim o creio. A Mamã permitiu que me retirasse, e

com isso deu-me grande prazer. Imagina que passava das onze

horas. Adeus, minha querida Sofia; ama sempre muito a tua

Cecília. Podes estar certa de que a sociedade não é tão divertida

como a imaginávamos.

Paris, 4 de Agosto de 17* *

CARTA IV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

em Paris

As suas ordens são encantadoras; e a sua maneira de as dar

é mais amável ainda. A minha amiga poderia fazer amar o despotismo.

Não é a primeira vez, como sabe, que eu lamento não

ser já o seu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou,

não recordo nunca sem prazer o tempo em que me honrava com

epítetos mais doces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merecê-los,

e acabar por dar, a seu lado, um exemplo de constância

ao mundo. Mas outros interesses mais altos nos chamam: conquistar

é o nosso destino. É preciso segui-lo. Talvez ao fim do

caminho voltemos a encontrar-nos; pois, seja dito sem que se

zangue, minha bela Marquesa, a verdade é que a senhora me

segue com um passo pelo menos igual. E visto que, separando-nos

para a felicidade do mundo, cada um de nós prega por seu

lado a sua fé, parece-me que, nesta missão de amor, a minha

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amiga faz mais prosélitos do que eu. Conheço o seu zelo, o seu

ardente fervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras,

a senhora seria um dia a padroeira de alguma grande cidade,

enquanto que o seu amigo seria quando muito um santo de aldeia.

Admira-se desta linguagem, não é verdade? Mas há oito

dias que eu não ouço nem falo outra; e é para me aperfeiçoar

nela que me vejo forçado a desobedecer-lhe.

Não se zangue e ouça-me. Depositária de todos os segredos

do meu coração, vou confiar-lhe o maior projecto que jamais

formei. Que me propõe a minha amiga? Seduzir uma jovem que não

viu nada, que não conhece nada; que, por assim dizer, me

seria entregue sem defesa; que com certeza se embriagará com

uma primeira homenagem, e que será levada mais pela curiosidade

do que pelo amor. Há vinte homens que nessa empresa seriam

tão bem sucedidos como eu. Já não acontece o mesmo com

a empresa que me preocupa; o seu êxito valer-me-á tanto prazer

como glória. O amor que prepara a minha coroa hesita ele próprio

entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunirá para honrar o

meu triunfo. Até a minha boa amiga será tomada de um santo

respeito, e dirá com entusiasmo: "É este o homem segundo o

meu coração. "

A minha amiga conhece a mulher do Presidente Tourvel, a

sua devoção, o seu amor conjugal, os seus princípios austeros.

Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fim

que eu pretendo atingir:

Et si de l'obtenir ce n'emporte le prix,

J'aurais du moins !honneur de l'avoir entrepris.

É permitido citar maus versos, quando são de um grande

poeta.

; Como deve saber, o Presidente de Tourvel está em Borgonha,

seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro

mais importante). A sua inconsolável metade deve passar

aqui todo o tempo desta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas

visitas aos pobres da região, orações de manhã e à noite,

passeios solitários, piedosas conversas com a minha velha tia, e

uma vez por outra um triste jogo de whist, deviam ser as suas

únicas distracções. Estou-lhe preparando outras mais eficazes.

O meu anjo bom conduziu-me aqui para a sua felicidade e para

minha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia

sacrificar em consideração aos respeitos familiares que são de

uso. Como eu seria castigado se me obrigassem a voltar a Paris!

Felizmente são precisas quatro pessoas para jogar o whist; e

como não há aqui mais ninguém além do prior do lugar, a

* E se eu não conseguir o prémio de o obter, Terei ao menos a honra de o

haver tentado.

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La Fontaine. (N. do A.)

minha eterna tia instou muito comigo para que eu lhe sacrificasse

alguns dias. Já adivinhou que acedi. Não imagina os mimos que

ela me prodigaliza desde esse instante, e principalmente como

ela está impressionada por me ver assistir regularmente às suas

orações e à missa. Nem por sombras lhe passa pela cabeça qual

a divindade que eu ali vou adorar.

E aqui estou eu, há quatro dias, entregue a uma paixão forte:

A minha amiga sabe com que força eu sei desejar, e como os

obstáculos pesam pouco para mim; mas o que ignora é quanto a

solidão vem reforçar o ardor dos desejos. Apenas uma ideia me

ocupa; penso nela de dia, sonho com ela de noite. É-me absolutamente

necessário possuir essa mulher, para me salvar do ridículo

de estar apaixonado por ela; pois aonde não conduz um

desejo contrariado? Ó delicioso prazer! Eu te imploro para a

minha felicidade, mas principalmente para o meu descanso.

Como nós os homens somos felizes por as mulheres se defenderem

tão mal! Sem isso, seríamos junto delas apenas tímidos escravos.

Neste momento sinto-me possuído de reconhecimento

pelas mulheres fáceis, o que, naturalmente, me conduz a seus

pés. Ante eles me ajoelho para obter o meu perdão, e nessa postura

termino esta longa carta. Adeus, minha amiga: longe de

mim qualquer reserva.

Do castelo de, 5 de Agosto de 17 * *

CARTA V

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Sabe, Visconde, que a sua carta é de uma insolência rara, e

que eu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente

que o Visconde perdeu a cabeça e só isso o salvou da

minha indignação. Amiga generosa e sensível, esqueço a injúria

que me dirige para me ocupar apenas do perigo que corre; e

embora seja muito aborrecido raciocinar, cedo à necessidade

que tem neste momento dos meus raciocínios.

O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridículo

capricho! Reconheço bem a sua má cabeça que não sabe

desejar senão o que crê não poder obter. Que tem pois essa

mulher? Traços regulares, se quiser, mas nenhuma expressão;

sofrível de corpo, mas sem graça; vestida sempre de modo que

faz rir! Com os seus molhos de lacinhos no pescoço e o corpete

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que lhe chega ao queixo! Digo-lho como amiga, não lhe seria

preciso ter duas mulheres como aquela para perder toda a minha

consideração. Lembre-se do dia da festa de caridade em

Saint-Roch, em que o Visconde tanto me agradeceu por eu lhe

ter proporcionado tal espectáculo. Parece que ainda a estou

vendo, dando a mão àquele trangalhadanças de cabelos compridos,

pronta a cair a cada passo, tendo sempre o cesto de quatro

varas em cima da cabeça de alguém, e corando cada vez que a

cumprimentavam. Quem lhe diria então que chegaria a desejar

essa mulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar

a si. Prometo-lhe guardar segredo.

E depois, veja a série de coisas desagradáveis que o esperam!

Que rival terá a combater? Um marido! Não se sente humilhado

só ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E

mesmo no caso de triunfar, que pequena glória o espera! Digo-lhe

mais: não conte tirar dali nenhum prazer. É isso possível

com as mulheres recatadas? Quero dizer com as que o são de

, boa fé: reservadas até no meio do prazer, não podem oferecer

senão meios gozos. O abandono inteiro de si mesma, o delírio

da volúpia em que o prazer se depura pelo seu excesso, estas

vantagens do amor não são conhecidas por tais mulheres. Aqui

lho profetizo: na mais feliz das suposições, a sua Presidente julgará

ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seu marido, e

na intimidade conjugal, mesmo a mais terna, há sempre dois.

Neste caso é muito pior ainda; essa virtuosa senhora é devota, e

a sua devoção é das que condenam a uma eterna infância. É

possível que o Visconde venha a saltar o obstáculo, mas não se

gabe de vir a destruí-lo: vencedor do amor de Deus, não o será

do medo do Diabo; e quando, tendo a sua amante nos braços,

tivesse conhecido mais cedo essa mulher, é possível que fizesse

dela qualquer coisa; mas tem já vinte e dois anos e há cerca de

dois que é casada. Creia-me, Visconde, quando uma mulher se

encodeou a tal ponto, é preciso abandoná-la à sua sorte; nunca

há-de passar de uma espécie.

No entanto, é por esse belo objecto que o Visconde recusa

obedecer-me; que se enterra no túmulo de sua tia, e que renuncia

à aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe

honrarias.Por que fatalidade será que Gercourt tem sempre

qualquer vantagem sobre o Visconde? Falo-lhe sem má disposição,

acredite: mas,neste momento,estou tentada a crer que o

senhor não merece a sua reputação; estou tentada principalmente

a retirar-lhe a minha confiança.Nunca poderei acostumar-me

a dizer os meus segredos ao amante de Madame de

Tourvel.

Saiba no entanto que a pequena Volanges já fez andar uma

cabeça à roda.O jovem Danceny está louco por ela; e na verdade

ela canta melhor do que é dado a uma pensionista de convento.

É quase certo que ensaiam muitos duetos e ia jurar que de

bom grado ela se prestaria ao uníssono; mas este Danceny é

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uma criança que perderá o seu tempo em galanteios sem chegar

a nada de positivo.Pelo seu lado a pequenota é bastante arisca;

e,seja o que for que aconteça,sempre há-de ser menos divertido

do que se o Visconde se resolvesse a intervir.Por isso estou

aborrecida e com certeza o Cavaleiro ouvirá ralhar à sua chegada.

Eu aconselho-o a ser submisso,pois neste momento não me

custaria nada romper com ele.Estou certa de que,se eu tivesse a

boa lembrança de o deixar neste momento,ele ficaria cheio de

desespero; e nada me diverte tanto como um desespero amoroso.

Chamar-me-ia pérfida,e essa palavra sempre me deu prazer; ,

depois da palavra "cruel",é a mais doce para os ouvidos de

uma mulher,e a que dá mais trabalho a merecer.Falando sério

vou ocupar-me deste rompimento.Aqui está um acontecimento

de que o Visconde será o causador! Ponho-o sobre a sua consciência.

Adeus.Recomende-me às orações da sua Presidente.

Paris, 7 de Agosto de 17* *

CARTA VI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É pois certo não existir mulher alguma que não abuse do

ascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas

vezes chamei indulgente amiga, deixou enfim de o ser, e não

receia atacar-me no objecto das minhas afeições! Com que traços

ousou pintar Madame de Tourvel!... Que homem não teria

pago com a vida essa insolente audácia? Que outra mulher que

não fosse a Marquesa teria podido enunciá-la sem suscitar da

minha parte uma pequena vingança? Por favor, não me submeta

a tão rudes provas; não garanto que as possa suportar. Em

nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, se quiser

dizer mal dela. Não sabe que só a volúpia tem o direito de dissipar

a cegueira do amor?

Mas que digo eu? Acaso Madame de Tourvel tem necessidade

de ilusão? Não; para ser adorável basta-lhe ser ela própria.

Censura-a a Marquesa por se vestir mal; estou de acordo: todos

os vestuários a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. É no

abandono do trajo caseiro que ela é verdadeiramente encantadora.

Graças aos calores opressivos que sofremos, um simples

roupão de pano deixa-me ver as suas formas redondas e flexíveis.

Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus

olhares furtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe já as linhas

sedutoras. O seu rosto, diz a Marquesa, não tem nenhuma expressão.

E que poderia exprimir, nos momentos em que nada

lhe fala ao coração? Não, sem dúvida, ela não tem, como as

presumidas mulheres do nosso meio, aquele olhar mentiroso

que nos seduz algumas vezes e nos engana sempre. Não sabe

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cobrir o vazio de uma frase com um sorriso estudado; e embora

tenha os mais belos dentes do mundo, não costuma rir senão do

que a diverte. No entanto é preciso ver como, nos jogos engraçados,

ela oferece a imagem de uma alegria ingénua e franca!

Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seu

olhar anuncia o contentamento puro e a bondade compadecida!

É preciso ver, principalmente à menor palavra de elogio ou de

afago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embaraço

de uma modéstia que não é fingida. Modesta e devota, é-o sem

dúvida, mas daí a julgá-la fria e inanimada!... O que penso dela

é bem diferente. Que extraordinária sensibilidade não deve ter

para beneficiar com ela o marido, e para amar sempre um ser

sempre ausente! Que prova mais forte se pode desejar? Todavia,

consegui descobrir mais uma.

Quando há dias saímos a passear, arranjei as coisas de maneira

que nos foi necessário transpor um barranco; e, embora

muito lesta, Madame de Tourvel é ainda mais tímida. É fácil de

ver que uma mulher virtuosa tem sempre receio de saltar o barranco.

Foi-lhe necessário confiar-se à minha pessoa. Tive nos

meus braços essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a

passagem da minha velha tia tinham feito rir às gargalhadas a

jovial devota: mas, no momento em que a agarrei, por um movimento

propositadamente desastrado, os nossos braços enlaçaram-se

mutuamente. Apertei o seu seio contra o meu; e, nesse

curto intervalo, senti o seu coração bater mais rápido. O rosto

coloriu-se-lhe de uma adorável vermelhidão, e no seu pudibundo

embaraço pude ver que o seu coração tinha palpitado de

amor e não de receio. Entretanto minha tia enganou-se - como

a minha amiga - e disse: "A criança teve medo"; mas a encantadora

ingenuidade da criança não lhe permitiu a mentira, e fez

que ela respondesse singelamente: "Oh! Não, mas.... Esta simples

palavra esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperança

substitui a cruel inquietação. Possuirei esta mulher;

hei-de arrebatá-la ao marido, que a profana: ousarei roubá-la

ao próprio Deus que ela adora. Que delícia ser alternadamente

o objecto e o vingador dos seus remorsos! Longe de mim a ideia

de destruir os preconceitos que a rodeiam! Servirão para aumentar

a minha felicidade e a minha glória. Que creia na virtude,

mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterrem

sem poder evitá-las; e que, agitada de mil terrores, ela não possa

esquecê-los, vencê-los senão nos meus braços. Consentirei então

que ela me diga: "Adoro-te" ; ela só, entre todas as mulheres, será

digna de pronunciar essa palavra. Eu serei, verdadeiramente,

o Deus que ela prefere.

Falemos de boa fé: nas nossas combinações tão frias como

fáceis, aquilo a que chamamos felicidade é apenas prazer. Poderei

confessar-lho? Pensava eu que o meu coração estava gasto, e,

encontrando em mim apenas os sentidos, lastimava a minha

velhice prematura. Madame de Tourvel restituiu-me as encantadoras

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ilusões da juventude. Junto dela, não tenho necessidade

de prazer para ser feliz. A única coisa que me mete medo é o

tempo que me vai tomar esta aventura; pois não ouso deixar

nada ao acaso. Muito embora me lembrem as minhas audácias

bem sucedidas, não posso resolver-me a pô-las em prática. .Para

que eu seja verdadeiramente feliz; é preciso que ela se dê; e não é

pequena empresa.

Estou certo de que a Marquesa admiraria a minha prudência.

Ainda não pronunciei a palavra amor; mas já chegámos às

palavras confiança e interesse. Para a enganar o menos possível,

e principalmente para prevenir o efeito das murmurações que

poderiam chegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu próprio,

como acusando-me, alguns dos meus defeitos mais conhecidos.

A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me faz

sermões. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda

o que lhe virá a custar tal tentativa. Está longe de pensar que

defendendo, como ela diz, as infortunadas que eu levei à perdição,

advoga de antemão a sua própria causa. Esta ideia veio-me

ontem no meio de uma das suas prédicas, e eu não pude recusar-me

ao prazer de a interromper, para lhe afirmar que falava

como um profeta. Adeus, minha bela amiga. Bem vê que não

estou perdido sem recurso.

* P. S . - A propósito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero?

Em boa verdade, a Marquesa é uma pessoa cem vezes

pior do que eu, e sentir-me-ia humilhado se tivesse amor-próprio.

Do Castelo de..., 9 de Agosto de 17

CARTA VII

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Se nada te disse do meu casamento, é porque não estou mais

adiantada do que no primeiro dia. Acostumo-me a não pensar

nisso e sinto-me muito bem no meu género de vida. Estudo muito

canto e harpa; parece-me que gosto mais desses estudos desde

que não tenho professor, ou antes, desde que tenho um professor

melhor. O Cavaleiro Danceny, aquele senhor de que falei,

e com quem cantei em casa de Madame de Merteuil, tem a bondade

de vir aqui todos os dias, e de cantar comigo horas inteiras.

É extremamente amável. Canta como um anjo, e compõe

lindas músicas para as quais escreve também as palavras. É

pena que ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se

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casasse, a mulher seria muito feliz... É cativante a doçura do seu

trato. Diz coisas sem ar de galanteio, e no entanto tudo o que ele

diz agrada. Conversa muito comigo, sobre a música e sobre outras

coisas; mas sabe insinuar nas suas críticas tanto interesse e

animação, que é impossível não lhe agradecer. Simplesmente,

quando olha para nós, tem o ar de dizer qualquer coisa que nos

prende. Além de tudo isto, é muito paciente. Ontem, por exemplo,

tinha sido convidado para um grande concerto; preferiu

ficar todo o serão comigo e com a Mamã. Isto deu-me muito

prazer, pois, quando ele não está, ninguém fala comigo e aborreço-me;

ao passo que quando ele está presente, cantamos em

conjunto e conversamos. Tem sempre alguma coisa para me

dizer. Ele e Madame de Merteuil são as duas únicas pessoas

amáveis que encontrei. Mas tenho de dizer-te adeus, minha querida

amiga: prometi que teria hoje estudada uma arieta de

acompanhamento muito difícil, e não quero faltar à minha palavra.

Vou lançar-me ao estudo até que ele venha.

7 de Agosto de 17 * *

CARTA VIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Ninguém pode ser mais sensível do que eu, senhora, à confiança

que me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu

pelo futuro casamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a

minha alma lhe desejo uma felicidade da qual não duvido que

ela seja digna, e para a qual contribuirá sem dúvida a prudência

de que tendes dado prova. Não conheço o senhor Conde de

Gercourt; mas, honrado com a vossa escolha, só posso ter dele

uma ideia muito lisonjeira. Limito-me, senhora, a desejar para

esse casamento um resultado tão feliz como o do meu, que é

igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maior reconhecimento.

Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa

da que conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser

também a mais feliz das mães!

Sinto-me verdadeiramente penalizada por não poder oferecer-vos

de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travar

conhecimento com Mademoiselle de Volanges tão cedo como

desejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondades verdadeiramente

maternais, tenho o direito de esperar dela a amizade

terna de uma irmã. Rogo-vos, senhora, que lhe façais este pedido

da minha parte, esperando estar à altura de merecê-la.

Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausência do

Senhor de Tourvel. Serve-me esse tempo para gozar e aproveitar

16

da companhia de Madame de Rosemonde. Esta senhora mantém

sempre o seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva

toda a sua memória e animação. Só o seu corpo tem oitenta e

quatro anos; o espírito tem apenas vinte.

O nosso isolamento é alegrado por seu sobrinho, o Visconde

de Valmont, que teve a bondade de nos sacrificar alguns dias.

Conhecia-o apenas pela sua reputação, a qual me não fazia desejar

conhecê-lo melhor; mas parece-me que vale mais do que

ela. Aqui, onde turbilhão do mundo não o prejudica, diz coisas

razoáveis com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que

tem praticado com uma candura rara. Fala-me sempre com

muita confiança e eu prego-lhe os meus sermões com muita severidade.

Vós, que o conheceis, devereis convir que seria uma

bela conversão a fazer: mas eu não tenho dúvidas de que, apesar

das suas promessas, oito dias de Paris lhe façam esquecer todas

as minhas prédicas. A sua estada aqui será pelo menos um intervalo

na sua conduta habitual: e eu creio que, atendendo à sua

maneira de viver, o que ele pode fazer de melhor é não fazer

nada. Sabendo que estou ocupada a escrevermos, encarregou-me

de vos apresentar as suas homenagens respeitosas. Aceitai

também as minhas com a bondade que vos conheço, e não duvideis

nunca dos sentimentos sinceros com que tenho a honra de

ser, etc.

Do castelo de..., 9 de Agosto de 17.

CARTA IX

MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL

Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem da

amizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais

em tudo que me diz respeito. Não é para esclarecer esse

ponto, que espero esteja assente para sempre entre nós, que respondo

à vossa resposta: mas julgo que não poderei dispensar-me

de conversar convosco a respeito do Visconde de Valmont.

Confesso que não esperava vir a encontrar o nome desse

senhor nas vossas cartas. De facto, que pode haver de comum

entre vós e ele? Vê-se bem que não conheceis esse homem; pois

onde poderíeis ter aprendido a fazer ideia do que é a alma dum

libertino? Falais-me da sua rara candura. Ah, sim: a candura de

Valmont deve ser de facto muito rara. Ele é ainda mais falso e

perigoso do que amável e sedutor, e nunca, desde que atingiu a

idade viril, nunca deu um passo ou disse uma palavra sem ter

um projecto, e nunca teve um projecto que não fosse criminoso

ou desonesto. Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis

que, entre as virtudes que me empenho em adquirir, a indulgência

17

não é daquelas que mais prezo. Por isso, se Valmont fosse

arrastado por paixões ardentes; se, como tantos outros, ele tivesse

sido seduzido pelos erros da juventude, embora censurasse

a sua conduta, eu lamentaria a sua pessoa, e esperaria, em silêncio,

a hora em que um regresso feliz o fizesse reconquistar a estima

das pessoas honestas. Mas Valmont não é capaz de tal: o seu

comportamento é o resultado dos seus princípios. Sabe fazer o

cálculo do que um homem pode permitir-se de horrores sem se

comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu por

vítimas as mulheres. Não perderei tempo a contar as que ele

seduziu; mas quantas delas lançou na perdição?

Essas escandalosas aventuras não chegaram ao vosso conhecimento,

na vida recatada e simples que tendes levado. Poderia

contar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos

olhos, puros como a vossa alma, seriam conspurcados por

semelhantes quadros. Estou certa de que Valmont não será para

vós um perigo, e por isso não tendes necessidade de semelhantes

armas para vos defenderdes. A única coisa que tenho a dizer-vos

é que, de todas as mulheres que ele distinguiu, com êxito ou

não, nenhuma deixou de ter motivo de queixa. Só a Marquesa

de Merteuil faz excepção a esta regra geral; só ela soube resistir-lhe

e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento

da vida da Marquesa é o que mais a honra a meus olhos: chega

para justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconsequências

que haveria a censurar-lhe quando do princípio da

sua viuvez.

Seja como for, minha boa amiga, o que a idade, a experiência

e principalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, é que

na sociedade se começa a notar a ausência de Valmont; e que,

caso se venha a saber que ele ficou algum tempo como terceiro

entre sua tia e vós, a vossa reputação ficará entre as mãos dele.

E esta será a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher.

Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o não retenha por

mais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que não deveis

hesitar em ceder-lhe o lugar. Mas por que há-de ele ficar aí?

Que faz ele no campo? Se tivésseis alguém a espiar os seus passos,

estou certa de que descobriríeis que ele apenas escolheu um

asilo mais cómodo, para algumas negras acções que pensa praticar

por esses sítios. Mas, na impossibilidade de remediar o mal,

contentamo-nos em preservar-nos dele.

Adeus, minha boa amiga. O casamento de minha filha está

um pouco retardado. O Conde de Gercourt, que esperávamos

de um dia para o outro, mandou-me dizer que o seu regimento

vai para a Córsega; e, como há ainda alguma agitação devido à

guerra, ser-lhe-á impossível ausentar-se antes do Inverno. Isso

contraria-me; mas autoriza-me a esperar que teremos o prazer

de vos ver na boda, e aborrecia-me que tal acontecimento não

tivesse a vossa presença. Adeus; estou, para além das convenções

e sem reserva, inteiramente ao vosso dispor.

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P. S . - Lembranças minhas para Madame de Rosemonde, a

quem aprecio tanto como ela merece.

1 de Agosto de 17* *

CARTA X

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Está amuado comigo, Visconde? Ou dar-se-á o caso que

tenha morrido? Ou, o que se pareceria muito com isso, não vive

senão para a sua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as

ilusões da juventude, dentro em pouco o fará reviver também os

ridículos preconceitos dessa idade. Eis o Visconde tímido e escravo;

o que vale tanto como estar apaixonado. Renunciou às

suas felizes temeridades. Ei-lo pois a conduzir-se sem princípios,

deixando tudo ao acaso, ou antes, ao capricho. Não lhe ocorreu

que o amor é, como a medicina, somente a arte de ajudar a

Natureza? Bem vê que estou a batê-lo com as suas armas; mas

não me sinto orgulhosa por isso, pois é bater num homem caído.

É preciso que ela se dê, diz-me o Visconde; oh !, sem dúvida,

é preciso. Ela há-de entregar-se como as outras, com a diferença

de que o fará de má vontade. Mas, para que ela acabe por se

entregar, o verdadeiro meio é começar por obrigá-la. A que

ponto esta ridícula distinção é um verdadeiro despropósito do

amor! Eu digo do amor: porque o Visconde está apaixonado.

Falar-lhe de maneira diferente seria traí-lo; seria esconder-lhe a

sua doença. Diga-me, pois, ó langoroso amante, julga ter violado

as mulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma

múlher tenha de se entregar, por muito apressada que esteja,

ainda lhe é preciso um pretexto; e haverá algum mais cómodo

para nós do que aquele que nos dá a aparência de ceder à força?

Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam é

um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordem

embora com rapidez; que não nos põe nunca naquela penosa

confusão de termos nós próprias um desacerto de que ao contrário

devíamos aproveitar; que sabe manter o ar de violência

até nas coisas que concedemos, e lisonjear com habilidade as

nossas duas paixões favoritas, a glória da defesa e o prazer da

derrota. Convenho que esse talento, mais raro do que se supõe,

me deu sempre prazer, mesmo quando não chegou a seduzir-me,

e que algumas vezes me aconteceu render-me unicamente

como recompensa. Tal como nos nossos antigos torneios, a Beleza

dava o prémio do valor e da destreza.

Mas o senhor, o senhor que já não é o mesmo, conduz-se

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como se tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando é que viaja

por pequenas jornadas e por amigo, quando se quer chegar,

empregam-se cavalos de posta e toma-se a estrada principal!

Mas deixemos esse assunto, que me aborrece tanto mais quanto

me priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes

do que o faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. Já

reparou que há mais de quinze dias que esta ridícula aventura o

preocupa, e que abandonou todo o convívio?

A propósito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que

mandam regularmente saber notícias dos seus amigos doentes,

mas que nunca esperam pela resposta. No final da sua última

carta, perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. Não respondi,

e o Visconde não se inquietou mais por isso. Esqueceu

porventura que o amante é seu amigo nato? Mas tranquilize-se,

não morre; ou, se tivesse morrido, seria por excesso de alegria.

Aquele pobre Cavaleiro, como ele é terno! como ele é feito para o

amor! como ele sabe sentir vivamente! Isto põe-me a cabeça à

roda. Falando sério, a felicidade perfeita que ele encontra em ser

amado por mim liga-me verdadeiramente a ele.

No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar o

rompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-me

ocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando

mo anunciaram. Fosse capricho ou raciocínio, nunca ele me

pareceu tão bem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava

passar duas horas comigo, antes que a minha porta se

abrisse para toda a gente. Disse-lhe que ia sair; perguntou-me

onde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele insistiu. Onde o senhor não

estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficou

petrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma

palavra, seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente

o rompimento que eu projectava. Admirada com o seu silêncio,

lancei os olhos sobre ele sem outro projecto, juro-lhe,

que o de ver a expressão com que ficara. Tornei a ver naquele

rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda e

terna, à qual o próprio Visconde tem de concordar que é difícil

resistir. A mesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida

pela segunda vez. Desde esse momento, só me ocupei da maneira

de evitar que ele pudesse achar nas minhas palavras qualquer

agravo. "Saio para tratar de um assunto", disse-lhe eu com um

ar um pouco mais doce, "e esse assunto diz-lhe respeito; mas

não me interrogue. Ceio em minha casa; volte, e saberá de que

". se trata." Foi então que ele recuperou a palavra: mas não lhe

permiti que fizesse uso dela. "Estou com muita pressa", continuei.

" Deixe-me; até logo à noite. " Beijou-me a mão e saiu.

Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para me

recompensar a mim própria, resolvi dar-lhe a conhecer a minha

casinha, de cuja existência ele não suspeita. Chamo a minha fiel

Vitória. Veio-me a enxaqueca; deito-me para todos os meus

criados; e, ficando enfim só com a verdadeira, enquanto ela se

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vestia de lacaio, disfarcei-me de criada de quarto. Em seguida

ela mandou vir um fiacre à porta do jardim, e partimos juntas.

Chegada àquele templo de amor, escolhi o roupão mais galante.

É um vestuário delicioso, de minha invenção: não deixa ver

nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a

sua Presidente, quando o Visconde a tiver tornado digna de o

usar.

Depois destes preparativos, enquanto Vitória se ocupava de

outros pormenores, li um capítulo do Sofá, uma carta de Heloisa

e dois contos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons

que eu queria tomar. Entretanto o Cavaleiro chega à minha porta,

com a pressa que tem sempre. O porteiro não o deixa entrar,

e diz-lhe que adoeci: primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo

tempo um bilhete meu, mas não com a minha letra, segundo a

minha regra de prudência. Ele abre-o, e encontra escrito pela

mão de Vitória: "Às nove em ponto, no Boulevard, em frente

dos cafés." Dirige-se para lá; e, ali, um pequeno lacaio que ele

não conhece, que ele julga pelo menos não conhecer, pois é

sempre Vitória, vem-lhe anunciar que é preciso mandar embora

a carruagem e segui-lo. Todas estas peripécias romanescas lhe

esquentavam a cabeça, e uma cabeça esquentada nada prejudica.

Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele um verdadeiro

encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-se passeamos

um momento no parque; depois encaminho-o para casa.

Ele vê primeiro dois talheres postos; depois uma cama feita.

Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seu esplendor.

Ali, metade por reflexão, metade por sentimento, passei os

meus braços em volta dele e deixei-me cair a seus pés: "Ó meu

amigo!", disse-lhe eu, "para poder preparar-te a surpresa deste

momento, censuro-me por te ter afligido com a aparência do

meu mau humor; por ter um instante velado o meu coração aos

teus olhares. Perdoa-me os agravos; quero expiá-los à força de

amor." O Visconde julgará do efeito deste discurso sentimental.

O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdão foi selado sobre

aquela otomana onde o Visconde e eu selámos tão alegremente

e da mesma maneira a nossa eterna separação.

Como tínhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinha

resolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso,

moderei os seus transportes, e a amável coqueteria veio

substituir a ternura. Julgo que nunca pus tanto empenho em

agradar, e que nunca estive tão satisfeita de mim própria. Depois

da ceia, alternadamente criança e razoável, folgazã e sensível,

por vezes mesmo libertina, aprouve-me considerá-lo como

um sultão em meio do serralho, do qual eu era de cada vez uma

favorita diferente. Na verdade, ao passo que ele repetia as suas

homenagens, se elas eram sempre dirigidas à mesma mulher, era

sempre uma nova amante que as recebia.

Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele

me disse, o que ele fez mesmo para me provar o contrário, tudo

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mostrava que a necessidade era maior que o desejo. No momento

em que saíamos e por último adeus, tomei a chave daquele

feliz refúgio, e pondo-lha entre as mãos, disse: "É só para si que

a tenho. é justo que seja o seu dono. O sacrificador deve dispor

do templo." Com esta habilidade preveni as reflexões que ele

poderia fazer sobre a propriedade, sempre suspeita, duma casa

pequena. Conheço-o bastante para estar certa de que não se

servirá dela senão para mim; e se eu tivesse a fantasia de lá ir

sem ele, sempre me restava outra chave. Ele queria à viva força

marcar data para lá voltarmos; mas eu amo-o ainda demasiado

para querer gastá-lo tão depressa. Só devemos permitir-nos excessos

com as pessoas que cedo queremos deixar. Ele não o sabe;

mas, felizmente para ele, eu sei-o por dois.

Reparo agora que são três da manhã, e que escrevi um volume,

quando formara o projecto de escrever apenas uma palavra.

Tal é o encanto da amizade confiante: é ela que faz que seja o

Visconde quem amo mais; mas, na verdade, o Cavaleiro é quem

mais me agrada.

12 de Agosto de 17* *

CARTA XI

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, por

felicidade, eu não encontrasse aqui mais motivos de tranquilidade

do que os de temor que me ofereceis. Esse temível senhor de

Valmont, que deve ser o terror de todas as mulheres, parece ter

deposto as suas armas mortíferas antes de entrar neste castelo.

Longe de vir aqui formar os seus projectos, nem mesmo trouxe

quaisquer pretensões; e a qualidade de homem amável, que até

os seus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para não

deixar senão a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo

que produziu este milagre. O que posso assegurar-vos é que,

estando constantemente ao pé de mim, parecendo mesmo que

isso lhe agrada, não lhe escapou ainda uma palavra que se pareça

com o amor, nem uma dessas frases que todos os homens se

permitem, sem ter, como ele, o que é necessário para as justificar.

Nunca ele obriga àquela reserva na qual hoje é obrigada a

manter-se toda a mulher que se respeita, para conter os homens

que a rodeiam. Sabe não abusar da animação que inspira. É talvez

um pouco pródigo em louvores; mas é com tanta delicadeza

que o faz, que obrigaria a própria modéstia a habituar-se ao

elogio. Enfim, se eu tivesse um irmão, desejaria que ele fosse tal

como o senhor de Valmont se mostra aqui. Talvez muitas mulheres

22

desejassem da sua parte uma galanteria mais marcada; e

confesso que lhe estou infinitamente grata por ele me julgar de

uma forma que lhe permite não me confundir com elas.

Este retrato difere muito sem dúvida do que me fizestes; e,

apesar disso, ambos podem estar parecidos, se fixarmos as épocas.

Ele próprio concorda ter cometido muitos erros, e com certeza

lhe terão atribuído alguns outros. Mas até agora encontrei

poucos homens que falassem de mulheres honestas com mais

respeito, direi quase entusiasmo. Sob esse aspecto, vós mesma

me fizeste saber que ele não engana. A sua conduta em relação a

Madame de Merteuil é disso prova. Fala-nos muito dela; e é

sempre com tantos elogios e dando mostras de uma dedicação

tão verdadeira, que cheguei a crer, antes da recepção da vossa

carta, que aquilo que ele chamava amizade entre os dois fosse

realmente amor. Acuso-me desse julgamento temerário, o qual

foi tanto mais erróneo quanto é certo que ele mesmo tomou a

seu cargo, por várias vezes, o cuidado de a justificar. Confesso

que tomei por delicadeza o que da sua parte era sinceridade autêntica.

Não sei; mas parece-me que aquele que é capaz de uma

amizade tão contínua por uma mulher tão estimável, não é um

libertino sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento

recto que ele mantém aqui se deve a alguns projenos por estes

sítios, conforme a vossa suposição. É certo que por estas cercanias

há algumas mulheres interessantes; mas ele sai pouco, excepto

de manhã, e então diz que vai caçar. É verdade que raramente

traz caça; mas assegura que é desastrado nesse exercício.

Demais, o que ele faz lá por fora inquieta-me pouco; e se eu desejasse

sabê-lo, seria apenas para ter mais um motivo que me

aproximasse da vossa opinião ou que vos conduzisse à minha.

Acerca da vossa proposta de trabalhar no sentido de abreviar

o tempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me

muito difícil ousar pedir a sua tia que não tenha o sobrinho

junto dela, tanto mais que gosta muito dele. Prometo-vos,

todavia, mas somente por deferência e não por necessidade,

aproveitar a primeira ocasião para fazer esse pedido, quer a

Madame de Rosemonde, quer a ele próprio. Quanto a mim, o

senhor de Tourvel é conhecedor do meu projecto de ficar aqui

até ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razão, da ligeireza

que me fizesse mudar de projecto.

São bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei

dever à verdade um testemunho favorável para o senhor de

Valmont, e do qual ele me parece ter grande necessidade junto

de vós. Nem por isso sou menos sensível à amizade que ditou os

vossos conselhos. É a ela que fico devendo também as vossas

penhorantes informações sobre a demora do casamento de vossa

filha. Agradeço-vos muito sinceramente: mas, embora me dê

prazer a ideia de passar esses momentos convosco, sacrificá-los-ia

de bom grado ao desejo de saber Mademoiselle de Volanges

mais cedo feliz, se é que ela pode vir a sê-lo mais do que

23

junto de uma mãe tão digna de toda a sua ternura e do seu respeito.

Partilho com ela os doces sentimentos que me prendem a

vós, e peço-vos que aceiteis a expressão deles com bondade.

Tenho a honra de ser, etc.

13 de Agosto de 17 *

CARTA XII

CECÍLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTeuil

A Mamã está incomodada, minha senhora; não pode sair

hoje, e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo não

terei a honra de vos acompanhar à Ópera. - Asseguro-vos que

lamento bem mais não estar convosco do que o espectáculo.

Peço-vos que acrediteis. Tenho por vós tanta amizade! Tereis a

bondade de dizer ao Cavaleiro Danceny que não tenho a colecção

de que ele me falou, e que se ma puder trazer amanhã me

dará -grande prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-ão que não estamos;

mas é a Mamã que não quer receber ninguém. Espero que ela

amanhã esteja melhor.

Tenho a honra de ser, etc.

13 de Agosto de 17 * *

CARTA XIII

A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES

Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do

prazer de a ver, bem como pelo motivo dessa privação. Espero

que outra ocasião se encontrará. Desempenhar-me-ei da sua

comissão junto do Cavaleiro Danceny, que certamente ficará

muito aborrecido por saber sua Mamã doente. Se ela amanhã

me quiser receber, irei fazer-lhe companhia. Faremos um ataque,

ela e eu, ao Cavaleiro de Belleroche ao piquet, e, além de

lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, por acréscimo de prazer,

o de a ouvirmos cantar com o seu amável mestre; encarrego-me

de lhe fazer o pedido. Se isso convier a sua Mamã e a si,

respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha

linda; os meus cumprimentos à minha querida Madame de Volanges.

24

Beijo-a muito ternamente.

13 de Agosto de 17* *

CARTA XIV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ontem não te escrevi, minha querida Sofia; mas não foi o

prazer o motivo, posso jurar-te. A Mamã esteve doente, e não a

deixei em todo o dia. À noite, quando me retirei, não tive cabeça

para nada; e deitei-me muito depressa, para ter a certeza de

que o dia tinha acabado. Nunca tinha passado nenhum tão

comprido. Não é que eu não goste da Mamã, mas não sei o que

era. Devia ir à Ópera com Madame de Merteuil; o Cavaleiro

Danceny devia lá estar. Bem sabes que são as duas de quem eu

mais gosto. Quando chegou a hora em que devia ir ter com eles,

senti o coração apertado, contra minha vontade. Tudo me aborrecia,

e chorei, chorei, sem conseguir impedi-lo. Felizmente a

Mamã estava deitada, e não podia ver-me. Estou bem certa de

que o Cavaleiro Danceny também ficou aborrecido; mas deve

ter-se distraído com o espectáculo e com toda agente que o rodeava.

Foi muito diferente.

Por felicidade, a Mamã está hoje melhor, e Madame de

Merteuil virá com outra pessoa e com o Cavaleiro Danceny;

mas chega sempre muito tarde, Madame de Merteuil; e quando

se esteve tanto tempo sozinha, é muito aborrecido. São apenas

onze horas. É verdade que tenho de tocar harpa; e depois levarei

algum tempo a vestir-me e a arranjar-me, pois hoje quero estar

muito bem penteada. Parece-me que madre Perpétua tem razão

e que uma pessoa se torna garrida quando vive em sociedade.

Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de há alguns dias

para cá, e acho que não o sou tanto como pensava; e depois,

junto de mulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame

de Merteuil, por exemplo: vejo bem que todos os homens a

acham mais bonita do que eu. Não me importo muito, porque

ela é minha amiga. E além disso ela afirma-me que o Cavaleiro

Danceny me acha mais bonita do que ela. É muito honesto da

sua parte ter-mo dito! Até parece que estava contente em mo

dizer. Aí está uma coisa que eu não compreendo. É porque ela

gosta muito de mim! E ele!... Oh!, foi uma coisa que me deu

muito prazer! Por isso, até,me parece que só de olhar para ele

uma pessoa fica bonita. Eu estaria a olhar sempre para ele, se

não tivesse receio de encontrar os seus olhos: pois, todas as vezes

25

que tal me acontece, fico confusa, e parece que me dá pena;

mas isto nada quer dizer.

Adeus, minha querida amiga. Vou-me pôr diante do espelho.

Continuo a gostar de ti como sempre.

Paris, 14 de Agosto de 17 * *.

CARTA XV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É muito honesto da sua parte não me abandonar à minha

triste sorte. A vida que levo aqui é realmente fatigante, pelo excesso

de repouso que me proporciona e pela sua insípida uniformidade.

Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador,

estive vinte vezes tentado a pretextar um negócio, voar a

seus pés e pedir-lhe, em meu favor, uma infidelidade ao seu

Cavaleiro, que, no fim de tudo, não merece a felicidade de que

desfruta. Sabe a Marquesa que me pôs ciumento dele? Por que

me fala da eterna separação? Renego esse juramento, pronunciado

em delírio: não seríamos dignos de o fazer, se fôssemos

obrigados a mantê-lo. Ah! Que eu possa um dia vingar-me nos

seus braços do ciúme involuntário que me causou a felicidade

do Cavaleiro! Estou indignado, confesso, só de pensar que esse

homem, sem raciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se

a seguir totalmente o instinto do seu coração, encontra

uma felicidade que eu não atingirei nunca. Oh! Hei-de perturbá-la...

Prometa-me que serei eu a perturbá-la. A Marquesa

mesmo não se sente humilhada? Tem trabalho para o enganar, e

ele é dos dois o mais feliz. Julga que o tem preso nas suas malhas!

É a Marquesa que o está nas dele. Enquanto vela pelos

seus prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se

fosse sua escrava?

Saiba-o, minha bela amiga, enquanto se divide entre vários,

não sinto o mínimo ciúme: não vejo então nos seus amantes senão

os sucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos

juntos, aquele império onde eu reinei só. Mas que se entregue

inteiramente a um deles! Que exista outro homem tão feliz

como eu! Não posso sofrê-lo; não espere que eu o sofra. Ou

readmita-me, ou pelo menos arranje outro; e não queira trair,

por um capricho exclusivo, a amizade inviolável que nos jurámos

mutuamente.

É o momento, sem dúvida, de lhe confessar as minhas queixas

amorosas. Bem vê que me presto às suas ideias, e que confesso

os meus erros: Na verdade, se estar apaixonado é não

poder viver sem possuir o que se deseja, sacrificar a essa ideia o

26

tempo, os prazeres; a vida, então é certo que estou realmente

apaixonado. Não estou mais avançado do que estava. Não teria

mesmo mais nada a contar-lhe a esse respeito se não fosse um

acontecimento que me dá muito que pensar, e que não sei ainda

se deve inspirar-me receio ou esperança.

A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga e verdadeiro

lacaio de comédia: e bem pode imaginar que entre as

suas atribuições cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e

a de perturbar as pessoas. O patife é mais feliz do que eu: já

conseguiu uma vitória. Acaba de descobrir que Madame de

Tourvel encarregou uma criatura sua de tirar informações sobre a

minha conduta, e mesmo de me seguir nos meus passeios de

manhã, até onde possa, sem que alguém se aperceba. Que pretende

esta mulher? Assim pois a mais modesta de todas ousa

arriscar-se a um ponto que nós mal ousaríamos permitir-nos!

De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me desta

astúcia feminina, ocupemo-nos do meio de a pôr ao nosso serviço.

Até agora esses passeios de que se suspeita não tinham qualquer

objectivo; é preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minha

atenção, e vou findar para pensar nisso. Adeus minha bela amiga.

Sempre do Castelo de. . ., 15 de Agosto de 17 * *.

CARTA XVI

CECÍLIA VOLANGES A SOfia ÇARNAY

Ah, minha Sofia, tenho novidades a dar-te! Talvez não devesse

dizer: mas é preciso que eu fale nisto a alguém; é mais forte

do que eu. Esse Cavaleiro Danceny... Estou tão perturbada

que não posso escrever. Não sei por onde começar. Depois que

te contei o lindo serão que passei com ele è com Madame de

Merteuil junto da Mamã, não voltei a falar-te a seu respeito: é

que eu não queria falar dele a ninguém; mas era nele que eu

pensava sempre. Depois, tinha-se tornado tão triste, mas tão

triste, tão triste, que me fazia pena. E quando eu lhe perguntava

porquê, dizia-me que não: mas eu bem via que sim. Enfim, ontem

ainda estava mais triste que de costume. Isso não impediu

que tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes;

mas, sempre que olhava para mim, eu sentia apertar-se-me o

coração. Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha

harpa no estojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me

que tocasse ainda naquela noite, logo que me encontrasse só. Eu

não desconfiei de nada; nem mesmo queria: mas ele pediu-me

tanto, que lhe disse que sim. Ele tinha as suas razões. efectivamente,

27

quando me retirei para o meu quarto, e assim que a criada

saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nas cordas uma carta,

simplesmente dobrada, e não lacrada; era dele! Ah! Se tu soubesses

o que me diz! Depois de a ter lido senti tanto prazer que

nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e

depois fechei-a na minha secretária. Já a sabia de cor; e depois

de deitada repeti-a tantas vezes que nem pensava em dormir.

Assim que fechei os olhos vi-o ao pé de mim, dizendo-me tudo

quanto eu acabara de ler. Só adormeci muito tarde; e mal tinha

acordado (era ainda muito cedo), fui logo buscar a carta para a

tornar a ler à minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a

como se... Talvez seja mal feito beijar uma carta como esta,

mas a verdade é que não pude impedir-me de o fazer.

* A carta em que se fala deste serão não foi encontrada. Devemos supor

que é o que Madame de Merteuil propõe no seu bilhete, e de que também se fala

na precedente carta de Cecília Volanges.

Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas

também muito embaraçada; pois é certo que não devo responder

a esta carta. Sei bem que isso não se deve fazer, no entanto

ele pede-mo; e se eu não responder, estou certa de que se vai pôr

ainda mais triste. É uma desgraça para ele! Que me aconselhas

tu? É claro que a este respeito não sabes mais do que eu. Tenho

muita vontade de falar nisto a Madame de Merteuil, que é tão

minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas não quero fazer

nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto que tenhamos

bom coração! E depois proíbem-nos de seguir o que ele nos inspira,

quando se trata de um homem! Isto também não é justo.

Por acaso um homem não é o nosso próximo, como uma mulher

ou mais ainda? Pois enfim, não temos nós um pai, tal como

uma mãe, um irmão, tal como uma irmã? Além disso ainda fica

o marido. Mas se eu fosse fazer qualquer coisa que não fosse

bem feita, talvez o próprio senhor Danceny não ficasse com boa

ideia a meu respeito! Oh! Isso então era o que me faltava. Prefiro

que fique triste. E depois, enfim, estou sempre a tempo. Lá

porque ele escreveu ontem, não sou obrigada a escrever-lhe hoje.

Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem conto-lhe

tudo. Se fizer só o que ela me disser, nada terei a censurar-me.

Talvez ela me diga que lhe responda poucochinho, para

que ele não fique tão triste! Oh! Estou num momento muito difícil.

Adeus, minha boa amiga. Diz-me sempre o que pensas.

19 de Agosto de 17 * *.

CARTA XVII

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O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Antes de me entregar, Mademoiselle, àquilo que chamo o

prazer ou a necessidade de lhe escrever, começo por lhe suplicar

que me ouça. Sinto que, para ousar declarar-lhe os meus sentimentos,

tenho precisão de indulgência; se apenas tivesse de justificá-los,

ela ser-me-ia inútil. Que vou eu fazer, afinal, senão

mostrar-lhe o meu íntimo? E que tenho eu a dizer-lhe que os

meus olhares, o meu embaraço, a minha conduta e mesmo o

meu silêncio lhe não tenham dito antes de mim? Por que se havia

pois de zangar por um sentimento que fez nascer? Emanado

de si, é sem dúvida digno de lhe ser oferecido; se é ardente como

a minha alma, é também puro como a sua. Seria um crime ter

sabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores,

as suas graças fascinantes, essa comovente candura que

acrescenta um preço inestimável a qualidades já tão preciosas?

Não, sem dúvida. Mas, mesmo não se sendo culpado, pode ser-se

infeliz. E é a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a

minha homenagem. É a primeira que o meu coração até hoje a

ofereceu. Se a não tivesse visto eu seria ainda, não feliz, mas

tranquilo. Vi-a; o repouso fugiu para longe de mim, e o meu

coração está inquieto. Admira-se da minha tristeza; pergunta-me

a causa. Algumas vezes julguei ver que ela a afligia. Ah!

Diga uma palavra, e a minha felicidade será obra sua. Mas, antes

de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser também o

cúmulo da minha tristeza. Seja pois o árbitro do meu destino.

Por si vou ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mãos mais

queridas poderia eu depositar um interesse maior?

Acabarei, como comecei, por implorar a sua indulgência.

Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me responda.

Recusá-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu

coração é garantia de que em mim o respeito iguala o amor.

P. S. - Poderá servir-se, para me responder, do mesmo meio

de que me sirvo para fazer chegar esta carta às suas mãos; parece-me

igualmente seguro e cómodo.

18 de Agosto de 17

CARTA XVIII

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

29

Pois quê, Sofia! Tu censuras de antemão o que eu vou fazer!

Tinha já bastantes inquietações; vieste tu agora aumentá-las. É

claro, dizes tu, que não devo responder. Falas disto com todo o

à-vontade; mas a verdade é que não sabes ao certo do que se

trata: não estás aqui para ver. Estou certa de que se estivesses no

meu lugar, farias como eu. Com certeza que, de maneira geral,

não se deve responder; e tu bem viste, pela minha carta de ontem,

que eu própria não queria fazê-lo. Mas é que não creio que

alguém se tenha visto alguma vez na situação em que me encontro.

E ainda ser obrigada a decidir-me sozinha! Madame de

Merteuil, que eu contava ver ontem à noite, não veio. Tudo

conspira contra mim: foi ela quem teve a culpa de eu o conhecer.

Foi quase sempre na presença dela que eu o vi, que lhe falei.

É claro que não lhe quero mal por isso: mas o que é certo é que

me abandona no momento mais difícil. Oh! Sou na verdade

digna de lástima!

Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava tão

perturbada que nem ousei olhá-lo. Ele não podia falar comigo,

porque a Mamã estava presente. Tinha quase a certeza de que

ele se zangaria, quando visse que eu não lhe tinha escrito. Eu

não sabia o que havia de fazer. Um momento depois perguntou-me

se eu queria que fosse buscar a minha harpa. O coração

batia-me tão fortemente que tudo quanto pude fazer foi responder-lhe

que sim. Quando ele voltou é que foi pior. Só o olhei por

um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim; mas tinha

um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto dava-me

muita pena. Pôs-se a afinar a harpa e, depois, quando ma

trouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." Não disse mais do

que essas duas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei

completamente transtornada. Pus-me logo a tocar sem saber

bem o que fazia. A Mamã perguntou-me se não cantávamos.

Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que não

tinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei então nunca ter

tido voz. Escolhi de propósito uma música que não sabia, pois

estava certa de que não poderia cantar nada, e assim daria a

perceber que havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita;

e, logo que ouvi o ruído de uma carruagem, deixei de cantar

e pedi-lhe que fosse arrumar a harpa. Tive muito medo que ele

se fosse embora ao mesmo tempo; mas voltou.

Enquanto a Mamã e a senhora que veio visitá-la conversavam

juntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os

seus olhos, e foi-me impossível desviar os meus. Um momento

depois vi as suas lágrimas correram, e foi obrigado a voltar-se

para não ser visto. Nesse momento não tive mão em mim; senti

que ia chorar também. Saí, e imediatamente escrevi a lápis, num

pedaço de papel: "Não esteja tão triste, peço-lhe; prometo que

30

lhe responderei." Com certeza não podes dizer que haja algum

mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus o papel nas

cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei à sala. Sentia-me

mais tranquila. Já me tardava que a senhora se fosse

embora. Felizmente; foi uma visita curta; deixou-nos pouco

depois. Logo que ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha

harpa, e pedi-lhe que a fosse buscar. Vi bem, pelo seu aspecto,

que não desconfiava de nada. Mas quando voltou, oh!, como

ele estava contente! Ao pôr a harpa na minha frente, colocou-se

de maneira que a Mamã não podia vê-lo, e tomou-me a mão,

que apertou... mas de uma maneira!... Foi apenas um momento;

mas eu sou incapaz de te dizer o prazer que isso me deu. No

entanto, retirei a mão; por isso não tenho nada a censurar-me.

Agora, minha boa amiga, bem vês que não posso dispensar-me

de lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, não quero

que volte a estar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se

fosse alguma coisa de mal, eu não a faria. Mas que mal pode

haver em escrever, principalmente quando é para impedir que

alguém seja infeliz? O que me aborrece é saber que não sou capaz

de fazer uma carta bem feita. Mas ele há-de perceber que a

culpa não é minha. E depois estou bem certa de que só por ser

minha lhe dará prazer.

Adeus, minha querida amiga. À medida que se aproxima o

momento de lhe escrever, o meu coração bate de uma maneira

inconcebível. No entanto é preciso, visto que o prometi. Adeus .

20 de Agosto de 17* *

CARTA XIX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Estava ontem tão triste, senhor, e isso causava-me tanta

pena, que não resisti a prometer-lhe que responderia à carta que

me escreveu. Não é que eu sinta hoje menos que não o devia

fazer; mas, como lhe prometi, não quero faltar à minha palavra,

e isso deve provar-lhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora

que já sabe, espero que não volte a pedir-me que lhe escreva

mais. Espero também que não diga a ninguém que lhe escrevi,

porque com certeza me censuravam e isso podia causar-me muitos

desgostos. Espero principalmente que não fique a fazer má

ideia de mim, o que seria o maior desgosto que eu podia ter.

Posso dar-lhe a certeza de que não teria essa complacência para

outro que não fosse o senhor. Desejaria que tivesse a bondade

de não estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer

31

que sinto em o ver. Bem vê que lhe falo com toda a sinceridade.

Só peço que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe, não

torne a escrever-me.

Tenho a honra de ser, etc.

20 de Agosto de 17* *.

CARTA XX

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Ah, tratante, faz-me festas porque receia a minha troça!

Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que

realmente é preciso que eu lhe desculpe a prudência do seu procedimento

em relação à sua Presidente. Não creio que o meu

Cavaleiro usasse de tanta indulgência como eu; seria homem

para não aprovar a renovação do nosso contrato e para não

achar nada de divertido na sua louca ideia. No entanto fez-me

rir muito, e senti-me verdadeiramente aborrecida de ser obrigada

a rir tanto sozinha. Se o Visconde estivesse próximo, não

sei onde me poderia ter levado essa alegria: mas tive tempo para

reflectir e armei-me de severidade. Não é o caso de recusar para

sempre; mas vou adiando, e tenho razão. Poria nisso talvez vaidade,

e, uma vez entrada no jogo, não se sabe onde se vai parar.

Serei mulher para o prender de novo, para lhe fazer esquecer a

sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja

que escândalo ! Para evitar esse perigo, eis as minhas condições.

Assim que tenha possuído a sua devota e me possa fornecer

uma prova, venha, e serei sua. Mas não ignora que, nos negócios

importantes, não se recebem provas senão por escrito. Por

esta combinação, serei, por um lado, uma recompensa em vez

de sèr uma consolação, e essa ideia agrada-me mais; por outro

lado, o seu êxito será mais excitante. Venha pois, venha o mais

cedo possível trazer-me o penhor do seu triunfo: semelhante aos

nossos esforçados cavaleiros, que vinham depor aos pés das

suas damas os frutos brilhantes da vitória. Seriamente, estou

curiosa de saber o que pode escrever uma mulher virtuosa depois

de um tal momento, e que véu porá nas suas palavras, depois

de não ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Visconde

cabe avaliar se eu me coloco num preço muito alto; mas previno-o

de que não farei qualquer abatimento... Até lá, meu caro

Visconde, achará bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que

me divirta a torná-lo feliz, apesar do pequeno desgosto que isso

causa.

Entretanto, se os meus costumes não fossem tão regrados,

creio que teria, neste momento, um rival perigoso; é a pequena

32

Volanges. Estou louca por essa pequena; é uma verdadeira paixão.

Ou eu me engano, ou ela virá a ser uma das nossas mulheres

da moda. Vejo o seu coraçãozinho desenvolver-se, e é um

espectáculo encantador. É já com furor que ela ama o seu Danceny;

mas por enquanto não percebe destas coisas. Quanto a

ele, embora muito apaixonado, tem ainda a timidez da sua idade

e não ousa ensinar-lhe demasiado. Os dois permanecem em

adoração na minha frente. Principalmente a pequena tem grande

desejo de me dizer o seu segredo; desde há alguns dias, em

particular, vejo-a verdadeiramente sufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia

um grande serviço se a ajudasse um pouco. Mas não

esqueço que é uma criança, e não quero comprometer-me. Danceny

falou-me um pouco mais claramente, mas, para ele, o meu

partido está tomado, não quero ouvi-lo. Quanto à pequena, sinto-me

muitas vezes tentada a fazer dela minha discípula; é um

serviço que tenho vontade de prestar a Gercourt. Ele dá-me

tempo para isso, porque está na Córsega até ao mês de Outubro.

Tenho em mente empregar todo esse tempo, de modo a

podermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar

da sua inocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a

insolente confiança desse homem, que ousa dormir tranquilo,

enquanto uma mulher, que dele tem motivos de queixa, não se

vingou ainda? Creia, se a pequena estivesse aqui neste momento,

nem eu sei o que lhe diria.

Adeus, Visconde; boa noite e bom êxito: mas, por Deus,

veja se avança. Pense que, se não possuir essa mulher, as outras

terão vergonha de terem sido possuídas.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um

grande passo, e que, se não me conduziu até ao fim, me fez pelo

menos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio

em que estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e

embora me tenha respondido o silêncio mais obstinado, obtive

a resposta talvez menos equívoca e mais lisonjeira; mas não

antecipemos os acontecimentos e voltemos mais atrás.

A Marquesa recorda-se que os meus passos eram espiados.

Pois bem! Decidi que esse meio escândalo servisse para a edificação

do público, e aqui está o que eu fiz. Encarreguei o meu

confidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que

tivesse necessidade de auxílio. Essa missão não era difícil de

33

cumprir. Ontem de tarde, deu-me ele a notícia de que hoje, de

manhã, deviam ser penhorados os móveis de uma família inteira

que não podia pagar a derrama. Assegurei-me de que nessa casa

não havia nenhuma mulher ou rapariga cuja idade pudesse tornar

suspeita a minha acção; e, logo que fiquei bem informado,

declarei à ceia o meu projecto de ir à caça no dia seguinte. Devo

aqui fazer justiça à minha Presidente: sem dúvida teve ela alguns

remorsos das ordens que deu; e, não tendo força de vencer

a sua curiosidade, teve pelo menos a de contrariar o meu desejo.

Devia haver calor em excesso; arriscava-me a ficar doente; não

apanharia nenhuma caça e fatigar-me-ia em vão; e, durante este

diálogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria,

davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por

boas as suas más razões. Como pode crer, eu não pensava em

me render a tais razões, e resisti do mesmo modo a uma pequena

diatribe contra a caça e os caçadores, e a uma pequena nuvem

de mau humor que obscureceu, durante todo o serão, esta

figura celeste. Por um momento receei que as suas ordens fossem

anuladas e que a sua delicadeza acabasse por me prejudicar.

Fiz um mau cálculo sobre a curiosidade duma mulher; por

isso me enganei. O meu criado tranquilizou-me nessa mesma

noite, e deitei-me satisfeito.

Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinquenta

passos do castelo, vejo que o meu espião me segue. Entro no terreno

da caça e caminho através dos campos para a aldeia onde

pretendia dirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, além

do de obrigar a correr o patife que me seguia, e que, não se atrevendo

a deixar os caminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a

toda a velocidade, um espaço triplo do meu. De tanto o pôr à

prova, eu próprio ia cheio de calor, e sentei-me junto de uma

árvore. Pois não teve ele a insolência de deslizar para trás de

uma moita, a menos de vinte passos de distância, e de se sentar

também? Por um momento estive tentado a mandar-lhe um tiro,

que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teria dado uma lição

suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente para

ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo útil e mesmo necessário

aos meus projectos; esta reflexão salvou-o.

Entretanto chego à aldeia; vejo que há movimento; avanço;

interrogo; contam-me o que se passa. Chamo o cobrador; e,

cedendo à minha generosa compaixão, pago nobremente cinquenta

e seis libras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas

à indigência e ao desespero. Depois desta acção tão simples, não

imagina o coro de bênçãos que se ergueu à minha volta por parte

dos assistentes! Que lágrimas de reconhecimento corriam dos

olhos do velho chefe daquela família, e embelezavam a sua figura

de patriarca, que um momento antes a contracção feroz do

desespero tornava verdadeiramente hedionda! Eu examinava o

espectáculo e logo outro camponês mais moço, conduzindo pela

mão uma mulher e duas crianças, avança para mim a passos

34

precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos pés desta

imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda a

família, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza;

os meus olhos tinham-se molhado de lágrimas, e senti em

mim um movimento involuntário, mas delicioso. Fiquei surpreendido

do prazer que se experimenta ao fazer-se bem; e estive

tentado a crer que aqueles a quem chamamos pessoas virtuosas

não têm tanto mérito como geralmente se diz. Fosse como

fosse, achei que era justo pagar àquela pobre gente o prazer que

acabava de me dar. Tinha comigo dez luíses: dei-lhos. Aqui recomeçaram

os agradecimentos, mas já não tinham o mesmo

grau de patético: o necessário tinha produzido o grande, o verdadeiro

efeito; o resto era apenas uma simples expressão de

reconhecimento e de espanto por uma dádiva supérflua.

Entretanto, no meio das bênçãos tagarelas daquela família,

eu não deixava de me parecer um pouco com o herói de um

drama, na cena do desenlace. Calculará decerto que entre a

multidão se mantinha a pé firme o espião fiel. O meu fim fora

atingido; separei-me de todos, e voltei para o castelo. Deitados

todos os cálculos, felicito-me da minha invenção. Esta mulher

vale bem, sem dúvida, que eu me dê a tais cuidados; eles serão

um dia os meus títulos junto dela; e tendo-lhe, de algum modo,

pago assim de antemão, terei o direito de dispor dela segundo a

minha fantasia, sem ter de me censurar.

Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu

favor, pedi àquela boa gente que rogasse a Deus pelo bom êxito

dos meus projectos. A Marquesa verá se os seus rogos não foram

já em parte atendidos... Mas anunciam-me que a ceia está

servida e far-se-ia tarde para mandar esta carta se eu não a fechasse

ao retirar-me. Assim, o resto no próximo número. Aborrece-me

isso, pois o resto é o melhor. Adeus, minha bela amiga.

Acaba de me roubar um momento do prazer de vê-la.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Ficareis sem dúvida satisfeita, senhora, por conhecer um

gesto do senhor de Valmont, que contrasta em muito, parece-me,

com todos aqueles sob os quais vo-lo apresentaram. É uma

coisa tão penosa pensar desfavoravelmente de quem quer que

seja, tão aborrecido encontrar apenas vícios naqueles que podem

ter todas as qualidades necessárias para fazer amar a virtude!

Enfim, gostais tanto de usar de indulgência que dar-vos motivo

35

para reparar um juízo demasiado rigoroso é decerto servir-vos.

O senhor de Valmont parece-me ter as condições necessárias

para esperar esse favor, direi quase justiça; e vou dizer-vos

porque o penso.

Esta manhã deu ele um daqueles passeios que poderiam levar

a supor qualquer projecto da sua parte nos arredores, conforme

a ideia que vos veio; ideia que me acuso de ter partilhado

talvez com demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo

felizmente para nós, pois isso nos salva de sermos injustas,

um dos meus servidores tinha de ir para os mesmos lados que

ele; e foi por aí que a minha curiosidade repreensível, mas feliz,

foi satisfeita. Contou-nos o criado que o senhor de Valmont,

tendo encontrado na aldeia de... uma infeliz família cujos móveis

iam ser vendidos, por não poder pagar os impostos, não

somente se apressara a solver a dívida daquela pobre gente, mas

lhe dera até uma importância em dinheiro bastante considerável.

O meu criado foi testemunha daquela virtuosa acção, e

mais me contou que os camponeses, conversando entre si e com

ele, haviam dito que um criado que designaram, e que o meu

julga ser o do senhor de Valmont, tinha ontem ido tirar informações

sobre quais os habitantes da aldeia que poderiam estar

necessitados de auxílio. Se isto é assim, se não é unicamente

uma compaixão passageira e que a ocasião determina, então é o

projecto formado de fazer bem; é a solicitude da beneficência; é

a mais bela virtude das mais belas almas. Mas, seja acaso ou

projecto, é sempre uma acção honesta e louvável, e de que a

simples narração me enterneceu até às lágrimas. Acrescentarei

ainda, e sempre por justiça, que, quando lhe falei dessa acção,

da qual ele não dizia palavra, começou por se defender e mostrou

atribuir-lhe tão pouco valor que a sua modéstia lhe redobrava

o mérito.

Dizei-me agora, minha respeitável amiga, se o senhor de

Valmont é na verdade um libertino sem remissão? Se ele é apenas

isso e procede assim, que ficará para as pessoas honestas?

Pois quê! Os maus partilhariam com os bons o prazer sagrado

da beneficência? Permitiria Deus que uma família virtuosa recebesse

das mãos dum celerado os socorros que teria de agradecer

à sua divina Providência? E poderia ele sentir prazer em ouvir,

de bocas puras, espalharem-se bênçãos sobre um réprobo? Não.

Prefiro acreditar que os erros, por durarem longo tempo, não

são eternos; e não posso pensar que quem faz o bem seja inimigo

da virtude. O senhor de Valmont é talvez um exemplo mais

do perigo de certas ligações. Detenho-me nesta ideia que me

parece a melhor. Se, por um lado, ela pode servir a justificá-lo

no vosso espírito, por outro torna cada vez mais preciosa a terna

amizade que me liga a vós por toda a vida.

Tenho a honra de ser, etc.

P. S. - Madame de Rosemonde e eu vamos, dentro de momentos,

36

ver também a honesta e infeliz família, e juntar os nossos

socorros tardios aos do senhor de Valmont. Levá-lo-emos

connosco. Daremos ao menos a essa boa gente o prazer de tornar

a ver o seu benfeitor; é, creio eu, tudo o que ele deixou para

nós fazermos.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Tínhamos ficado no meu regresso ao castelo: retomo a

minha narrativa.

Mal tive tempo de me arranjar um pouco, e regressei à sala,

onde a minha bela tecia um tapete, enquanto o cura lia a gazeta

à minha velha tia. Sentei-me junto do tear. Alguns olhares, mais

doces ainda do que o costume, e quase acariciantes, depressa me

fizeram adivinhar que o criado tinha já dado conta da sua missão.

De facto, a minha amável curiosa não pôde guardar por

muito tempo o segredo que me tinha roubado; e, sem receio de

interromper um venerável pastor cuja prédica no entanto se

parecia com uma homilia, disse: "Também tenho as minhas

novidades a dar"; e imediatamente contou a minha aventura

com uma exactidão que fazia honra à inteligência do seu historiador.

A Marquesa pode imaginar como eu manifestei toda a

minha modéstia; mas quem poderia deter uma mulher que faz,

sem o suspeitar, o elogio daquele que ama? Tomei pois o partido

de a deixar continuar. Dir-se-ia que ela pregava o panegírico

de um santo. Durante esse tempo eu observava, não sem esperança,

tudo o que prometiam ao amor os seus olhares cheios de

animação, os seus gestos agora mais livres, e principalmente

aquele tom de voz que, pela sua alteração já sensível, traía a

emoção da sua alma. Logo que ela acabou de falar, Madame de

Rosemonde disse-me: "Meu sobrinho, chegue ao pé de mim;

quero abraçá-lo." Imediatamente senti que a linda pregadora

não poderia defender-se de ser abraçada por sua voz. Quis fugir,

entretanto; mais depressa a atraí para os meus braços; e,

longe de ter forças para resistir, apenas lhe restavam as bastantes

para se manter de pé. Quanto mais observo esta mulher,

mais ela me parece desejável. Apressando-se a voltar para junto

do tear, simulou, para os presentes, recomeçar a sua tarefa; mas

vi bem que a sua mão trémula não lhe permitia continuá-la.

Depois do jantar, as senhoras quiseram ir ver os infortunados

que eu tão piedosamente tinha socorrido; acompanhei-as.

Poupo a minha boa amiga ao enfado desta segunda cena de reconhecimento

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e de louvores. O meu coração, impedido por uma

recordação deliciosa, apressa o momento do regresso ao castelo.

Pelo caminho, a minha bela Presidente, mais pensativa que

de costume, não dizia palavra. Eu pensava em encontrar os

meios de aproveitar o efeito que nela causara o acontecimento

do dia, e por isso mantinha igualmente silêncio. Só Madame de

Rosemonde falava e apenas obtinha de nós respostas curtas e

raras. Era quase certo que a estávamos aborrecendo: era precisamente

o que eu desejava, e fui bem sucedido. Ao descer da

carruagem, minha tia dirigiu-se aos seus aposentos, e deixou-nos

frente a frente, a minha bela e eu, numa sala mal iluminada:

obscuridade doce, que torna ousados os amores tímidos.

Não tive o trabalho de orientar a conversação para o ponto

em que desejava conduzi-la. O fervor da amável pregadora serviu-me

melhor do que não o teria feito a minha habilidade.

"Quando se é digno de fazer o bem", disse-me ela, detendo sobre

mim o seu doce olhar, "como se pode passar a vida praticando

o mal?" "Não mereço", respondi-lhe, "nem esse elogio,

nem essa censura; e não compreendo como, com a sua inteligência,

não me adivinhou ainda. Mesmo que a minha confiança

viesse a prejudicar-me, a senhora é demasiado digna dela para

que eu pudesse recusar-la. Encontrará a chave da minha conduta

num temperamento infelizmente fácil em demasia. Rodeado

de indivíduos sem moral, dei-me a imitar os seus vícios; talvez

tenha posto algum amor-próprio em ultrapassá-los. Da mesma

forma, senti-me seduzido aqui pelo exemplo das virtudes, e,

embora sem esperança de poder igualá-la, procurarei ao menos

segui-la. Talvez o acto por que hoje me louva perdesse a seus

olhos todo o valor, se conhecesse o seu verdadeiro motivo!" (A

minha amiga bem vê quanto eu estava perto da verdade.) "Não

é a mim", continuei, "que esses infelizes devem o auxílio que

lhes prestei. Onde julga ver uma acção meritória, procurei eu

apenas um meio de agradar. Eu era apenas, é forçoso dizê-lo, o

frágil emissário da divindade que adoro." (Aqui ela quis interromper-me;

mas eu não lhe dei tempo para tal.) "Neste momento

mesmo", acrescentei, "o meu segredo escapa-me devido a

uma fraqueza. Prometera a mim mesmo calar-me; era para mim

uma felicidade oferecer às suas virtudes e aos seus encantos uma

homenagem que ficaria ignorada para sempre; mas, incapaz de

enganar, quando tenho debaixo dos olhos o exemplo da candura,

não terei a censurar-me uma culposa dissimulação. Não

creia que a ofendo por uma criminosa esperança. Serei infeliz,

bem sei; mas os meus sofrimentos ser-me-ão caros; provar-me-ão

o excesso do meu amor. É a seus pés, é no seu seio que eu

deporei as minhas mágoas. Aí encontrarei forças para sofrer de

novo; aí encontrarei a bondade compadecida, e julgar-me-ei

consolado, só porque me lastimou. Adoro-a! Escute-me, lastime-me,

socorra-me!" Entretanto eu estava a seus pés, e apertava

as suas mãos nas minhas; ela, porém, desprendendo-as de

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repente, e cruzando-as sobre os olhos com expressão de desespero,

exclamou: "Ah, desventurada!"; e desatou a chorar. Por

felicidade, eu a tal ponto me tinha abandonado à emoção que

chorei também; e, voltando a tomar-lhe as mãos, banhei-as de

lágrimas. Esta precaução era muito necessária, pois ela estava

tão ocupada com a sua dor que não se teria apercebido da minha,

se eu não tivesse encontrado este meio de patenteá-la.

Além disso, aproveitei o momento para contemplar à minha

vontade aquele rosto encantador, embelezado ainda pelo poderoso

atractivo das lágrimas. Senti a cabeça quente, e estava tão

pouco senhor de mim que me senti tentado a aproveitar aquele

momento.

! Que fraqueza é esta nossa? A que ponto nos dominam as

circunstâncias, se eu próprio, esquecendo os meus projectos, me

arrisquei a perder, por um triunfo prematuro, o encanto dos

longos combates e os pormenores de uma penosa derrota? Se,

seduzido por um desejo de homem moço, pensei expor o vencedor

de Madame de Tourvel a não recolher, como fruto dos seus

trabalhos, senão a insípida vitória de possuir mais uma mulher?!

Ah! Que ela se renda, mas que combata; que, sem ter a

força de vencer, tenha a de resistir; que saboreie à vontade o

sentimento da sua fraqueza, e seja obrigada a confessar a sua

derrota. Deixemos o obscuro caçador furtivo matar o veado

que surpreendeu numa cilada; o verdadeiro caçador deve forçá-lo.

É sublime este projecto, não acha? Mas talvez neste

momento eu lamentasse não o ter seguido, se o acaso não viesse

em socorro da minha prudência.

Ouvimos ruído. Alguém vinha do salão. Madame de Tourvel,

horrorizada, levantou-se precipitadamente, agarrou um dos

! candelabros e saiu. Tive de a deixar proceder. Era apenas um

criado. Logo que me assegurei disso, segui-a. Apenas eu tinha

dado alguns passos, fosse porque ela me reconhecesse, fosse por

um sentimento de vago terror, ouvi-a precipitar os passos e

lançar-se, em vez de entrar, no seu quarto, fechando a porta

atrás de si. Fui junto da porta; mas a chave estava do lado de

dentro. Tive o cuidado de não bater; seria fornecer-lhe a ocasião

de uma resistência demasiado fácil. Tive a feliz e simples

ideia de tentar ver através da fechadura, e vi de facto essa mulher

adorável de joelhos, banhada em lágrimas, rezando com

fervor. Que Deus ousava ela invocar? Existirá algum com poder

bastante contra o amor? É em vão que ela procura agora socorros

estranhos; só eu decidirei da sua sorte.

Julgando ter já feito bastante para um só dia, retirei-me

também para o meu quarto e comecei a escrever esta carta. Esperava

voltar a vê-la à ceia; no entanto, ela mandou dizer que se

sentira indisposta e se tinha deitado. Madame de Rosemonde

quis subir ao quarto dela, mas a maliciosa doente pretextou

uma dor de cabeça que não lhe permitia ver ninguém. Como

facilmente imagina, depois da ceia pouco tempo estivemos à

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mesa, e também eu tive a minha dor de cabeça. Fechado no meu

quarto, escrevi uma longa carta para me queixar de tal rigor, e

deitei-me, com o projecto de a entregar esta manhã. Dormi mal,

como poderá ver pela data desta carta. Levantei-me, e reli a

minha epístola. Verifiquei que nela eu me sujeitara a uma medíocre

observação, que mostrava mais ardor do que amor, e

mais contrariedade do que tristeza. É preciso refazê-la; mas

necessitarei de estar mais calmo.

O dia começa a romper, e espero que a frescura que o acompanha

me trará o sono. Vou meter-me na cama; e, seja qual for

o império desta mulher, prometo-lhe não me ocupar dela a tal

ponto que não fique tempo para sonhar muito consigo. Adeus,

minha bela amiga.

21 de Agosto de 17 , 4 horas da manhã.

CARTA XXIV

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Ah! Por piedade, senhora, dignai-vos acalmar a perturbação

da minha alma; dignai-vos dizer-me o que devo esperar ou recear.

Colocado entre o excesso da felicidade e o do infortúnio, a

incerteza é um tormento cruel. Por que vos falei? Por que não

pude eu resistir ao encanto imperioso que vos entregava os

meus pensamentos? Contente de vos adorar em silêncio, eu

gozava ao menos do amor que sentia; e esse sentimento puro,

que não era perturbado ainda pela imagem da vossa dor, bastava

para a minha felicidade. Mas essa fonte de ventura transformou-se

em fonte de desespero, desde que vi correrem lágrimas

dos vossos olhos; desde que ouvi aquele cruel ah, desventurada!

Senhora, aquelas duas palavras ressoarão por muito tempo no

meu coração. Por que fatalidade o mais doce dos sentimentos

não pode inspirar-vos mais do que horror? Que receio é esse

que sentis? Ah! Não é o receio de partilhar tal sentimento: o

vosso coração, que conheci mal, não foi feito para o amor; o

meu, que caluniais sem cessar, é dos dois o único sensível. O

vosso não tem piedade. Se assim não fosse, não teríeis recusado

uma palavra de consolação ao desgraçado que vos contava os

seus sofrimentos; não vos teríeis furtado aos olhares de quem

não tem outro prazer além de ver-vos; não vos teríeis divertido

cruelmente com a sua inquietação, anunciando-lhe que estáveis

doente sem lhe permitir que se informasse do vosso estado; teríeis

sentido que essa mesma noite, que para vós representava

doze horas de repouso, ia ser para ele século de dores.

Por onde mereci, dizei-me, esse rigor implacável? Não tenho

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receio de tomar-vos por juiz: que fiz eu, além de ceder a um sentimento

involuntário, inspirado pela beleza e justificado pela

virtude, sempre contido pelo respeito, e cuja inocente confissão

foi o efeito da confiança e não da esperança? Pois traireis essa

confiança, que me pareceu vós mesma terdes permitido, e à qual

me entreguei sem reservas? Não, não posso acreditá-lo; seria

supor-vos capaz de malevolência, e o meu coração revolta-se só

com a ideia de vos achar em semelhante falta. Retiro as. minhas

censuras: pude escrevê-las, mas não pensá-las. Ah! Deixai-me

supor-vos perfeita, é o único prazer que me resta. Provai-me que

o sois concedendo-me os vossos generosos cuidados. Que infeliz

tereis já socorrido que tivesse tanta necessidade deles como eu?

Não me abandoneis no delírio em que me lançastes! Concedei-me

a vossa razão, já que me roubastes a minha! Depois de me

haverdes corrigido, esclarecei-me para terminardes a vossa

obra!

Não desejo iludir-vos: não conseguireis vencer o meu amor;

mas ensinar-me-eis a governá-lo: guiando os meus passos, ditando

as minhas palavras, salvar-me-eis ao menos da horrível

desgraça de vos desagradar. Acima de tudo, dissipai este desesperador

receio; dizei-me que me perdoais, que me lamentais;

dai-me a certeza da vossa indulgência! É certo que nunca disporeis

de tanta como eu desejaria que tivésseis; mas reclamo aquela

de que necessito. Podereis recusar-me?

Adeus, senhora. Recebei com bondade a homenagem dos

meus sentimentos; ela não impede a do meu respeito.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Aqui lhe apresento o boletim do dia de ontem.

As onze horas entrei nos aposentos de Madame de Rosemonde;

e, sob os seus auspícios, fui introduzido no quarto da

doente fingida, que permanecia deitada. Tinha os olhos muito

pisados; espero que tenha dormido tão mal como eu. Aproveitei

um momento em que Madame de Rosemonde se afastara para

entregar a minha carta; recusou-se a aceitá-la, mas deixei-a sobre

a cama, e fui muito honestamente aproximar a poltrona da

minha velha tia, que queria estar junto da sua querida filha;

para evitar o escândalo, teve de guardá-la. Sem convicção alguma,

a doente disse que julgava ter um pouco de febre. Madame

de Rosemonde intimou-me a que lhe tomasse o pulso, elogiando

muito os meus conhecimentos de medicina. A minha bela teve

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pois o duplo desgosto de ser obrigada a estender-me o braço, e

de sentir que a sua mentirola ia ser descoberta. De facto, tomei a

sua mão que apertei numa das minhas, enquanto que com a

outra percorria o seu braço fresco e redondo. A maliciosa pessoa

não respondeu a nada, o que me fez dizer ao retirar-me: "Não

tem sequer a mais ligeira perturbação." Calculei que os seus

olhares deviam ser severos, e para a castigar não os procurei.

Após um instante, disse que desejava levantar-se, e deixámo-la

só. Apareceu ao jantar, que foi triste; anunciou que não sairia

para passear, o que era dizer-me que eu não teria ocasião de lhe

falar. Senti bem que era o momento de soltar um suspiro e lançar

um olhar doloroso. Ela esperava isso por certo, pois foi a

única vez durante o dia que consegui encontrar os seus olhos.

Apesar de toda a sua honestidade, tem os seus pequenos ardis

como qualquer outra. Encontrei o momento de lhe perguntar

"se tinha a bondade de me instruir sobre a minha sorte", e fiquei

um pouco admirado de a ouvir responder-me: "Sim, senhor,

escrevi-lhe." Eu estava muito apressado em receber a carta;

mas fosse ainda por ardil, desastramento ou timidez, ela só

ma entregou à noite, no momento de se retirar para o seu quarto.

Aqui lha envio, juntamente com o rascunho da minha; leia e

julgue: veja com que insigne falsidade ela afirma que não sente

amor, quando eu estou convencido do contrário. E há-de queixar-se

se eu a enganar depois, quando ela não receia enganar-me

antes! Minha bela amiga, o homem mais avisado consegue

apenas manter-se ao nível da mulher mais verdadeira. Será pois

preciso acreditar em todo este contra-senso, e fatigar-me de desespero,

porque apetece à senhora simular rigor! Como é possível

evitar vingarmo-nos de tais perfídias?... Mas paciência...

Adeus. Tenho ainda muito para escrever.

A propósito, devolver-me-á a carta da desumana; pode

dar-se o caso que por diante ela pretenda dar valor a essas misérias,

e é preciso estar em regra.

Não lhe falo da pequena Volanges; falaremos disso noutro

dia.

Do castelo, 22 de Agosto de 17* *.

CARTA XXVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Decerto, senhor, não viríeis a receber qualquer carta minha

se a minha tola conduta de ontem à noite não me obrigasse a

entrar hoje em explicações convosco. Sim, chorei, confesso-o: é

possível também que me tivessem escapado as duas palavras

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que citais com tanto escrúpulo. Lágrimas e palavras, tudo notastes;

é preciso, pois, explicar-vos tudo.

Habituada a inspirar apenas sentimentos honestos, a ouvir

apenas palavras que posso escutar sem corar, a gozar por consequência

de uma tranquilidade que ouso dizer que mereço, não

sei dissimular nem combater as impressões que experimento. O

espanto e a confusão em que me lançou o vosso procedimento;

não sei que receio, inspirado por uma situação que não foi feita

para mim; talvez a ideia revoltante de me ver confundida com

as mulheres que desprezais e tratada tão ligeiramente como

elas; todas estas causas reunidas provocaram as minhas lágrimas

e puderam fazer-me dizer, com razão segundo penso, que

era desventurada. Esta expressão, que achais demasiado forte,

seria certamente demasiado fraca se as minhas lágrimas e as

minhas palavras tivessem motivo diferente; se, em vez de reprovar

sentimentos que me ofendem, eu tivesse receio de os partilhar.

Não, senhor Visconde, não tenho esse receio; se o tivesse, eu

fugiria para cem léguas de distância. Iria chorar para um deserto

a desgraça de vos ter conhecido. Talvez mesmo, apesar da

certeza em que estou de nunca vos poder amar, talvez eu fizesse

melhor em seguir os conselhos dos meus amigos: não deixar que

vos aproximásseis de mim.

Supus, e é esse o meu único erro, supus que respeitaríeis

uma mulher honesta, que não pedia mais do que achar-vos

igualmente honesto e fazer-vos justiça; que já vos defendia,

enquanto a ultrajáveis com os vossos criminosos desejos. Bem

se vê que não me conheceis; não, senhor Visconde, não me conheceis.

Se me conhecêsseis não teríeis querido transformar em

direitos os vossos agravos: porque me dirigistes palavras que eu

não devia ouvir, não vos julgaríeis autorizado a escrever-me

uma carta que eu não devia ler. E pedis-me que guie os vossos

passos, que dite as vossas palavras! Pois bem, senhor, o silêncio

e o esquecimento, eis os conselhos que me apraz dar-vos, e que

vos convém seguir: então tereis, na verdade, direito à minha

indulgência. E só de vós depende obterdes mesmo o meu reconhecimento...

Mas não, não farei um pedido a quem não teve

respeito por mim; não darei mostras de confiança a quem abusou

da minha tranquilidade. Sois vós quem me obriga a recear-vos,

talvez a odiar-vos. Eu não o desejava; queria ver em vós

apenas o sobrinho da minha mais respeitável amiga: opunha a

voz da amizade à voz pública que vos acusava. Vós destruístes

tudo; e, já o prevejo, não fareis nada para reparar o que

destruístes.

me ofendem, que a confissão deles me ultraja, e sobretudo que,

longe de poder um dia partilhá-los, me forçais a não tornar a

ver-vos se não vos impuserdes a tal respeito um silêncio que me

parece ter o direito de esperar, e mesmo de vos exigir. Junto a

esta carta a que me escrevestes e espero que fareis o favor de me

devolver esta; ficaria verdadeiramente desgostosa se ficasse algum

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vestígio de um acontecimento que não deveria nunca ter-se

produzido. Tenho a honra de ser, etc.

21 de Agosto de 17 * *

CARTA XXVII

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Meu Deus, como sois boa, senhora Marquesa! Como compreendeste

que me seria mais fácil escrever-nos do que falar

-vos! Na verdade, o que tenho a dizer-vos é muito difícil. Mas

sois minha amiga, não é verdade? Oh! Sim, minha boa amiga!

Vou fazer o possível por não ter medo; e, depois, tenho tanta

precisão de vós, dos vossos conselhos! Sinto-me muito triste,

parece-me que toda a gente adivinha o que eu penso; e principalmente

quando ele está presente, coro assim que alguém olha

para mim. Ontem, quando me vistes chorar, foi porque eu queria

falar-vos e havia não sei quê que me impedia; e quando me

perguntastes o que eu tinha, saltaram-me as lágrimas contra

minha vontade. Não teria podido dizer uma palavra. Se não fósseis

vós, a Mamã saberia logo do que se tratava, e que iria ser de

mim? E no entanto é assim que eu passo a minha vida, principalmente

de há quatro dias para cá!

Foi nesse dia, senhora Marquesa, sim, sempre vos digo, foi

nesse dia que o senhor Cavaleiro Danceny me escreveu: oh!,

! posso dar-vos a certeza de que quando encontrei a carta eu não

sabia do que se tratava; mas, para não mentir, não nego que

senti muito prazer ao lê-la. Podeis acreditar, gostaria mais de

; ficar triste toda a vida, do que se ele me não tivesse escrito. Mas

eu sabia bem que não devia dizer-lhe isso, e posso garantir-vos

que cheguei a dizer-lhe que tinha ficado zangada; mas ele disse

que era mais forte do que ele e eu acreditei; pois tinha resolvido

não lhe responder, e no entanto não pude deixar de o fazer. Oh!

Escrevi-lhe apenas uma vez, e mesmo isso foi em parte para lhe

dizer que não voltasse a escrever-me. Mas apesar disso ele continua;

e como eu não lhe respondo, vejo bem que ele está triste, e

isso aflige-me ainda mais. De maneira que não sei que fazer,

; nem o que resolver, e o que é certo é que sou digna de lástima.

Dizei-me, peço-vos, senhora Marquesa, será mal feito responder-lhe

de tempos a tempos? Só até que ele compreenda que

não deve voltar a escrever-me, e ficarmos como dantes; pois,

por meu lado, se isto continua, não sei o que vai ser de mim. E

estou bem certa de que se eu não lhe respondo, isso nos fará sofrer

aos dois.

Vou enviar-vos também a carta dele, ou uma cópia, e fareis

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o vosso juízo; vereis que o que ele me pede não é nada de mal.

Mas se virdes que não é coisa que se deva fazer, prometo-vos

que não continuarei; entretanto, creio que pensareis como eu e

que em tudo isto não há nada de mal.

Enquanto aguardo o vosso parecer, permiti-me, senhora

Marquesa, que vos faça ainda uma pergunta: têm-me dito que é

feio amar alguém; mas porque? O que me leva a perguntar-vos

isto é que o Cavaleiro Danceny pretende que não é feio tal e que

quase todas as pessoas amam alguém; se é assim, não vejo porque

serei a única a não poder fazê-lo; ou será que só é feio para

as meninas solteiras? Pois eu tenho ouvido até à Mamã dizer

que Madame D... amava o senhor M...; e quando ela falava a

esse respeito não parecia referir-se a uma coisa má, mas no entanto

tenho a certeza de que ela se zangaria comigo se suspeitasse

da minha amizade pelo senhor Danceny. A Mamã trata-me

sempre como se eu fosse uma criança e não me diz nada. Eu julgava,

quando ela me fez sair do convento, que era para me casar;

mas agora parece-me que não. Não é que eu tenha nisso

interesse, asseguro-vos. Mas, sendo tão amiga da Mamã, sabeis

talvez o que há a esse respeito e, se o souberdes, espero que mo

direis.

Ora aqui está uma carta comprida, senhora Marquesa, mas,

como permitistes que eu vos escrevesse, aproveitei para vos dizer

tudo e conto com a vossa amizade.

Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 23 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXVIII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Pois quê, Mademoiselle, continua a recusar responder-me!

Não há nada que a possa comover, e cada dia leva consigo a

esperança que trouxera! Se consente que subsista entre nós uma

amizade, que amizade é essa não bastante poderosa para a tornar

sensível à minha mágoa? Se a deixa fria e tranquila, enquanto

eu passo pelos tormentos dum fogo que não posso extinguir?

Se, longe de lhe inspirar confiança, não chega sequer para fazer

nascer a sua piedade? Pois quê! O seu amigo sofre, e não faz

nada para o socorrer! Pede-lhe apenas uma palavra, e recusa-lha!

E quer que ele se contente com um sentimento tão fraco, e

tem até receio de lho confirmar!

Disse-me ontem que não desejaria ser ingrata. Ah!, creia-me,

Mademoiselle, querer pagar amor com amizade não é temer

45

apenas a ingratidão, é amedrontar-se só da ideia de parecer

ingrata. Entretanto, não ouso continuar a falar-lhe dum sentimento

que não pode deixar de a aborrecer, se não lhe interessa.

É preciso pelo menos encerrá-lo dentro de mim mesmo, aguardando

que possa um dia vencê-lo. Eu sinto quanto será penoso

esse trabalho; não dissimulo perante mim próprio que terei necessidade

de todas as minhas forças; tentarei todos os meios:

existe um que será o mais difícil para o meu coração, é o de repetir

muitas vezes comigo mesmo que o seu é insensível. Terei

; de experimentar vê-la menos vezes, e penso já na maneira de

encontrar um pretexto plausível.

Pois quê! Terei de perder o doce hábito de a ver todos os

dias! Ah! Pelo menos não deixarei jamais de lamentá-lo. Uma

perpétua angústia será o preço do amor mais terno; assim o terá

querido, e essa será sua obra! Jamais, sinto-o, tornarei a encontrar

a felicidade que hoje perco; só a Cecília era feita para o meu

coração. Com que prazer farei o juramento de não viver senão

para si! Mas vejo bem que não quer receber esse juramento. O

seu silêncio basta para me fazer compreender que o seu coração

não lhe diz nada em meu favor; é ao mesmo tempo a prova mais

segura da sua indiferença e a maneira mais cruel de ma anunciar.

Adeus, Mademoiselle.

Já não ouso esperar uma resposta; o amor tê-la-ia escrito

com solicitude, a amizade com prazer, a piedade mesmo com

complacência; mas a piedade, a amizade e o amor são igualmente

estranhos ao seu coração.

Paris, 23 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXIX

CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Eu bem te tinha dito, Sofia, que havia casos em que se podia

escrever; e asseguro-te que me censuro muito por ter seguido o

teu conselho, que nos deu tanta mágoa, ao Cavaleiro Danceny e

a mim. A prova de que eu tinha razão é que Madame de Merteuil,

que é uma mulher que com certeza o sabe muito bem,

acabou por pensar como eu. Confessei-lhe tudo. Primeiro ela

disse-me o mesmo que tu; mas quando eu lhe expliquei tudo,

concordou que era muito diferente. Exige somente que eu lhe

mostre todas as minhas cartas e todas as do Cavaleiro Danceny,

a fim de estar certa de que eu não direi senão o que for necessário.

Por isso, sinto-me agora tranquila. Meu Deus, como eu gosto

de Madame de Merteuil! É tão boa! E olha que é uma senhora

muito respeitável. Por isso não há nada a dizer.

46

De que maneira vou escrever ao senhor Danceny e como ele

vai ficar contente! Vai ficar ainda mais contente do que ele pensa,

pois até aqui eu só lhe falava da minha amizade, e ele queria

sempre que eu dissesse o meu amor. Julgo que é a mesma coisa;

mas enfim eu não ousava, e ele teimava nesse ponto. Contei isso

a Madame de Merteuil; ela disse-me que eu tinha razão, e que

não convinha falar de amor, enquanto uma pessoa se pode impedir

de o fazer. Ora eu tenho a certeza de que não poderei impedir-me

de o fazer por muito tempo; no fim de contas é a

mesma coisa, e isso agradar-lhe-á muito mais.

Madame de Merteuil disse-me também que ia emprestar-me

livros que falam de tudo isso, e que me ensinariam a conduzir-me,

e também a escrever melhor do que o faço; pois, como vês,

ela diz-me todos os meus defeitos, o que é uma prova de que é

muito minha amiga. Só me recomendou que não dissesse nada à

Mamã a respeito dos livros, porque podia parecer que ela julgava

que a Mamã tinha descuidado a minha educação e isso fazer

com que ela se zangasse. Oh ! Não lhe direi nada a tal respeito.

Acho no entanto muito extraordinário que uma senhora

que quase não é da minha família tenha mais cuidado comigo

do que a minha mãe! Foi uma felicidade para mim tê-la conhecido !

Ela pediu também à Mamã que me deixasse ir com ela depois

de amanhã à Ópera, para o seu camarote; disse-me que

estaríamos sozinhas e que conversaríamos todo o tempo, sem

receio de que alguém nos ouvisse: prefiro isso muito mais a ouvir

a ópera. Conversaremos também a respeito do meu casamento,

pois ela disse-me que sempre era certo que eu ia casar-me;

mas não pude saber mais do que isso. Ora não é na verdade

muito de admirar que a Mamã não me tenha dito nada a tal

respeito?

Adeus, minha Sofia; vou imediatamente escrever ao Cavaleiro

Danceny. Oh! Como eu estou contente!

24 de Agosto de 17 * *

CARTA XXX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Enfim, senhor, consinto em escrever-lhe, para que esteja

certo da minha amizade, do meu amor, visto que, sem isso, se

sentiria infeliz. Diz o senhor que eu não tenho bom coração;

garanto-lhe que se engana e espero que de agora em diante não

tenha dúvidas a esse respeito. Se se sentia triste por eu não lhe

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escrever, julga que isso não me fazia pena a mim também? Mas

é que, por coisa nenhuma do mundo, eu desejaria fazer qualquer

coisa que me ficasse mal; e mesmo não estaria tão certa do

meu amor por si se não tivesse sentido mágoa por não lhe escrever.

Mas a sua tristeza custava-me muito. Espero que daqui por

diante já a não sinta e que iremos ser muito felizes.

Conto ter o prazer de o ver esta noite e que virá tão cedo

quanto possível; nunca será tão cedo como eu desejo. A Mamã

ceia em casa, e creio que lhe dirá para ficar. Espero que não esteja

comprometido como anteontem. Era então muito agradável

a ceia a que ia assistir? O certo é que foi para lá muito cedo.

Mas enfim, não falemos disso: agora que já sabe que o amo,

espero que ficará junto de mim o mais tempo que possa. Pois eu

não estou contente senão quando está ao pé de mim, e desejaria

que o mesmo acontecesse com o senhor.

Aborrece-me muito que esteja ainda triste neste momento,

mas não é minha a culpa. Logo que chegue, pedirei para tocar

harpa, a fim de que receba a minha carta o mais cedo possível.

Não posso fazer mais do que isto.

Adeus. Amo-o muito, de todo o coração. Quanto mais lho

digo, mais me sinto satisfeita. Espero que o esteja também.

24 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Sim, sem dúvida, seremos felizes. A minha felicidade é certa,

porque sou amado por si; a sua não terá fim, se tiver de durar

tanto como o amor que me inspirou. Pois quê! Ama-me, e já

não receia falar-me do seu amor! Quanto mais mo diz, mais se

sente satisfeita! Depois de ler aquele encantador amo-o, escrito

pela sua mão, ouvi a sua linda boca confessar-mo de novo. Vi

fixarem-se em mim esses olhos encantadores que a expressão de

ternura embelezava ainda mais. Recebi a jura de viver sempre

para mim somente. Ah! Receba a minha de consagrar a vida

inteira à sua felicidade; receba-a, e pode estar certa de que não a

trairei nunca.

Que dia feliz passámos ontem! Ah! Por que é que Madame

de Merteuil não tem segredos para dizer todos os dias à sua

Mamã? Por que é necessário que a ideia do constrangimento

que nos espera venha misturar-se à lembrança deliciosa que me

prende? Por que não posso eu ter sempre segura essa linda mão

que me escreveu amo-o? Cobri-la de beijos, vingar-me assim da

recusa de me conceder um favor maior?

Diga-me, minha Cecília: quando a sua Mamã voltou para

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junto de nós; quando fomos obrigados, pela sua presença, a não

dirigirmos um ao outro mais do que olhares indiferentes; quando

não podia já consolar-me, pela certeza do seu amor, da recusa

de me dar provas dele, não sentiu nenhum pesar? Não disse

consigo mesma: "Um beijo tê-lo-ia tornado mais feliz, e fui eu

quem lhe roubou essa felicidade?" Prometa-me, minha adorável

amiga, que na primeira ocasião será menos severa. Como auxílio

dessa promessa, encontrarei coragem para suportar as contrariedades

que as circunstâncias nos preparam; e as privações

cruéis serão ao menos suavizadas pela certeza de que a Cecília

partilha comigo esse segredo.

Adeus, minha encantadora Cecília. Chegou a hora em que

devo dirigir-me a sua casa. Ser-me-ia impossível deixá-la, se não

fosse para a tornar a ver. Adeus, ó ente que tanto amo e a quem

amarei cada vez mais!

25 de Agosto de 17**.

CARTA XXXII

MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL

Desejais pois, senhora, que eu acredite na virtude do senhor

de Valmont? Confesso que não posso resolver-me a isso, e que

farei tanto esforço em supô-lo honesto, em face da única circunstância

de que me destes parte, como em julgar vicioso um

homem de bem reconhecido como tal, de quem tivesse chegado

ao meu conhecimento uma falta. A humanidade não é perfeita

em nenhum género, nem no mal nem no bem. O celerado tem as

suas virtudes, como o homem honesto tem as suas fraquezas.

Esta verdade parece-me tanto mais necessária a ter presente

quanto é dela que depende a necessidade de indulgência para os

maus como para os bons; e é ela que preserva estes do orgulho,

e salva os outros do desânimo. Deveis sem dúvida achar que eu

uso muito mal neste momento daquela indulgência que preconizo;

mas não vejo nela senão uma fraqueza perigosa, se nos obrigar

a tratar de igual modo o vicioso e o homem de bem.

Não me permitirei perscrutar os motivos da acção do senhor

de Valmont; desejo acreditar que tais motivos são tão louváveis

como a própria acção. Mas, por isso, deixou ele de passar

a sua vida a levar a perturbação, a desonra e o escândalo ao

seio das famílias? Escutai, se o entendeis, a voz do infeliz que ele

socorreu; mas que ela não vos prive de ouvirdes os gritos das

cem vítimas que ele imolou. Ainda que ele não fosse, como dizeis,

senão um exemplo do perigo de certas ligações, deixaria

por isso de ser ele próprio uma ligação perigosa? Podeis julgá-lo

susceptível de um resgate feliz? Vamos mais longe: suponhamos

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que esse milagre se cumpriu. Não ficaria ainda contra ele a opinião

pública e não basta ela para regular a vossa conduta? Só

Deus pode absolver no instante do arrependimento; Ele lê nos

corações. Mas os homens não podem julgar os pensamentos senão

através dos actos; e nenhum de entre eles, depois de ter perdido

a estima dos outros homens, tem o direito de se queixar da

desconfiança necessária, que torna essa perda tão difícil de reparar.

Pensai sobretudo, minha jovem amiga, que, para perder

essa estima, basta algumas vezes parecer atribuir-lhe pouco valor;

e não chameis injustiça a essa severidade; pois, além de

haver fundamento para crer que não se renuncia a esse bem precioso

quando se tem o direito de o pretender, quem assim procede

está na verdade mais próximo de praticar o mal quando não

é impedido por esse poderoso freio. Esse seria, entretanto, o

aspecto sob o qual vos deveria aparecer uma ligação íntima com

o senhor de Valmont, por muito inocente que ela pudesse ser.

Amedrontada pelo calor com que o defendeis, apresso-me a

prevenir as objecções que antevejo. Citar-me-eis Madame de

Merteuil, a quem foi perdoada essa ligação; ides perguntar-me

por que motivo o recebo eu em minha casa; dir-me-eis que, longe

de ser repelido pelas pessoas honestas, ele é admitido, procurado

mesmo pelo que se chama a boa sociedade. Posso, segundo

creio, responder a tudo.

Em primeiro lugar Madame de Merteuil, de facto uma pessoa

muito estimável, não tem talvez outro defeito além de depositar

demasiada confiança nas suas forças: é um guia muito hábil

que se compraz em conduzir um carro entre rochedos e precipícios

e que só o êxito justifica. É justo que a louvemos, mas

seria imprudente segui-la. Ela própria está de acordo e disso se

acusa. À medida que os seus olhos se foram abrindo, os seus

princípios tornaram-se mais severos; e não tenho receio de afirmar-vos

que ela deve pensar como eu.

Quanto ao que me diz respeito, não me justificarei mais do

que aos outros. Sem dúvida, recebo o senhor de Valmont, que é

recebido em toda a parte; é uma inconsequência mais a acrescentar

a muitas outras que governam a sociedade. Sabeis tão

bem como eu que passamos a vida a notá-las, a lamentá-las e a

entregarmo-nos a elas. O senhor de Valmont, com um bom

nome, uma grande fortuna, muitas qualidades amáveis, reconheceu

muito cedo que, para dominar na sociedade, basta saber

manejar, com igual destreza, o louvor e o ridículo. Ninguém

como ele possui esse duplo talento: seduz com um e faz-se temer

com o outro. Ninguém o estima; mas todos o lisonjeiam. Tal é a

sua existência no meio de um mundo que, mais prudente que

corajoso, prefere poupá-lo a combatê-lo.

Mas nem a própria Madame de Merteuil, nem nenhuma

outra mulher, ousaria sem dúvida ir encerrar-se no campo, quase

a sós com semelhante homem. Estava reservado á mais ajuizada,

à mais modesta de todas as mulheres, dar o exemplo dessa

50

inconsequência; perdoai-me esta palavra, que escapou à minha

amizade. Minha boa amiga, é a vossa própria honestidade que

está a trair-vos, em virtude da segurança que vos inspira. Pensai

entretanto que tereis por juízes, por um lado, pessoas frívolas

que não acreditarão numa virtude de que não encontram o

modelo à sua volta; e, por outro, pessoas malévolas, que fingirão

não acreditar em tal virtude, para vos castigarem de a possuirdes.

Considerai que estais fazendo, neste momento, o que

alguns homens não ousariam arriscar. De facto, entre as pessoas

jovens, de quem o senhor de Valmont se tornou em excesso o

oráculo, vejo que as mais prudentes receiam parecer ligadas

demasiado intimamente com ele; e vós não tendes qualquer receio!

Ah! Pensai, pensai muito nisto, sou eu que vos peço... Se

as minhas razões não forem suficientes para vos persuadir, cedei

então à minha amizade; é ela que me faz renovar as minhas instâncias,

é a ela que cabe justificá-las. Por certo a achareis severa

eu desejo que ela seja inútil; mas prefiro que tenhais antes de

vos queixardes da vossa solicitude do que da vossa negligência.

24 de Agosto de 17* *

CARTA XXXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Uma vez que receia ser bem sucedido, meu caro Visconde

uma vez que o seu projecto consiste em fornecer armas contra si

próprio, e que deseja menos triunfar do que combater, nada

mais tenho a dizer-lhe. A sua conduta é uma obra-prima de

prudência. Seria uma obra-prima de tolice na suposição contrária;

e para lhe falar com franqueza, receio que o Visconde se

esteja a iludir.

O que eu lhe censuro não é o ter deixado de aproveitar o

momento. Por um lado, não vejo muito claramente que ele se

tivesse apresentado; por outro, sei suficientemente, digam o que

disserem, que uma ocasião perdida se torna a encontrar, ao passo

que não se resgata nunca um passo precipitado.

Mas é de verdadeiro colegial o ter sido levado a escrever.

Desafio-o neste momento a prever onde isso o pode conduzir.

Porventura espera provar a essa mulher que deve entregar-se?

Afigura-se-me que nisso pode haver uma verdade de sentimento,

não de demonstração; e que, para a fazer reconhecer, é preciso

agir pelo enternecimento e não pelo raciocínio; mas de que

lhe servirá enternecer por meio de cartas, visto que o Visconde

não estaria lá para se aproveitar do momento? Mesmo que as

suas belas frases produzam a embriaguez do amor, pode o Visconde

51

ter a pretensão de que essa embriaguez seja bastante durável

para que a reflexão não venha a impedir-lhe a confissão?

Depois, pense em tudo o que é necessário para escrever uma carta,

em tudo o que se passa antes de a remeter; e veja-se, sobretudo

uma mulher de princípios, como a sua devota, pode querer

por tanto tempo o que ela procura não querer nunca. Esse procedimento

pode dar resultado com crianças, que, quando escrevem

"eu amo", não sabem que dizem "eu entrego-me". Mas a

virtude raciocinadora de Madame de Tourvel conhece muito

bem, segundo creio, o valor das palavras. Por isso, apesar da

vantagem que o Visconde tomara sobre ela na conversação que

tiveram, ela venceu-o na carta que lhe escreveu. E depois, sabe o

que acontece? Só pelo motivo de se discutir, não se deseja ceder.

força de procurar boas razões, acaba-se por encontrá-las; dizem-se

essas razões, e depois sente-se apego a elas, não tanto

porque são boas, como para não se desmentir.

Além do mais, uma observação que me admiro que o Visconde

não tenha feito, é que não há nada tão difícil em amor

como escrever o que se não sente. Quero dizer, escrever de maneira

verosímil: não é que as palavras usadas não sejam as

mesmas; mas não são arranjadas do mesmo modo, ou antes,

são arranjadas, e isso basta. Releia a sua carta: reina nela uma

ordem que a cada frase o denuncia. Quero acreditar que a sua

Presidente não tem instrução bastante para disso se aperceber:

mas que importa? Nem por isso o efeito deixa de frustrar-se. É

este o defeito dos romances; o autor esforça-se em vão para elevar

a temperatura, e o leitor fica frio. Heloísa é o único que

pode fazer excepção; e apesar do talento do autor, esta observação

levou-me sempre a crer que o fundo era verdadeiro. Não é o

mesmo quando se fala. O hábito de trabalhar o seu órgão dá-lhe

sensibilidade; a facilidade das lágrimas aumenta o efeito: a expressão

do desejo confunde-se nos olhos com a ternura; enfim,

o discurso menos seguido conduz mais facilmente àquele ar de

perturbação e de desordem que é a verdadeira eloquência do

amor; e principalmente a presença do objecto amado impede a

reflexão e faz-nos desejar sermos vencidos.

Creia-me, Visconde: ser-lhe-á favorável não escreVer mais:

aproveite essa pausa para reparar a sua falta e espere a ocasião

de falar. Sabe que essa mulher tem mais força do que supunha?

A sua defesa é boa; sem a extensão da sua carta e o pretexto que

ela lhe dá para voltar ao assunto na sua frase de reconhecimento,

de nenhum modo se teria traído.

O que me parece ainda que deve convencê-lo do triunfo, é

que ela emprega demasiadas forças ao mesmo tempo; prevejo

que ela acabará por as esgotar pela defesa da palavra e que nenhuma

lhe ficará para a do acto.

Devolvo-lhe as duas cartas, e, se for prudente, serão essas as

últimas até ao feliz momento. Se não fosse tão tarde" falar-lhe-ia

da pequena Volanges, que avança bastante depressa, o que muito

52

me satisfaz. Creio que terminarei a minha tarefa

antes do

Visconde, e deve sentir-se feliz por isso. Adeus por hoje:

24 de Agosto de 17.

CARTA XXXIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Fala maravilhosamente, minha boa amiga: mas para: que se

fatiga tanto a provar aquilo que ninguém ignora? Para avançar

depressa no amor, vale mais falar do que escrever; a isto, creia,

se resume, a sua carta. Pois sim ! Mas são os elementos.mais

simples da arte de seduzir. Observarei somente que a Marquesa

abre apenas uma excepção a este princípio; e que na verdade há

duas. as crianças que seguem esse caminho por timidez e se entregam

por ignorância, devemos acrescentar as mulheres espirituosas,

que se deixam comprometer por amor-próprio, e que se

deixam cair na ratoeira por vaidade. Por exemplo; estou bem

certo de que a Condessa de B..., que respondeu sem dificuldade

à minha primeira carta, não tinha então mais amor por mim do

que eu por ela, e que viu apenas a ocasião de tratar um assunto

que lhe faria honra.

De qualquer modo, um advogado diria à minha boa amiga

que o princípio não se aplica à questão. De facto, a Marquesa

supõe que eu posso escolher entre escrever e falar, o que não é o

caso. Desde a história do dia 19, a minha desumana, que se

mantém na defensiva, tem evitado os encontros com uma habilidade

que desarmou a minha. A coisa chegou a tal ponto que,

se isto continua, ela acabará por me obrigar a ocupar-me seriamente

dos meios de recuperar a vantagem perdida; pois seguramente

não quero ser vencido por ela em qualquer campo. Mesmo

as minhas cartas estão sendo motivo de uma pequena guerra:

não contente de lhes não responder, recusa recebê-las. Para

cada uma é necessário pôr em prática uma nova astúcia, que

nem sempre resulta.

Deve recordar-se do meio simples de que usei para lhe entregar

a primeira; a segunda não ofereceu maior dificuldade. Ela

pedira-me que lhe devolvesse a sua carta: dei-lhe a minha no

lugar daquela, sem que ela tivesse a menor suspeita. Mas, fosse

pelo despeito de ter sido apanhada, fosse por capricho, ou, enfim,

por virtude, pois ela forçar-me-á a crer nessa virtude, recusou-se

teimosamente a receber a terceira. Espero todavia que o

embaraço em que acabará por a lançar a obstinação nessa recusa

lhe servirá de correctivo para o futuro.

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Não me admirei muito por ela não querer receber a carta

que eu lhe oferecia com toda a simplicidade; seria já conceder

qualquer coisa, e eu estou na expectativa de uma defesa mais

prolongada. Após esta tentativa, que não passou de uma experiência

passageira, pus um sobrescrito na minha carta; e, aproveitando

o momento da toilette, quando Madame de Rosemonde

e a criada de quarto estavam presentes, enviei-lha pelo meu

criado, com ordem de lhe dizer que era o papel que ela me tinha

pedido. Eu adivinhara que ela teria receio da explicação escandalosa

a que uma recusa obrigaria: com efeito aceitou a carta; e

o meu embaixador, que tinha ordem de observar o seu rosto, e

que tem boa vista, enxergou apenas uma leve vermelhidão e

mais embaraço do que cólera.

Felicitei-me pois por ela ter guardado a carta, a menos que

quisesse entregar-ma, o que só poderia fazer estando só comigo,

dando-me ocasião de lhe falar. Cerca de uma hora depois, um

dos seus criados entra-me no quarto e entrega-me, da parte da

sua senhora, um embrulho de forma diferente do meu, e em

cujo sobrescrito reconheci a letra tão desejada. Abro-o precipitadamente...

Era a minha própria carta, por abrir, e apenas

dobrada ao meio. Suspeito que só o receio de que eu fosse

menos escrupuloso do que ela sobre o escândalo a levou a empregar

esta astúcia diabólica.

A Marquesa conhece-me; não tenho necessidade de lhe descrever

a minha cólera. Foi-me preciso no entanto recuperar o

sangue-frio e procurar novos meios. Eis o único que encontrei.

Todos os dias alguém vai daqui buscar as cartas ao correio,

que fica a cerca de três quartos de légua; para este fim, servem-se

de uma caixa coberta pouco mais ou menos como um tronco,

de que o chefe do correio tem uma chave e Madame de Rosemonde

outra. Durante o dias as cartas são aí depositadas, a

qualquer hora; à noite levam-nas para o correio, e de manhã

vão buscar as que chegaram. Todos, mesmo os estranhos ao

castelo, fazem esse serviço igualmente. Não era a vez do meu

criado; mas ele encarregou-se de lá ir, com o pretexto de que

tinha afazeres para aquele lado.

Entretanto escrevi a minha carta. Disfarcei a letra para o

endereço, e imitei muito bem, no sobrescrito, o carimbo de Dijon.

Escolhi esta cidade porque achei mais engraçado; visto que

eu me candidatava aos mesmos direitos que o marido, escrever

do lugar onde ele se encontra, e também porque a minha bela

falava durante todo o dia do desejo que tinha de receber cartas

de Dijon. Pareceu-me justo conceder-lhe esse prazer.

Tomadas estas precauções, era fácil fazer que esta carta se

juntasse às outras. Com este expediente tive ainda a vantagem

de ser testemunha da recepção, pois há aqui o uso de nos juntarmos

para almoçar e esperar a chegada das cartas antes de nos

separarmos. Chegaram enfim as cartas.

Madame de Rosemonde abriu a caixa. "De Dijon", disse

54

ela, dando a carta de Madame de Tourvel. "Não é a letra de

meu marido", replicou ela com voz inquieta, rompendo o lacre

com vivacidade. O primeiro olhar deu-lhe a saber de que se tratava;

e houve tamanha alteração no seu rosto, que Madame de

Rosemonde, dando conta disso, perguntou: "Que tem?" Aproximei-me

também, dizendo: "É assim tão terrível essa carta?" A

tímida devota não ousava levantar os olhos, não dizia palavra,

e, para disfarçar o seu embaraço, fingia percorrer a epístola, que

ela não estava em estado de ler. Eu gozava da sua perturbação, e

não fiz cerimónia em a aumentar: "O seu aspecto mais tranquilo",

acrescentei, "faz esperar que essa carta lhe tenha causado

mais surpresa do que mágoa. A cólera então inspirou-a melhor

do que não o havia feito a prudência. "Esta carta contém coisas

que me ofendem", respondeu ela, "e surpreendeu-me que alguém

ousasse escrevê-las. " " Quem foi então ? ", interrompeu

Madame de Rosemonde. "Não está assinada", respondeu a

bela encolerizada, "mas a carta e o seu autor inspiram-me igual

desprezo. Obsequeiam-me não me falando mais nisto". Dizendo

estas palavras, rasgou a audaciosa missiva, meteu os pedaços

no bolso, levantou-se e saiu.

Apesar da sua cólera, não deixou de receber a minha carta;

e eu confio bastante na sua curiosidade, que a obrigará a lê-la

por inteiro.

Os pormenores do dia levar-me-iam muito longe. Junto a

esta narrativa os rascunhos das minhas duas cartas: assim a

Marquesa ficará tão instruída como eu. Se quiser estar ao corrente

da minha correspondÊncia, é preciso acostumar-se a decifrar

as minhas minutas, pois por nada no mundo eu devoraria o

aborrecimento de ter de as copiar. Adeus, minha bela amiga.

25 de Agosto de 17* *.

CARTA XXXV

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

É preciso obedecer-vos, senhora, é preciso provar-vos que,

no meio dos agravos que vos comprazeis em atribuir-me, me

resta ao menos bastante delicadeza para não me permitir uma

censura e bastante coragem para me impor os mais dolorosos

sacrifícios. Ordenais-me o silêncio e o esquecimento! Pois bem!

Forçarei o meu amor a calar-se; e esquecerei, se for possível, a

maneira cruel como o acolhestes. Sem dúvida o desejo de vos

agradar não dava tal direito, e confesso ainda que a necessidade

que tenho da vossa indulgência não era um título para a obter.

55

Mas achais que o meu amor é um ultraje; esqueceis que se ele

pudesse ser um agravo, seríeis ao mesmo tempo a causa e a justificação.

Esqueceis também que, acostumado a abrir-vos a

minha alma, mesmo quando essa confiança podia ser-me desvantajosa,

já me não era possível esconder-vos os sentimentos

de que estou penetrado; e o que foi a obra da minha boa fé, é

por vós avaliado como o fruto da audácia. Como preço por

amor mais terno, mais respeitoso, mais verdadeiro, expulsais-me

para longe de vós. E, por fim, falais-me do vosso ódio...

Que outro se não queixaria de ser tratado assim? Eu, contudo,

submeto-me: sofro tudo e não me lamento de nada; feris-me e

eu adoro-vos. O inconcebível domínio que tendes sobre mim

torna-vos senhora absoluta dos meus sentimentos; e se só o meu

amor vos resiste, se não o podeis destruir, é porque ele é a vossa

obra e não a minha.

Não peço um regresso a um tratamento de que nunca pude

gozar. Não espero mesmo aquela piedade que o interesse que

algumas vezes me testemunhastes podia fazer-me esperar. Mas

creio, confesso-o, poder reclamar a vossa justiça.

Fizestes-me compreender, senhora, que alguém procurou

diminuir-me no vosso espírito. Se tivésseis seguido o conselho

dos vossos amigos, não teríeis deixado sequer que me aproximasse:

são os vossos próprios termos. Quais são pois esses amigos

oficiosos? Sem dúvida pessoas tão severas, e duma virtude

tão rígida, consentem em ser nomeadas; sem dúvida não quererão

cobrir-se de uma obscuridade que as confundiria com vis

caluniadores; e não ignorarei nem os seus nomes, nem as suas

censuras. Pensai, senhora, que tenho o direito de conhecer uns e

outros, pois que me julgareis segundo eles. Não se condena um

criminoso sem se lhe dizer qual o seu crime, sem lhe nomear os

seus acusadores. Não peço outra graça, e comprometo-me de

antemão a justificar-me, a forçá-los a desdizerem-se.

Se desprezei demasiado, talvez, os vãos clamores de um público

que tive em pequena conta, não acontece assim com a vossa

estima: e quando consagro a minha vida a merecê-la, não

deixarei impunemente que ma roubem. Ela tornar-se-me-á tanto

mais preciosa, quanto lhe deverei sem dúvida esta pergunta

que temeis fazer-me, e que me daria, como dizeis, direitos ao

vosso reconhecimento. Ah! Longe de o exigir, julgarei ficar-vos

em dívida, se me concederdes a ocasião de vos ser agradável.

Começai pois por me fazer mais justiça, não me deixando ignorar

o que desejais de mim. Se eu pudesse adivinhá-lo, evitar-vos-ia

a pena de o dizer. Ao prazer de vos ver, acrescentai felicidade

de vos servir, e louvar-me-ei da vossa indulgência. Que

pode deter-vos? Não é, espero-o, o receio de uma recusa. Sinto

que não poderia perdoar-vos tal receio. Desejo, mais do que

vós, senhora, que ela deixe de me ser necessária: mas acostumado

a julgar-vos uma alma tão doce, é nessa carta que eu posso

encontrar-vos tal como quereis parecer. Quando formulo o

56

voto de vos tornar sensível, vejo nessa carta que, em vez de consentirdes

em tal, mais depressa fugiríeis para cem léguas de distância

de mim; quando tudo aumenta e justifica o meu amor, é

ainda ela que me repete que o meu amor é recebido como um

ultraje; e quando, ao ver-vos, esse amor me parece o bem supremo,

tenho necessidade de ler essa carta, para sentir que ele é

apenas um horrível tormento. Concebei agora que a minha

maior felicidade estaria em poder entregar-vos essa carta fatal;

pedir-ma ainda seria autorizar-me a não acreditar no que ela

contém; não duvidareis, espero, da minha prontidão em devolvê-la.

21 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXVI

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

(carimbo de Dijon)

A vossa severidade aumenta dia a dia, senhora; e se me é

permitido dizê-lo, parece-me que receais menos ser injusta do

que ser indulgente. Depois de me haverdes condenado sem me

ouvir, deveis ter sentido, de facto, que vos seria mais fácil não

ler as minhas razões que responder-lhes. Recusais as minhas

cartas com obstinação; devolveis-mas com desprezo. Obrigais-me

por fim a recorrer à astúcia, no próprio momento em que o

meu único fim é convencer-vos da minha boa fé. A necessidade

em que me pusestes de me defender bastará sem dúvida para

desculpar os meios que uso para tal fim. Convencido, aliás, pela

sinceridade dos meus sentimentos, que para os justificar a vossos

olhos me basta dá-los bem a conhecer, julguei poder permitir-me

este ligeiro desvio. Ouso crer também que mo perdoareis;

e que pouco vos deverá surpreender que o amor seja mais engenhoso

a produzir-se do que a indiferença a afastá-lo.

Permiti, pois, senhora, que o meu coração se vos descubra

inteiramente. Pertence-vos, é justo que o conheçais.

Ao chegar a casa de Madame de Rosemonde, eu estava muito

longe de prever a sorte que aí me esperava. Ignorava que estivésseis

aqui; e acrescentarei, com a sinceridade que me caracteriza,

que, ainda que o soubesse, a minha tranquilidade não se

perturbaria. Não que a vossa beleza não me merecesse a justiça

que é impossível recusar-lhe; mas, acostumado a sentir apenas

desejos, e a entregar-me apenas àqueles que eram animados pela

57

esperança, eu não conhecia os tormentos do amor.

Fostes testemunha das instâncias de Madame de Rosemonde

para que eu me demorasse algum tempo. Tinha já passado

um dia a vosso lado; entretanto não me rendi, ou pelo menos

julguei render-me apenas ao prazer, tão natural e tão legítimo,

de dedicar algumas atenções a uma parenta respeitável. O género

de vida que se levava aqui era sem dúvida muito diferente

daquele a que estava acostumado. Nada me custou conformar-me

a ele; e, sem procurar penetrar a causa da mudança que se

operava em mim, atribuí-a ainda unicamente àquela felicidade

de carácter de que julgo ter-vos falado.

Infelizmente (e por que é necessário que isto seja uma infelicidade?

), conhecendo-vos melhor, depressa reconheci que essa

figura encantadora, que simplesmente me havia impressionado,

era o menor dos vossos dotes; a vossa alma celestial surpreendeu,

seduziu a minha. Admirava a beleza; fiquei adorando a virtude.

Sem pretender obter-vos, preocupava-me em vos merecer.

Reclamando a vossa indulgência para o passado, ambicionava a

vossa aprovação para o futuro. Procurava-a nas vossas palavras,

espiava-a nos vossos olhares; nesses olhares donde partia

um veneno tanto mais perigoso quanto era derramado sem intenção

e recebido sem desconfiança.

Então conheci o amor. Mas como eu estava longe de me

lamentar! Decidido a sepultá-lo num eterno silêncio, entregava-me

sem receio e sem reserva a esse sentimento delicioso.

Cada dia aumentava o seu império. Depressa o prazer de vos

ver se transformou em necessidade. Se vos ausentáveis por um

momento, o meu coração sentia-se apertado de tristeza; e palpitava

de alegria, ao ruído que me anunciava o vosso regresso. Eu

já não existia senão por vós, e para vós. Entretanto, é a vós

mesmo que suplico uma resposta: porventura na alegria dos

jogos despreocupados, ou no interesse duma conversação séria,

me escapou uma palavra que pudesse trair o segredo do meu

coração?

Chegou enfim um dia em que devia começar o meu infortúnio;

e por uma inconcebível fatalidade, uma acção honesta devia

marcar esse começo. Sim, foi no meio dos infelizes que eu

tinha socorrido, que vós, senhora, entregando-vos a essa sensibilidade

preciosa que embeleza a própria beleza e aumenta o

preço da virtude, acabastes de desvairar um coração inebriado

já por excesso de amor. Lembrais-vos, talvez, da preocupação

que se apoderou de mim no regresso! Ai de mim! Procurava

combater uma inclinação que eu sentia tornar-se mais forte do

que eu.

Foi depois de ter esgotado as minhas forças nesse combate

desigual, que um acaso, que eu não pudera prever, me fez encontrar

a sós convosco. Sucumbi nesse momento, confesso-o. O

meu coração demasiado cheio não pôde reter as suas palavras e

as suas lágrimas. Mas é isso um crime? E se o é, não sofreu já

58

castigo bastante pelos tormentos horrorosos a que estou entregue?

Devorado por um amor sem esperança, imploro a vossa

piedade e encontro apenas o vosso ódio. Sem outra felicidade

além de ver-vos, os meus olhos procuram-vos para além da

minha vontade, e tremo de encontrar os vossos olhares. No estado

cruel a que me reduzistes, passo os dias a disfarçar as minhas

penas e as noites a entregar-me a elas; enquanto que vós,

tranquila e calma, não conheceis esses tormentos senão para os

causardes e aplaudir-vos deles. Entretanto, sois vós que vos

lamentais, e sou eu quem pede perdão.

Aqui está, todavia, senhora, a narração fiel do que chamais

os meus agravos, e que talvez fosse mais justo chamar os meus

infortúnios. Um amor puro e sincero, um respeito que jamais se

desmentiu, uma submissão perfeita: tais são os sentimentos que

me inspirastes. Não recearia apresentar semelhante homenagem

à própria divindade. Ó vós, que sois a sua mais bela obra, imitai-a

na sua indulgência! Pensai nas minhas penas cruéis; pensai

sobretudo que, colocado por vós entre o desespero e a felicidade

suprema, a primeira palavra que pronunciardes decidirá para

sempre da minha sorte.

23 de Agosto de 17**.

CARTA XXXVII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Submeto-me, senhora, aos conselhos que a vossa amizade

me dá. Acostumada a tudo confiar nas vossas opiniões, creio

firmemente que elas se fundam sempre na razão. Confessarei

mesmo que o senhor de Valmont deve ser, na verdade, infinitamente

perigoso, se pode ao mesmo tempo fingir ser aquilo que

parece aqui, e ficar tal como o descreveis. De qualquer modo

visto que o exigis, afastá-lo-ei de mim; pelo menos farei para

isso o que estiver ao meu alcance: pois, muitas vezes, as coisas

que no fundo deveriam ser as mais simples tornam-se embaraçosas

na prática.

Continua a parecer-me impraticável fazer esse pedido a sua

tia; seria igualmente descortês, para ela e para ele. Também não

tomarei sem alguma repugnância o partido de me afastar eu

própria: pois além das razões que vos comuniquei, relativas ao

senhor de Tourvel, se a minha partida viesse a contrariar o senhor

de Valmont, como é possível, não teria ele facilidade de me

seguir a Paris? E o seu regresso, do qual eu seria, ou de que ao

menos pareceria ser o objecto, não se afiguraria mais estranho

do que um encontro no campo, em casa de uma pessoa que se

sabe ser sua parenta e minha amiga?

59

Não me resta pois outro recurso senão obter dele próprio

que se afaste. Sinto que esta proposta é difícil de fazer; entretanto,

como me parece que ele toma a peito provar-me que é na

verdade mais honesto do que o supõem, não desespero de o vir

a conseguir. Não sentirei mesmo qualquer embaraço em tentá-lo;

e isso me dará ocasião de ajuizar se, como ele diz muitas

vezes, as mulheres honestas nunca tiveram e não terão nunca

motivo de queixa do seu procedimento. Se ele se afastar como

eu desejo, será de facto por respeito à minha pessoa: pois não

posso duvidar de que ele tivesse o projecto de passar aqui uma

grande parte do Outono. Se ele recusar aceder ao meu pedido e

se se obstinar em ficar, estarei a tempo de me afastar eu própria,

e prometo-vos que o farei.

Segundo creio, senhora, é tudo o que a vossa amizade exigia

de mim: apresso-me a dar-lhe satisfação, e a provar-vos que,

apesar do calor que porventura pus na defesa do senhor de

Valmont, nem por isso estou menos disposta, não somente a

escutar, mas até a seguir os conselhos dos meus amigos.

Tenho a honra de ser, etc.

25 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXVIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

O seu enorme pacote chega-me neste instante às mãos, meu

caro Visconde. Se a data está exacta, deveria tê-lo recebido vinte

e quatro horas mais cedo; de qualquer modo, se tivesse tempo

de o ler, não teria já o de lhe responder. Prefiro pois acusar-lhe

somente a recepção, e conversaremos sobre outro assunto. Não

é que eu tenha alguma coisa a dizer-lhe a meu respeito; o Outono

não deixa em Paris quase nenhum homem que tenha figura

humana. Por isso, há um mês que me mantenho numa moderação

desesperadora; e qualquer outro que não fosse o meu Cavaleiro

estaria fatigado das provas da minha constância. Não tendo

qualquer ocupação, distraio-me com a pequena Volanges; e

é dela que lhe quero falar.

Sabe, Visconde, que perdeu mais do que supõe não querendo

encarregar-se dessa criança? É verdadeiramente deliciosa!

Não tem nem carácter nem princípios; imagine como a sua convivência

será doce e fácil. Não creio que ela venha a brilhar pelo

sentimento; mas tudo anuncia nela as sensações mais vivas. Sem

espírito e sem finura, ela tem todavia certa falsidade natural, se

se pode dizer assim, que algumas vezes a mim própria me espanta

e de que ela virá a aproveitar tanto mais quanto o seu rosto

60

oferece a imagem da candura e da ingenuidade. Ela é naturalmente

muito meiga, e isso diverte-me algumas vezes. Aquela

cabecita perturba-se com uma facilidade incrível; e é nesses

momentos tanto mais graciosa quanto é certo que nada sabe,

absolutamente nada, daquilo que tanto deseja saber. Tem às

vezes impaciências muito engraçadas; ri, atordoa-se, chora, e

depois pede-me que a ensine, com uma boa fé realmente sedutora.

Na verdade, quase me sinto ciumenta daquele a quem esse

prazer está reservado.

Não sei se lhe mandei dizer que há quatro ou cinco dias tenho

a honra de ser a sua confidente. Imagina decerto que ao

princípio afectei severidade; mas logo percebi que ela julgava

ter-me convencido com as suas más razões, comecei a fingir que

as aceitava por boas; e ela está intimamente presuadida de que

deve o êxito à sua eloquência: esta precaução era necessária

para não me comprometer. Permiti-lhe que escrevesse e que dissesse

eu amo ; e nesse mesmo dia, sem que ela o suspeitasse,

proporcionei-lhe um encontro a sós com o seu Danceny. Mas

imagine que ele é tão tolo que ainda não conseguiu nem ao

menos um beijo. No entanto esse rapaz faz versos bem bonitos!

Meu Deus! Como são estúpidas as pessoas de talento! Esse é-o a

tal ponto que me embaraça; pois, enfim, a ele não posso eu

conduzi-lo !

É neste momento que o Visconde me seria muito útil. Está

ligado com Danceny o bastante para obter as suas confidências,

e se ele lhas fizesse uma vez que fosse, iríamos a galope. Apresse-se

por conseguinte com a sua Presidente, pois, enfim, não

quero que Gercourt se salve: aliás, falei ontem dele à rapariguinha,

e descrevi-o tão bem, que, ainda que ela fosse sua mulher

há dez anos, não o odiaria mais do que o ficou odiando. No

entanto, preguei-lhe muito acerca da fidelidade conjugal; nada

iguala a minha severidade sobre este ponto. Por esse meio, restabeleço

junto dela, por um lado, a minha reputação de virtude,

que demasiada condescendência poderia destruir; por outro,

aumento nela o ódio com que pretendo gratificar o marido. E,

enfim, espero que, fazendo-lhe crer que não lhe é permitido entregar-se

ao amor senão durante o pouco tempo que lhe resta de

solteira, ela se decidirá mais depressa a não perder nada.

Adeus, Visconde; vou para o meu quarto de vestir onde lerei

o seu volume.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXIX

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

61

Estou triste e inquieta, minha querida Sofia. Chorei quase

toda a noite. Não é que neste momento eu não seja muito feliz;

mas prevejo que isso não durará.

Estive ontem na Ópera com Madame de Merteuil; falámos

lá do meu casamento, e o que soube a esse respeito não foi bom.

É com o senhor Conde de Gercourt que eu devo casar, e deve ser

no mês de Outubro. É rico, é homem de qualidade, é coronel

do regimento de... Até aí tudo vai muito bem. Mas, primeiro, é

velho: imagina que tem pelo menos trinta e seis anos! E depois,

Madame de Merteuil diz que é triste e severo, e receia que eu

não seja feliz com ele. Vi mesmo que ela está certa disso e que

não queria dizer-mo para não me afligir. Durante toda a noite

quase não falou de outra coisa senão dos deveres das mulheres

para com seus maridos: concorda que o senhor de Gercourt não

é nada amável e no entanto diz que é preciso que eu o ame. Pois

não me disse também que, uma vez casada, eu devia deixar de

amar o Cavaleiro Danceny? Como se isso fosse possível! Oh,

podes ter a certeza de que o amarei sempre. Bem vês, gostava

mais de não me casar. Esse senhor de Gercourt que se arranje,

eu não o fui procurar. Ele está agora na Córsega, muito longe

daqui; desejaria que lá ficasse dez anos. Se eu não tivesse medo

de voltar para o convento, diria à Mamã que não quero aquele

marido; mas seria pior ainda. Estou muito aborrecida. Sinto

que nunca amei tanto o senhor Danceny como agora; e quando

penso que não me resta mais do que um mês para ser como sou,

vêem-me as lágrimas aos olhos imediatamente. Não encontro

consolação a não ser na amizade de Madame de Merteuil. Tem

tão bom coração! Partilha as minhas tristezas como eu própria.

E é tão amável que, quando estou com ela, quase nem penso em

tais tristezas. Além disso é-me muito útil: pois o pouco que sei,

foi ela quem mo ensinou. E é tão boa, que eu digo-lhe tudo

quanto penso, sem me sentir nada envergonhada. Quando acha

que não está bem, ralha-me algumas vezes; mas é muito brandamente,

e depois eu abraço-a de todo o coração, até ver que ela

não está zangada. Ao menos essa, posso-a amar quanto me apetece,

sem que nisso haja mal algum, o que me dá muito prazer.

Entretanto combinámos que eu não daria a perceber diante das

outras pessoas que gosto dela como gosto, principalmente diante

da Mamã, para que não desconfie nada a respeito do Cavaleiro

Danceny. Posso garantir-te que se eu pudesse viver sempre

como vivo agora, creio que seria muito feliz. A minha única

pena é aquele feio senhor de Gercourt!... Mas não quero falar-te

mais dele, pois acabaria por ficar triste. Em vez disso, vou

escrever ao Cavaleiro Danceny; só lhe falarei do meu amor e

não das minhas tristezas, pois não quero que se aflija.

Adeus, minha boa amiga. Bem vês que não tens razão de te

queixar, e que o meu prazer é estar ocupada, como tu dizes, pois

nem por isso me falta o tempo para ser tua amiga e te escrever.

62

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É pouco para a minha desumana não responder às minhas

cartas e recusar-se a recebê-las; quer-me privar de a ver e exige

que eu me afaste. O que surpreenderá mais ainda a minha boa

amiga, é que eu me submeta a tamanho rigor. Bem sei que vai

censurar-me. Entretanto, julguei não dever perder a ocasião de

deixar que me dessem uma ordem: persuadido, por um lado, de

que quem manda se compromete; e, por outro, de que a autoridade

ilusória que nós simulamos deixar tomarem as mulheres é

uma das ciladas que elas evitam mais dificilmente. Além disto, a

habilidade que esta soube pôr em evitar encontrar-se comigo a

sós colocava-me numa situação perigosa, da qual julguei dever

sair custasse o que custasse: pois estando continuamente junto

dela, sem poder ocupá-la do meu amor, havia lugar para o receio

de que ela viesse a acostumar-se de me ver, por fim, sem se

perturbar; e é esta uma disposição da qual a Marquesa sabe

bem como é difícil sair.

Adivinha, aliás, que eu não me submeti sem condições. Tive

mesmo o cuidado de pôr uma impossível de conceder; tanto

para ficar sempre senhor de manter a minha palavra, ou de faltar

a ela, como para poder iniciar uma discussão, ou verbal ou

por escrito, num momento em que a minha bela está satisfeita

comigo, ou tem necessidade de que eu o esteja dela: sem contar

que eu seria bem desastrado se não encontrasse meio de me

compensar da minha desistência a esta pretensão, por insustentável

que ela seja.

Depois de lhe ter exposto as minhas razões neste longo

preâmbulo, começo a história destes dois últimos dias. Juntarei

como peças justificativas a carta da minha bela e a minha resposta.

A Marquesa há-de convir que poucos historiadores haverá

tão exactos como eu.

Recorda-se do efeito que fez anteontem de manhã a minha

carta de Dijon; o resto do dia foi muito tempestuoso. A linda

hipócrita chegou só à hora de jantar e anunciou uma forte enxaqueca;

pretexto com que quis encobrir um dos violentos acessos

de mau humor que uma mulher pode ter. O seu rosto estava

verdadeiramente alterado; a expressão de doçura que lhe conheço

transformara-se num ar de rebeldia que lhe dava uma

nova beleza. Prometo a mim próprio fazer uso mais tarde desta

63

descoberta: substituir algumas vezes a amante terna pela amante

rebelde.

Previ que o resto da tarde seria triste; e para me poupar o

aborrecimento, pretextei cartas a escrever e retirei-me para o

meu quarto. Voltei ao salão pelas seis horas; Madame de Rosemonde

propôs que passeássemos, o que foi aceite. Mas no

momento de subir para a carruagem, a pretendida doente, por

malícia infernal, pretextou por sua vez, e talvez para se vingar

da minha ausência, um redobramento de dores, e obrigou-me a

suportar sem piedade a companhia da minha velha parenta.

Não sei se as imprecações que dirigi contra esse demónio feminino

foram exalçadas, mas encontrámo-la deitada no regresso.

No dia seguinte ao almoço, não era a mesma mulher. Voltara

a doçura natural, e tive razão para me julgar perdoado. Acabáramos

apenas de almoçar, quando a doce criatura se levantou

com ar dolente e se dirigiu ao parque; segui-a, como pode crer.

"Donde pode nascer esse desejo de passear?", perguntei-lhe ao

abordá-la. "Escrevi muito esta manhã", respondeu-me ela, "e

tenho a cabeça um pouco cansada". "Não serei eu bastante feliz",

tornei, "para ter de me censurar desse cansaço?". "Escrevi-vos",

respondeu ela ainda, "mas hesito em dar-vos a minha

carta. Essa carta contém um pedido, e não me acostumastes a

esperar resposta favorável". "Ah! Juro que se me for possível...

" "Nada há mais fácil", interrompeu ela, "e embora pudésseis

talvez conceder-mo como justiça, consinto em obtê-lo

como graça". Dizendo estas palavras, apresentou-me a sua carta;

ao recebê-la, tomei-lhe também a mão, que ela retirou, mas

sem cólera, e com mais embaraço do que vivacidade. "Está mais

calor do que eu supunha", disse ela; "tenho de voltar para casa.

E retomou o caminho do castelo. Foram vãos os meus esforços

para persuadi-la a continuar o seu passeio, e foi-me preciso

recordar-me de que podíamos ser vistos, para que nesse

sentido empregasse apenas a minha eloquência. Ela voltou sem

proferir uma palavra e vi claramente que esse fingido passeio

não tivera outro fim além do de me entregar a carta. Ao regressar,

ela subiu para o seu quarto e eu retirei-me para o meu, a fim

de ler a epístola, que a Marquesa fará bem em ler também, assim

como a minha resposta, antes de ir mais longe...

CARTA XLI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

A vossa conduta para comigo, senhor, faz crer que procuráveis

apenas aumentar, dia a dia, as razões de queixa que eu tinha

64

contra vós. Essa obstinação em querer continuar a falar-me,

incessantemente, de um sentimento que eu não quero nem

devo escutar; o abuso que não temestes fazer da minha boa fé,

ou da minha timidez, para me enviardes as vossas cartas; o

meio, sobretudo, ouso dizer pouco delicado, de que vos servistes

de uma surpresa que podia comprometer-me; tudo deveria

dar lugar da minha parte a censuras tão vivas como justamente

merecidas. Entretanto, em vez de voltar a falar desses agravos,

limito-me a fazer-vos um pedido simples como justo; e se o obtiver

de vós, consinto em que tudo seja esquecido.

Vós mesmo me dissestes, senhor, que eu não devia recear

uma recusa; e ainda que, por uma inconsequência que vos é

peculiar, essa mesma frase fosse seguida da única recusa que

podíeis fazer-me, desejo crer que por isso não deixareis de

manter essa palavra formalmente dada há poucos dias.

Desejo pois que tenhais a bondade de vos afastardes de

mim; de deixar este castelo, onde uma permanência mais longa

por vossa parte não poderia deixar de me expor ainda mais ao

julgamento de um público sempre pronto a pensar mal dos outros,

e que vós não tendes senão acostumado demais a fixar os

olhos sobre as mulheres que vos admitem na sua sociedade.

Informada já, há muito tempo, desse perigo pelos meus

amigos, negligenciei, combati mesmo a opinião deles enquanto

a vossa conduta a meu respeito me levou a crer que não nìe

tínheis querido confundir com a multidão de mulheres que,

todas elas, têm motivo de queixa de vós. Hoje que me tratais

como a elas, e que eu não posso ignorá-lo, devo ao público, aos

meus amigos, a mim própria, a necessidade de seguir esta resolução.

Poderia acrescentar aqui que nada ganharíeis se recusásseis

aceder ao meu pedido, pois estou decidida a partir eu própria,

se vos obstinardes em ficar: mas não procuro diminuir o

obséquio que vos ficarei devendo por essa bondade, e é meu

desejo que saibais que, tornando necessária a minha partida,

contrariaríeis as minhas combinações. Provai-me pois, senhor,

que, como me dissestes tantas vezes, as mulheres honestas não

terão nunca de queixar-se de vós; provai-me, pelo menos, que

quando lhes dais motivos de agravo, sabeis repará-los.

Se eu julgasse ter necessidade de justificar o meu pedido a

vossos olhos, bastar-me-ia dizer-vos que tendes passado a vossa

vida a torná-lo necessário, e que, todavia, não foi nunca minha

intenção vir a formulá-lo. Mas não recordemos acontecimentos

que quero esquecer, e que me obrigariam a julgar-vos com rigor,

num momento em que vos ofereço a ocasião de merecerdes

todo o meu reconhecimento. Adeus, senhor; a vossa conduta

me dirá quais os sentimentos com que devo ser, toda a minha

vida, a vossa humilde, etc.

25 de Agosto de 17 * *

65

1 Ver Carta XXXV

85

CARTa XLII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Por muito duras que sejam, senhora, as condições que me

impusestes, não recuso cumpri-las. Sinto que me seria impossível

contrariar qualquer dos vossos desejos. Uma vez de acordo

sobre este ponto, ouso supor que me permitireis, por meu lado,

que vos faça alguns pedidos, bem mais fáceis de conceder que os

vossos, e que todavia não desejo obter senão pela minha perfeita

submissão à vossa vontade.

Um, que espero será feito pela vossa justiça, é o de me nomeardes

os meus acusadores junto de vós; fizeram-me, ao que

julgo, bastante mal para que eu tenha o direito de os conhecer.

O outro, que espero da vossa indulgência, é o de permitirdes

que renove algumas vezes a homenagem de um amor que mais

do que nunca vai merecer a vossa piedade.

Pensai, senhora, que me apresso á obedecer-vos, ainda

mesmo quando não posso fazê-lo senão à custa da minha felicidade;

direi mais, apesar de estar persuadido de que não desejais

a minha partida senão para vos furtardes ao espectáculo, sempre

penoso, do objecto da vossa injustiça.

Deveis convir, senhora: é menor o vosso temor de um público

demasiado acostumado a respeitar-vos para ousar formular

sobre vós um juízo desfavorável, do que o vosso aborrecimento

pela presença de um homem que vos é mais fácil punir que censurar.

Afastais-me de vós como quem desvia os seus olhares de

um desgraçado que não se quer socorrer.

Mas, enquanto que a ausência vai redobrar os meus tormentos,

a que outra pessoa além de vós posso eu dirigir as minhas

queixas? De quem poderei esperar consolações que me vão

ser tão necessárias? Recusar-mas-eis, quando sois a causa única

das minhas penas?

Não vos admirareis, sem dúvida, que antes de partir eu me

tenha imposto justificar-me junto de vós dos sentimentos que

me inspirastes; como também que eu não encontre a coragem

para me afastar senão recebendo a ordem da vossa boca.

Esta dupla razão faz que vos peça um encontro de um

momento. Inutilmente quereríamos substituí-lo por cartas: escrevem-se

volumes e ficam mal explicadas as coisas que um

quarto de hora de conversação basta para esclarecer. Encontrareis

66

facilmente o tempo de mo concederdes: pois por muito

empenho que eu tenha em obedecer-vos, sabeis que Madame de

Rosemonde é conhecedora do meu projecto de passar junto dela

uma parte do Outono, e será pelo menos necessário que eu espere

uma carta para poder pretextar um assunto que me força a

partir.

Adeus, senhora; jamais esta palavra me custou a escrever

como neste momento, que me traz à ideia a nossa separação. Se

pudésseis imaginar o que tal palavra me faz sofrer, ouso crer

que vos sentiríeis um pouco grata pela minha docilidade. Recebei,

ao menos, com mais indulgência a certeza e a homenagem

do amor mais terno e mais respeitoso.

26 de Agosto de 17 * *

CONTINUAÇÃO DA CARTA XL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Raciocinemos agora, minha bela amiga. Sentis como eu que

ao primeiro dos meus pedidos, e trair a confiança das suas amigas,

nomeando os meus acusadores; assim, prometendo tudo

sob esta condição, não chego a comprometer-me. Mas, como a

minha amiga compreenderá também, essa recusa tornar-se-á

um título para obter tudo o que resta; e nesse caso, afastando-me,

fica-me a vantagem de iniciar com ela, e com o seu consentimento,

uma correspondência em regra: pois a entrevista que

lhe peço pouco conta, e quase não tem outro objectivo que o de

a acostumar de antemão a não recusar outras, quando me forem

verdadeiramente necessárias.

A única coisa que me resta fazer antes da minha partida é

saber quais são as pessoas que se ocupam em me prejudicar junto

dela. Presumo que seja o pedante do marido; gostaria que

assim fosse: além de uma ofensa conjugal ser um aguilhão ao

, desejo, eu estaria certo que, desde o momento em que a minha

bela consentisse em escrever-me, nada mais teria a temer do

marido, visto ela encontrar-se já na necessidade de o enganar.

Mas, se ela tem uma amiga com a intimidade bastante para

lhe fazer as suas confidências, e se essa amiga é contra mim,

parece-me necessário fazer com que se zanguem, e conto ser

bem sucedido na tentativa. Mas antes de tudo preciso ser informado.

Cheguei ontem a pensar que o ia ser; mas essa mulher não

faz nada como qualquer outra. Encontrávamo-nos nos seus

aposentos, quando vieram dizer-nos que o jantar estava servido.

67

Ela acabava de se arranjar, e ao mesmo tempo que se apressava

e nos pedia desculpa, notei que deixava ficar a chave na secretária;

e eu sei que ela não costuma tirar a do quarto. Pensava nisso

enquanto jantávamos, quando ouvi descer a criada: tomei imediatamente

o meu partido; fingi que sangrava do nariz e saí.

Dirigi-me em seguida à secretária, mas encontrei todas as gavetas

abertas, e nem um papel escrito. Contudo, não há ocasião

para os queimar nesta estação. Que faz ela das cartas que recebe?

E o certo é que recebe muitas. Não tive o mínimo descuido

tudo estava aberto, e procurei por toda a parte: mas nada ganhei

com isso, salvo o convencer-me de que esse depósito precioso

está nos seus bolsos.

Como conseguir tirar-lhe as cartas? Desde ontem que me

ocupo inutilmente a encontrar um meio: entretanto não posso

vencer o desejo de o fazer. Lamento não possuir o talento dos

larápios. Não é certo que tal talento devia entrar na educação

de um homem que não desdenha as intrigas? Não seria agradável

furtar a carta ou o retrato dum rival, ou tirar dos bolsos de

uma hipócrita o que bastasse para a desmascarar? Mas os nossos

pais não pensam em nada; e eu, por muito que pense em

tudo, não posso deixar de me convencer de que sou um desajeitado

sem remédio.

De qualquer forma, acabei por voltar à mesa, muito descontente.

A minha bela acalmou, contudo, um pouco o meu mau

humor com o interesse que tomou pela minha fingida indisposição,

e eu não deixei de lhe afirmar que, já há algum tempo, sentia

perturbações violentas que alteravam a minha saúde. Persuadida

como está de ser ela a causa dessas perturbações, não é

verdade que devia, de acordo com a sua consciência, fazer por

acalmá-las? Mas, com toda a sua devoção, é pouco caridosa:

recusa toda a esmola de amor, e essa recusa chega bem, ao que

parece, para autorizar que lha roubem. Mas adeus; pois embora

conversando com a minha amiga, não penso senão nessas malditas

cartas.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XLIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Por que procurais, senhor, diminuir o meu reconhecimento?

Por que desejais obedecer-me pela metade e de algum modo

regateais um procedimento honesto? Não somente pedis muito,

como pedis coisas impossíveis. É certo que amigos meus me falaram

de vós e se o fizeram foi apenas por interesse por mim; e

68

ainda que se tivessem enganado, nem por isso deixariam de o

fazer com boa intenção. E, segundo a vossa proposta, eu reconheceria

essa prova de dedicação da sua parte, denunciando-vos

o seu segredo! Eu não devia ter-vos falado em tal, fazeis-me sentir

neste momento! O que com qualquer outra pessoa seria uma

ingenuidade, torna-se perante vós leviandade, que me levaria a

cometer uma feia acção se acedesse ao vosso pedido. Apelo para

vós mesmo, para a vossa honestidade: julgais-me capaz de semelhante

procedimento? Achais em verdade que me deveríeis

ter feito tal proposta? Não, sem dúvida; e estou certa de que, se

reflectirdes melhor, não voltareis a fazer esse pedido.

O outro pedido que me fazeis (o de escrever) não é mais fácil

de conceder; e se quiserdes ser justo, não é de mim que podereis

queixar-vos. Não desejo ofender-vos; mas com a reputação

que adquiristes, e que, segundo a vossa própria confissão, merecereis

pelo menos em parte, que mulher poderia confessar que

mantinha correspondência convosco? E que mulher honesta

pode determinar-se a fazer aquilo que seria obrigada a esconder?

Ainda se as vossas cartas fossem de tal modo que nunca eu

tivesse de lamentar-me delas, que pudesse sempre justificar-me

a meus olhos de as ter recebido! Talvez então o desejo de vos

provar que é a razão e não o ódio que me guia os passos me levasse

a esquecer esses poderosos motivos, e a fazer mais do que

devia permitindo-vos que me escrevêsseis algumas vezes. Se na

verdade o desejais tanto como o dizeis, de bom grado vos sujeitareis

à única condição que me poderia levar a consentir-vos tal;

e se sentis algum reconhecimento pelo que neste momento faço

por vós, não adiareis mais a vossa partida.

Permiti-me que a este respeito vos observe que recebestes

esta manhã uma carta e que não a aproveitastes para anunciar a

vossa partida a Madame de Rosemonde, como me havíeis prometido.

Espero que presentemente nada poderá impedir-vos de

cumprir a vossa palavra. Conto principalmente que não esperareis,

para isso, o encontro que me pedis, ao qual não quero absolutamente

prestar-me; e que, em vez da ordem que pretendeis

ser-vos necessária, vos contentareis com a súplica que vos renovo.

Adeus, senhor.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XLIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Podeis partilhar a minha alegria, minha boa amiga: sou

69

amado: triunfei daquele coração rebelde. É em vão que ele dissimula

ainda; a minha bem sucedida astúcia surpreendeu o seu

segredo. Graças à actividade que empreguei, sei tudo o que me

interessa: desde a noite, a feliz noite de ontem, encontro-me no

meu elemento. Retomei o fio de toda a minha existência; descobri

um duplo mistério de amor e de iniquidade: gozarei dum e

vingar-me-ei do outro; voarei de prazer em prazer. Só de o pensar

sinto-me entusiasmado a tal ponto que é com algum custo

que me lembro de quanta prudência me é necessária; a custo

também conseguirei talvez pôr alguma ordem na narração que

passo a fazer. Entretanto, experimentemos.

Ontem mesmo, depois de lhe ter escrito a minha carta, recebi

uma da celestial devota. Aqui a junto: a minha amiga verá

que ela me dá, o menos desajeitadamente que pode, a permissão

de lhe escrever. No entanto apressa a minha partida e eu senti

que não podia adiá-la por mais tempo sem desvantagem para

mim.

Entretanto, atormentado pelo desejo de saber quem poderia

ter-lhe escrito coisas desagradáveis a meu respeito, estava ainda

incerto quanto ao partido que tomaria. Tentei subornar a criada de quarto

e pretendi obter dela que me facultasse os bolsos

da sua ama, de que ela poderia apoderar-se facilmente de noite,

e que lhe seria fácil tornar a colocar no mesmo lugar de manhã,

i sem despertar a menor suspeita. Ofereci dez luízes por esse

trabalho ligeiro. Mas vi-me diante de uma hipócrita, escrupulosa

i ou tímida, que nem a minha eloquência nem o meu dinheiro

conseguiram vencer. Continuava a pregar-lhe, quando chegou a

hora da ceia. Tive de a deixar, dando-me ainda por feliz por ela

me prometer guardar segredo, com o qual, como decerto imagina,

eu não podia contar.

Nunca tive tamanho aborrecimento. Sentia-me comprometido;

e a mim próprio censurei, durante toda a noite, a minha

imprudente tentativa.

. Retirei-me para o meu quarto, não sem inquietação, e falei

com o meu criado, que, na sua qualidade de amante feliz, devia

, ter algum crédito. Pretendia eu, ou que ele obtivesse dessa

rapariga aquilo que eu lhe tinha pedido, ou pelo menos que se assegurasse

da sua reserva: mas ele, que de ordinário não duvida de

nada, pareceu duvidar do êxito dessa negociação, e a tal respeito

teve uma reflexão que me espantou pela sua profundeza. Disse-me ele:

' "O senhor sabe com certeza melhor do que eu que dormir

com uma rapariga é só a gente conseguir que ela faça aquilo que

' lhe agrada; de aí a conseguirmos que ela faça aquilo que nós

queremos vai uma grande distância."

Le bon sens du Maraud quelquefois m'épouvante.

, "Eu não me responsabilizo por esta", acrescentou

ele, "tanto mais que tenho razões para supor que ela tem um amante, e o

que consegui junto dela foi por não haver mais nada que fazer

70

, aqui no campo. Se não fosse o meu apego ao serviço do senhor,

só o teria conseguido uma vez". (É um verdadeiro tesouro este

rapaz!) "Quanto ao segredo", acrescentou ele ainda, "de que

serve fazer que ela o prometa, se não arrisca nada em nos enganar?

Tornar a falar-lhe nisso é o mesmo que dar-lhe conta da

importância da coisa, e daí dar-lhe mais vontade de meter tudo

no bico à senhora".

Quanto mais eram justas estas reflexões, mais o meu embaraço

aumentava; felizmente o maroto estava disposto para a

conversa; e como eu tinha precisão dele, deixei-o tagarelar. Ao

mesmo tempo que me contava a sua história com a rapariga, lá

fui sabendo que o quarto que ela ocupa é separado do da senhora

só por um tabique, que podia deixar ouvir qualquer ruído

suspeito e que era no dele que se encontravam todas as noites.

Desde logo formei o meu plano, comuniquei-lho, e executámo-lo

com êxito.

Esperei as duas da manhã; e então dirigi-me, como tínhamos

combinado, ao quarto do encontro, levando luz comigo e

com o pretexto de ter tocado várias vezes inutilmente. O meu

confidente, que desempenha os seus papéis à maravilha, simulou

uma pequena cena de surpresa, de desespero e de desculpa,

a que pus termo mandando-o aquecer água, de que fingi ter precisão;

isto enquanto a escrupulosa camareira estava tanto mais

envergonhada, quanto é certo que o patife, indo muito além dos

meus projectos, a obrigara a uma toilette que a estação comportava,

mas que de modo algum desculpava.

Sentindo que quanto mais a rapariga fosse humilhada mais

facilmente eu disporia dela, não lhe permiti mudar de situação

nem de vestimenta; e depois de ter ordenado ao meu criado que

me esperasse no meu quarto, sentei-me ao lado dela sobre a

cama, que estava muito em desordem, e comecei a minha conversa.

Eu tinha necessidade de manter o domínio que as circunstâncias

me davam sobre ela: por isso conservei um sangue-frio

que teria feito honra à castidade de Cipião: e sem tomar a menor

liberdade com ela, o que, todavia, a sua frescura e a ocasião

pareciam dar-lhe o direito de esperar, falei-lhe de negócios tão

tranquilamente como o poderia fazer com um procurador.

As minhas condições foram que eu guardaria fielmente segredo,

contanto que no dia seguinte, à mesma hora pouco mais

ou menos, ela me confiasse os bolsos da sua senhora. "Além

disso", acrescentei, "eu ontem tinha-lhe oferecido dez luíses;

hoje mantenho a oferta. Não quero abusar da sua situação".

Tudo ficou combinado, como pode imaginar; retirei-me então e

permiti ao par feliz que recuperasse o tempo perdido.

O meu tempo, empreguei-o a dormir; e ao despertar, querendo

ter um pretexto para não responder à carta da minha bela

antes de ter revistado os seus papéis, o que só podia fazer na

noite seguinte, decidi-me a ir à caça, no que ocupei quase todo o

dia.

71

Na volta, fui recebido com bastante frieza. Tive razão para

supor que houvesse um pouco de melindre por eu mostrar tão

pouco empenho em aproveitar o escasso tempo que me restava;

principalmente depois da carta mais branda que me tinha sido

escrita. Supu-lo assim, porque, tendo-me Madame de Rosemonde

feito algumas censuras pela longa ausência, a minha, bela retrucou

com um pouco de azedume: "Ah! Não censuremos ao

senhor de Valmont que se entregue ao único prazer que pode

encontrar." Lamentei-me da injustiça e aproveitei para assegurar

às duas senhoras que me agradava tanto a sua companhia

que por ela ia sacrificar uma carta de muito interesse que tinha a

escrever. Acrescentei que, não podendo conciliar o sono desde

algumas noites, quisera experimentar se a fadiga faria que eu o

recuperasse; e os meus olhares explicavam com suficiente clareza

o assunto da minha carta e a causa da minha insónia. Tive o

cuidado de aparentar durante o serão uma doçura melancólica

que me pareceu cair bem, e sob a qual eu mascarava a impaciência

de ver chegar a hora que deveria revelar-me o segredo que se

obstinavam em esconder-me. Separamo-nos por fim, e algum

tempo depois a fiel criada de quarto veio trazer-me o preço

combinado do meu segredo.

Uma vez de posse deste tesouro, procedi ao inventário com

a prudência que a minha amiga me conhece: pois era importante

que tudo voltasse aos seus lugares. Primeiro deparei com duas

cartas do marido, mistura indigesta de pormenores de processos

e de tiradas de amor conjugal, que tive a paciência de ler até ao

fim e não encontrei uma palavra que me dissesse respeito. Pu-las

no seu lugar, de mau humor; mas este abrandou quando me vieram

às mãos os pedaços da minha famosa carta de Dijon, cuidadosamente

reunidos. Felizmente tive a fantasia de a reler. Imagine

a minha alegria, distinguindo nela os sinais, bem visíveis, das

lágrimas da minha adorável devota. Confesso, cedi a um movimento

de rapaz e beijei essa carta com um transporte de que já

não me julgava susceptível. Continuei o feliz exame; encontrei

todas as minhas cartas seguidas e por ordem de datas. E o que

me surpreendeu mais agradavelmente ainda foi ter encontrado a

primeira de todas, aquela que eu supunha ter-me sido devolvida

por uma ingrata, fielmente copiada pela sua mão, e com uma

ortografia alterada e trémula, que testemunhava com suficiente

clareza os doces debates do seu coração enquanto disso se ocupara.

Até ali todo eu estava entregue ao amor; depressa este deu

lugar à cólera. Quem imagina a minha amiga que queira perder-me

aos olhos dessa mulher que eu adoro? Qual é a Fúria

que supõe com maldade bastante para maquinar semelhante

perfídia? A Marquesa conhece-a: é a sua amiga, a sua parenta; é

Madame de Volanges. Não imagina que tecido de horrores a

infernal megera lhe escreveu a meu respeito. Foi ela, ela unicamente

quem perturbou a tranquilidade dessa mulher angélica, é

pelos seus conselhos, pelas suas opiniões perniciosas, que eu me

72

vejo forçado a afastar-me; é a ela enfim, que eu sou sacrificado.

Ah! Não duvide que é preciso seduzir-lhe a filha. Mas isso não é

o bastante, é preciso perdê-la; e já que a idade dessa maldita

mulher a põe ao abrigo dos meus golpes, é preciso feri-la no

objecto das suas afeições.

Quer ela então que eu regresse a Paris! É ela quem me obriga

a isso! Seja, voltarei, mas há-de gemer pelo meu regresso.

Aborrece-me que seja Danceny o herói desta aventura. Tem um

fundo de honestidade que será para nós um obstáculo. É certo

que está apaixonado, e eu vejo-o muitas vezes; talvez se possa

tirar partido dessas circunstâncias. A minha cólera fez-me esquecer

que lhe devo ainda a narração do que se passou hoje.

Reatemos.

Esta manhã voltei a ver a minha sensível devota. Nunca a

tinha achado tão bela. Tinha de ser assim: o mais belo momento

duma mulher, o único em que ela pode produzir embriaguez de

alma de que se fala sempre e que tão raras vezes se experimenta,

é aquele em que, seguros do seu amor, não o estamos dos seus

favores; e era precisamente o caso em que me encontrava. Talvez

também a ideia de que ia ser privado do prazer de a ver servisse

para a embelezar. Enfim, à chegada do correio entregaram-me

a sua carta de 27; e, enquanto a lia, hesitava ainda em

saber se manteria a minha palavra; mas encontrei os olhos da

minha bela, e ter-me-ia sido impossível recusar-lhe fosse o que

fosse.

Anunciei pois a minha partida. Um momento depois, Madame

de Rosemonde deixou-nos sós; mas, estava eu ainda a

quatro passos da feroz criatura, já ela se levantava com um aspecto

horrorizado, dizendo-me: "Deixe-me, deixe-me, senhor;

em nome de Deus, deixe-me." Esta súplica fervorosa, que denunciava

a sua emoção, teve apenas o efeito de mais me encorajar.

Já eu estava perto dela e lhe segurava as mãos, que ela juntara

com uma expressão absolutamente comovente; já eu balbuciava

ternas queixas, quando um demónio inimigo fez regressar

Madame de Rosemonde. A tímida devota, que na verdade

tem alguns motivos para receio, aproveitou o momento para se

retirar.

Ofereci-lhe todavia a mão, que ela aceitou; e, augurando

bem esta benevolência, de que ela não usava havia muito tempo,

ao mesmo tempo que recomeçava as minhas queixas procurava

apertar-lhe a sua. Primeiro ela quis retirá-la; mas, após

uma instância mais viva, entregou-se sem grande resistência,

ainda que sem responder nem a este gesto nem às minhas palavras.

Chegado à porta dos seus aposentos, quis beijar-lhe a mão

antes de a deixar. A defesa começou por ser franca; mas um

pense que vou partir, pronunciado com muita ternura, tornou-a

indecisa e frouxa. Mal eu tinha dado o beijo, a mão encontrou

força para se escapar, e a bela entrou nos seus aposentos onde a

esperava a criada de quarto. Aqui finda a minha história.

73

Como presumo que a minha amiga esteja amanhã em casa

da Marechala de..., onde com certeza não poderei encontrá-la;

como suponho também que no nosso primeiro encontro teremos

mais de um assunto a tratar, e principalmente o da pequena

Volanges, que não perco de vista, tomei o partido de me fazer

preceder por esta carta; e por muito longa que seja, não a fecharei

senão no momento de a enviar ao correio, pois nas circunstâncias

em que me encontro tudo pode depender de uma ocasião;

e deixo-a agora para espiar o momento.

P. S. - Às oito horas da noite.

Nada de novo; nem o mais pequeno momento de liberdade:

houve até a preocupação de o evitar. No entanto, tanta tristeza

como a cedência permitia, pelo menos. Outro acontecimento

que não pode ser indiferente é que estou encarregado dum convite

de Madame de Rosemonde a Madame de Volanges para vir

passar algum tempo ao castelo.

Adeus, minha bela amiga; até amanhã ou depois de amanhã

o mais tardar.

28 de Agosto de 17 * *

CARTA XLV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

O senhor de Valmont partiu esta manhã, senhora; pareceu-me

que desejáveis tanto esse afastamento, que julguei do meu

dever dar-vos conhecimento dele. Madame de Rosemonde lamenta

muito seu sobrinho, cuja convivência, devemos convir, é

agradável: passou toda a manhã a falar-me dele com a sensibilidade

que lhe conheceis; não se cansava de o elogiar. Julguei

dever-lhe a complacência de a ouvir sem a contradizer, tanto

mais que é preciso confessar que ela tinha razão sobre muitos

pontos. Demais, eu sentia que tinha a censurar-me ser a causa

desta separação, e não espero poder compensá-la do prazer de

que a privei. Sabeis que de meu natural tenho pouca alegria, e o

género de vida que vamos levar aqui não é de molde a aumentá-la.

Se eu não me tivesse conduzido em concordância com as

vossas advertências, recearia ter procedido com um pouco de

ligeireza, pois me sinto verdadeiramente penalizada com a dor

da minha respeitável amiga; comoveu-me a um ponto que de

bom grado teria juntado as minhas lágrimas às suas.

No presente momento vivemos na esperança de que aceiteis

o convite que o senhor de Valmont deve fazer-vos, da parte da

74

Madame de Rosemonde, de virdes passar algum tempo em casa

dela. Espero que não duvidareis do prazer que teria em ver-vos

aqui; deveis-me na verdade essa recompensa. Ficaria muito contente

de aproveitar essa ocasião para tomar conhecimento mais

amplo com Mademoiselle de Volanges, e para de mais perto vos

poder convencer dos sentimentos respeitosos, etc.

29 de Agosto de 17 * *

CARTA XLVI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Que foi que lhe aconteceu, minha adorável Cecília? Que

circunstância pôde causar em si uma mudança tão rápida e tão

cruel? Que fez dos seus juramentos de nunca mudar? Ontem

ainda, repetia-os com tanto prazer! Quem teria podido hoje fazê-los

esquecer? Debalde faço exame de consciência; não posso

achar em mim a causa, e tenho horror em a procurar em si. Ah!

não suspeito que a Cecília seja leviana ou goste de enganar; e

mesmo neste momento de desespero, nenhuma suspeita ultrajante

conspurcará a minha alma. No entanto, por que fatalidade

não é já a mesma? Não, cruel, já não é a mesma! A terna Cecília,

a Cecília que eu adoro, e de quem recebi as juras, não teria

evitado os meus olhares, não teria contrariado o acaso feliz que

me colocou junto dela; ou, se qualquer razão que eu não posso

conceber a tivesse obrigado a tratar-me com tamanho rigor, não

teria ao menos desdenhado dizer-me o motivo.

Ah ! minha Cecília, não sabe, não saberá nunca o que me fez

sofrer hoje, o que sofro ainda neste momento. Julga pois que eu

possa viver e não ser amado por si? No entanto, quando lhe

pedi uma palavra, uma única palavra, para dissipar os meus

receios, em lugar de me responder, fingiu que tinha receio de ser

ouvida; e esse obstáculo que então não existia, fê-lo a Cecília

aparecer nesse momento, pelo lugar que escolheu entre os convidados.

Quando, forçado a deixá-la, lhe perguntei a hora a que

poderia voltar a vê-la amanhã, fingiu ignorá-la, e foi preciso que

Madame de Volanges ma indicasse. Assim esse momento sempre

tão desejado que deve aproximar-nos, amanhã só fará nascer

em mim inquietação; e o prazer de a ver, até agora tão caro

ao meu coração, será substituído pelo receio de lhe ser importuno.

Sinto que já esse receio me detém, e não ouso falar-lhe do

meu amor. Aquele amo-o, que eu gostava tanto de repetir quando

o ouvia, essa palavra tão doce, que bastava para a minha felicidade,

não oferece para mim agora, se a Cecília está mudada,

75

mais do que a imagem do desespero eterno. Não posso crer todavia

que esse talismã do amor tenha perdido todo o seu poderio,

e experimento servir-me dele ainda,. Sim, minha Cecília

amo-a. Repita pois comigo esta expressão da minha felicidade.

Pense que me habituou a ouvi-la, e que privar-me dela é condenar-me

a um tormento que, tal como o meu amor, só acabará

com a minha vida.

29 de Agosto de 17 * *

CARTA XLVII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Não a verei ainda hoje, minha bela amiga, e aqui estão as

minhas razões, que lhe peço receba com indulgência. Ontem

em vez de fazer directamente a viagem de regresso, parei em

casa da Condessa de..., cujo castelo se encontrava quase no

meu caminho, e a quem pedi de jantar. Só cheguei a Paris por

volta das sete horas, e desci na Ópera, onde pensei que a Marquesa

poderia estar.

Finda a ópera, fui ao salão para voltar a ver as minhas amigas;

lá encontrei a minha velha Emília, rodeada de uma corte

numerosa, tanto de mulheres como de homens, a quem ela dava

de cear nessa mesma noite em P... Mal eu me tinha reunido à

sociedade, fui rogado para assistir à ceia, por aclamação. Aos

rogos de todos juntaram-se os de uma figurinha gorda e baixa

que me algaraviou um convite em francês da Holanda, e que

reconheci como verdadeiro herói da festa. Aceitei.

Pelo caminho, soube que a casa a que nos dirigíamos era o

preço convencionado das bondades de Emília para aquela figura

grotesca, e que a ceia era um verdadeiro banquete de núpcias.

O homenzinho não cabia em si de contente, na expectativa da

felicidade que ia gozar. Pareceu-me tão satisfeito, que me deu

vontade de perturbar a sua alegria; o que de facto fiz.

A única dificuldade que tive foi decidir Emília, a quem a

riqueza do burgomestre tornava um pouco escrupulosa. Acabou

por se prestar, contudo, depois de algumas combinações,

ao projecto, que lhe comuniquei, de encher de vinho aquele

pequeno tonel de cerveja, e de o pôr assim fora de combate por

toda a noite.

A ideia sublime que tínhamos formado de um bebedor holandês

fez que empregássemos todos os meios conhecidos. O

êxito foi tão grande, que à sobremesa já ele não tinha força

para segurar o copo; mas a caridosa Emília e eu engorgitávamo-lo

o mais que podíamos. Por fim caiu para debaixo da mesa,

numa bebedeira tal que deve pelo menos durar oito dias. Decidimo-nos

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então a recambiá-lo para Paris; e como ele não tinha

levado a sua carruagem, mandei-o pôr na minha, e fiquei em seu

lugar. Recebi em seguida os cumprimentos da assembleia, que

se retirou pouco depois, e me deixou senhor do campo de batalha.

Toda aquela alegria, e talvez o meu longo retiro, fizeram-me

achar Emília tão desejável que lhe prometi ficar com ela até

à ressurreição do holandês.

Esta complacência da minha parte é o preço da que ela acaba

de ter, servindo-me de secretária para escrever à minha bela

devota, a quem achei divertido enviar uma carta escrita na cama

e quase entre os braços de uma prostituta, interrompida mesmo

por uma infidelidade completa, e na qual lhe fiz uma narração

exacta da minha situação e do meu procedimento. Emília, que

leu a epístola, riu como uma louca, e espero que a Marquesa rirá

também.

Como é necessário que a minha carta leve o carimbo de Paris,

envio-lha; deixo-a aberta. A minha amiga fará o favor de a

ler, lacrar e mandar pôr no correio. Sobretudo não esqueça que

não deve servir-se do seu sinete, nem mesmo de qualquer emblema

amoroso; um cunho qualquer serve. Adeus, minha bela

amiga.

P. S. - Torno a abrir a minha carta; convenci Emília a ir ao

Teatro dos Italianos... Aproveitarei esse intervalo para ir ver a

minha amiga. Estarei em sua casa às seis horas o mais tardar; e,

se isso lhe convier, iremos juntos por volta das sete horas a casa

de Madame de Volanges. Será decente que eu não demore o

convite que tenho a fazer-lhe da parte de Madame de Rosemonde;

além disso, serei feliz de voltar a ver a pequena Volanges.

Adeus, ó belíssima dama. Desejo ter tanto prazer em abraçá-la,

que o Cavaleiro possa sentir ciúmes.

De P..., 30 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLVIII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

(Correio de Paris)

É depois de uma noite tempestuosa, e durante a qual não

pude conciliar o sono; é depois de ter estado sem cessar ou na

agitação de um ardor febricitante, ou no total aniquilamento de

todas as faculdades da minha alma, que venho procurar junto

de vós senhora, uma calma de que tenho necessidade, e da qual

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todavia não espero poder gozar ainda. Na verdade, a situação

em que me encontro ao escrever-vos dá-me a conhecer mais do

que nunca o poder irresistível do amor. A custo consigo manter

domínio suficiente sobre mim para pôr alguma ordem nas minhas

ideias; e desde já prevejo que não terminarei esta carta sem

ser obrigado a interrompê-la. Pois quê! Não poderei esperar que

partilheis algum dia a perturbação que experimento neste instante?

Ouso crer entretanto que, se pudésseis fazer uma ideia do

que sinto, não ficaríeis inteiramente insensível. Podeis crer, senhora:

a fria tranquilidade, o sono da alma, imagem da morte,

não levam à felicidade; só as paixões vivas podem conduzir lá.

E apesar dos tormentos que me fazeis suportar, posso assegurar-vos

sem receio que, neste momento, sou mais feliz do que

vós. Em vão sobre mim pesam os vossos rigores implacáveis:

não impedirão que eu me abandone inteiramente ao amor e que

esqueça, no delírio que em mim causa, o desespero a que me

entregais. É assim que eu me quero vingar do exílio a que me

condenastes. Nunca tive tanto prazer em escrever-vos. Nunca

senti, nesta ocupação, uma emoção tão doce e todavia tão viva.

Tudo parece aumentar a minha exaltação: o ar que respiro é

pleno de volúpia; até a mesa sobre que vos escrevo, consagrada

pela primeira vez a este uso, se torna para mim o altar sagrado

do amor. Como vai embelezar-se a meus olhos, por ter traçado

sobre ela o juramento de vos amar sempre! Perdoai, suplico-vos,

a desordem dos meus sentidos! Eu deveria talvez abandonar-me

menos a transportes que não partilhais. Preciso deixar-vos

por um momento para dissipar uma embriaguez que aumenta

a cada instante, e que se torna mais forte do que eu.

Volto a vós, senhora, e volto sem dúvida com o mesmo fervor.

Entretanto o sentimento da felicidade fugiu para longe de

mim, dando lugar ao das privações cruéis. De que me serve falar-vos

dos meus sentimentos, se procuro em vão os meios de

vos convencer? Após tantos e tão repetidos esforços, a confiança

e a força abandonam-me ao mesmo tempo. Se imaginn ainda

os prazeres do amor, é para sentir mais vivamente o pesar de ser

deles privado. Não vejo outro recurso que o da vossa indulgência,

e sinto demasiado, neste momento, quanto dela tenho necessidade

para esperar obtê-la. Entretanto, nunca o meu amor

foi mais respeitoso, nunca ele deveu ofender-vos menos. É de tal

maneira, ouso dizê-lo, que a virtude mais severa não poderia ter

qualquer receio dele; mas eu próprio temo falar-vos por mais

tempo do sofrimento que sinto. Certo de que o ente que o causa

não o partilha, não devo ao menos abusar das suas bondades; e

seria fazê-lo se empregasse mais tempo a descrever esta dolorosa

imagem. Não tomo mais do que o de suplicar-vos uma resposta,

e que não duvideis nunca da verdade dos meus sentimentos.

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Escrita de P..., datada de Paris, 30 de Agosto de 17 **

CARTA XLIX

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Sem ser leviana nem gostar de enganar, basta-me, senhor,

ser esclarecida sobre o meu procedimento para sentir a necessidade

de o mudar; prometi esse sacrifício a Deus, até poder oferecer-lhe

também o dos meus sentimentos por vós, que o estado

religioso em que vos encontrais torna mais criminosos ainda.

Sinto bem que isso me fará sofrer, e não vos esconderei mesmo

que desde anteontem tenho chorado todas as vezes que penso

em vós. Mas espero que Deus me fará a graça de me dar a força

necessária para vos esquecer, como lhe peço de manhã à noite.

Espero mesmo da vossa amizade, e da vossa honestidade, que

não tentareis perturbar-me na boa resolução que me inspirou, e

na qual procuro manter-me. Peço, por consequência, que tenhais

a bondade de não voltar a escrever-me, tanto mais que vos

previno de que não responderei, e que me forçaríeis a avisar a

Mamã de tudo o que se passa: o que me privaria absolutamente

do prazer de vos ver.

Não deixarei de conservar por vós toda a dedicação que se

possa ter sem que nisso haja algum mal; e é de toda a minha

alma que vos desejo toda a espécie de felicidade. Sinto bem que

deixareis de amar-me tanto, e que em breve amareis talvez outra

melhor do que eu. Mas isso será mais uma penitência da falta

que eu cometi ao dar-vos o meu coração, que eu devia dar só a

Deus, e a meu marido quando o tiver. Espero que a misericórdia

divina tenha piedade da minha fraqueza, e que não me dê sofrimentos

que eu não possa suportar.

Adeus, senhor; posso assegurar-vos que, se me fosse permitido

amar alguém, não amaria outro além de vós. Mas eis tudo

o que eu posso dizer, e talvez seja mais do que deveria.

31 de Agosto de 17 * *

CARTA L

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

É então desta maneira, senhor, que correspondeis às condições

que vos pus para receber algumas vezes cartas vossas? E

79

posso eu não ter de que me queixar, quando nelas não me falais

senão de um sentimento ao qual eu recearia ainda entregar-me,

mesmo que o pudesse fazer sem ferir todos os meus deveres ?

Aliás, se eu necessitasse de novas razões para conservar esse

receio salutar, parece-me que as poderia encontrar na vossa última

carta. De facto, no próprio momento em que julgais fazer a

apologia do amor, que fazeis, pelo contrário, senão mostrar-me

as temíveis tempestades a que ele dá lugar? Quem poderá desejar

uma felicidade adquirida à custa da razão, e cujos prazeres

pouco duráveis são pelo menos seguidos pelos pesares, quando

o não são pelos remorsos?

Vós próprio, em quem o hábito desse delírio perigoso deve

diminuir-lhe o efeito, não sois obrigado a confessar que ele se

torna mais forte que vós, e não sois o primeiro a queixar-vos da

perturbação involuntária que ele em vós causa? Que horrível

devastação não produziria ele num coração jovem e sensível,

que aumentaria o seu poder pela grandeza dos sacrifícios que

seria obrigado a fazer-lhe?

Julgais, senhor, ou fingis julgar, que o amor conduz à felicidade;

e eu persuado-me a tal ponto de que ele me tornaria desgraçada,

que desejaria não ouvir nunca pronunciar o seu nome.

Afigura-se-me que só o falar dele altera a tranquilidade; e é tanto

por gosto como por dever que vos peço que

guardeis silêncio a tal respeito.

No fim de contas, deve ser-vos fácil presentemente conceder-me

o que vos peço. De regresso a Paris, encontrareis aí bastas

ocasiões de esquecer um sentimento que deve o seu nascimento

talvez apenas ao hábito de vos ocupardes de tais assuntos,

e a sua força à ociosidade do campo. Nesse mesmo lugar

onde estais, não me vistes tantas vezes com indiferença? Podereis

dar aí um passo sem encontrardes um exemplo da vossa facilidade

em mudar, e não estais aí rodeado de mulheres, que,

todas mais amáveis do que eu, têm talvez mais direito às vossas

homenagens? Não tenho a vaidade que é censurada ao meu

sexo; tenho ainda menos essa falsa modéstia que é apenas um

refinamento do orgulho; e é de muito boa fé que vos digo aqui

que reconheço em mim muito poucos meios de agradar: mas

ainda que dispusesse de todos, não os julgaria suficientes para

vos chamar a atenção. Pedir-vos que não vos ocupeis de mim é

apenas rogar-vos que façais hoje o que já fizestes

o que com toda a certeza faríeis dentro de pouco tempo, ainda que eu vos

pedisse o contrário.

Esta verdade, que eu não perco de vista, seria, por si só, uma

razão bastante forte para não querer ouvir-vos. Tenho mil outras

razões ainda: mas sem entrar nessa longa discussão, limito-me

a suplicar-vos, como já fiz, que não volteis a falar-me

num sentimento que eu não devo atender, e ao qual devo ainda

menos responder.

80

1 de Setembro de 17* *.

SEGUNDA PARTE

CARTA LI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Na verdade, Visconde, é insuportável. Trata-me com tanta

ligeireza como se eu fosse sua amante. Sabe que acabei por me

zangar, e que estou neste momento com um humor horrível?

Como! O Visconde precisa ver Danceny amanhã de manhã;

sabe como é importante que eu lhe fale antes dessa entrevista; e

sem se inquietar muito, deixa que eu o espere todo o dia, para

correr atrás sei lá de quê! É o senhor o causador de que eu tenha

chegado indecentemente tarde a casa de Madame de Volanges e

de que todas as senhoras de certa idade me tenham achado

maravilhosa. Foi-me necessário estragá-las com mimos toda a

noite para as apaziguar: pois ninguém se deve zangar com as

mulheres de certa idade; são elas que fazem a reputação das

novas.

Deu já uma hora da manhã, e em lugar de me deitar, e morro

de vontade de o fazer, é preciso que lhe escreva uma longa

carta, que vai redobrar o meu sono pelo aborrecimento que ela

me vai causar. Pode dar-se por feliz de eu não ter tempo para lhe

ralhar mais. Não vá julgar por isso que lhe perdoo; é só porque

estou com muita pressa. Escute, pois, que vou despachar-me.

Por pouco que o Visconde seja hábil, tem de ouvir amanhã

as confidências de Danceny. O momento é favorável para a confiança:

é o momento da desgraça. A pequena foi à confissão;

disse tudo, como uma criança; e depois ficou atormentada a tal

ponto com medo do diabo, que quer romper absolutamente.

Contou-me todos os seus pequenos escrúpulos, com uma vivacidade

que me deu a perceber quanto o medo lhe tinha subido à

cabeça. Mostrou-me a carta de rompimento, que é um verdadeiro

sermão. Tagarelou uma hora comigo, sem me dizer uma palavra

que tivesse senso comum. Mas nem por isso me deixou

menos confusa; pois o Visconde imagina que eu não podia falar

abertamente a uma cabecinha a tal ponto transtornada.

Pude entretanto entender, no meio de toda aquela tagarelice,

que ela não gosta menos do seu Danceny; notei mesmo que

ela lança mão de um daqueles recursos que ao amor nunca faltam,

e a que a rapariguinha se presta de boa vontade, enganando-se

81

a si mesma. Atormentada pelo desejo de se ocupar do seu

namorado, e pelo receio de ser condenada ocupando-se dele,

imaginou rogar a Deus que lho faça esquecer e, como renova

esse rogo a cada instante do dia, encontra o meio de pensar nele

constantemente.

Com qualquer que estivesse mais usado que Danceny, este

pequeno acontecimento seria talvez mais favorável que contrário,

mas o rapaz é tão lamecha que, se não o ajudarmos, ser-lhe-á

necessário tanto tempo para vencer os mais ligeiros obstáculos

que não nos deixará o de efectuarmos o nosso projecto.

O Visconde tem razão; é pena, e estou tão aborrecida com

isso como o senhor, que seja ele o herói desta aventura. Mas que

quer? O que está feito está feito; e a culpa é sua. Pedi que me

mostrasse a resposta dele; fez-me pena. Danceny apresenta-lhe

razões até perder o fôlego, para lhe provar que um sentimento

involuntário não pode ser um crime: como se não deixasse de

ser involuntário, no momento em que se deixa de o combater!

Esta ideia é tão simples, que até à pequena ocorreu. Ele queixa-se

da sua infelicidade de uma forma bastante comovente, mas a

sua dor é tão doce e parece tão forte e tão sincera, que julgo

possível que uma mulher que encontra ocasião de desesperar

um homem a tal ponto, e com tão pouco perigo, não seja tentada

a divertir-se com semelhante fantasia. Por fim explica-lhe

que não é monge, como a pequena supõe; e não há dúvida que é

o que ele faz de melhor: pois, se chegassem tão longe na perfeição

que se dessem inteiros ao amor monástico, seguramente

os senhores Cavaleiros de Malta nos mereceriam a preferência.

De qualquer forma, em vez de perder o meu tempo em raciocínios

que poderiam comprometer-me, e talvez sem conseguir

persuadi-la, aprovei o projecto de rompimento: mas disse-lhe

que era mais honesto, em semelhante caso, dizer as suas razões

do que escrevê-las; que era também de uso entregar as cartas

e as outras bagatelas que possam ter-se recebido. E simulando

assim partilhar os pareceres da pequena, decidi-a a marcar

um encontro com Danceny. Combinámos imediatamente a

maneira, e encarreguei-a de resolver a mãe a sair sem a filha; é

para amanhã à tarde o instante decisivo. Danceny já está

instruído; mas, por Deus, se o Visconde achar ocasião, decida

esse belo pastor a ser menos lânguido; e ensine-lhe tudo, que a

verdadeira maneira de vencer os escrúpulos é não deixar nada a

perder a quem os tem.

Depois, para que essa ridícula cena não se renovasse, não

deixei de levantar algumas dúvidas no espírito da pequena sobre

o segredo de confissão; e garanto-lhe que neste momento ela

paga o medo que me meteu com o que ela tem de que o confessor

vá dizer tudo à mãe. Espero que depois de eu ter podido falar

com ela mais uma vez ou duas, já não irá contar assim as

suas tolices ao primeiro que aparecer.

; Adeus Visconde; tome posse de Danceny, e seja o seu guia.

82

Seria vergonhoso que não fizéssemos o que nos apetece de duas

crianças. Se isso nos for mais difícil do que ao princípio supusemos,

lembremo-nos, para animar o nosso zelo, o Visconde, que

se trata da filha de Madame de Volanges, e eu, que ela virá a ser

a mulher de Gercourt. Adeus.

2 de Setembro de 17* *

CARTA LII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Proibis-me, senhora, que vos fale do meu amor; mas onde

encontrar a coragem necessária para vos obedecer? Ocupado

unicamente por um sentimento que deveria ser tão,doce, e que

tornais tão cruel; entristecendo no exílio a que me condenastes;

* O leitor deve ter adivinhado há muito tempo, pelos costumes de Madame

de Merteuil, como ela respeitava pouco a religião. Poderia ter-se suprimido

todo este parágrafo, mas julgou-se que, mostrando os efeitos, não se devia

deixar de dar a conhecer as causas.

vivendo apenas de privações e de saudades; entregue a sofrimentos

tanto mais dolorosos quanto me recordam sem cessar a

vossa indiferença; ser-me-á necessário ainda perder a consolação

única que me resta? E posso eu ter outra que não seja a de

vos abrir algumas vezes uma alma que encheis de perturbação e

de amargura? Desviareis os vossos olhos para não ver as lágrimas

que me obrigais a derramar? Recusareis até a homenagem

dos sacrifícios que exigis? Não seria, no entanto, mais digno de

vós, da vossa alma honesta e meiga, lamentar um infeliz, que o é

apenas por vossa causa, em vez de pretenderes agravar as suas

penas, por uma defesa ao mesmo tempo injusta e rigorosa?

Fingis recear o amor, e não quereis ver que sois vós unicamente

a causadora dos males que lhe censurais. Ah! este sentimento

é penoso, por certo, quanto o objecto que o inspira não

lhe corresponde; mas onde encontrar a felicidade, se um amor

recíproco não for bastante para a conseguir? A amizade terna, a

confiança tranquila e sem reserva, as penas suavizadas, os prazeres

aumentados, a esperança exaltante, as recordações deliciosas,

onde encontrar tudo isso senão no amor? Caluniais esse

sentimento, vós que, para gozar de todos os bens que ele vos

oferece, não tendes mais que cessar de vos furtardes a ele; quanto

a mim, esqueço as penas que sofro, para me ocupar em defendê-lo.

Obrigais-me também a defender-me a mim próprio; pois ao

83

passo que eu consagro a minha vida a adorar-vos, vós passais a

vossa a procurar em mim motivos de agravo; supúnheis-me já

leviano e falso; e abusando, contra mim, de alguns erros que eu

próprio vos confessei, deleitais-vos a confundir o que eu era então

como o que eu sou agora. Não contente de me haverdes entregue

ao tormento de viver longe de vós, acrescentais a isso

uma zombaria cruel sobre prazeres aos quais sabereis bem a que

ponto me tornastes insensível. Não acreditais nem nas minhas

promessas, nem nos meus juramentos. Pois bem! Resta-me uma

garantia a oferecer-vos, que ao menos não se vos tornará suspeita:

sois vós mesma. Não vos peço senão que vos interrogueis de

boa fé; se não acreditais no meu amor, se duvidais por um

momento de ser a única a reinar na minha alma, se não estais

segura de terdes conquistado este coração, até aqui demasiado

volúvel, consinto em expiar a pena que cabe a este erro; soltarei

gemidos, mas não farei qualquer súplica. Mas se, ao contrário,

fazendo justiça a nós dois, fordes obrigada a convir no vosso

foro íntimo que não tendes, que não tereis nunca uma rival, não

volteis a obrigar-me, suplico-vos, a combater quimeras, e deixai-me

a consolação de saber que não duvidais dum sentimento

que, na verdade, não acabará, não pode acabar senão com a

minha vida. Permiti-me, senhora, que vos rogue uma resposta

positiva a este ponto da minha carta.

Se eu abandono entretanto aquela época da minha vida que

parece prejudicar-me tão cruelmente a vossos olhos, não é porque,

em caso de necessidade, me faltassem razões para a defender.

Que fiz eu, no fim de contas, além de não oferecer resistência

ao turbilhão que me envolvia? Entrei no mundo, jovem e

sem experiência; passei, por assim dizer, de mão em mão, por

uma multidão de mulheres, que se apressaram todas a antecipar

pela sua facilidade uma opinião que elas sentiam dever ser-lhes

desfavorável. Deveria ser eu pois a dar o exemplo de uma resistência

que me não era oposta? Ou deveria castigar-me a mim

próprio por um momento de irreflexão, e que em muitos casos

fora provocado, por uma constância deveras inútil, e na qual

todos veriam um motivo de ridículo? Pois qual é o meio para

justificar a vergonha de uma escolha senão um pronto rompimento ?

Mas, posso dizê-lo, essa embriaguez dos sentidos, talvez

mesmo esse delírio da vaidade, não penetrou o meu coração.

Nascido para o amor, a intriga poderia distraí-lo: não bastava

para tomar inteira posse dele; rodeado de seres sedutores, mas

desprezíveis, nenhum deles ia até à minha alma. Ofereciam-me

prazeres, eu buscava virtudes. E, porque era delicado e sensível,

eu próprio por fim me julguei inconstante.

Foi ao ver-vos que me senti iluminado: depressa compreendi

que o encanto do amor se enraizava nas qualidades da alma;

que só elas podiam causar-lhe o excesso e justificá-lo. Senti enfim

que me era igualmente impossível deixar de vos amar e

amar outra que não fôsseis vós.

84

Eis, senhora, como é este coração ao qual temeis entregar-vos

e sobre a sorte do qual tendes de pronunciar-vos. Mas

qualquer que seja o destino que lhe reserveis, não mudareis

nada aos sentimentos que o prendem a vós: são inalteráveis

como as virtudes que os fizeram nascer.

3 de Setembro de 17* *.

CARTA LIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Estive com Danceny, mas apenas obtive dele meia confidência;

teimou, sobretudo, em calar-me o nome da pequena Volanges,

de quem me falou como de uma mulher muito atilada, e até

um pouco devota; a propósito, contou-me com bastante verdade

a sua aventura, e sobretudo o último acontecimento. Excitei-o

o mais que pude e gracejei bastante acerca da sua delicadeza e

dos seus escrúpulos; mas ele pareceu manter-se firme, não posso

responder por ele. A este respeito poderei dizer alguma coisa

mais depois de amanhã. Levo-o amanhã a Versailles e durante o

caminho ocupar-me-ei em o sondar.

O encontro marcado para hoje dá-me também alguma esperança:

pode dar-se o caso de tudo se passar como desejamos; e

talvez no presente momento nos reste apenas arrancar-lhe a

confissão e recolher as respectivas provas. Esta tarefa será mais

fácil à Marquesa do que a mim, pois a pequena é mais confiante,

ou, o que vem a dar no mesmo, mais tagarela do que o seu

discreto apaixonado. Entretanto farei o que me for possível.

Adeus, minha bela amiga, estou com muita pressa; não a

verei nem esta noite, nem amanhã. Se por seu lado souber alguma

coisa, escreva-me uma palavra no meu regresso. Virei com

certeza dormir a Paris.

3 de Setembro de 17* *, à noite.

CARTA LIV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Oh! sim! é de facto junto de Danceny que há alguma coisa a

saber! Se ele lha disser, gabou-se. Não conheço ninguém tão

tolo em coisas de amor e cada vez me censuro mais pelas bondades

que temos para ele. Saiba o Visconde que cheguei a julgar-me

85

comprometida por culpa dele. E pensar que tudo resultou

em pura perda! Oh! Hei-de vingar-me, prometo-lho.

Quando cheguei ontem a casa de Madame de Volanges para

a levar comigo, ela não queria sair; sentia-se incomodada. Foi-me

necessária toda a minha eloquência para a persuadir, e via

chegar o momento de Danceny aparecer sem que tivéssemos saído,

o que seria tanto mais aborrecido quanto Madame de Volanges

lhe dissera na véspera que não estaria em casa. Eu e a filha

estávamos sobre brasas. Saímos por fim; e a pequena apertou-me

a mão tão afectuosamente ao despedirmo-nos que apesar

do seu projecto de rompimento, de que ela julgava de boa fé

ocupar-se ainda, augurei maravilhas para essa noite.

Não tinha chegado ao fim das minhas inquietações. Havia

apenas meia hora que estávamos em casa de Madame de...,

quando Madame de Volanges se sentiu de facto mal, mas seriamente

mal; e, como era razoável, quis voltar para casa. Eu desejava-o

tanto menos quanto receava, se surpreendêssemos os

dois jovens, como tudo indicava, que as minhas instâncias junto

da mãe para que saísse se lhe tornassem suspeitas. Tomei o partido

de a assustar sobre o seu estado de saúde, o que felizmente

não é difícil; e consegui retê-la durante hora e meia, sem consentir

em levá-la a casa, fingindo ter medo do movimento perigoso

da carruagem. Regressámos por fim à hora combinada. Pelo ar

envergonhado que notei ao chegar, confesso que esperei que ao

menos as minhas canseiras não tivessem sido baldadas.

O desejo que eu tinha de ser informada fez que ficasse ao pé

de Madame de Volanges, que se deitou logo, e depois de termos

ceado junto do seu leito, deixámo-la muito cedo, com o pretexto

de que ela necessitava repousar; e passámos aos aposentos da

filha. Esta fez tudo o que eu esperava dela; escrúpulos desvanecidos,

novas juras de amor eterno, etc., de boa vontade executou

o programa; mas o parvo do Danceny não avançou de uma

linha o ponto em que antes se encontrava. Oh! com aquele pode

haver amuos; as reconciliações não são perigosas.

A pequena assegura todavia que ele queria mais, mas que

ela soube defender-se. Ia jurar que ela se gaba, ou que o desculpa;

tenho mesmo quase a certeza. De facto, tive a fantasia de

querer saber por experiência própria de que defesa é ela capaz;

e, simples mulher, de conversa em conversa, dei-lhe volta à cabeça

a um ponto... Enfim, o Visconde pode crer, não conheço

ninguém mais susceptível de uma surpresa dos sentidos. É na

verdade digna de ser amada, esta querida pequena! Merecia

outro amante; terá pelo menos uma boa amiga, pois estou-lhe

sinceramente dedicada. Prometi-lhe instruí-la e creio que cumprirei

a minha palavra. Muitas vezes sinto a necessidade de ter

uma mulher por confidente, e gostaria mais que fosse esta que

qualquer outra; mas nada posso fazer, enquanto ela não for...

aquilo que é preciso que seja; e esta é mais uma razão para estar

aborrecida com Danceny.

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Adeus, Visconde; não venha a minha casa amanhã, a menos

que seja de manhã. Cedi às instâncias do Cavaleiro para uma

noitada no nosso ninho.

4 de Setembro de 17 * *

CARTA LV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Tinhas razão, minha querida Sofia; as tuas profecias são

mais certas do que os teus conselhos. Danceny, como tinhas

previsto, foi mais forte que o confessor, que tu e do que eu própria;

e eis-nos voltados exactamente ao ponto em que estávamos.

Ora! Não me arrependo disso; e se tu me censurares, será

por não saberes o prazer que se sente em amar Danceny. A ti é

muito fácil dizeres o que se deve fazer, nada to impede; mas se

tivesses experimentado como nos faz mal a tristeza de alguém

que se ama, como a sua alegria se torna nossa e como é difícil

dizer não quando é sim que se deseja dizer, não te admiravas de

nada; eu mesma, que o senti, e que o senti vivamente, não compreendo

ainda. Julgas tu, por exemplo, que eu possa ver chorar

Danceny sem chorar eu também? Afirmo-te que isso me é impossível;

e quando ele está contente, sou feliz com ele. Podes

dizer o que entenderes; o que se diz não altera o que é, e eu estou

certa de que é assim.

Queria ver-te no meu lugar... Não, não é isso que eu quero

dizer, pois com certeza não desejaria ceder o meu lugar a ninguém;

mas queria que tu amasses assim alguém; não seria só

para que me entendesses melhor, e me ralhasses menos; mas

porque assim tu serias mais feliz, ou, para melhor dizer, só então

começarias a ser feliz.

Os nossos divertimentos, os nossos risos, tudo isso, bem

vês, são brincadeiras de crianças; delas nada fica depois de passarem.

Mas o amor, ah! o amor!. . uma palavra, um olhar,

somente o sabermos que ele está ali, crê: isso é a felicidade.

Quando vejo Danceny, não desejo mais nada; quando não o

vejo, só o desejo a ele. Não sei porque isto é assim: mas dir-se-ia

que tudo de que eu gosto se lhe assemelha. Quando ele não está

comigo, penso nele; e quando estou sozinha, por exemplo, sou

ainda feliz; fecho os olhos, e logo julgo que o estou vendo; lembro-me

das suas palavras, e creio ouvi-lo; isto faz-me suspirar; e

depois sinto um fogo, uma agitação... Não posso estar no mesmo

sítio. É como um tormento, e esse tormento dá um prazer

inexprimível.

Julgo até que quando uma vez se sente amor, esse sentimento

87

se espalha até sobre a amizade. No entanto, a que eu tenho

por ti não mudou; é sempre como no convento: mas isto que eu

digo, sinto-o com Madame de Merteuil. Parece-me que a minha

amizade por ela se parece mais com o amor que sinto por Danceny

do que com a minha amizade por ti, e algumas vezes desejaria

que ela fosse ele. Isto vem talvez de não ser uma amizade

de infância como a nossa; ou talvez de os ver tantas vezes juntos,

o que faz com que me engane. Enfim, o que é certo é que os

dois me tornam muito feliz; e no fim de contas, não creio que

haja grande mal no que eu faço. Por isso só peço que me deixem

ficar como estou; e só a ideia do meu casamento me faz sofrer:

pois se o senhor de Gercourt é como me disseram, e não duvido

de que o seja, não sei o que será de mim. Adeus, minha Sofia;

sou sempre a tua amiga muito terna.

4 de Setembro de 17 * *

CARTA LVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

De que vos serviria, senhor, a resposta que me pedistes?

Crer nos vossos sentimentos não será uma razão mais para os

temer? E sem atacar nem defender a sinceridade deles, não me

basta, não deve bastar-vos a vós mesmo, saber que não devo

nem quero corresponder-lhes?

Suponho que me tendes amor verdadeiro (e é apenas para

não voltar a falar neste assunto que eu consinto nesta suposição);

seriam por isso menos insuperáveis os obstáculos que nos

separam? E teria eu outra coisa a fazer que desejar-vos uma rápida

vitória sobre esse amor, e principalmente ajudar-vos com

todo o meu poder, apressando-me a tirar-vos toda a esperança?

Vós mesmo concordais que esse sentimento é penoso quando o

objecto que o inspira não lhe corresponde. Ora, sabeis suficientemente

que me é impossível corresponder-lhe e, ainda que essa

infelicidade me acontecesse, eu seria mais digna de lástima, sem

que fôsseis por isso mais feliz. Espero que me estimareis o bastante

para que não duvideis disso por um momento. Deixai

pois, rogo-vos, deixai de pretender perturbar um coração ao

qual a tranquilidade é tão necessária; não me obrigueis a lamentar

ter-vos conhecido.

Querida e estimada por um marido que amo e respeito, os

meus deveres e os meus prazeres reúnem-se numa só pessoa.

Sou feliz e tenho obrigação de o ser. Se existem prazeres mais

vivos, não os desejo; não quero conhecê-los. Haverá alguma

coisa mais doce que estar em paz consigo mesma, ver decorrer

dias serenos, adormecer tranquila e despertar sem remorsos?

88

Aquilo a que chamais felicidade é apenas um tumulto dos sentidos,

uma tempestade das paixões, cujo espectáculo horroriza,

mesmo quando o contemplamos da margem. Pois bem! Como

afrontar tais tempestades? Como haverá quem possa aventurar-se

a um mar coberto dos despojos de mil e mil naufrágios? E

com quem? Não, senhor Visconde, eu fico na terra firme; são-me

caros os laços que a ela me prendem. Poderia cortá-los, e

não o faria; se eles não existissem, apressar-me-ia a forjá-los

para que me prendessem.

Por que seguis os meus passos? Por que vos obstinais nesse

caminho? As vossas cartas, que deviam ser raras, sucedem-se

com rapidez. Deviam ser prudentes, e nelas só falais do vosso

louco amor. Envolveis-me na vossa ideia, mais do que o fazeis

da vossa pessoa. Afastado sob uma forma, reproduzis-vos sob

outra. As coisas que se vos pede que não digais, voltais a dizê-las

de outra maneira. Tendes prazer em me confundir com raciocínios

capciosos; mas furtais-vos às minhas razões. Não quero

voltar a responder-vos, não vos responderei... De que maneira

tratais as mulheres que seduzistes! Com que desprezo falais

delas! Desejo acreditar que algumas o merecem: mas serão todas

elas a tal ponto desprezíveis? Ah! sem dúvida, pois traíram

os seus deveres para se entregarem a um amor criminoso. Desde

esse momento, perderam tudo, até a estima daquele a quem

tudo sacrificaram. É justo esse suplício, mas só a sua ideia faz

tremer. Que me importa, afinal? Por que me ocuparei delas ou

de vós? Com que direito perturbais a minha tranquilidade?

Deixai-me, não volteis a ver-me; deixai de me escrever, peço-vos;

exijo-o. Esta carta é a última que recebereis de mim.

5 de Setembro de 17 * *

CARTA LVII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Encontrei a sua carta ontem à minha chegada. A sua cólera

deu-me um prazer absoluto. A minha amiga não sentiria mais

vivamente os desastres de Danceny, se estivesse directamente

interessada neles. É sem dúvida por vingança que habituais a

enamorada Cecília a fazer-lhe pequenas infidelidades. A Marquesa

é uma terrível pessoa! Sim, encanta-me esse modo de ver,

e não me admira que se lhe resista menos que a Danceny.

Enfim, sei tudo o que diz respeito a esse belo herói de romance!

Deixou de ter segredos para mim. Tantas vezes lhe disse

que o amor honesto era o bem supremo, que um sentimento valia

mais que dez intrigas, que eu próprio, nesse momento, era

89

um apaixonado tímido; mostrei-lhe, enfim, uma forma de pensar

tão conforme à dele, que, encantado com a minha candura,

disse-me tudo, e jurou-me uma amizade sem reservas. No entanto,

não estamos mais avançados por isso com o nosso projecto.

Primeiro, pareceu-me que, segundo o seu sistema, uma menina

merece mais que a poupem do que uma mulher, porque

tem mais a perder. Acha, sobretudo, que nada pode justificar

um homem de pôr uma rapariga na necessidade de casar com

ele ou de viver desonrada, quando a rapariga é infinitamente

mais rica do que o homem, como no caso em que ele se encontra.

A severidade da mãe, a candura da filha, tudo o intimida e o

detém. A dificuldade não está em combater os seus raciocínios,

por muito verdadeiros que sejam. Com um pouco de habilidade

e ajudado pela paixão, depressa se conseguirá destruí-los; tanto

mais que se prestam ao ridículo, e que se tem a seu favor a autoridade

da experiência. Mas o que impede que se consiga com ele

alguma coisa, é que ele se considera feliz como está. De facto, se

os primeiros amores parecem, em geral, mais honestos, e, como

é costume dizer-se, mais puros; se pelo menos são mais lentos

na sua marcha, não é, como se pensa, por delicadeza ou timidez,

é porque o coração, surpreso ante um sentimento desconhecido,

se suspende por assim dizer a cada passo, para gozar do encanto

que experimenta, e porque esse encanto tem tanto poder sobre

um coração jovem, que o preenche a ponto de lhe fazer esquecer

todo o prazer diferente. Isto é tão verdadeiro, que um libertino

apaixonado, se um libertino o pode ser, desde o momento em

que se apaixona, torna-se menos ávido de gozar; e que, enfim,

entre o comportamento de Danceny com a pequena Volanges, e

o meu com a severa Madame de Tourvel, há apenas a diferença

do mais ou menos.

Seria necessário, para excitar o nosso jovem, maior número

de obstáculos do que os que ele tem encontrado; sobretudo que

lhe tivesse sido preciso rodear-se de mais mistério, pois o mistério

conduz à audácia. Não ando muito longe de crer que a Marquesa

nos prejudicou ao servi-lo tão bem; a sua manobra teria

sido excelente com um homem usado, que tivesse apenas desejos:

mas a minha amiga deveria ter previsto que para um homem

novo, honesto e apaixonado o maior favor que lhe concedem

é fazer dele a prova do amor; e que, por consequência,

quanto mais ele está certo de ser amado, menos activo será. Que

fazer agora? Não sei; mas não creio que a pequena seja conquistada

antes do casamento, e trabalhámos em pura perda. Isto

aborrece-me, mas não lhe vejo remédio.

Enquanto eu uso aqui a minha eloquência, a Marquesa

emprega melhor o seu tempo com o Cavaleiro. Isso faz-me pensar

que me prometeu uma infidelidade em meu favor, tendo a

sua promessa por escrito, e não quero servir-me dela como de

um bilhete de La Châtrel. Concordo que o vencimento ainda

não tenha chegado: mas seria generoso da sua parte não esperar

90

por ele e por meu lado, pedir-lhe-ei juros. Que diz a isto, minha

bela amiga? Não está fatigada da sua constância? Esse

Cavaleiro é assim tão maravilhoso? Oh! deixe-me entrar em

funções; desejo forçá-la a concordar que, se lhe encontra algum

mérito, é porque me esqueceu.

Adeus, mmha bela amiga; beijo-a tal como a desejo; desafio

todos os desejos do Cavaleiro a terem tamanho ardor.

5 de Setembro de 17 * *

CARTA LVIII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

Que fiz eu para merecer, senhora, as censuras que me dirigis

e a cólera que me testemunhais? A dedicação mais viva e todavia

mais respeitosa, a submissão mais completa às vossas menores

vontades; eis em duas palavras a história dos meus sentimentos

e da minha conduta. Acabrunhado pelos sofrimentos

dum amor infeliz, não tinha eu outro consolo além de poder

ver-vos; haveis-me ordenado que me privasse dele: obedeci sem

me permitir um murmúrio. Como preço desse sacrifício, haveis-me

permitido que vos escrevesse, e hoje pretendeis tirar-me

esse único prazer. Deverei deixá-lo arrebatar-me, sem tentar

defendê-lo? Não, sem dúvida: pois não será caro ao meu coração

sendo o único que me resta, e tendo-o recebido de vós?

As minhas cartas, dizeis, são demasiado frequentes! Pensai,

peço-vos, que há dez dias que dura o meu exílio, que durante

esse tempo não passei um momento sem me ocupar de vós, e

que entretanto recebestes apenas duas cartas minhas. Nelas só

vos falo do meu amor! Pois que posso eu dizer, senão o que penso?

Tudo o que pude fazer foi moderar-lhe a expressão; e, podeis

crer, não vos deixei ver senão o que me foi impossível esconder-vos.

Ameaçais-me por fim de não voltar a responder-me.

Deste modo, ao homem que vos prefere a tudo, e que vos

respeita mais ainda do que vos ama, não satisfeita de o tratardes

com rigor, quereis ainda juntar a isso o desprezo! Porquê tais

ameaças e tal cólera? Por que necessitais de tais sentimentos?

Não estais segura de ser obedecida, mesmo nas vossas ordens

injustas? Porventura me é possível contrariar qualquer dos vossos

desejos, e não o provei já? Abusareis do domínio que tendes

sobre mim? Depois de me terdes feito desgraçado, e de vos terdes

tornado injusta, ser-vos-á assim tão fácil gozar dessa tranquilidade

que declarais ser-vos tão necessária? Não vireis a dizer

um dia: "deixou-me senhora do seu destino, e fiz a sua desgraça;

implorava os meus socorros, e olhei-o sem piedade"?

91

Sabeis até onde pode chegar o meu desespero? Não.

Para calcular a extensão dos meus males, seria preciso saber

a que ponto vos amo, e não conheceis o meu coração.

Sacrificais-me a quê? A quiméricos receios. E quem vo-los

inspira? Um homem que vos adora; um homem sobre quem não

deixareis nunca de exercer domínio absoluto. Que receais, que

podeis recear dum sentimento que sereis sempre senhora de dirigir

como vos aprouver? Mas a vossa imaginação cria monstros,

e atribuís ao amor o horror que eles vos causam. Um pouco de

confiança, e esses fantasmas desaparecerão.

Um sábio disse que quem queira dissipar os seus receios não

tem mais que aprofundar-lhes a causa. É principalmente no

amor que esta verdade encontra a sua aplicação. Amai, e os vossos

receios desvanecer-se-ão. No lugar dos objectos que vos

horrorizam, encontrareis um sentimento delicioso, um amante

terno e submisso; e todos os vossos dias, marcados pela felicidade,

não vos deixarão outro pesar além de terdes perdido alguns

na indiferença. Eu próprio, depois que, distanciado dos meus

erros, existo apenas para o amor, lamento um tempo que supunha

ter passado no meio de prazeres; e sinto que só a vós pertence

tornar-me feliz. Mas, suplico-vos, que o prazer que encontro

em escrever-vos não seja perturbado pelo receio e vos desagradar.

Não quero desobedecer-vos: mas ajoelho-me perante

vós, e reclamo a felicidade que quereis tirar-me, a única que me

haveis deixado; e grito-vos: escutai as minhas súplicas, concedei

um olhar às minhas lágrimas. Ah! senhora, recusar-me-eis tão

pouco?

7 de Setembro de 17 * *

CARTA LIX

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

Diga-me, se sabe, o que significa este desatino de Danceny.

Que foi que aconteceu, e que perdeu ele? A sua bela aborreceu-se

talvez do seu eterno respeito? É preciso ser justo, por menos

qualquer pessoa acabaria por se aborrecer. Que vou eu dizer-lhe

esta noite, no encontro que ele me pediu, e que eu lhe concedi

para ver o que daí resultaria? Seguramente não perderei o meu

tempo a ouvir os seus lamentos, se isso não nos conduzir a nada.

As queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos

obrigatórios, ou em árias de grande estilo. Diga-me pois de

que se trata e que devo fazer; ou acabo por desertar, a fim de

evitar o aborrecimento que prevejo. Poderei falar com a minha

92

amiga esta manhã? Se estiver ocupada, pelo menos escreva-me

uma palavra, e forneça-me as deixas do meu papel.

Onde esteve a Marquesa ontem? Não consigo voltar a vê-la.

Na verdade, não me valia a pena ter ficado em Paris no mês de

Setembro. Decida-se, contudo, pois acabo de receber um convite

muito insistente da Condessa de B... para a visitar no campo;

e, como ela me manda dizer de modo bastante agradável, "seu

marido possui o mais belo bosque do mundo, que conserva cuidadosamente

para os prazeres dos seus amigos". Ora, a minha

amiga sabe que eu tenho alguns direitos adquiridos sobre esse

bosque; e irei vê-lo de novo se não lhe posso ser útil. Adeus;

pense que Danceny estará em minha casa pelas quatro horas.

8 de Setembro de 17* *

CARTA LX

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE VALMONT

(Inclusa na precedente)

Ah! senhor, estou desesperado, perdi tudo. Não ouso confiar

ao papel o segredo das minhas mágoas: mas tenho necessidade

de as expandir no seio de um amigo fiel e seguro. A que

horas poderei vê-lo, e procurar junto do Visconde consolações e

conselhos? Eu era tão feliz no dia em que lhe abri a minha alma!

Agora, que diferença! Tudo mudou para mim. O que eu sofro

por mim próprio é ainda a menor parte dos meus tormentos; a

minha inquietação sobre um objecto bem mais querido, eis o

que não posso suportar. Mais feliz do que eu, o Visconde pode

vê-la, e espero da sua amizade que não me recusará este favor:

mas é preciso que eu lhe fale, que lhe diga de que se trata. Há-de

lamentar-me, socorrer-me; só tenho esperança no meu amigo.

Sei que é sensível, que conhece o amor; e é o único a quem eu

posso confiar-me; não me recuse o seu auxílio.

Adeus, senhor; o único alívio que experimento na minha

dor é o de pensar que me resta um amigo como o Visconde.

Mande-me dizer, peço-lhe, a que horas poderei encontrá-lo. Se

não for esta manhã, desejaria que fosse às primeiras horas da

tarde.

8 de Setembro de 17**.

CARTA LXI

93

CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Minha querida Sofia, lamenta a tua Cecília, a tua pobre Cecília,

que é muito infeliz. A Mamã sabe tudo. Não percebo

como pôde ela desconfiar de alguma coisa, mas a verdade é que

descobriu tudo. Ontem à noite, a Mamã pareceu-me estar de

mau humor; mas não dei ao caso grande atenção; e até, enquanto

esperava que ela acabasse a sua paciência, conversei muito

alegremente com Madame de Merteuil, que tinha ceado connosco,

e falámos muito de Danceny. Mas parece-me que ninguém

nos ouviu. Logo que ela se foi embora, retirei-me para o

meu quarto.

Estava a despir-me, quando a Mamã entrou e mandou sair a

minha criada de quarto, pedindo-me em seguida a chave da

minha secretária. O tom com que ela me fez esse pedido causou-me

um tremor tão forte que apenas me podia ter em pé.

Fingi que não a encontrava, mas por fim tive de obedecer. A

primeira gaveta que ela abriu foi precisamente aquela onde estavam

as cartas do Cavaleiro Danceny. Eu estava tão perturbada,

que quando ela me perguntou o que aquilo era, não soube responder-lhe

outra coisa senão que não era nada; mas quando a

vi começar a ler a que estava ao de cima, só tive tempo para ir

até uma poltrona, e senti-me tão mal que perdi o conhecimento.

Logo que voltei a mim, minha mãe, que tinha chamado a criada

de quarto, retirou-se, dizendo-me que me deitasse. Tinha levado

todas as cartas de Danceny. Tremo todas as vezes que penso que

é preciso aparecer diante dela. Toda a noite não fiz outra coisa

senão chorar.

Escrevo-te ao romper do dia, na esperança de que Josefina

venha. Se eu puder falar-lhe sozinha, pedir-lhe-ei que leve a casa

de Madame de Merteuil um bilhetinho que lhe vou escrever; se

o não conseguir, metê-lo-ei na tua carta e tu farás o favor de lho

enviar como sendo teu. É só dela que eu posso receber alguma

consolação. Ao menos, falaremos dele, pois não espero voltar a

vê-lo. Sou muito infeliz! Ela terá talvez a bondade de se encarregar

de uma carta para Danceny. Não ouso confiar-me a Josefina

para esse fim, e ainda menos à minha criada de quarto; pois

talvez tenha sido ela quem disse a minha mãe que eu tinha cartas

na minha secretária.

Hei-de escrever-te mais longamente, pois quero ter tempo

para escrever a Madame de Merteuil, e também a Danceny,

para ter a minha carta pronta, se ela quiser encarregar-se de a

Nota. - Suprimiu-se a carta de Cecília Volanges à Marquesa, porque

continha apenas os mesmos factos da carta precedente, e com menos pormenores.

94

A carta para o Cavaleiro Danceny não foi encontrada; ver-se-á qual a razão

na Carta LXIII, de Madame de Merteuil ao Visconde.

fazer seguir. Depois disso, voltarei a deitar-me, para que me

encontrem na cama quando entrarem no meu quarto. Direi que

estou doente, para me dispensar de ir ao pé da Mamã. Não será

grande a mentira; com certeza sofro mais do que se tivesse febre.

Os olhos ardem-me por ter chorado tanto; e tenho um peso

no estômago que me impede de respirar. Quando penso que não

voltarei a ver Danceny, desejaria estar morta. Adeus, minha

querida Sofia. Não posso dizer-te mais nada; as lágrimas sufocam-me.

7 de Setembro de 17* *

CARTA LXII

MADAME DE VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Depois de terdes abusado, senhor, da confiança de uma mãe

e da inocência de uma criança, não ficareis surpreendido, por

certo, de não voltar a ser recebido numa casa onde não correspondestes

às provas da amizade mais sincera, senão esquecendo

todos os preceitos. Prefiro pedir-vos que não volteis a minha

casa, a dar ordens que nos comprometeriam a todos igualmente,

pelos reparos que os criados não deixariam de fazer. Tenho o

direito de esperar que não me obrigareis a recorrer a esse meio.

Previno-vos também de que, se no futuro fizerdes a menor tentativa

para manter a minha filha no desvairamento em que a lançastes,

um recolhimento austero e eterno a subtrairá às vossas

perseguições. A vós compete, senhor, saber se receais tão pouco

causar o seu infortúnio como receastes pouco tentar a sua desonra.

Quanto a mim, a minha escolha está feita, e disso lhe dei

participação.

Encontrareis junto o maço das vossas cartas. Conto que me

devolvereis em troca todas as de minha filha; e que vos prestareis

a apagar qualquer vestígio de um acontecimento de que não

poderemos lembrar-nos, eu sem indignação, ela sem vergonha,

e vós sem remorso. Tenho a honra de ser, etc.

7 de Setembro de 17**.

CARTA LXIII

95

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Claro que sim, que lhe explicarei o bilhete de Danceny. O

acontecimento que o levou a escrevê-lo é obra minha, e é, creio,

a minha obra-prima. Não perdi o meu tempo depois da sua última

carta, e disse como o arquitecto ateniense: "O que ele disse,

eu o farei."

São pois necessários obstáculos a esse belo herói de romance;

que se deixa dormir na felicidade! Oh! que venha ter comigo,

eu lhe darei que fazer; e, ou eu me engano, ou o seu sono

tempo, e gabo-me de que no presente ele lamente o que perdeu.

Era preciso, dizia o Visconde, que ele sentisse a necessidade de

- mais mistério; pois bem! Essa necessidade não lhe vai faltar. Eu

tenho isto de bom: é que basta apenas chamarem-me a atenção

para os meus erros; não descanso enquanto não tiver posto

tudo certo. Saiba pois o que eu fiz.

Ao entrar em casa anteontem de manhã, li a sua carta;

achei-a luminosa. Convencida de que o Visconde indicara muito

bem a causa da doença, não me ocupei senão de encontrar

maneira de a curar. Comecei todavia por me deitar; pois o infatigável

Cavaleiro não me tinha deixado dormir um momento e

eu julgava ter sono. Mas enganava-me: toda entregue a Danceny,

o desejo de o tirar da sua indolência, ou de lha castigar,

não me permitiu fechar os olhos, e só depois de ter concertado o

meu plano é que pude achar duas horas de repouso.

; Nessa mesma noite fui a casa de Madame de Volanges, e,

conforme o meu projecto, confidenciei-lhe que julgava estar certa

de existir entre a sua filha e Danceny uma ligação perigosa.

Esta mulher, tão clarividente no caso do Visconde, estava cega a

ponto de me ter respondido primeiro que com certeza eu estava

enganada; que sua filha era uma criança, etc. Eu não podia dizer-lhe

tudo quanto sabia a tal respeito; mas citei os olhares, os

ditos, que tinham alarmado a minha virtude e a minha amizade.

Enfim, falei quase tão bem como o poderia fazer uma devota, e,

para vibrar o golpe de misericórdia, cheguei a dizer que supunha

ter visto entregar e receber uma carta. "isto faz-me recordar",

acrescentei "que um dia ela abriu diante de mim uma gaveta

da secretária, na qual vi muitos papéis, que com certeza ela

conserva. Conheceis-lhe alguma correspondência frequente?".

Aqui o rosto de Madame de Volanges mudou, e vi algumas lágrimas

nos seus olhos. "Agradeço-vos, minha digna amiga",

disse ela, apertando-me a mão; " eu porei tudo isso a limpo".

Depois desta conversa, demasiado curta para se tornar suspeita,

aproximei-me da pequena. Deixei-a pouco depois, para

pedir à mãe que não me comprometesse junto da filha, o que ela

me prometeu de bom grado, tanto mais que lhe observei quanta

vantagem haveria em que essa criança tivesse bastante confiança

em mim para me abrir o seu coração e me pôr ao alcance de

96

lhe dar os meus prudentes conselhos. O que me dá a certeza de

que ela cumprirá a sua promessa é que não tenho dúvidas de

que ela considere um ponto de honra exercer a sua penetração

junto da filha. Encontrava-me, por esse lado, autorizada a conservar

o meu tom de amizade com a pequena, sem parecer falsa

aos olhos de Madame de Volanges, o que desejava evitar. Tive

ainda a vantagem de continuar por muito tempo e tão secretamente

como eu desejava junto da rapariguinha, sem que a mãe

tivesse qualquer suspeita.

Aproveitei aquele mesmo serão; e depois de terminar a

minha paciência, arrastei a petiza para um canto, e levei-a a falar

de Danceny, assunto em que ela é inesgotável. Diverti-me a

dar-lhe volta à cabeça sobre o prazer que ela teria em vê-lo no

dia seguinte; não houve loucura que eu não a obrigasse a dizer.

Era preciso dar-lhe em esperanças o que lhe tirava em realidade;

além disso, tudo isso a tornaria mais sensível ao golpe, e estou

convencida de que quanto mais ela sofrer, mais ansiosa ficará

de na primeira ocasião tirar a desforra. É bom, aliás, habituar

aos grandes acontecimentos as pessoas que se destinam às grandes

aventuras.

No fim de contas, não é justo que ela pague com algumas

lágrimas o prazer de possuir o seu Danceny? Está doida por ele!

Pois bem, prometo-lhe que o há-de ter, e até mais cedo do que o

conseguiria sem este contratempo. É um sonho mau cujo despertar

será delicioso; e, bem feitas as contas, parece-me que ela

me deve estar reconhecida. De facto, mesmo que eu tenha posto

no caso um pouco de malícia, é preciso divertirmo-nos:

Retirei-me por fim, muito satisfeita de mim própria. "Ou

Danceny", dizia eu comigo, "excitado pelos obstáculos, vai

redobrar de amor, e então servi-lo-ei em tudo o que possa; ou,

se não passa de um tolo, como algumas vezes sou tentada a crer,

ficará desesperado e considerar-se-á vencido: ora, neste caso,

pelo menos ter-me-ei vingado dele, na medida em que o posso

fazer; ao mesmo tempo terei aumentado para mim a estima da

mãe, a amizade da filha e a confiança de ambas: Quanto a Gercourt,

primeiro objecto dos meus cuidados, muito infeliz seria

eu, ou muito inábil, se, dominando o espírito de sua mulher, o

que acontece já, e nesse sentido mais conseguirei ainda, eu não

encontrar mil maneiras de fazer dela o que eu quiser que ela seja".

Deitei-me acalentando estas doces ideias; o que me permitiu

dormir, e despertar muito tarde.

Ao acordar, encontrei dois bilhetes, um da mãe, outro da

filha; e não pude impedir-me de rir, encontrando em ambos literalmente

a mesma frase: É apenas de vós que espero alguma

consolação. Não é engraçado, de facto, consolar contra e a favor,

e ser o único agente de dois interesses directamente contrários?

Eis-me como a divindade: recebendo os votos opostos dos

cegos mortais e não mudando nada aos meus decretos imutáveis.

Abandonei todavia esse augusto papel, para tomar o de

97

anjo consolador; e, segundo os preceitos, fui visitar os meus

amigos na sua aflição.

Comecei pela mãe; encontrei-a numa tristeza que já em parte

vinga o Visconde das contrariedades que ela lhe fez sofrer por

parte da sua bela hipócrita. Tudo correu à maravilha. A minha

única inquietação era que Madame de Volanges não aproveitasse

esse momento para conseguir a confiança de sua filha; o que

teria sido muito fácil, desde que empregasse junto dela a linguagem

da doçura e da amizade, e dando conselhos cheios de razão,

com o ar e o tom da ternura indulgente. Por felicidade,

armou-se de severidade; enfim, portou-se tão mal, que só tive

ocasião de aplaudir. É certo que esteve para deitar por terra

todos os nossos projectos, pensando em fazer voltar a filha para

o convento; mas eu aparei o golpe; e consegui que apenas fizesse

a ameaça, no caso em que Danceny continuasse a importuná-las,

a fim de obrigar as duas a uma moderação que julgo

necessária para o êxito.

Em seguida estive com a filha. O Visconde não pode imaginar

como a dor a embeleza! Mesmo que venha a usar pouco de

coqueteria, garanto-lhe que há-de chorar muitas vezes; por esta

vez, chorava sem malícia... Surpreendida por aquele motivo de

agrado que eu não lhe conhecia, e que me sentia feliz de observar,

só lhe dei a princípio consolações ineptas, que aumentam

mais as mágoas do que as aliviam; e, por este meio, levei-a a

ponto de estar verdadeiramente sufocada. Deixou de chorar, e

por um momento temi as convulsões. Aconselhei-a a deitar-se, o

que ela fez; servi-lhe de criada de quarto. Não se tinha vestido, e

em breve os cabelos esparsos lhe caíam sobre os ombros e o pescoço

inteiramente descobertos. Abracei-a; ela deixou-se embalar

nos meus braços, e as lágrimas recomeçaram a cair-lhe sem

esforço. Deus! como ela estava bela! Ah! se Madalena era assim,

deve ter sido bem mais perigosa penitente que pecadora.

Quando a bela desolada se deitou, pus-me a consolá-la de

boa fé. Tranquilizei-a primeiro sobre os receios do convento.

Fiz nascer nela a esperança de ver Danceny secretamente. "Se

ele estivesse aqui...", disse-lhe eu, sentando-me na cama; depois,

fantasiando sobre esse tema, levei-a, de distracção em distracção,

a esquecer-se de que estava aflita. Ter-nos-íamos separado

perfeitamente satisfeitas uma com a outra se ela não tivesse

querido encarregar-me de uma carta para Danceny, o que eu

recusei firmemente. Aprovará com certeza os motivos, que passo

a expor.

Primeiro, seria comprometer-me junto de Danceny; e, se foi

esta a única razão de que pude servir-me junto da pequena, havia

muitas outras que nos dizem respeito. Não seria arriscar o

fruto do meu trabalho dar tão depressa aos nossos jovens um

meio tão fácil de suavizar as suas mágoas? E depois, não me

descontenta obrigá-los a meterem alguns criados nesta aventura;

porque, enfim, se ela for levada a bom fim, como espero, é

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preciso que seja conhecida imediatamente depois do casamento;

e poucos meios mais seguros do que esses existem para que todos

o venham a saber. Mas se, por milagre, os criados não falassem,

falaríamos nós, e sempre é mais cómodo que as inconfidências

fiquem a cargo deles.

É necessário pois que o Visconde dê hoje essa ideia a Danceny;

e como não estou segura da criada de quarto da pequena

Volanges, de quem ela própria parece desconfiar, indique-lhe a

minha fiel Vitória. Tomarei precauções para que esta diligência

seja coroada de bom êxito. Esta ideia agrada-me tanto mais,

quanto a confidência só nos será útil a nós, e nunca a eles: não

cheguei ainda ao fim da minha narração.

Enquanto eu me furtava a encarregar-me da carta da pequena,

temia a todo o momento que ela me propusesse pô-la no

correio, o que eu não poderia recusar. Felizmente, ou por estar

muito perturbada, ou por ignorância da sua parte, ou ainda

porque desse menos importância à carta que à resposta, a qual

ela não poderia ter por esse meio, o certo é que não me falou em

tal: mas para evitar que lhe viesse semelhante ideia, ou pelo

menos que pudesse servir-se dela, tomei imediatamente o meu

partido; e voltando a falar à mãe, decidi-a a afastar a filha por

algum tempo, a mandá-la para o campo... E para onde? Não

lhe bate de alegria o coração, Visconde?... Para casa de sua tia,

a velha Rosemonde. Hoje mesmo Madame de Volanges escreverá

nesse sentido: assim, eis o Visconde autorizado a voltar a ver

a sua devota, que já não terá a objectar o escândalo do convívio

a sós, e, graças aos meus cuidados, Madame de Volanges terá

ocasião de reparar o agravo que lhe fez.

Mas ouça-me, e não se ocupe tão vivamente dos seus assuntos

que acabe por perder este de vista; pense que ele me interessa.

Desejo que o Visconde se torne o correspondente e o conselheiro

dos dois jovens. Comunique pois a Danceny esta viagem,

e ofereça-lhe os seus serviços. Que a sua única dificuldade seja a

de fazer chegar às mãos da bela a sua credencial; e suprima esse

obstáculo imediatamente, indicando-lhe a minha criada de

quarto como intermediária. Não tenho qualquer dúvida de que

ele aceite; e como prémio das suas canseiras, terá o Visconde as

confidências de um coração jovem, o que é sempre interessante.

Pobre pequena! Como ela há-de corar ao entregar-lhe a sua

primeira carta! Na verdade, este papel de confidente, contra o

qual se erguem preconceitos, parece-me um lindo passatempo

quando se tem outras ocupações; e será este o seu caso.

Depende agora dos seus cuidados o desfecho desta intriga.

O campo oferece mil ocasiões; e Danceny, com toda a certeza,

estará pronto a seguir logo que o Visconde lhe faça o primeiro

sinal. Uma noite, um disfarce, uma janela..., que sei eu? Mas,

enfim, se a rapariguinha continuar na mesma, ao Visconde pedirei

contas. Se achar que ela precisa que eu a encoraje, mande-mo

dizer. Creio ter-lhe dado uma boa lição sobre o perigo de

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guardar cartas, para ousar escrever-lhe agora; e continuo com a

intenção de fazer dela minha discípula.

Parece-me ter esquecido dizer-lhe que as suspeitas da pequena

no que respeita à denúncia da correspondência caíram primeiro

sobre a criada de quarto, e eu desviei-as para o confessor.

Chama-se a isto matar dois coelhos de uma cajadada.

Adeus, Visconde; estou há muito tempo a escrever-lhe e

atrasei-me para o jantar; mas o amor-próprio e a amizade ditaram

esta carta, e ambos são tagarelas. O que é preciso é que a

carta esteja em sua casa às três horas.

Agora queixe-se de mim, se se atrever, e volte a ver, se lhe

apetece, o bosque do Conde de B... Diz o Visconde que ele o

guarda para prazer dos seus amigos! Esse homem é então amigo

de toda a gente? Mas adeus, tenho fome.

9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXIV

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE VOLANGES

(minuta junta à Carta LXV1, do Visconde à Marquesa)

Sem procurar justificar a minha conduta, senhora, e sem me

queixar da vossa, só me resta afligir-me por um acontecimento

que faz a infelicidade de três pessoas, todas dignas de um destino

mais feliz. Mais sensível ainda à tristeza de lhe ter sido a causa

do que à de ter sido a vítima, tentei muitas vezes, desde ontem,

ter a honra de vos responder, sem poder encontrar forças

para tal. Tenho, no entanto, tantas coisas a dizer-vos, que me é

necessário fazer um grande esforço sobre mim próprio; e se esta

carta for um tanto desordenada, devereis sentir quanto a minha

situação é dolorosa, para me concederdes alguma indulgência.

Permiti-me primeiro que proteste contra a primeira frase da

vossa carta. Eu não abusei; ouso dizê-lo, nem da vossa confiança

nem da inocência de Mademoiselle de Volanges; respeitei

uma e outra nas minhas acções. Só elas dependem de mim; e

quando me tornásseis responsável por um sentimento involuntário,

não recearia acrescentar que o que me foi inspirado por

vossa filha pode desagradar-vos, mas nunca ofender-vos. Sobre

este assunto, que me interessa mais do que eu posso dizer-vos,

só a vós, senhora, desejo por juiz, e às minhas cartas por testemunhas.

Proibis-me de me apresentar de futuro em vossa casa, e sem

dúvida terei de sujeitar-me a tudo o que vos aprouver ordenar a

este respeito: mas esta ausência súbita e total não dará lugar aos

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murmúrios que quereis evitar, tanto como a ordem que, pelo

mesmo motivo, não quiseste dar aos vossos criados? Insistirei

tanto mais sobre este ponto, quanto é certo que ele é mais importante

para Mademoiselle de Volanges do que para mim.

Suplico-vos pois que peseis atentamente todas as razões, de

modo a não permitir que a vossa severidade altere a vossa prudência.

Persuadido de que só o interesse de vossa filha ditará as

vossas resoluções, aguardarei novas ordens da vossa parte.

Entretanto, no caso em que me permitísseis frequentar a

vossa casa algumas vezes, comprometo-me (e podeis contar

com o cumprimento da minha promessa) a não abusar dessas

ocasiões para tentar falar em particular com Mademoiselle de

Volanges, ou entregar-lhe qualquer carta. O receio de pôr em

perigo a sua reputação leva-me a este sacrifício; e a felicidade de

a ver algumas vezes me compensará.

É esta a única resposta que posso dar ao que me dizeis sobre

a sorte que destinais a Mademoiselle de Volanges, e que quereis

tornar dependente da minha conduta. Prometer-vos mais seria

enganar-vos. Um vil sedutor pode adaptar os seus projectos às

circunstâncias e calcular segundo os acontecimentos; mas o

amor que me anima permite-me apenas dois sentimentos: a coragem

e a constância.

Eu, consentir em ser esquecido por Mademoiselle de Volanges,

ou esquecê-la eu mesmo? Não, nunca! Ser-lhe-ei fiel; ela

recebeu o juramento, e eu renovo-o agora. Perdão, minha senhora,

eu desvairo, tentarei reagir.

Resta-me outro assunto a tratar convosco: o das cartas que

me pedistes. Fico verdadeiramente penalizado por ter de acrescentar

uma recusa aos agravos que tendes de mim; mas suplico-vos,

atendei as minhas razões, e dignai-vos lembrar-vos, para

as apreciardes, que a única consolação para a desgraça de ter

perdido a vossa amizade é a esperança de conservar a vossa estima.

As cartas de Mademoiselle de Volanges, sempre tão preciosas

para mim, muito mais preciosas se tornaram neste momento.

São o único bem que me resta; só essas cartas me recordam

ainda um sentimento que constitui todo o encanto da minha

vida. Entretanto, podeis crer-me, não hesitaria um instante em

fazer-vos esse sacrifício; e o pesar de ser privado delas cederia

ao desejo de vos provar a minha deferência respeitosa; mas considerações

poderosas me tolhem o impulso, e estou certo de que

vós mesma não podereis censurá-las.

É certo que entrastes na posse do segredo de Mademoiselle

de Volanges; mas, permiti que vos diga, estou autorizado a crer

que foi o efeito da surpresa e não da confiança. Não pretendo

censurar-vos um acto que a solicitude materna talvez autorize.

Respeito os vossos direitos, mas não ao ponto de me dispensar

dos meus deveres. O mais sagrado de todos é o de nunca trair a

confiança que alguém nos concede. Seria faltar a ela expor aos

olhos de outrem os segredos de um coração que desejou confiá-los

101

só aos meus. Se vossa filha consente em vo-los confiar, a ela

compete falar; as suas cartas ser-vos-iam inúteis. Se, pelo contrário,

ela quer encerrar o seu segredo em si própria, não esperareis,

por certo, que seja eu quem vos instrua a tal respeito.

Quanto ao mistério no qual desejais que este acontecimento

fique sepulto, podeis ficar tranquila, minha senhora; sobre tudo

o que interessa Mademoiselle de Volanges, posso desafiar mesmo

o coração de uma mãe. Para vos tirar todo o motivo de inquietação,

previ tudo. O precioso depósito, que até aqui tinha

inscrito: papéis para queimar, tem agora: papéis pertencentes a

Madame de Volanges. Esta resolução que tomei deve provar-vos

assim que a minha recusa não se baseia no receio de que

encontreis nessas cartas um único sentimento de que pessoalmente

tenhais de queixar-vos.

Eis, minha senhora, uma bem longa carta. Não o seria ainda

bastante se vos deixasse a menor dúvida sobre a honestidade

dos meus sentimentos, do pesar muito sincero de vos ter desagradado,

e do profundo respeito com que tenha a honra de ser,

etc.

9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXV

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Enviada aberta à Marquesa de Merteuil na Carta LXVI do Visconde)

Ó minha Cecília, que vai ser de nós? Que Deus nos salvará

das desgraças que nos ameaçam? Ao menos, que o amor nos dê

coragem para as suportar! Como descrever-lhe o meu espanto,

o meu desespero à vista das minhas cartas, ante a leitura do bilhete

de Madame de Volanges? Quem nos terá traído? Sobre

quem recaem as suas suspeitas? Teria a Cecília cometido alguma

imprudência? Que faz agora? Que lhe têm dito? Tanto eu

desejava saber tudo, e tudo ignoro. Talvez mesmo a Cecília não

saiba mais do que eu.

Envio-lhe o bilhete da sua Mamã, e a cópia da minha resposta.

Espero que aprovará o que eu lhe disse. Preciso muito

que aprove também as diligências que fiz desde aquele fatal

acontecimento, pois que todas têm por fim conseguir notícias

suas e dar-lhe as minhas; e, quem sabe?, talvez voltar a vê-la, e

com maior liberdade do que nunca. Põe na sua ideia, minha Cecília,

que prazer seria voltarmos a encontrar-nos, podermos jurar-nos

de novo um amor eterno, e ver nos nossos olhos, sentir

nas nossas almas que esse juramento não será desmentido? Um

momento tão doce, que mágoas não fará esquecer? Pois bem!

102

Tenho esperança de que tal momento surja, e devo-a a essas

mesmas diligências para que suplico a sua aprovação. Que digo

; eu? Devo essa esperança aos consoladores cuidados do mais

; terno dos amigos; e o único pedido que lhe faço é que permita

; que esse amigo seja também o seu.

Talvez eu não devesse confiar tanto sem o seu consentimento;

mas tenho por desculpa a má sorte e a necessidade. Foi o

amor que me conduziu; é ele que reclama a sua indulgência, que

lhe pede que perdoe uma confidência necessária, e sem a qual

ficaríamos talvez separados para sempre. Conhece o amigo de

* O Cavaleiro Danceny não fala verdade. Tinha já feito essa confidência

ao senhor de Valmont antes desse acontecimento. Ver Carta LVII.

que lhe falo; é-o também da mulher de quem a Cecília tanto

gosta. É o Visconde de Valmont.

O meu projecto, ao dirigir-me a ele, era primeiro o de lhe

pedir que conseguisse de Madame de Merteuil encarregar-se de

uma carta para a Cecília. Não julgou ele que esse meio fosse

bem sucedido mas, na falta da Marquesa, responde pela sua

criada de quarto, que lhe deve obrigações. Será ela quem lhe

entregará esta carta e a Cecília poderá dar-lhe a resposta.

Este auxílio não nos será de qualquer utilidade, se, como

supõe o Visconde, a Cecília partir em breve para o campo. Mas

nesse caso ele próprio deseja servir-nos. A dona da casa é parente

dele, que aproveitará esse pretexto para a visitar ao mesmo

tempo. E será por seu intermédio que poderemos trocar a nossa

correspondência. Deu-me mesmo a certeza de que, se a Cecília o

consentir, ele conseguirá arranjar maneira de nos vermos sem o

perigo de se comprometer.

Agora, minha Cecília; se tem amor por mim, se lamenta a

minha má sorte, se, como espero, toma parte nas minhas mágoas,

recusará a sua confiança a um homem que será o nosso

anjo tutelar? Sem ele, ficarei reduzido ao desespero de nem mesmo

poder suavizar as tristezas que lhe causei. Elas terão fim, espero-o;

mas, minha terna amiga, prometa-me que não se entregará

demasiado a tais tristezas, que não se deixará vencer por elas.

A ideia da sua dor é para mim um tormento insuportável. Daria

a minha vida para a fazer feliz! Bem o sabe. Possa a certeza de

ser adorada levar alguma consolação à sua alma! A minha tem

necessidade da certeza de que perdoa ao meu amor os males que

a obriga a sofrer.

Adeus, minha Cecília, adeus minha terna amiga.

9 de Setembro de 17 * *

CARTA LXVI

103

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Lendo as duas cartas que junto, a minha bela amiga verá se

á: me desempenhei bem ou mal da missão de que me encarregou.

Embora ambas sejam datadas de hoje, foram escritas ontem, em

minha casa, e debaixo dos meus olhos. A carta para a pequena

diz tudo o que nós desejávamos. Perante a profundeza dos planos

da minha boa amiga, e a julgar pelo êxito dos seus empreendimentos,

não posso senão humilhar-me. Danceny está em brasa;

e, seguramente, na primeira ocasião deixará de ser digno das

censuras que lhe tem dirigido. Se a bela ingénua quiser ser dócil;

tudo estará terminado pouco tempo depois da sua chegada;

tenho cem maneiras preparadas. Graças aos cuidados da Marquesa,

eis-me decididamente o amigo de Danceny; a ele, não lhe

falta mais senão ser Príncipe.

É ainda muito novo, esse Danceny! Acredite, minha amiga,

que não consegui obter dele que prometesse à mãe a renúncia ao

amor pela filha; como se fosse muito difícil prometer, quando se

está decidido a não cumprir! Seria enganar - repetia-me ele continuamente.

Não é verdade que é um escrúpulo edificante, principalmente

quando se trata de seduzir a pequena? E são assim

os homens! Todos igualmente celerados nos seus projectos,

quando fraquejam na execução, chamam a isso probidade.

Pertence à minha amiga impedir que Madame de Volanges

se enfureça pelas pequenas liberdades que o nosso jovem se

permite na sua carta; livre-nos do convento; e consiga também

que a senhora desista do pedido das cartas da pequena. Em

primeiro lugar, ele não as entregará, e nisso sou da mesma opinião;

neste ponto o amor e a razão estão de acordo. Li todas

essas cartas, devorei o tédio que elas destilam. Podem vir a ser

úteis. Eu me explico.

Apesar da prudência de que usaremos, pode acontecer o

imprevisto; isso faria que o casamento falhasse, e todos os nossos

projectos concernentes a Gercourt cairiam por terra, não é

assim? Mas como, por meu lado, tenho de me vingar da mãe,

reservo-me o direito de desonrar a filha. Fazendo uma escolha

habilidosa nessa correspondência e dando a público apenas

uma parte, a pequena Volanges ficaria suspeita de ter dado os

primeiros passos e ter-se absolutamente atirado de cabeça. Algumas

dessas cartas poderiam mesmo comprometer a mãe e deixá-la-iam

maculada pelo menos de uma imperdoável negligência.

Sei bem que o escrupuloso Danceny se sentiria revoltado às

primeiras impressões; mas como seria atacado pessoalmente,

creio que acabaria por se recuperar. Existem mil probabilidades

contra uma de que as coisas não sigam este caminho; mas é preciso

prever tudo.

104

Adeus, minha bela amiga; seria muito amável se aceitasse o

convite da Marechala de... para cear amanhã em sua casa; por

mim, não pude recusar.

Julgo não ser necessário recomendar-lhe segredo, em relação

a Madame de Volanges, no que respeita ao meu projecto de

férias no campo; ela teria o cuidado de ficar na cidade. Assim,

uma vez que nos encontraremos, com certeza não partirá no dia

seguinte. E se ela nos der somente oito dias, respondo por tudo.

9 de Setembro de 17 * *

CARTA LXVII

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Não desejaria responder-vos, senhor, e talvez o embaraço

que sinto neste momento seja uma prova de que não o deveria

fazer. Entretanto, não quero deixar-vos um único motivo de

queixa contra mim. Desejo convencer-vos de que fiz por vós

tudo quanto poderia fazer.

Dizeis que vos permiti que me escrevêsseis? Convenho; mas

quando me lembrais essa permissão, julgais que me esqueci das

condições em que ela foi dada? Se eu tivesse sido tão fiel a tal

concessão quando vos afastastes dela, teríeis recebido uma única

resposta minha? No entanto, esta já é a terceira; e enquanto

fazeis tudo o que é preciso para me obrigardes a terminar esta

correspondência, sou eu que me ocupo dos meios de a continuar.

Existe um, mas é o único; e se recusais aceitá-lo, seja o que

for que digais, será provar-me o pouco apreço que lhe dais.

Deixai pois uma linguagem que não posso nem quero ouvir;

renunciai a um sentimento que me ofende e me horroriza, e ao

qual talvez vos sentísseis menos ligado se pensásseis no obstáculo

que nos separa. Será esse o único sentimento que possais

conhecer, e o amor terá a meus olhos mais esse defeito de excluir

a amizade? Tereis, vós próprio, a maldade de não querer

por amiga aquela em quem desejais sentimentos mais ternos?

Não quero acreditá-lo; essa ideia humilhante revoltar-me-ia, e

afastar-me-ia de vós sem remédio.

Oferecendo-vos a minha amizade, senhor, dou-vos tudo o

que me pertence, tudo aquilo de que posso dispor. Que podereis

querer mais? Para me entregar a esse sentimento tão doce, tão à

medida do meu coração, espero apenas o vosso acordo, e a palavra

que de vós exijo, de que essa amizade bastará para vos

fazer feliz. Esquecerei tudo o que pudestes dizer-me; deixar-vos-ei

o cuidado de justificar a minha escolha.

Vedes a minha fraqueza; ela deve provar-vos a minha confiança.

105

Depende de vós aumentá-la; mas previno-vos de que a

primeira palavra de amor a destruirá para sempre, ressuscitando

todos os meus receios; que marcará para mim o início de um

silêncio eterno para convosco.

Se, como dizeis, estais distanciado dos vossos erros, não

achais preferível ser objecto da amizade de uma mulher honesta,

que causador dos remorsos de uma mulher culpada? Adeus,

senhor; deveis sentir que, depois de ter falado assim, nada posso

dizer-vos a que não me tenhais já respondido.

9 de Setembro de 17 * *

CARTA LXVIII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Como responder, senhora, à vossa última carta? Como ousarei

ser verdadeiro, quando a minha sinceridade pode perder-me

a vossos olhos? Não importa, é necessário; terei essa coragem.

A mim próprio digo e repito que vale mais merecer-vos do

que obter-vos; e, embora me recuseis uma felicidade que desejarei

incessantemente, é preciso ao menos provar-vos que o meu

coração é digno dela.

Que pena que, como dizeis, eu esteja distanciado dos meus

erros! Com que transportes de alegria eu teria lido essa mesma

carta à qual tremo hoje de responder! Falais-me nela com franqueza,

testemunhais-me confiança, ofereceis-me por fim a vossa

amizade: tantas ofertas, senhora, e que pesar eu tenho de não

poder aproveitar delas ! Por que não continuo eu a ser o mesmo?

Se de facto o fosse, se sentisse por vós apenas uma afeição

vulgar, aquela afeição ligeira, filha da sedução e do prazer, à

qual, no entanto, se dá hoje o nome de amor, apressar-me-ia a

tirar vantagem de tudo o que pudesse obter. Pouco delicado

sobre os meios, contanto que eles me garantissem o êxito, daria

ânimo à vossa franqueza pela necessidade de vos adivinhar;

desejaria a vossa confiança com o fim de a trair; aceitaria a vossa

amizade, na esperança de a desencaminhar... Pois quê, senhora!

horroriza-vos este quadro?... No entanto, seria essa a

minha obra se vos dissesse que consinto em ser apenas vosso

amigo...

Pois consentiria eu partilhar com alguém um sentimento

emanado da vossa alma? Se alguma vez eu o disser, não o acrediteis.

Desde esse momento procuraria enganar-vos; poderia

desejar-vos ainda, mas seguramente já não vos amaria.

Não é o caso que a amável franqueza, a doce confiança, a

sensível amizade não tenham a meus olhos certo valor... Mas o

106

amor! o amor verdadeiro, e tal como vós o inspirais, reunindo

todos esses sentimentos, dando-lhes maior energia, não poderia

prestar-se, como eles, a essa tranquilidade, a essa frieza da alma,

que permite comparações, que suporta mesmo preferências.

Não, minha senhora, não serei vosso amigo; amar-vos-ei com o

amor mais terno, e mesmo o mais ardente, embora o mais respeitoso.

Podereis tirar-lhe toda a esperança, mas não aniquilá-lo.

Com que direito pretendeis dispor de um coração de que

recusais as homenagens? Por que requinte de crueldade me disputais

até a felicidade de vos amar? Essa felicidade pertence-me,

é independente de vós; saberei defendê-la. Se é ela a fonte dos

meus males, é-lhes também o remédio.

Não, ainda uma vez, não. Podeis persistir nas vossas cruéis

recusas; mas deixai-me o meu amor. Comprazeis-vos em tornar-me

infeliz! Está bem; seja! Experimentai cansar a minha

coragem; saberei forçar-vos ao menos a decidir a minha sorte. E

talvez um dia me façais maior justiça. Não é que eu espere tornar-vos

alguma vez sensível; mas sem serdes persuadida, ficareis

convencida, e direis a vós mesma: "Tinha-o julgado mal."

Dizendo melhor, a vossa injustiça recai sobre vós. Conhecer-vos

sem vos amar, amar-vos sem ser constante, eis duas coisas

igualmente impossíveis; e apesar da modéstia que é vosso

timbre, deve ser-vos mais fácil queixar-vos do que admirar-vos

dos sentimentos que fazeis nascer. Por mim, cujo único mérito é

o ter sabido apreciar-vos, esse não quero perdê-lo; e longe de

consentir nas vossas traiçoeiras ofertas renovo a vossos pés o

juramento de vos amar sempre.

10 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXIX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Bilhete escrito a lápis e copiado por Danceny)

Pergunta-me o que faço; amo-o e choro. Minha mãe não me

fala; tirou-me papel, penas e tinta; sirvo-me dum lápis, que por

felicidade me ficou, e escrevo-lhe num bocado de papel da sua

carta. É-me forçoso aprovar tudo o que fez; amo-o demasiado

para não aproveitar todos os meios de receber as suas notícias e

dar-lhe as minhas. Eu não gostava do senhor Valmont, e não

supunha que ele fosse tão seu amigo; tentarei habituar-me a ele,

e a gostar dele por sua causa. Não sei quem foi que nos traiu.

Não pode ter sido senão a minha criada de quarto ou o meu

107

confessor. Sou muito infeliz. Partimos amanhã para o campo;

não sei por quanto tempo. Meu Deus! Não mais o ver! Não

haverá meio de o conseguir. Adeus; tente ler este bilhete. Estas

palavras escritas a lápis virão talvez a apagar-se, mas nunca os

sentimentos agravados no meu coração:

10 de Setembro de 17* *

CARTA LXX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Tenho uma revelação importante a fazer-lhe, minha querida

amiga.

Ontem, ceava eu, como sabe, em casa da Marechala de...,

quando se falou da minha amiga, e aproveitei para dizer a seu

respeito não todo o bem que penso, mas todo aquele que não

penso. Toda a gente parecia ser da minha opinião, e a conversa

ia afrouxando, como acontece sempre que se diz apenas bem do

próximo, quando se ergueu a voz de um contraditor: era Prévan.

"Deus me defenda", disse ele levantando-se, "de duvidar da

seriedade de Madame de Merteuil! Mas ousaria crer que ela

a deve mais à sua ligeireza do que aos seus princípios. É talvez

mais difícil segui-la que agradar-lhe; e como, quando se corre

atrás de uma mulher, acontece sempre aparecerem outras no

caminho, como, em suma, as outras podem valer tanto ou mais

do que ela; uns são distraídos por um gesto novo, outros desistem

por cansaço; por isso ela é talvez a mulher de Paris que

menos tenha tido de se defender. Por mim", acrescentou ele (encorajado

pelo sorriso de algumas mulheres), "não acreditarei na

virtude de Madame de Merteuil senão depois de ter rebentado

seis cavalos a fazer-lhe a minha corte".

Este mau gracejo caiu bem, como todos os que se baseiam

na maledicência; e, enquanto duravam os risos que ele excitou,

Prévan retomou o seu lugar e a conversação geral mudou de

rumo. Mas as duas Condessas de B..., junto das quais estava o

nosso incrédulo, tiveram com ele uma conversa particular, que

felizmente estava ao alcance do meu ouvido.

Prévan garantiu que despertaria a sua sensibilidade, minha

boa amiga, e o desafio foi aceito, com a sua palavra de contar

tudo; e de todas as palavras que viriam a dar-se nessa aventura,

essa seria seguramente a mais religiosamente guardada. Mas

agora está prevenida, e conhece o provérbio.

Resta-me dizer-lhe que esse Prévan, que a Marquesa não

108

conhece, é infinitamente amável, e ainda mais habilidoso. Se

alguma vez me ouvir dizer o contrário, foi simplesmente porque

não gosto dele, porque me apraz diminuir os seus êxitos e por

que não ignoro o peso da minha opinião junto de trinta, pelo

menos, das mulheres da moda.

De facto, manifestando-me de tal modo, impedi-o por muito

tempo de fazer figura no que chamamos os grandes meios;

podia fazer prodígios: nem por isso aumentava a sua reputação.

Mas o ruído da sua tríplice aventura, chamando as atenções

sobre ele, deu-lhe aquela confiança que até então lhe faltava e

tornou-o verdadeiramente temível. Enfim, é hoje, talvez, o único

homem que eu recearia encontrar no meu caminho; à parte o

interesse que a minha amiga nisso possa ter, prestar-me-ia um

verdadeiro serviço se o expusesse, de passagem, a qualquer ridículo.

Deixo-o em boas mãos; e tenho a esperança de que no meu

regresso será um homem liquidado.

Prometo-lhe, em troca, levar a bom fim a aventura da sua

pupila e ocupar-me dela tanto como da minha bela e virtuosa

Presidente.

Esta acaba de me enviar um projecto de capitulação. Toda a

sua carta anuncia o desejo de ser enganada. É impossível oferecer

um meio mais cómodo e também mais usado. Quer que eu

seja seu amigo. Mas eu, que gosto dos processos novos e difíceis,

não quero possuí-la por tão baixo preço; e seguramente

não me obrigaria a tanto trabalho com ela para terminar por

uma vulgar sedução.

O meu projecto, pelo contrário, é que ela sinta bem profundamente

o valor e a extensão de cada um dos sacrifícios que virá

a fazer por mim; não a conduzirei tão rapidamente que não

possa ser seguida pelo remorso; fazer expirar a sua virtude

numa lenta agonia; obrigá-la a ter sempre presente esse desolador

espectáculo; e não lhe conceder a felicidade de me apertar

nos seus braços senão depois de a ter forçado a não dissimular o

desejo. Na verdade, valho muito pouco se não valho o esforço

de ser solicitado. E poderei desejar menor vingança de uma

mulher altiva, que parece envergonhar-se de confessar a sua

adoração?

Recusei pois a preciosa amizade e fixei-me firmemente no

meu título de amante. Como não me iludo sobre esse título que,

parecendo à primeira vista uma disputa de palavras, é todavia

de uma importância real a obter, pus todos os cuidados na minha

carta, e tratei de introduzir nela aquela desordem que constitui

o único meio de descrever os sentimentos. Fui, enfim, tão

pouco razoável quanto me foi possível; pois sem ausência de

raciocínio não há ternura; e creio que é por esta razão que as

mulheres nos são a tal ponto superiores nas cartas de amor.

Terminei a minha carta por um galanteio, e fi-lo ainda em

resultado das minhas profundas observações. Quando o coração

de uma mulher é posto à prova durante algum tempo, tem

109

necessidade de repouso; e tenho observado que um galanteio

constitui, para todas, o travesseiro mais macio que lhes podemos

oferecer.

Adeus, minha bela amiga. Parto amanhã. Se tiver ordens a

dar-me pela Condessa de..., farei paragem em casa dela, pelo

menos para jantar. Aborrece-me ter de partir sem a ver. Dê-me

parte das suas sublimes instruções e ajude-me com os seus sábios

conselhos, neste momento decisivo.

Sobretudo, defenda-se de Prévan; e possa eu um dia recompensá-la

por esse sacrifício! Adeus.

11 de Setembro de 17* *

CARTA LXXI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

O pateta do meu criado deixou a minha pasta em Paris! As

cartas da minha bela, as de Danceny para a pequena Volanges,

tudo lá ficou, e tenho precisão de tudo. Tive de o mandar regressar,

para reparar a sua tolice; e enquanto ele sela o cavalo,

vou contar-lhe a minha história desta noite: pois decerto não

vai supor que perco o meu tempo.

A aventura, em si mesma, é pouca coisa; trata-se apenas de

um caldo requentado com a Viscondessa de M... Mas interessa

pelos pormenores. Por outro lado sinto-me feliz por lhe mostrar

que, se possuo o talento de perder as mulheres, não possuo

menos, quando quero, o de as salvar. O partido mais difícil, ou

o mais alegre, é sempre o que eu tomo; e nunca tenho de me

censurar por uma boa acção, contanto que ela me ponha à prova

ou me divirta.

, Deu-se pois o caso de encontrar aqui a Viscondessa, e como

ela juntava as. suas instâncias às que me faziam para passar a

noite no castelo, disse-lhe: "Está bem! Consinto, com a condição

de a passar a seu lado." - "Isso é impossível", respondeu-me

ela. "Vressac está aqui." Até ali eu pensava que lhe fazia

uma proposta honesta; mas aquela palavra "impossível" revoltou-me,

como de costume. Senti-me humilhado por ser sacrificado

a Vressac e resolvi não o suportar. Tive pois de insistir.

As circunstâncias não me eram favoráveis. Esse Vressac

cometeu a tolice de despertar suspeitas no Visconde, de modo

que a Viscondessa não pode recebê-lo em sua casa; e a visita de

ambos à boa Condessa tinha sido combinada entre eles, de

maneira a aproveitarem algumas noites. O Visconde chegou até

a mostrar-se aborrecido por ali encontrar Vressac; mas como é

110

ainda mais caçador do que ciumento, nem por isso deixou de

ficar. E a Condessa, sempre igual a si mesma (a minha amiga

conhece-a!), depois de ter instalado a mulher num quarto do

corredor principal, pôs o marido de um lado e o amante do outro,

e deixou-os arranjarem as coisas entre si. A má sorte dos

dois homens quis que eu ficasse instalado em frente.

Nesse mesmo dia, quer dizer, ontem, Vressac, que, como

pode imaginar, estraga o Visconde com mimos, foi à caça com

ele, apesar de pouco gostar de caçar, e esperava consolar-se à

noite, entre os braços da mulher, do aborrecimento que o marido

lhe causara todo o dia. Eu, porém, achei que ele teria necessidade

de repouso, e procurei maneira de decidir a amante a deixar-lhe

tempo para tal. Obtive o que pretendia e consegui que

ela arranjasse uma zanga com motivo naquela mesma caçada, à

qual ele, evidentemente, se sujeitara por ela. Não poderia haver

pior pretexto; mas nenhuma mulher tem, como a Viscondessa,

o talento, comum a todas, de pôr no lugar da razão o mau

humor, e de ser tanto mais difícil de apaziguar quanto menos

motivos tem de agravo. O momento aliás não era cómodo para

explicações; e como eu só pretendia uma noite, consenti que

eles fizessem as pazes no dia seguinte.

Vressac teve pois de aturar à volta os arrufos da Viscondessa.

Quis saber o motivo, obteve ralhos. Tentou justificar-se; o

marido, que estava presente, serviu de pretexto para acabar a

conversa. Procurou ainda aproveitar um momento em que o

Visconde se ausentara para pedir audiência nocturna: foi então

que a Viscondessa atingiu o sublime. Indignou-se contra a audácia

dos homens, que, só porque põem à prova a bondade de

uma mulher, julgam ter o direito de continuarem a abusar,

mesmo quando ela tem motivos de queixa; e tendo mudado de

tese com esta habilidade, falou tão bem de delicadeza e de sentimentos,

que Vressac ficou confuso e mudo. Eu próprio estive

tentado a crer que ela tinha razão; pois deve supor que, como

amigo de ambos, eu era testemunha do diálogo.

Por fim, a Viscondessa declarou que não acrescentaria as

fadigas do amor às da caça, para não ter de se censurar por perturbar

tão doces prazeres. O marido voltou. O desolado Vressac,

que já não tinha liberdade de responder, dirigiu-se a mim; e

depois de por muito tempo me ter contado as suas razões, que

eu conhecia tão bem como ele, pediu-me que falasse à Viscondessa,

e eu prometi-lho. De facto, falei-lhe; mas foi para lhe agradecer,

e combinar com ela a hora e a maneira de nos encontrarmos.

Disse-me ela que, instalada entre o marido e o amante,

achara mais prudente ir ao encontro de Vressac do que recebê-lo

no seu quarto; e, já que eu estava instalado em frente dela,

julgava mais seguro também vir ao meu encontro. Viria assim

que a criada de quarto a deixasse só; eu só tinha de deixar a

porta entreaberta e esperá-la.

Tudo se executou como tínhamos combinado; pela uma

111

hora da madrugada chegou ela ao meu quarto

D'une beauté qu'on vient d'arracher au sommeil.1

Como não sou vaidoso, não lhe descreverei os pormenores

da noite: mas a Marquesa conhece-me, e eu fiquei satisfeito

comigo.

Ao raiar do dia, foi necessário separarmo-nos. Aqui começa

a coisa a ser interessante. A estouvada julgou que tinha deixado

entreaberta a porta do seu quarto; encontrámo-la fechada, e a

chave tinha ficado do lado de dentro. Não faz ideia da expressão

de desespero com que a Viscondessa me disse então: "Ah!

Estou perdida!" É preciso convir que teria sido divertido deixá-la

naquela situação; mas podia eu suportar que uma mulher

ficasse perdida para mim, sem o ser por mim? E devia eu, como

o comum dos homens, deixar-me dominar pelas circunstâncias?

Era preciso pois encontrar um meio. Que teria feito a minha

bela amiga? Eis o partido que tomei, e que resultou com êxito.

Depressa verifiquei que a porta em questão podia ser arrombada,

desde que se pudesse fazer muito barulho. Consegui pois da

Viscondessa, não sem custo, que ela soltasse gritos agudos de

terror, como Acudam! um ladrão! um assassino! etc. E combinámos

que, ao primeiro grito, eu arrombaria a porta, e ela correria

a meter-se na cama. Não pode imaginar o tempo que foi

preciso para a decidir, mesmo depois de ela ter consentido. No

entanto, acabou-se por cumprir o combinado, e ao primeiro

pontapé a porta cedeu.

A Viscondessa fez bem em não perder tempo, pois no mesmo

instante o Visconde e Vressac apareceram no corredor, e a

criada de quarto acorreu também ao quarto da senhora. Só eu

mantinha o sangue-frio, e aproveitei a circunstância para ir

apagar uma lamparina que estava ainda acesa e derrubá-la por

terra; pois faz bem ideia quanto seria ridículo fingir aquele terror

pânico, tendo luz no quarto. Em seguida repreendi o marido

e o amante pelo seu sono letárgico e dei-lhes a certeza de que os

gritos a que eu tinha acudido e os meus esforços para arrombar

a porta tinham durado pelo menos cinco minutos.

A Viscondessa, que recuperara a coragem logo que se meteu

na cama, jurava com a máxima sinceridade que nunca tivera tanto

medo na sua vida. Procurávamos por toda a parte sem

nada encontrar, quando fiz notar a lamparina derrubada, e

concluí que, sem dúvida, um rato tinha causado o dano e o terror;

a minha opinião foi aprovada por unanimidade e, depois de

alguns gracejos à custa dos ratos, o Visconde foi o primeiro a

ir-se deitar, pedindo à esposa que de futuro tivesse ratos mais

sossegados.

Vressac, ficando só connosco, aproximou-se da Viscondessa

para lhe dizer ternamente que era uma vingança do amor, ao

que ela respondeu olhando-me: "Nesse caso o amor devia estar

112

muito zangado, pois se vingou cruelmente; mas", acrescentou

ela, "estou cheia de fadiga e quero dormir."

Eu estava num momento de bondade; em consequência,

antes de nos separarmos, advoguei a causa de Vressac e preparei

a reconciliação. Os dois amantes beijaram-se e, por minha vez,

fui beijado por ambos. Os beijos da Viscondessa deixaram-me

indiferente; mas confesso que o de Vressac me deu prazer. Saímos

juntos; e depois de ter recebido os seus prolongados agradecimentos,

cada um de nós foi-se meter na cama.

Se achar que esta história é engraçada, não lhe peço que

guarde segredo. Agora que já me diverti, é justo que o público

tenha a sua vez. Neste momento falo-lhe só da história; talvez

dentro em pouco tenhamos de. falar da sua heroína.

Adeus; há uma hora que o meu criado está à minha espera.

Tomo apenas o tempo para lhe mandar um abraço, e lhe recomendar

sobretudo que tenha cuidado com Prévan.

Do Castelo de...,13 de Setembro de 17 * .

CARTA LXXII

O CAVALEIRO DANCENY A CeCÍLIA VOLANGES

(Entregue somente em 14)

Ó minha Cecília! como invejo a sorte de Valmont! Amanhã

ele vê-la-á. É ele quem lhe entregará esta carta; e eu, longe de si,

entregue às minhas mágoas, arrastarei a minha penosa existência

entre as saudades e a dor. Minha amiga, minha terna amiga,

lastime-me pelos meus males; lastimo-me sobretudo pelos seus;

é contra estes que a coragem me abandona.

Quanto me é penoso causar a sua infelicidade! Sem mim

seria feliz e tranquila. Perdoa-me? Diga! Ah! Diga que me perdoa;

diga-me também que me tem amor, que há-de amar-me

sempre. Sinto necessidade que mo repita. Não é que eu duvide;

mas parece-me que quanto mais se tem essa certeza mais doce é

ouvi-lo dizer. Ama-me, não é verdade? Sim, ama-me com toda a

sua alma. Não esqueço que foi a última palavra que lhe ouvi

pronunciar. Como a recolhi no meu coração! Como ela se gravou

ali profundamente! E com que transportes o meu lhe corresponde!

Ai! Nesse momento de felicidade, estava eu longe de prever

a sorte horrorosa que nos esperava. Ocupemo-nos, minha Cecília,

dos meios para a suavizar. A crer no meu amigo, bastará,

para que o consigamos, que a Cecília deposite nele a confiança

113

que merece.

Fiquei contristado, confesso-o, com a ideia pouco vantajosa

que parece ter a seu respeito. Reconheço aí as prevenções da sua

Mamã: foi para me submeter a elas que descuidei, durante algum

tempo, a sociedade desse homem verdadeiramente amável,

que hoje tudo fará por mim; que, enfim, trabalha para nos reunir,

quando a sua Mamã nos separou. Peço-lhe, querida amiga,

veja-o com olhos mais favoráveis. Pense que ele é meu amigo,

que o quer ser seu, que pode proporcionar-me a felicidade de

voltar a vê-la. Se estas razões a não convencem, minha Cecília, é

porque me não ama tanto como eu a amo, é porque me não ama

tanto quanto amou já. Ah! Se alguma vez vier a ter-me menos

amor... Mas não, o coração da minha Cecília pertence-me; é

meu por toda a vida; e se eu tenho a temer as penas dum amor

infeliz, a sua constância pelo menos me salvará dos tormentos

dum amor traído.

Adeus, minha encantadora amiga; não esqueça que eu sofro,

e que só a si cabe tornar-me feliz, perfeitamente feliz. Escute

os votos do meu coração, e receba os mais ternos beijos de amor.

Paris, 11 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES

(Junta à precedente)

O amigo que a serve soube que lhe faltava tudo que é necessário

para escrever e remediou essa falta. Encontrará na antecâmara

do aposento que ocupa, debaixo do grande armário à

esquerda, uma provisão de papel, de penas e de tinta, que ele

renovará quando quiser e que lhe parece poder ficar no mesmo

sítio se não encontrar outro mais seguro.

Esse amigo pede-lhe que não se ofenda, se simular que não

lhe dá nenhuma atenção nas reuniões e que a olha como uma

criança. Tal procedimento parece-lhe necessário para inspirar a

segurança de que ele precisa e poder trabalhar mais eficazmente

na felicidade do seu amigo e na sua. Procurará suscitar as ocasiões

de lhe falar, quando tiver alguma coisa a comunicar-lhe ou

a entregar-lhe; e espera consegui-lo, se a menina tiver o cuidado

de o secundar.

Aconselha-a também a entregar-lhe as cartas à medida que

as for recebendo, a fim de a arriscar menos a comprometer-se.

Termina por lhe dar a certeza de que, se quiser depositar

114

nele confiança, porá os seus cuidados em suavizar a perseguição

que uma mãe demasiado cruel faz sofrer a duas pessoas, das

quais uma é já o seu melhor amigo, e a outra lhe parece merecer

o mais terno interesse.

Do Castelo de..., 14 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXIV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Desde quando, meu amigo, se assusta tão facilmente? Esse

Prévan é assim tão temível? Veja como eu sou simples e modesta!

Tenho-o encontrado muitas vezes, a esse soberbo vencedor; e

mal o tenho olhado! Faltava só a sua carta para que eu lhe desse

atenção. Reparei ontem a minha injustiça. Ele estava na Ópera,

quase na minha frente, e entretive-me com ele. É bonito ao menos,

mesmo muito bonito; que traços finos e delicados! Deve ganhar

em ser visto de perto. E diz o Visconde que ele me quer possuir!

Seguramente far-me-á honra e prazer. Falando sério, tenho essa

fantasia, e confio-lhe aqui que dei para isso os primeiros passos.

Não sei se terão êxito. Passo a narrar-lhe o caso.

Ele estava a dois passos de mim, à saída da Ópera, e eu

marquei encontro, em voz alta, à Marquesa de... para cear sexta-feira

em casa da Marechala. É, segundo creio, o único sítio

onde posso encontrá-lo. Não duvido de que ele me tenha ouvido...

E se esse ingrato lá não fosse? Diga-me: acha que ele irá?

Saiba que, se não for, ficarei aborrecida toda a noite. Bem vê

que ele não terá assim tanta dificuldade em seguir-me; e o Visconde

vai admirar-se mais quando souber que terá ainda menos

dificuldade em agradar-me. Ele quer, segundo diz, rebentar seis

cavalos a fazer-me a sua corte! Oh! eu salvarei a vida a esses

cavalos. Nunca eu teria a paciência de esperar tanto tempo. O

Visconde sabe que não está nos meus princípios fazer sofrer

quando me decido por alguém, e a verdade é que me decidi por

ele. Oh! convenha, Visconde, que sentiu prazer em me pregar

um sermão! A sua revelação importante não teve um grande

êxito? Que quer o Visconde! Há tanto tempo que eu vegeto! Há

mais de seis semanas que não me permito uma aventura. Apresenta-se-me

esta; posso recusá-la? A pessoa não vale a pena?

Haverá alguém mais agradável, em qualquer sentido que tome a

palavra.

O próprio Visconde é obrigado a fazer-lhe justiça; faz mais

que elogiá-lo, tem ciúmes dele. Pois bem! serei eu o juiz entre

ambos. Mas primeiro é preciso tomar conhecimento da causa, e

é o que desejo fazer. Serei juiz íntegro, e ambos serão pesados na

115

mesma balança. Quanto ao Visconde, tenho já as suas memórias,

e a sua causa está perfeitamente instruída. Não será justo

que me ocupe agora do seu adversário? Vamos, preste-se de

bom grado à justiça; e, para começar, conte-me, peço-lhe, essa

tríplice aventura de que ele foi herói. Fala-me disso como se eu

não conhecesse outra coisa, e não sei uma palavra a tal respeito.

O caso deve ter-se passado durante a minha viagem a Genebra,

e o seu ciúme tê-lo-á impedido de mo contar. Repare esta falta o

o mais cedo possível; pense que nada do que lhe diz respeito

me é indiferente. Creio bem que se falava ainda no assunto

quando regressei; mas eu tinha outros motivos de preocupação,

e raramente dou ouvidos a coisas desse género quando não são

do próprio dia ou da véspera.

Mesmo que o contrarie um pouco o que lhe peço, não será

esse o menor preço que o Visconde deve aos cuidados que por

sua causa tenho tido? Não foram esses cuidados que o aproximaram

da sua Presidente, quando as suas tolices o tinham afastado

dela? Não fui ainda eu que pus nas suas mãos o meio de se

vingar do amargo zelo de Madame de Volanges? Tantas vezes o

Visconde lamentou o tempo que perdia a procurar aventuras!

Presentemente, tem-nas à mão. O amor, o ódio, só tem o trabalho

de escolher, tudo está debaixo do mesmo tecto. E pode até,

fazendo existência dupla, afagar com uma das mãos e ferir com

a outra.

A sua aventura com a Viscondessa é ainda a mim que a deve.

Deu-me muita satisfação; mas, como o Visconde diz, é preciso

que se fale no caso; pois se a ocasião foi de molde a que preferisse

o mistério ao ruído, e compreendo que assim fosse, devemos

no entanto convir que essa mulher não merecia um procedimento

tão honesto.

Além do mais, tenho motivos de queixa de tal criatura. O

-Cavaleiro de Belleroche acha-a mais bonita do que eu desejaria;

e, por muitas razões, ficaria bem contente se tivesse um pretexto

para romper com ela. Ora não há nada mais cómodo do que

poder dizer: "Já ninguém recebe essa mulher."

Adeus Visconde; pense que, no lugar onde está, o tempo é

precioso; vou empregar o meu a ocupar-me da felicidade de Prévan.

Paris, 15 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Está aqui uma boa amiga da Mamã, que eu não conhecia,

que parece também não gostar muito do senhor de Valmont,

embora ele tenha muitas atenções para ela. Tenho receio que ele

116

se aborreça depressa da vida que levamos aqui e que regresse a

Paris; isso seria lamentável. Deve ter muito bom coração para

ter vindo expressamente a fim de prestar um serviço ao seu amigo

e a mim! Bem desejaria testemunhar-lhe o meu reconhecimento,

mas não sei como fazer para falar; e mesmo que achasse

ocasião para isso, ficaria tão envergonhada que não saberia que

dizer-lhe.

É só com Madame de Merteuil que eu falo livremente,

quando falo do meu amor. Talvez mesmo contigo, a quem digo

tudo, eu ficasse envergonhada, se fosse a conversarmos. Com o

próprio Danceny tenho muitas vezes sentido, contra minha vontade,

certo receio que me impedia de dizer tudo o que pensava.

Estou bem arrependida agora, e daria tudo para encontrar o

momento de lhe dizer uma vez, uma única vez, quanto o amo...

O senhor de Valmont prometeu-lhe que, se eu me deixasse conduzir,

arranjaria maneira de nos tornarmos a ver. Eu farei tudo

o que ele quiser; mas não posso conceber que tal seja possível.

Adeus, minha boa amiga, não posso escrever mais.

Do castelo de...,14 de Setembro de 17* *

Nota. - Nesta carta, Cecília Volanges narra com muitos pormenores tudo

o que lhe diz respeito nos acontecimentos que o leitor conhece do fim da

Primeira Parte, Carta LXI e seguintes. Julgou-se oportuno suprimir essa

repetição. Por fim, fala do Visconde de Valmont, e exprime-se do seguinte modo:

Afirmo-te que é um homem extraordinário. A Mamã diz

muito mal dele; mas o Cavaleiro Danceny diz muito bem, e

creio que é ele quem tem razão. Nunca vi homem mais expedito.

Quando me entre ou a carta de Danceny, estava muita gente

e ninguém viu nada. certo que tive bastante medo porque não

tinha sido prevenida; mas agora estou sempre à espera. Já compreendi

muito bem o que ele quer que eu faça para lhe entregar

a resposta. É muito fácil entendermo-nos com ele, pois tem um

olhar que diz tudo o que ele quer. Não sei o que ele faz para isso:

dizia-me no bilhete de que te falei que diante da Mamã fingira

sempre não me ligar importância. Na verdade, dir-se-ia que

não pensa nisso; mas todas as vezes que procuro os seus olhos,

estou certa de encontrá-los imediatamente.

CARTA LXXVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Ou a sua carta é um gracejo, que não cheguei a compreender,

117

ou estava, quando ma escreveu, num delírio muito perigoso.

Se eu a conhecesse menos, minha bela amiga, ficaria verdadeiramente

horrorizado; e seja o que for que possa dizer, não

me horrorizo facilmente.

* Tendo Mademoiselle de Volanges, pouco tempo depois, mudado de

cônfidente, como se verá pela continuação destas cartas, não virá a encontrar-se

nesta colecção nenhuma das que continuou a escrever à sua amiga do convento,

pois nada revelariam ao leitor.

Debalde li e reli a sua carta, não fiquei mais adiantado; pois

não há maneira de a tomar no sentido natural que ela apresenta.

Que quis a minha amiga dizer? Apenas que era inútil ter tantos

cuidados contra um inimigo tão pouco temível? Mas, nesse caso,

pode não ter razão. Prévan é realmente amável; é-o mais

ainda do que supõe. Tem sobretudo o talento deveras útil de

interessar muita gente nas suas relações amorosas, pela habilidade

que desenvolve ao falar sobre tal assunto em sociedade,

diante de toda a gente, servindo-se da primeira conversação que

topa a jeito. Poucas mulheres há que se salvem da armadilha de

lhe dar réplica, visto que, tendo todas pretensões de inteligência,

nenhuma quer perder ocasião de a mostrar. Ora, sabe muito

bem a minha amiga que toda a mulher que consente em falar

de amor, cedo acaba por tomar parte nele, ou pelo menos por se

conduzir como se o sentisse. Prévan tira ainda vantagens do

processo, que ele realmente aperfeiçoou, de chamar frequentemente

as próprias mulheres em testemunho das derrotas que

lhes inflige. E falo-lhe disto porque o presenciei.

O segredo veio até mim em segunda mão, pois nunca estive

ligado a Prévan; éramos por fim seis a escutá-lo: a Condessa de

P..., julgando-se muito inteligente, tomou os ares de quem sustenta

uma conversação geral e foi contando aos que nada sabiam,

até aos mínimos pormenores, de como se tinha entregado

a Prévan e tudo o que se passara entre ambos. Fazia a narração

com tal segurança, que nem se sentiu perturbada por um riso

louco que nos tomou os seis ao mesmo tempo; e hei-de recordar-me

sempre de que, a um de nós que, para se desculpar, quis

fingir que não acreditava no que ela dizia, ou antes, no que ela

parecia querer dizer, respondeu ela gravemente que com certeza

nenhum de nós estava tão bem informado como ela; e não receou

mesmo dirigir-se a Prévan, para lhe perguntar se se tinha

enganado numa só palavra.

Pude então considerar aquele homem perigoso para toda a

gente; mas para si, Marquesa, não bastava que ele fosse bonito,

muito bonito, conforme as suas próprias palavras? Ou que ele

lhe fizesse um desses ataques que lhe agrada algumas vezes recompensar,

sem outro motivo do que achá-los bem feitos? Ou

118

que achasse agradável entregar-se por uma razão qualquer?

Ou... que sei eu? Posso porventura adivinhar os mil e um caprichos

que governam a cabeça de uma mulher, que só por si a ligam

ao seu sexo? Agora que está prevenida do perigo, não duvido

que se livrará dele facilmente: todavia era necessário preveni-la.

Volto ao meu assunto: que quis dizer na sua carta?

Se é apenas um gracejo sobre Prévan, além de ser demasiado

longo, não era a mim que devia dirigi-lo, por inútil; é à sociedade

que se deve oferecer um bom motivo de ridículo para esse

homem, e renovo-lhe o meu pedido a tal respeito.

Ah! Julgo ter encontrado a chave do enigma! A sua carta é

uma profecia, não do que virá a fazer, mas do que ele a julgará

pronta a fazer no momento da queda que lhe prepara. Aprovo

esse projecto; no entanto, ele exige grandes preparativos. A

minha amiga sabe tão bem como eu que, para a opinião pública,

ceder a um homem ou aceitar-lhe a corte é absolutamente a

mesma coisa, a menos que esse homem seja um tolo; e Prévan

está muito longe de o ser. Se ele tiver as aparências a seu favor,

irá gabar-se, e está tudo dito. Os tolos acreditarão nele, os maus

fingirão que acreditam; quais serão então, Marquesa, os seus

recursos? Creia, tenho medo. Não é que eu duvide da sua habilidade;

mas são os bons nadadores que se afogam.

Eu não me julgo mais estúpido que qualquer outro! Quanto

a meios de desonrar uma mulher, tenho encontrado cem, tenho

encontrado mil: mas quando procuro a maneira de ela se salvar,

nunca vejo tal possibilidade. Mesmo na minha bela amiga, cuja

conduta é uma obra-prima, cem vezes tenho eu julgado ver mais

sorte do que simulação perfeita.

Mas no fim de tudo, estou talvez a procurar uma razão ao

que não existe. Admiro como, há uma boa hora, eu trato com

seriedade o que não passa, com certeza, de uma brincadeira da

sua parte. Vai troçar de mim! Pois seja! Seja; mas apresse-se, e

falemos de outra coisa. De outra coisa! Engano-me, é sempre a

mesma; sempre mulheres a possuir ou a perder, e muitas vezes

ambas as coisas.

Como a minha amiga muito bem notou, tenho aqui com

que me entreter nos dois géneros, mas não com a mesma facilidade.

Prevejo que a vingança irá mais depressa do que o amor.

A pequena Volanges está rendida, respondo por ela; depende

apenas da ocasião, e encarrego-me de fazer que ela apareça.

Mas com Madame de Tourvel não é a mesma coisa: esta mulher

é desoladora, não chego a compreendê-la. Tenho cem provas do

seu amor, mas tenho mil da sua resistência; e, na verdade, receio

que ela me escape.

O primeiro efeito produzido pelo meu regresso animou-me

a esperar maiores vantagens. Imagina decerto que era meu intuito

julgar por mim próprio; e para ter a certeza de apreciar os

primeiros movimentos, não mandei ninguém à minha frente e

calculei o tempo de viagem de modo a chegar quando estivessem

119

à mesa. De facto, caí do céu, como uma divindade de ópera

que prepara o desenlace. Fazendo ao entrar bastante ruído, para

fixar os olhares sobre mim, pude ver num só golpe de vista a

alegria da minha velha tia, o despeito de Madame de Volanges e

o prazer desmedido de sua filha. A minha bela, pelo lugar que

tinha à mesa, estava de costas para a porta. Ocupada nesse

momento a servir-se de qualquer coisa, nem sequer voltou a

cabeça. Mas eu dirigi a palavra a Madame de Rosemonde; e,

tendo reconhecido a minha voz às primeiras palavras, um grito

escapou à sensível devota, no qual julguei reconhecer mais amor

do que surpresa ou susto. Eu avançara já o bastante para poder

ver o seu rosto: nele se espelharam, de vinte maneiras diferentes,

o tumulto da sua alma, a luta das suas ideias e dos seus sentimentos.

Sentei-me à mesa ao lado dela; ficou sem saber positivamente

o que havia de fazer ou de dizer. Tentou continuar a

comer; não houve maneira. Por fim, não tinha ainda passado

um quarto de hora, tornando-se mais fortes do que ela o seu

embaraço e o seu prazer, não imaginou nada melhor do que

pedir licença para se levantar, e saiu para o parque, sob o pretexto

de ter necessidade de tomar ar. Madame de Volanges quis

acompanhá-la; a terna hipócrita não lho permitiu; demasiado

feliz, sem dúvida, por encontrar um pretexto para estar só e se

entregar livremente às doces emoções que experimentara.

Abreviei o jantar o melhor que me foi possível. Mal tinham

servido a sobremesa, a infernal Volanges, apressando-se sem

dúvida a tirar-me qualquer vantagem, levantou-se do seu lugar

para ir ao encontro da encantadora doente: mas eu tinha previsto

esse projecto e prejudiquei-o. Fingi pois tomar esse movimento

isolado pelo movimento geral, e, tendo-me levantado ao

mesmo tempo, a pequena Volanges e o cura deixaram-se levar

por esse duplo exemplo; de maneira que Madame de Rosemonde

se encontrou só à mesa com o velho comentador de T..., e

ambos tomaram também o partido de se levantar. Fomos pois

todos juntar-nos à minha bela, que encontrámos no pequeno

bosque perto do castelo; e como ela necessitava de solidão e não

de passeio, tanto valeu para ela regressar connosco como fazer-nos

ficar junto dela.

Quando tive a certeza de que Madame de Volanges não teria

ocasião de lhe falar a sós, pensei em executar as suas ordens

e ocupei-me dos interesses da sua pupila. Logo após o café, subi

ao meu quarto, e entrei também nos dos outros, para reconhecer

o terreno; tomei as minhas disposições para assegurar a correspondência

da pequena; depois desse primeiro acto de benemerência,

escrevi uma palavra para lhe dar instruções e lhe pedir

a sua confiança e juntei o meu bilhete à carta de Danceny.

Voltei ao salão. Aí encontrei a minha bela instalada numa cadeira

de encosto num abandono delicioso.

Este espectáculo, à medida que despertava os meus desejos,

animava os meus olhares; senti que estes deviam ser ternos e insistentes,

120

e coloquei-me de maneira a fazer uso deles. O primeiro

efeito conseguido foi o de obrigar os grandes olhos modestos

da celeste criatura a baixarem-se. Contemplei por algum tempo

essa figura angélica; depois, percorrendo toda a sua pessoa, diverti-me

a adivinhar os contornos e as formas através de um

vestuário ligeiro, mas sempre importuno. Depois de ter descido

da cabeça aos pés, tornei a subir dos pés à cabeça... Minha bela

amiga, o doce olhar estava fixo em mim; de repente baixou de

novo, e eu desviei os olhos, a fim de favorecer o regresso dos

seus. Então estabeleceu-se entre nós aquela conversação tácita,

primeiro tratado do amor tímido, que, para satisfazer o desejo

mútuo da vista, permite aos olhares sucederem-se esperando

que se confundam.

Persuadido de que a minha bela se entregara inteiramente a

esse novo prazer, encarreguei-me de velar pela nossa comum

segurança; mas, convencendo-me de que um diálogo vivo nos

salvaria de sermos notados pelos que nos rodeavam, tratei de

obter dos seus olhos que falassem uma linguagem franca. Para

esse efeito tomei primeiro alguns olhares de surpresa, mas com

tanta reserva que a modéstia não poderia ficar alarmada; e para

pôr mais à vontade a tímida pessoa, eu próprio afectei tácita

confusão como ela. Pouco a pouco os nossos olhos, acostumados

a encontrarem-se, fixaram-se mais longamente; por fim não

se deixaram mais; e surpreendi nos seus olhos aquela doce languidez,

sinal feliz do amor e do desejo. Mas foi apenas por um

momento; depressa voltando a si, mudou, não sem alguma vergonha,

a posição e o olhar.

Não querendo que ela tivesse alguma dúvida de que eu houvesse

notado os seus diversos movimentos, levantei-me com

vivacidade e perguntei-lhe, fingindo-me assustado, se se sentia

mal. Nesse momento toda a gente veio rodeá-la. Deixei que

todos passassem à minha frente; e como a pequena Volanges,

que tecia um tapete perto da janela, levasse algum tempo a desembaraçar-se

do trabalho, aproveitei a ocasião para lhe entregar

a carta de Danceny. Eu estava um pouco afastado dela, lancei-lhe

a epístola sobre os joelhos. Ela ficou sem saber que fazer.

A minha amiga teria rido do seu ar de surpresa e embaraço;

todavia eu não ri, temendo que tanta falta de jeito acabasse por

nos trair. Mas um olhar e um gesto imperiosos fizeram-lhe enfim

compreender que era preciso guardar a carta no bolso.

O resto do dia não teve nada de interessante. O que depois

se passou dará talvez lugar a acontecimentos de que a minha

amiga ficará satisfeita, pelo menos no que diz respeito à sua

pupila; mas vale mais empregar o tempo a executar projectos

do que a contá-los. Além disso, é esta a oitava página que escrevo,

e sinto-me fatigado. Por isso lhe digo adeus.

Adivinha decerto, sem que eu lho diga, que a pequena respondeu

a Danceny. Eu tive também resposta da minha bela, a

quem escrevera no dia seguinte ao da minha chegada. Envio-lhe

121

as duas cartas. Leia-as ou não as leia; pois essa perpétua maçada,

que já não me diverte muito, deve ser muito insípida para

qualquer pessoa desinteressada.

Ainda uma vez, adeus. Continuo a amá-la sempre; mas,

peço-lhe, se voltar a falar-me de Prévan, faça-o de maneira que

eu entenda.

Do Castelo de...,17 de Setembro de 17 *

CARTA LXXVII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

De onde poderá vir, senhora, o empenho cruel que mostrais

em fugir-me? Como pode dar-se que a mais terna dedicação da

minha parte obtenha da vossa um procedimento que apenas seria

permitido para o homem de quem tivésseis os maiores motivos

de queixa? Pois quê? O amor conduz-me a vossos pés; e,

quando um feliz acaso me coloca a vosso lado, apraz-vos fingir

uma indisposição, alarmar os vossos amigos, em vez de consentirdes

em ficar ao pé de mim ! Quantas vezes desviastes ontem os

olhos para me privar do favor de um olhar? E se pude ver neles

menos severidade por um único instante, esse momento foi tão

curto que parece ter sido menos vosso intuito dar-me algum

prazer do que fazer-me sentir o que eu perdia em ser dele privado.

Não é esse, ouso dizê-lo, nem o tratamento que merece o

amor, nem o que pode permitir-se a amizade; e todavia, desses

dois sentimentos, bem sabeis se um deles me anima, e eu estava,

parece-me, autorizado a supor que não vos recusaríeis ao outro.

Essa amizade preciosa, da qual sem dúvida me julgastes digno,

visto que ma quisestes oferecer, que fiz eu para a ter perdido

depois? Ter-me-ei prejudicado pela minha confiança, e ter-me-eis

punido pela minha franqueza? Não receais ao menos abusar

de uma e de outra? Não foi, verdadeiramente, no seio da minha

amiga que eu depus o segredo do meu coração? Não foi perante

ela só que eu pude julgar-me obrigado a recusar condições que

me bastaria aceitar, para me dar a facilidade de não as manter, e

talvez para delas abusar com vantagem? Querereis, enfim, por

um rigor tão pouco merecido, obrigar-me a supor que teria sido

suficiente enganar-vos para obter mais indulgência?

Não me arrependo de um procedimento que vos devia, que

devia a mim próprio; mas por que fatalidade cada acção louvável

se torna para mim o sinal de uma nova infelicidade?

Foi depois de ter dado lugar ao único elogio que vos dignastes

ainda fazer ao meu procedimento que tive, pela primeira vez,

de gemer pela desgraça de vos ter desagradado. Foi depois de

122

vos ter provado a minha submissão perfeita, privando-me da

felicidade de vos ver, unicamente para tranquilizar a vossa delicadeza,

que quisestes romper toda a correspondência comigo,

tirar-me essa frágil compensação de um sacrifício que havíeis

exigido, e arrebatar-me até o amor que unicamente vos poderia

dar tal direito. É enfim por vos ter falado com uma sinceridade

que o próprio interesse desse amor não pôde enfraquecer, que

hoje me fugis como a um sedutor perigoso, de que tivésseis reconhecido

a perfídia.

Não vos cansareis nunca de ser injusta? Dizei-me ao menos

que novos motivos de agravo puderam levar-vos a tanta severidade

e não recuseis ditar-me as ordens que quereis que eu siga;

pois que me comprometo a executá-las, não é pretender demasiado

procurar conhecê-las.

15 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXVIII

A PRESIDENTe DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Pareceis, senhor, surpreendido pela minha conduta, e pouco

falta mesmo para me pedirdes contas, como se tivésseis o direito

de censurá-la. Confesso que me julgaria mais autorizada do que

vós a admirar-me e a queixar-me; mas, depois da recusa contida

na vossa última carta, tomei o partido de me fechar numa indiferença

que não deixa lugar às observações nem às censuras.

Entretanto, como me pedis esclarecimentos, e como, graças ao

Céu, não sinto nada em mim que possa impedir-me de os dar,

desejo entrar ainda uma vez em explicações convosco.

Quem lesse as vossas cartas julgar-me-ia injusta ou caprichosa.

Julgo merecer que ninguém forme essa ideia de mim;

parece-me sobretudo que, menos do que ninguém, estejais no

caso de a formar. Sentistes, sem dúvida, que necessitando justificar-me

me forçaríeis a recordar tudo o que se passou entre

nós. Aparentemente supusestes que teríeis tudo a ganhar com

esse exame; como, pelo meu lado, julgo não ter nada a perder,

pelo menos aos vossos olhos, não receio sujeitar-me a ele. Talvez

seja esse, na verdade, o único meio de conhecer qual de nós

dois tem o direito de se queixar do outro.

A contar do dia da vossa chegada a este castelo, devereis

confessar, senhor, segundo creio, que pelo menos a vossa reputação

me autoriza a usar de alguma reserva convosco, e que eu

teria podido, sem recear ser acusada de um excesso de pudor,

manter-me nas expressões da mais fria delicadeza. Vós próprio

me teríeis tratado com indulgência, e teríeis achado natural que

123

, uma mulher tão pouco formada não tivesse mesmo o mérito

necessário para apreciar o vosso. Era esse precisamente o partido

da prudência; e ter-me-ia custado tanto menos segui-lo, que

não vos esconderei que, quando Madame de Rosemonde me

veio dar parte da vossa chegada, tive necessidade de recordar a

minha amizade por ela, e a que ela tem por vós, para não lhe

deixar ver quanto essa notícia me contrariava.

Convenho de vontade que vos mostrastes primeiramente

sob um aspecto mais favorável do que eu tinha imaginado; mas

convireis por vosso lado que esse aspecto durou bem pouco e

que depressa vos cansastes de uma obrigação, de que aparentemente

vos não julgastes compensado pela ideia vantajosa que

por ela formei a vosso respeito.

Foi então que, abusando da minha boa fé, da minha tranquilidade,

não receastes comunicar-me um sentimento do qual

não poderíeis duvidar que eu me sentisse ofendida; e, enquanto

não vos ocupáveis senão de aumentar os vossos agravos, eu

procurava um motivo para os esquecer, oferecendo-vos a ocasião

para os reparardes, pelo menos em parte. O meu pedido era

arvorando a minha indulgência como um direito, aproveitastes

dela para um pedido ao qual, sem dúvida, eu não deveria aceder,

e cuja permissão todavia obtivestes. Das condições que foram

impostas, não cumpristes nenhuma; e a vossa correspondência

era tal que cada uma das vossas cartas me punha no dever

de não lhe responder. Foi no próprio momento em que a

vossa obstinação me forçava a afastar-vos de mim que, por uma

condescendência talvez censurável, tentei o único meio que podia

permitir-me a vossa aproximação; mas que valor tem aos

vossos olhos um sentimento honesto? Desprezais a amizade; e,

na vossa louca embriaguez, desdenhando por completo a desgraça

e a vergonha, procurais apenas prazeres e vítimas.

Tão ligeiro no vosso procedimento como inconsequente nas

vossas censuras, esqueceis as promessas, ou antes, comprazeis-vos

em violá-las, e, depois de terdes consentido em afastar-vos

de mim, voltais aqui sem que fôsseis chamado; sem respeito

pelas minhas súplicas, pelas minhas razões, sem terdes mesmo a

atenção de me prevenir, não tivestes receio de me expor a uma

surpresa cujo efeito, embora decerto bem natural, teria podido

ser interpretado desfavoravelmente para mim, pelas pessoas que

me rodeiam. Esse momento de confusão que fizestes nascer,

longe de procurar distraí-lo ou dissimulá-lo, parecestes pôr todos

os vossos cuidados em aumentá-lo. À mesa, escolhestes precisamente

o vosso lugar ao lado do meu; uma ligeira indisposição

obrigou-me a sair antes dos outros: em lugar de respeitardes

a minha solidão, arrastastes toda a gente a vir perturbá-la. Voltando

ao salão, se dou um passo; encontro-vos a meu lado; se

digo uma palavra, sois sempre vós quem me responde. O dito

mais indiferente serve-vos de pretexto para conduzir uma conversação

que eu não desejaria ouvir, que pode mesmo comprometer-me:

124

pois, enfim, senhor, por muita inteligência que haja

nos vossos a-propósitos, creio que os outros podem também

compreender aquilo que eu compreendo.

Forçada assim por vós à imobilidade e ao silêncio, nem por

isso deixais de perseguir-me; não posso levantar os olhos nem

encontrar os vossos. Sou constantemente obrigada a desviar os

meus olhares; e, por uma inconsequência bem incompreensível,

fazeis que todos os olhos se fixem em mim, num momento em

que até aos meus próprios olhos eu desejaria furtar-me.

E queixais-vos do meu procedimento! E admirais-vos do

meu empenho em vos fugir! Censurai-me antes a minha indulgência,

admirai-vos de que eu não tenha partido no momento

da vossa chegada. Talvez eu devesse tê-lo feito, e obrigar-me-eis

a essa solução violenta mas necessária se não cessardes a vossa

ofensiva perseguição. Não, não esqueço, não esquecerei nunca

o que devo a mim própria, aos laços que formei, que respeito e

amo; e peço-vos que acrediteis: se alguma vez me encontrar

reduzida à escolha infeliz de os sacrificar ou me sacrificar a mim

mesma, não hesitarei por um instante. Adeus, senhor.

16 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Contava ir à caça esta manhã, mas está um tempo detestável.

Como leitura, tenho apenas um romance novo que aborreceria

até um colegial. O almoço será daqui a duas horas, nunca

menos. Assim, apesar da minha longa carta de ontem, vou de

novo conversar com a minha amiga. Estou certo de não a aborrecer,

pois vou falar-lhe do lindo Prévan. Como é possível que

não conheça a sua famosa aventura, a que separou as inseparáveis?

Aposto que se recordará dela às primeiras palavras. Sempre

vou contá-la, visto que o deseja.

Há-de lembrar-se de que todo Paris se admirava que três

mulheres, todas três bonitas, tendo todas três os mesmos talentos,

e podendo ter as mesmas pretensões, continuassem intimamente

ligadas entre si após o momento da sua entrada na sociedade.

Julgou-se primeiro encontrar a razão na sua extrema timidez;

mas logo, rodeadas por uma corte numerosa de que elas

partilhavam as homenagens, e conhecendo o seu próprio valor

pelo calor e pelas atenções de que eram objecto, a sua união

tornou-se ainda mais forte. Dir-se-ia que o triunfo para uma era

sempre o das duas outras. Esperava-se pelo menos que o momento

125

do amor trouxesse também o de alguma rivalidade. Os

nossos jovens namoradores disputavam-se a honra de ser o

ponto de discórdia; e eu próprio me teria posto nas suas fileiras

se os grandes favores que a Condessa de... me concedia por esse

tempo me tivessem permitido ser-lhe infiel antes de obter a liberdade

que solicitava.

Entretanto as nossas três belezas, no mesmo Carnaval, fizeram

a sua escolha como por combinação prévia; e essa escolha,

longe de proporcionar a tempestade que se esperava, teve apenas

como resultado tornar a amizade delas mais interessante

pelo encanto das confidências.

A multidão dos pretendentes infelizes juntou-se então à das

mulheres ciumentas e a escandalosa constância foi submetida à

censura pública. Uns pretendiam que, na sociedade das inseparáveis

(assim lhe chamavam então), a lei fundamental era a

comunidade de bens e que até o amor lhe estava submetido;

outros asseguravam que os três amantes, livres de rivais masculinos,

não o eram de rivais femininos; chegou mesmo a dizer-se

que só por decência eles tinham sido admitidos, e haviam obtido

apenas um título sem funções.

Estes rumores, verdadeiros ou falsos, não tiveram o efeito

que se esperava. Os três pares, pelo contrário, sentiram-se que

estavam perdidos se se separassem naquele momento, e tomaram

o partido de enfrentarem a tempestade. O público, que se

cansa de tudo, depressa se cansou de uma sátira infrutuosa.

Levado pela sua ligeireza natural, ocupou-se de outros assuntos;

depois, voltando a este com a sua inconsequência habitual,

transformou a notícia em elogio. Como tudo se passa consoante

as modas, o entusiasmo venceu; tornou-se um verdadeiro delírio,

quando Prévan tomou a peito verificar aqueles prodígios e

fixar sobre eles a opinião pública e a sua.

Procurou pois tais modelos de perfeição. Admitido facilmente

na sua sociedade, daí tirou um augúrio favorável. Ele

sabia bem que as pessoas felizes não são de fácil acesso. Depressa

viu, de facto, que uma tão louvada felicidade era, como a dos

reis, mais invejada que desejada. Notou que, entre os pretendidos

inseparáveis, se começava a procurar os prazeres do exterior,

que já se ocupavam de distracções; e concluiu que os laços

de amor e de amizade começavam a afrouxar ou a romper-se e

que só os do amor-próprio e do hábito conservavam a sua força.

Entretanto as mulheres, que a necessidade reunia, conservavam

entre elas a aparência da mesma intimidade; mas os homens,

mais livres no seu comportamento, reencontravam deveres

a cumprir ou negócios a seguir. Soltavam ainda alguns queixumes,

mas já não se dispensavam deles, e raramente os serões

eram completos.

Este procedimento foi proveitoso ao assíduo Prévan, que,

colocado naturalmente junto da abandonada do dia, ia oferecendo

alternadamente, e segundo as circunstâncias, a mesma

126

homenagem às três amigas. Facilmente compreendeu que fazer

uma escolha entre elas seria perder-se; que a falsa vergonha de

se considerar a primeira infiel encheria de susto a preferida; que

a vaidade ferida das duas outras as tornaria inimigas do novo

amante e que não deixariam de brandir contra ele a severidade

dos grandes princípios; enfim, que o ciúme por certo chamaria

as atenções dum rival que podia ser ainda para temer. Tudo se

tornaria obstáculo; tudo ficava fácil no seu tríplice projecto:

cada mulher seria indulgente porque estava interessada, cada

homem, porque julgava não o estar.

Préven, que então tinha apenas uma mulher a sacrificar,

teve a felicidade de ver a sua amante célebre de um momento

para o outro. A sua qualidade de estrangeira e a homenagem de

um grande príncipe recusada com bastante desenvoltura tinham

fixado sobre ela as atenções da corte e da cidade; o seu amante

partilhava essas honras, e delas aproveitou junto das suas novas

amantes. A única dificuldade estava em levar avante as três

intrigas, cujo desenvolvimento tinha forçosamente de regular-se

pela mais tardia; de facto, vim a saber por um dos seus confidentes

que a sua maior pena foi a de ter de suspender uma, que

esteve prestes a atingir o êxito cerca de quinze dias antes das

outras.

Enfim, o grande dia chegou. Prévan, que tinha obtido as três

confições, achava-se já senhor dos acontecimentos, e ordenou-os

como vai ver. Dos três maridos, um estava ausente, o outro

partia no dia seguinte muito cedo, o terceiro estava na cidade.

As inseparáveis amigas deviam cear em casa da futura viúva;

mas o novo senhor não tinha permitido que os antigos servidores

fossem convidados. Na manhã desse mesmo dia, fez três colecções

das cartas da sua bela, juntou a uma delas um retrato

que dela tinha recebido, à segunda juntou uma cifra amorosa

que ela própria pintara, à terceira um anel dos seus cabelos;

cada uma recebeu por completo esta terça parte de sacrifício, e

consentiu, em troca, em enviar ao amante caído em desgraça

uma retumbante carta de rompimento.

Era muito; não o era bastante. Aquela cujo marido estava

na cidade só podia dispor daquele dia; combinaram que uma

fingida indisposição a dispensaria de ir cear a casa da amiga e

que o serão seria reservado a Prévan; a noite foi destinada para

aquela cujo marido estava ausente; e o romper do dia, momento

da partida do terceiro esposo, foi marcado para a última, para

os gozos do amor.

Prévan, que não descuida nada, corre em seguida a casa da

bela estrangeira, inventa um estado de espírito que suscita o

mau humor de que ele necessitava, e sai depois de conseguir

uma discussão que lhe assegura vinte e quatro horas de liberdade.

Assim tomadas as suas disposições, entra em casa, contando

repousar um pouco; outros assuntos o esperavam.

127

As cartas de rompimento tinham sido um súbito clarão para

cada um dos amantes caídos em desgraça; nenhum deles podia

duvidar de que o seu sacrifício aproveitava a Prévan. E o despeito

de ter sido joguete, junto à imitação que traz quase sempre a

pequena humilhação de se ser abandonado, deu aos três, sem se

comunicarem, mas como se estivessem combinados, a resolução

de pedirem uma satisfação ao seu afortunado rival.

Este encontrou em casa os três desafios; aceitou-os lealmente:

mas, não querendo perder nem os prazos nem o brilho desta

aventura, fixou os encontros para o dia seguinte de manhã, e

indicou aos três o mesmo lugar e a mesma hora. Foi a uma das

portas do Bosque de Bolonha.

Chegada a noite correu a sua tríplice aventura com um êxito

igual; pelo menos gabou-se depois de que cada uma das suas

novas amantes recebera três vezes o penhor e o juramento do

seu amor. Aqui, como está vendo, faltam provas à história;

tudo o que o historiador imparcial pode fazer é observar ao leitor

incrédulo que a vaidade e a imaginação exaltadas podem

obrar prodígios, tanto mais que a manhã que devia seguir-se a

uma brilhante noite parecia dever dispensar reservas para o

futuro. De qualquer modo, os factos que se seguem inspiram

maior certeza.

Prévan dirigiu-se à hora exacta ao encontro que marcara;

no local viu-se em presença dos seus três rivais, um tanto surpreendidos

do mútuo encontro, e cada um less talvez já consolado

em parte, vendo-se no meio de companheiros de infortúnio.

Abordou-os com ar afável e cavalheiresco, e dirigiu-lhes esta

fala, que me foi reproduzida fielmente:

" Senhores", disse-lhes ele, " uma vez que vos encontro reunidos

aqui, advinhastes sem dúvida que tendes os três o mesmo

motivo de queixa contra mim. Estou pronto a dar-vos razão.

Que a sorte decida, entre vós, qual dos três tentará primeiro

uma vingança à qual tendes um direito igual. Não trouxe padrinho

nem testemunhas. Não os instituí para a ofensa; não os exijo

para a reparação". Depois, cedendo ao seu carácter de jogador,

acrescentou: "Eu sei que raramente se ganha em jogos de

azar; mas, seja qual for a sorte que me espera, já se viveu sempre

bastante quando se teve tempo de adquirir o amor das mulheres

e a estima dos homens."

Enquanto os seus adversários estupefactos se olhavam em

silêncio, e na sua delicadeza calculavam talvez que o triplo

amante impedia que a partida fosse igual, Prévan retomou a

palavra: "Não vos escondo", continuou ele, "que a noite que

acabo de passar me fatigou cruelmente. Seria generoso da vossa

parte que me permitísseis reparar as minhas forças. Dei as

minhas ordens para que tivessem aqui pronto um almoço; dai-me

a honra de o aceitar. Almocemos juntos e, sobretudo, almocemos

alegremente. Podemos bater-nos por semelhantes bagatelas;

128

no entanto elas não devem, creio eu, alterar o nosso humor".

O almoço foi aceito. Segundo se disse, nunca Prévan foi

mais amável. Teve a habilidade de não humilhar nenhum dos

seus rivais, de os persuadir de que todos teriam conseguido facilmente

os mesmos êxitos, e sobretudo de os pôr de acordo em

que nenhum deles deixaria escapar as ocasiões, tal como ele,

Prévan. Uma vez confessados estes factos, tudo se arranjou por

si mesmo. Ainda o almoço não tinha terminado, já haviam repetido

dez vezes que semelhantes mulheres não mereciam que

homens honestos se batessem por elas. Esta ideia trouxe a cordialidade;

o vinho fortificou-a; tão bem que, poucos momentos

depois, já não era bastante não haver entre eles rancor, juraram-se

amizade sem reserva.

Prévan, que sem dúvida gostava tanto deste desenlace como

do outro, não desejava todavia perder ali a sua celebridade. Em

consequência, submetendo habilmente os seus projectos às circunstâncias,

disse aos três ofendidos: "De facto, não é de mim,

mas das vossas infiéis amantes que deveis vingar-vos. Ofereço-vos

a ocasião. Como vós próprios, sinto já uma injúria que

dentro em breve partilharei: pois se cada um de vós não conseguiu

conservar a fidelidade de uma só, posso porventura esperar

á fidelidade das três? A vossa ofensa tornou-se minha. Aceitai

para esta noite uma ceia em minha casa, e espero que a vossa

vingança não ficará adiada por muito tempo. Quiseram que

ele se explicasse; porém ele, com o tom de superioridade que as

circunstâncias o autorizavam a tomar: "Senhores" respondeu,

"creio ter-vos provado que sei como conduzir-me; tende confiança

em mim". Todos consentiram; e, depois de terem abraçado

o seu novo amigo, separaram-se até à noite, esperando o

efeito das promessas.

Sem perda de tempo, Prévan regressa a Paris, e vai, consoante

o uso, visitar as suas novas conquistas. Obtém das três

que viriam naquela mesma noite cear a sós com ele em sua casa.

Duas delas opuseram algumas dificuldades; mas que fica para

recusar no dia seguinte? Marcou os encontros com uma hora de

distância, tempo necessário aos seus projectos. Depois desses

preparativos, retirou-se, mandou avisar os outros três conjurados,

e todos quatro foram alegremente esperar as suas vítimas.

Ouviu-se chegar a primeira. Prévan apresenta-se só, recebe-a

com ar de solicitude, condu-la até ao santuário de que ela se

julgava a divindade; depois, desaparecendo sob um ligeiro pretexto,

faz-se substituir imediatamente pelo amante ultrajado.

Como decerto imagina, a confusão de uma mulher que não

tem ainda a experiência das aventuras tornava, em tal momento,

o triunfo muito fácil. Toda a censura que não foi feita foi

contada por uma graça; e a escrava fugitiva, entregue de novo

ao seu antigo senhor, sentiu-se muito feliz por poder esperar o

seu perdão, retomando as suas primeiras algemas. O tratado de

129

paz ratificou-se num lugar mais solitário, e a cena, ficando vazia,

foi alternadamente ocupada pelos outros actores, mais ou

menos da mesma maneira, e sobretudo com o mesmo desfecho.

Todavia, cada uma das mulheres julgava-se ainda só em

campo. O seu espanto e o seu embaraço aumentaram quando,

no momento da ceia, os três pares se reuniram; mas a confusão

chegou ao cúmulo quando Prévan, que reapareceu no meio de

todos, teve a crueldade de apresentar às três infiéis umas desculpas

que, divulgando o seu segredo, lhes revelaram inteiramente

até que ponto elas tinham sido burladas.

Entretanto puseram-se à mesa e pouco depois a moderação

voltou: os homens entregaram-se, as mulheres submeteram-se.

Todos tinham o ódio no coração; mas as palavras trocadas não

eram por isso menos ternas. A alegria despertou o desejo, que,

por seu turno, lhe emprestou novos encantos. Esta espantosa

orgia durou até de manhã; e, quando se separaram, as mulheres

julgaram-se perdoadas. Mas os homens, que tinham conservado

o seu ressentimento, procederam no dia seguinte a um rompimento

que não teve apelo; e, não contentes de deixar as suas

levianas amantes, terminaram a sua vingança dando a público a

aventura. Desde então, uma delas está num convento, e as outras

duas definham exiladas nas suas terras.

Aqui está a história de Prévan; cumpre-lhe, Marquesa, julgar

se deseja aumentar a sua glória e atrelar-se ao seu carro de

triunfo. A sua carta causou-me verdadeira inquietação e espero

com impaciência uma resposta mais ajuizada e mais clara à última

que lhe escrevi.

Adeus, minha bela amiga; desconfie das ideias divertidas ou

excêntricas que tão facilmente a têm seduzido sempre. Pense

que, na trajectória que a minha amiga segue, a inteligência não

basta, e que uma única imprudência pode tornar-se um mal sem

remédio. Suporte enfim que a prudente amizade seja algumas

vezes o guia dos seus prazeres.

Adeus. Apesar de tudo, continuo a gostar de si como se fosse

razoável.

18 de Setembro de 17* *

CARTA LXXX

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Cecília, minha querida Cecília, quando virá o tempo de voltarmos

a ver-nos? Quem me ensinará a viver longe de si? Quem

me dará para isso força e coragem? Nunca, sinto que nunca

poderei suportar esta fatal ausência. Cada dia aumenta o meu

130

sofrimento, e não posso ver-lhe um termo! Valmont, que me

tinha prometido socorros, consolações, Valmont descuida-se, e

esquece-me talvez. Está junto daquela que ele ama; não sabe

quanto sofre aquele que está afastado. Ao enviar-me a sua última

carta, não me escreveu. No entanto é ele quem deve dizer-me

quando poderei vê-la e por que meio. Nada terá pois a dizer-me?

A Cecília mesmo não me fala em tal; será por não partilhar

esse desejo? Ah! Cecília, sou muito infeliz. Amo-a mais do

que nunca: mas esse amor, que faz o encanto da minha vida,

torna-se o tormento dela.

Não, não posso mais viver assim, é preciso que eu a veja, é

preciso, nem que seja por um momento. Quando me levanto,

digo a mim mesmo: "Não a verei." Deito-me dizendo: "Não a

vi." Os dias tão longos não têm um momento para a felicidade.

Tudo é privação, tudo é saudade, tudo é desespero; e todos estes

males me vêm de onde eu esperava todos os meus prazeres!

Acrescente a estas penas mortais a minha inquietação sobre as

suas, e fará uma ideia da minha situação. Penso em si a todo o

momento, e nunca penso sem perturbação. Se a vejo aflita, infeliz,

sofro por todas as suas tristezas; e se a vejo tranquila e consolada,

são as minhas que redobram. Por toda a parte encontro

o sofrimento.

Ah! não era assim, quando habitava os mesmos lugares do

que eu! Tudo então era prazer. A certeza de a ver embelezava

mesmo os momentos da ausência; o tempo que era preciso passar

longe de si aproximava-me da Cecília enquanto ia passando.

O emprego que eu fazia dele nunca era estranho à Cecília. Se

cumpria deveres, estes tornavam-me mais digno de si; se cultivava

algum talento, esperava agradar-lhe cada vez mais. Mesmo

quando as distracções da sociedade me levavam para longe

de si, nunca estávamos separados. Nos espectáculos, procurava

adivinhar o que lhe teria agradado; um concerto recordava-me

os seus talentos e as nossas tão doces ocupações. Na sociedade,

como nos passeios, aprendia a mais ligeira semelhança.

Comparava-a a tudo; por toda a parte era a Cecília quem

levava a palma. Cada momento do dia era marcado por uma

homenagem nova, e cada noite eu lhe levava o tributo a seus

pés.

Agora, que me resta? Dolorosas saudades, privações eternas,

e uma ligeira esperança de que o silêncio de Valmont diminua,

que o seu se mude em inquietação. Dez léguas somente nos

separam, e este espaço, tão fácil de transpor, só para mim se

torna num obstáculo invencível! E quando, para me ajudar a

vencê-lo, imploro o meu amigo, a minha amada, ambos ficam

frios e tranquilos! Longe de me socorrerem, nem mesmo me

respondem.

Que é feito da amizade activa de Valmont? Que é feito, sobretudo,

minha Cecília, dos seus sentimentos tão ternos, que a

tornavam tão engenhosa para encontrar maneira de nos vermos

131

todos os dias? Algumas vezes, recordo-me, sem deixar de o desejar,

via-me obrigado a sacrificar esse desejo a considerações, a

deveres. O que não me dizia então a Cecília? Por quantos pretextos

não combatia as minhas razões? E lembre-se de que as

minhas razões cediam sempre aos seus desejos. Não pretendo

extrair daí um mérito! Nem mesmo tinha o do sacrifício! O que

a Cecília desejava obter, ardia eu em desejos de concedê-lo!

Mas, enfim, cabe-me agora a vez de pedir; e que peço eu? Vê-la

por um momento, renovar e receber o juramento dum amor

eterno. Pois já não está aí a sua felicidade, como está a minha?

Repito essa ideia desesperadora, que poria o cúmulo aos meus

males. A Cecília ama-me, amar-me-á sempre; creio-o, estou certa

disso, não quero duvidar jamais. Mas a minha situação é horrorosa

e não posso suportá-la por mais tempo. Adeus, Cecília.

Paris, 18 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXXI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Como os seus temores me causam piedade! Como me provam

a minha superioridade sobre o Visconde! E quer ensinar-me,

conduzir-me! Ah! meu pobre Valmont, que distância vai

ainda de si a mim! Não, todo o orgulho do seu sexo não seria

suficiente para preencher o intervalo que nos separa. Porque

não poderia executar os meus projectos, julga-os impossíveis!

Ente orgulhoso e fraco, fica-te bem quereres calcular os meus

meios e julgar dos meus recursos! Na verdade, Visconde, os seus

conselhos conseguiram irritar-me, e não posso esconder-lho.

Que para mascarar a sua inacreditável falta de jeito em relação

à sua Presidente o Visconde ostente como um triunfo o facto

de ter confundido por um momento essa mulher tímida e que

o ama, consinto; ter obtido dela um olhar, um único olhar, sorrio

e passo adiante. Que sentindo, a seu pesar, o pouco valor

das suas diligências, espere furtá-las à minha atenção, lisonjeando-me

pelo esforço sublime de aproximar duas crianças que

ardem no desejo de se ver, e que, diga-se de passagem, devem a

mim somente o ardor desse desejo; admito-o ainda. Que, enfim,

a si mesmo autorize essas acções brilhantes, para me dizer num

tom doutoral que vale mais empregar o tempo a executar projectos

do que a contá-los; essa vaidade não me prejudica, e perdoo-lha.

Mas que possa supor que eu tenho necessidade da sua

prudência, que eu poderia perder-me se não escutasse as suas

opiniões, que devo sacrificar-lhes um prazer, uma fantasia: na

verdade, Visconde, é exorbitar da confiança que desejo ter em

si!

132

Que tem o Visconde feito que eu não tenha ultrapassado mil

vezes? Seduziu, perdeu mesmo muitas mulheres: mas que dificuldade

teve a vencer? que obstáculos a ultrapassar? Onde está

o mérito que verdadeiramente lhe caiba? Uma bela figura, puro

efeito do acaso; maneiras graciosas, que o hábito dá quase sempre;

espírito, na verdade, mas o qual uma certa gíria de salão

substitui em caso de necessidade; um impudor muito louvável,

mas talvez devido unicamente à facilidade dos seus primeiros

êxitos. Se me não engano, eis todos os seus dotes; pois, para a

celebridade que pôde adquirir, não exigirá, creio, que conte por

muito a arte de suscitar ou aproveitar a ocasião dum escândalo.

Quanto à prudência, à finura, não falo de mim: mas que

; mulher não as possui de melhor qualidade que o Visconde? Oh!

a sua Presidente leva-o como uma criança.

Creia-me, Visconde, raramente se adquirem as qualidades

? sem as quais se pode passar. Combatendo sem risco, deve-se

; agir sem precaução. Para vós, os homens, as derrotas são apenas

êxitos a menos. Neste combate tão desigual, a nossa sorte

está em não perder e a vossa infelicidade em não ganhar. Ainda

que eu concedesse aos homens tantos talentos como a nós, mulheres,

em quantos teríamos nós ainda de ultrapassá-los, pela

necessidade em que estamos de fazer deles um uso contínuo !

Suponhamos, admito, que vocês põem tanta habilidade em

vencer-nos como nós a defender-nos ou a ceder: convirá ao

menos que ela se lhes torne útil após a vitória. Unicamente ocupados

do sabor que achais na nova ligação, entregais-vos a ela

sem receio, sem reserva: o tempo que ela poderá durar não vos

interessa.

De facto, esses laços reciprocamente dados e recebidos, para

falar na gíria do amor, só vós podeis, à vossa escolha, estreitá-los

ou rompê-los; felizes ainda se na vossa ligeireza, preferindo

o mistério ao ruído, vos contentais com um abandono humilhante

e não fazeis do ídolo da véspera a vítima de manhã.

Mas que uma mulher infortunada sinta primeiro o peso da

sua cadeia - que riscos não terá a correr se tentar subtrair-se a

ela, se ousar somente soerguê-la? Se experimenta afastar de si o

! homem que o seu coração repele com esforço, é tremendo que o

faz. Se ele se obstina em ficar, é forçoso entregar ao medo o que

antes era concedido ao amor:

A sua prudência deve desatar com destreza aqueles mesmos

laços que vós teríeis desfeito. À mercê do seu inimigo, ela

fica sem recursos, se ele não tiver generosidade; e como esperar

tal sentimento, quando, se algumas vezes o louvam quando o

tem, nunca todavia o censuram por ele lhe faltar?

Os seus braços abrem-se ainda, quando o seu coração está fechado. a

O Visconde não negará, sem dúvida, estas verdades, cuja

evidência as tornou triviais. Se, entretanto, alguma vez me viu,

dispondo dos acontecimentos e das opiniões, fazer desses homens

tão temíveis o joguete dos meus caprichos ou das minhas

133

fantasias; tirar a uns a vontade, a outros o poder de me serem

nocivos; se eu soube, pouco a pouco, e consoante a variedade

dos meus gostos, juntar ao meu séquito ou expulsar da minha

beira:

se, em meio dessas revoluções frequentes, a minha reputação

apesar de tudo se conservou pura; não deverá o Visconde

concluir que, nascida para vingar o meu sexo e dominar o seu,

eu soube inventar para o meu uso meios desconhecidos até de

mim própria?

Ora! guarde os seus conselhos e os seus receios para certas

mulheres delirantes, das quais se diz serem sentimentais; cuja

imaginação exagerada levaria a supor que a Natureza lhes pôs os

sentidos na cabeça; que, não tendo nunca reflectido, confundem

sem cessar o amor e o amante; que, na sua louca ilusão, acreditam

que só o homem com quem procuraram o prazer é o seu

único depositário; e que, verdadeiramente supersticiosas, têm

pelo sacerdote o respeito e a fé que se deve apenas à divindade.

Pode ainda ter receio por aquelas que, mais superficiais do

que prudentes, não sabem consentir, se for necessário, em serem

abandonadas.

Deverá tremer principalmente pelas mulheres activas na sua

ociosidade, a quem o Visconde chama sensíveis, e das quais o

amor se apodera tão facilmente e com tamanha força; que sentem

a necessidade de se ocuparem ainda do amor, mesmo quando

dele não podem já extrair prazer algum; e que, abandonando-se

à fermentação das suas ideias, inventam para si próprias

cartas tão doces, mas tão perigosas de escrever, e que não receiam

confiar essas provas da sua fraqueza ao próprio objecto

que lhes deu causa. Imprudentes que, no seu actual amante, não

sabem ver o seu futuro inimigo!

Mas que tenho eu de comum com essas mulheres irreflectidas?

Quando me viu o Visconde afastar-me das regras que a

mim própria determinei, e faltar aos meus princípios? Os meus

princípios, repito-o, e digo-o deliberadamente, pois eles não

são, como os das outras mulheres, colhidos ao acaso, aceites

sem análise e seguidos por hábito; são o fruto das minhas profundas

reflexões. Criei-os, e posso dizer que são a minha obra.

Entrando na sociedade num tempo em que, criança ainda,

as circunstâncias me condenavam ao silêncio e à inacção, delas

soube tirar proveito para observar e reflectir. Enquanto me julgavam

estouvada ou distraída, não dando ouvidos à verdade

dos ensinamentos que me dispensavam, eu recolhia cuidadosamente

tudo o que procuravam esconder-me.

Essa curiosidade útil, ao mesmo tempo que servia para me

instruir, ensinava-me a dissimular. Obrigada muitas vezes a

esconder dos olhos dos que me rodeavam os motivos que me

chamavam a atenção, experimentei pousar os meus no que me

agradasse; o resultado desde logo foi ter adoptado aquele olhar

sem constrangimento que o Visconde tantas vezes me gabou.

134

Animada por este primeiro êxito, tratei de regular, pelo mesmo

processo, os diversos movimentos do meu rosto. Se sentia qualquer

apreensão, estudava-me até assumir um ar de serenidade

ou mesmo de alegria; levei o meu zelo ao ponto de a mim própria

causar dores voluntárias, para durante esse tempo procurar

a expressão do prazer. Com o mesmo cuidado e maior custo,

exercitei-me a reprimir os sintomas de uma alegria inesperada.

Foi assim que consegui tomar sobre a minha fisionomia aquele

domínio que algumas vezes admirou em mim.

Eu era ainda muito nova e quase sem interesse; mas só tinha

de meu os próprios pensamentos, e indignava-me à ideia de que

mos pudessem roubar ou surpreender contra minha vontade.

Munida dessas primeiras armas, experimentei servir-me delas.

Não me satisfazia o não me deixar penetrar: divertia-me mostrar-me

sob formas diferentes. Dominando os meus gestos, observava

as minhas falas. Uns e outras eram regulados segundo

as circunstâncias, ou mesmo segundo as minhas fantasias: Desde

então, a minha maneira de pensar pertenceu-me a mim só, e

não mostrei nunca senão o que me era útil deixar ver.

Este trabalho sobre mim própria fixou a minha atenção

sobre a expressão dos rostos e o carácter das fisionomias; e

adquiri esta mirada penetrante, na qual a experiência todavia me

ensinou a não me fiar inteiramente, mas que, em todos os casos,

raramente me enganou.

Ainda não tinha quinze anos, possuía já os talentos a que a

maior parte dos nossos políticos devem a sua reputação, e encontrava-me

ainda nos rudimentos da ciência que pretendia

adquirir.

Como pode calcular, procurava, como todas as raparigas,

adivinhar o amor e os seus prazeres; mas, não tendo passado

pelo convento, não possuindo uma amiga segura, e guardada

por uma mãe vigilante, tinha apenas ideias vagas e que não podia

fixar. A própria natureza, da qual mais tarde,seguramente,

só tive de me louvar, não me dava ainda qualquer indício. Dir-se-ia

que trabalhava em silêncio para aperfeiçoar ã sua obra. Só

a minha cabeça fermentava; o meu desejo não era gozar, era

saber. O desejo de me instruir sugeriu-me os meios.

Senti que o único homem com quem podia falar sobre esse

assunto, sem me comprometer, era o meu professor. E logo

tomei o meu partido. Passei por cima dessa pequena vergonha;

e, gabando-me duma falta que não tinha cometido, acusei-me

de ter feito tudo o que fazem as mulheres. Tal foi a expressão de

que usei; mas, falando assim, eu não sabia na verdade que ideia

exprimia. A minha esperança não foi de todo iludida, nem inteiramente

realizada; o receio de me trair impedia-me de me esclarecer.

Mas o bom do padre pintou-me o mal tão grande que eu

concluí que o prazer devia ser extremo; e ao desejo de o conhecer

sucedeu o de o saborear.

Não sei onde esse desejo me teria conduzido; e, faltando-me

135

por completo a experiência, uma única oportunidade ter-me-ia

talvez perdido. Felizmente para mim, minha mãe anunciou-me

alguns dias depois que eu ia casar-me. A certeza de que ia saber

extinguiu imediatamente a minha curiosidade, e cheguei virgem

aos braços do senhor de Merteuil.

Era com tranquilidade que esperava o momento que tudo

devia ensinar-me e foi-me preciso reflectir para mostrar confusão

e receio. A primeira noite, de que geralmente se tem uma

ideia tão cruel ou tão doce, apresentava-me apenas uma ocasião

de experiência: dor e prazer, tudo eu observava com exactidão,

e nessas diversas sensações via apenas factos para recolher e

meditar.

Este género de estudo depressa começou a agradar-me; mas,

fiel aos meus princípios, e sentindo, talvez por instinto, que ninguém

devia estar mais longe da minha confiança do que o meu

marido, resolvi, pelo simples facto de que era sensível, mostrar-me

impassível a seus olhos. Esta frieza aparente foi, ao longo

do tempo, o fundamento inabalável da sua cega confiança. Juntei-lhe,

após uma segunda reflexão, o aspecto estouvado que a

minha idade autorizava; e nunca ele me julgou mais criança do

que nos momentos em que com mais audácia eu o iludia.

Entretanto, devo confessá-lo, deixei-me primeiro arrastar

pelo turbilhão do mundo, e entreguei-me inteiramente às suas

distracções fúteis. Mas ao fim de alguns meses, tendo-me o senhor

de Merteuil levado a partilhar as suas tristes férias no

campo, o medo do aborrecimento fez com que me voltasse o

gosto do estudo; e encontrando-me rodeada apenas de pessoas

cuja distância de mim me punha ao abrigo de toda a suspeita,

aproveitei a ocasião para dar um campo mais vasto às minhas

experiências. Foi ali, principalmente, que obtive a certeza de

que o amor que nos louvam como a causa dos nossos prazeres é

apenas, quando muito, o seu pretexto.

A doença do senhor de Merteuil veio interromper tão doces

ocupações; foi necessário segui-lo à cidade, onde ele ia procurar

socorros. Morreu, como sabe, pouco tempo depois; e embora,

no fim de contas, eu não tivesse de me queixar dele, nem por

isso senti menos vivamente o preço da liberdade que a minha

viuvez ia proporcionar-me, e a mim própria prometi aproveitar

bem essa liberdade.

Minha mãe contava que eu entrasse num convento, ou voltasse

a viver com ela. Recusei uma e outra solução; e tudo o que

concedi à decência foi voltar ao mesmo lugar no campo, onde

me restavam ainda algumas observações a fazer.

Essas observações ganharam força com o auxílio da leitura;

mas não julgue que foram todas do género que supõe. Estudei

os nossos costumes nos romances; as nossas opiniões nos filósofos;

procurei mesmo nos mais severos moralistas o que eles exigiam

de nós, e soube assim o que se podia fazer, o que se devia

pensar e o que era preciso parecer. uma vez fixada sobre esses

136

três pontos, só último apresentava algumas dificuldades na sua

execução; esperei vencê-las e medirei nos meios.

Começava a aborrecer-me dos meus prazeres rústicos, demasiado

monótonos para a minha imaginação; sentia uma necessidade

de coquetismo que me reconciliasse com o amor; não

para verdadeiramente u sentir, mas para o inspirar e o fingir.

Em vão me haviam dito e eu tinha lido que não se podia fingir

esse sentimento; eu via, no entanto, que para o conseguir bastava

juntar à inteligência de um autor o talento de um comediante.

Experimentei os dois géneros, e talvez com algum êxito; mas

em lugar de procurar os vãos aplausos do teatro, resolvi empregar

na minha felicidade o que tantos outros sacrificavam à vaidade.

Um ano se passou nessas diversas ocupações. Como o meu

luto já me permitia voltar a aparecer, regressei à cidade com os

meus grandes projectos; não esperava o primeiro obstáculo que

aí encontrei.

Aquela longa solidão, aquele retiro austero tinham lançado

sobre mim uma aparência de virtude que amedrontava os nossos

galãs; mantinham-se afastados e deixavam-me entregue a

uma multidão de aborrecidos senhores, que pretendiam todos a

minha mão. O embaraço não estava em recusá-los; mas várias

dessas recusas desagradavam à minha família, e eu perdia nessas

questões internas o tempo que prometera a mim mesma gastar

tão agradavelmente. Fui pois obrigada, para atrair uns e

afastar os outros, a pôr em relevo algumas inconsequências e a

empregar em prejudicar a minha reputação, o cuidado que pensava

aplicar em conservá-la. Consegui-o facilmente, como pode

imaginar. Mas não me sentindo arrebatada por nenhuma paixão,

fiz só o que julguei necessário, e medi com prudência as

doses da minha leviandade.

Logo que atingi o fim que me propusera voltei ao ponto de

partida e fiz promessas de emenda a algumas daquelas mulheres

que, não podendo ter pretensões a agradar, se pavoneiam com

as do mérito e da virtude. Foi um lance de dados que me valeu

mais do que eu esperava. Aquelas reconhecidas donas arvoraram-se

em minhas apologistas; e o zelo cego que empregaram

para louvar o que elas chamavam a sua obra chegou ao ponto

de, à menor frase que alguém se permitisse a meu respeito, todo

o partido da virtude gritar contra o escândalo e a injúria. Pelo

mesmo processo consegui ainda a aprovação das mulheres que

pretendiam agradar, as quais, persuadidas de que eu renunciava

a seguir carreira idêntica à sua, me escolheram para alvo dos

seus elogios, todas as vezes que queriam provar que não diziam

mal de toda a gente.

Entretanto, a minha anterior conduta tinha atraído os apaixonados;

e, para me equilibrar entre eles e as minhas infiéis protectoras,

mostrei-me como uma mulher sensível, mas difícil, a

quem o excesso de delicadeza fornece armas contra o amor.

Então comecei a desenvolver no grande teatro os talentos

137

que dera a mim própria. O meu primeiro cuidado foi o de adquirir

o renome de invencível. Para chegar a isso, os homens que

não me agradavam foram sempre os únicos de quem simulei

aceitar as homenagens. Empreguei-os utilmente em alcançar

por meio deles as honras da resistência, enquanto me entregava

sem receio ao amante preferido. Mas a esse a minha fingida

timidez não permitiu nunca que me seguisse na sociedade; e os

olhares do mundo fixaram-se, desse modo, no amante recusado.

Sabe, meu amigo, que levo pouco tempo a decidir-me; é por

ter observado que são quase sempre os cuidados anteriores que

revelam o segredo das mulheres. Por muito que se faça, o tom

nunca é o mesmo, antes e depois do acontecimento. Esta diferença

não escapa ao observador atento, e achei menos perigoso

enganar-me na escolha do que deixar-me penetrar. Ganho ainda

com esse procedimento afastar as evidências, que fornecem

os únicos elementos para nos julgarem.

Estas precauções, e ainda a de nunca escrever, não entregar

nunca uma prova da minha derrota, poderiam parecer excessivas;

a mim nunca me pareceram suficientes. Desci ao fundo do

meu coração, e nele estudei o dos outros. Soube assim que não

há ninguém que não conserve aí um segredo que não deve ser

revelado; eis uma verdade que a Antiguidade parece ter conhecido

melhor do que nós, e da qual a história de Sansão poderia

ser apenas uma engenhosa alegoria. Nova Dalila, empreguei

sempre, como ela, o meu poder em surpreender esse importante

segredo. Quantos Sansões modernos não tive eu já com a cabeleira

sob a minha tesoura! E a esses, deixei eu de temer; são os

únicos que me tenho permitido humilhar algumas vezes. Mais

subtil com os outros, a arte de os tornar infiéis para evitar parecer-lhes

volúvel, uma fingida amizade, uma aparente confiança,

alguns rasgos generosos, a ideia lisonjeira que cada um conserva

de ter sido o meu único amante, tudo serviu para obter o seu silêncio.

Por fim, quando esses meios me faltaram, soube, antes

de romper, abafar de antemão, sob o ridículo ou a calúnia, a

confiança que esses homens perigosos pudessem obter.

O que lhe estou dizendo, tem-me o Visconde visto praticar

constantemente; e duvida da minha prudência! Pois bem: evoque

o tempo em que me dispensou as suas primeiras atenções.

Nunca uma homenagem me lisonjeou tanto; desejava-o antes

de o ter visto. Seduzida pela sua reputação, parecia-me que fazia

falta à minha glória. Ardia no desejo de o combater corpo a

corpo. Foi o único dos meus prazeres que teve algum império

sobre mim. Entretanto, se o Visconde tivesse querido perder-me,

que meios teria encontrado? Palavras vãs que não deixam

sulco atrás de si, que a sua própria reputação teria ajudado a

tornar suspeitas, e uma sucessão de factos sem verosimilhança,

cuja narração sincera teria o ar de um romance mal urdido.

É certo que, mais tarde, vim a entregar-lhe todos os meus

138

segredos; mas o Visconde sabe os interesses que nos unem, e se,

de nós dois, sou eu quem deve culpar-se de imprudência.

Já que estou em maré de lhe prestar contas, desejo fazê-lo

com exactidão. Daqui ouço-o dizer-me que estou, pelo menos, à

mercê da minha criada de quarto; de facto, se ela não possui o

segredo dos meus sentimentos, possui o dos meus actos. Quando

o Visconde em tempos me falou a esse respeito, respondi-lhe

apenas que estava segura dela; e a prova de que esta resposta

bastou então para a sua tranquilidade é que depois disso lhe

confiou, por sua conta, segredos bastante perigosos. Mas agora

que Prévan lhe faz sombra, e que a cabeça lhe anda à roda, tenho

dúvidas de que me acredite sob palavra. Vou pois edificá-lo.

Em primeiro lugar, essa rapariga é minha irmã de leite, e

esse laço que aparentemente nada vale não deixa de ter importância

para pessoas dessa categoria. Além disso, conheço o segredo

dela, e mais ainda: vítima duma loucura de amor, estaria

perdida se eu não a tivesse salvo. Os pais dela, todos eriçados de

* Virá a saber-se na continuação, Carta CLII, não o segredo do senhor de

Valmont, mas aproximadamente de que género ele era; e o leitor sentirá que

não foi possível esclarecê-lo melhor sobre este assunto.

honra, queriam nada menos do que interná-la. Dirigiram-se a

mim. Vi, num relance, quanto a sua cólera me poderia ser útil.

Secundei essa cólera, e solicitei a ordem de internamento, que

obtive. Depois, passando subitamente ao partido da clemência,

para o qual atraí os pais, e aproveitando do meu crédito junto

do velho ministro, levei-os a consentir que me deixassem depositária

dessa ordem, e senhora de pedir ou deter a sua execução,

consoante o mérito do procedimento dessa rapariga. Ela sabe

que tenho a sua sorte nas minhas mãos e ainda que, por absurdo,

esse poderoso meio não a detivesse, não é evidente que a sua

conduta desregrada e a sua punição autêntica tirariam todo o

crédito às suas palavras?

A essas precauções que chamo fundamentais, juntam-se

muitas outras, locais ou ocasionais, que a reflexão e o hábito farão

encontrar, caso seja necessário, e que seria fastidioso pormenorizar,

mas cuja prática é importante. Se quer chegar a conhecê-las,

Visconde, dê-se ao trabalho de considerar o meu

comportamento no seu conjunto.

Mas pretender que eu me tenha entregue a tantos cuidados

para não retirar deles o fruto; que depois de tanto me ter elevado

sobre outras mulheres pelos meus penosos trabalhos eu consinta

em rastejar como elas, entre a imprudência e a timidez;

que sobretudo eu possa temer um homem a ponto de não ver

salvação a não ser na fuga? Não, Visconde; nunca. É preciso

vencer ou morrer. Quanto a Prévan, quero tê-lo e hei-de tê-lo;

139

ele quererá divulgá-lo, e não o divulgará. Em duas palavras, eis

o nosso romance. Adeus.

20 de Setembro de 17* *

CARTA LXXXII

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Meu Deus, como a sua carta me fez pena! E tinha eu tanta

impaciência de a receber! Esperava encontrar nela consolação e

afinal fiquei muito mais aflita do que antes de a ter recebido.

Chorei muito enquanto a lia. Mas não é isso que eu lhe censuro;

já tenho corado muitas vezes por sua causa, sem que isso me

faça pena. Mas, desta vez, não é a mesma coisa.

Que é que quer dizer quando escreve que o seu amor se torna

um tormento, que não pode viver assim; nem suportar por

mais tempo a sua situação? Será o caso que vai deixar de amar-me,

só porque isso não é tão agradável como noutro tempo?

Parece-me que eu não sou mais feliz, bem pelo contrário; e no

entanto,amo-o cada vez mais. Se o senhor de Valmont não lhe

escreveu, a culpa não é minha; não lhe pude pedir, porque nunca

estive só com ele, e combinámos que não nos falaríamos

diante das outras pessoas; e isso é ainda por si, para que ele possa

fazer o mais cedo possível aquilo que deseja. Não digo que o

não deseje também, e disso pode estar certo; mas que quer que

eu faça? Se julga que é fácil, encontre o meio, que eu não peço

melhor.

Julga que me é agradável ser repreendida pela Mamã, que

antes não me ralhava nunca, bem pelo contrário? Agora é pior

do que se eu estivesse no convento. Ainda me consolava pensando

que era por si; havia até ocasiões em que eu me dava por feliz.

Mas quando vejo que também está zangado sem que haja da

minha parte culpa nenhuma, fico mais triste do que estava por

tudo quanto aconteceu até aqui.

Só para receber as suas cartas são uns trabalhos, que se o

senhor de Valmont não fosse tão bom e tão expedito como é, eu

não sabia o que havia de fazer. E para lhe escrever é ainda mais difícil.

De manhã não me atrevo, porque a Mamã está muito perto

de mim, e a cada momento entra no meu quarto. Algumas vezes

posso fazê-lo de tarde, com o pretexto de cantar ou tocar harpa;

e mesmo assim é preciso interromper-me a cada linha para que

ouçam que estou a estudar. Felizmente a minha criada de quarto

adormece algumas vezes ao serão, e eu digo-lhe que me deito

muito bem sozinha, para que ela se vá embora e me deixe luz.

Depois, tenho de me pôr debaixo dos cortinados, para que não

140

se possa ver a claridade, e para que ao menor ruído eu possa

esconder tudo na cama, se vier alguém. Sempre queria que estivesse

no meu lugar, para ver o que fazia! Bem vê que é preciso

amar muito para fazer isto. Enfim, o certo é que faço tudo o que

posso; e eu desejava poder fazer ainda mais.

É claro que não recuso dizer-lhe que o amo e que o amarei

sempre; nunca lho disse tão do fundo do coração; e ainda está

zangado! No entanto, tinha-me dado a certeza, antes que eu lho

dissesse, que isso bastava para o tornar feliz. Não pode negar o

que disse: está nas suas cartas. Embora eu já as não tenha, lembro-me

disso como quando as lia todos os dias. E só porque estamos

longe um do outro já pensa de maneira diferente! Mas

esta ausência não há-de durar sempre. Meu Deus, como eu sou

infeliz! E por sua causa, só por sua causa!

A propósito das suas cartas, espero que tenha guardado as

que a Mamã me tirou, para lhas entregar; há-de vir um tempo

em que não esteja tão vigiada como agora, e então tornar-me-á

a dar todas. Como serei feliz, quando puder guardá-las sempre,

sem que ninguém tenha nada a ver com isso! Agora é ao senhor

de Valmont que as entrego, porque seria muito arriscado proceder

de outra maneira; apesar disso nunca lhe dou nenhuma que

não me faça pena.

Adeus, meu querido amigo. Amo-o de todo o meu coração.

Amá-lo-ei toda a minha vida. Espero que já não esteja zangado;

e se estivesse certa disso, também já o não estaria. Escreva-me o

mais depressa que puder, pois sinto que até lá estarei sempre triste.

Castelo de. . ., 21 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Suplico-vos, senhora, reatemos o nosso diálogo tão desgraçadamente

interrompido! Que eu possa acabar de vos provar

quanto sou diferente do odioso retrato que vos tinham feito a

meu respeito; que eu possa, principalmente, gozar ainda dessa

amável confiança que começáveis a testemunhar-me! Que de

encantos sabeis dar à virtude! De que maneira embelezais e tornais

queridos todos os sentimentos honestos! É essa a vossa

sedução; é a mais forte, a única, ao mesmo tempo poderosa e

respeitável.

Sem dúvida basta ver-vos para que se deseja agradar-vos;

ouvir-vos em meio dos indiferentes, para que esse desejo aumente.

141

Mas aquele que teve a felicidade de vos conhecer melhor,

que pôde algumas vezes ler na vossa alma, depressa cede a

um entusiasmo mais nobre, e, penetrado de admiração e de

amor, adora em vós a imagem de todas as virtudes. Talvez mais

predestinado que outros para as amar e as seguir, mas alheado

delas por alguns erros que me haviam arrastado, fostes vós que

me aproximastes, que de novo me fizestes sentir todo o seu encanto.

Achais que é um crime esse novo amor? Condenareis a

vossa obra? Censurareis a vós própria o interesse que por ela

podereis sentir? Que mal se pode recear dum sentimento tão

puro, e que delícias não poderá ele proporcionar?

Assusta-vos o meu amor porque o achais violento, arrebatado?

Podereis temperá-lo por um amor mais doce; não recuseis o

domínio que vos ofereço, ao qual, juro, jamais deixarei de submeter-me,

e que, ouso crê-lo, não será inteiramente perdido

para a virtude. Que sacrifício poderia parecer-me penoso, com a

certeza de que o vosso coração saberia dar-lhe o preço? Onde

está o homem tão desgraçado que não saiba extrair prazer das

privações que se impõe; que não prefira uma palavra, um olhar

concedidos, a todos os gozos que poderia roubar ou surpreender!

E pudestes supor que era eu esse homem! E tivestes receio

de mim! Ah! Por que não depende de mim a vossa felicidade?

Como eu me vingaria de vós, tornando-vos feliz! Mas esse suave

jugo não é a estéril amizade que o impõe; para produzi-lo, só o

amor.

Esta palavra intimida-vos! E porquê? Uma dedicação mais

terna, uma união mais forte, um único pensamento, a própria

felicidade, os próprios sofrimentos, que há em tudo isso de estranho

à vossa alma? Todavia, é isso o amor! Pelo menos esse

que inspirais e que eu sinto! É ele principalmente que, calculando

sem interesse, sabe apreciar as acções pelo seu mérito e não

pelos seus resultados; tesouro inesgotável das almas sensíveis,

tudo que é feito por ele ou através dele se torna precioso.

Estas verdades tão fáceis de compreender, tão doces de praticar,

que têm de assustador? Que apreensões pode causar-vos

um homem sensível, a quem o amor já não permite outra felicidade

que não seja a vossa? É esse hoje o meu único desejo: sacrificarei

tudo para o realizar, excepto o sentimento que o inspira;

e se consentirdes em partilhar esse sentimento, dirigi-lo-eis

como vos aprouver. Mas não suportemos que ele nos divida,

quando nos deveria reunir. Se a amizade que me oferecestes não

é uma palavra vã, se, como ontem me dissestes, é o sentimento

mais doce que a vossa alma pôde conhecer, seja ela que regule

as condições entre nós, não me furtarei aos seus mandatos.

Mas, chamada a julgar o amor, que ela consinta em ouvi-lo;

uma recusa tornar-se-ia uma injustiça, e amizade não é injusta.

Um segundo encontro não terá mais inconvenientes do que

o primeiro: o acaso pode ainda fornecer-nos a ocasião. Podereis

mesmo ainda indicar o momento próprio.-Admito que eu não

142

tenha razão; não gostaríeis mais de convencer-me do que de

combater-me? E duvidais da minha docilidade? Se um importuno

não tivesse vindo interromper-nos, talvez eu já me tivesse

rendido inteiramente à vossa opinião; quem sabe até onde pode

chegar o vosso poder?

Deverei dizê-lo? Esse poder invencível, ao qual me entrego

sem ousar calcular a sua extensão, esse encanto irresistível, que

vos torna soberana dos meus pensamentos como das minhas

acções, acontece-me algumas vezes receá-los. Pobre de mim!

Talvez eu deva antes temer esse encontro que vos peço! Talvez

depois, cativo das minhas promessas, eu me veja reduzido a

abrasar-me num amor que eu sinto bem que não poderá extinguir-se,

sem ousar mesmo implorar o vosso socorro! Ah! senhora,

suplico-vos, não abuseis do vosso domínio! Mas quê! Se assim

vos sentirdes mais feliz, se por isso eu vos dever parecer

mais digno de vós, que mágoas não serão suavizadas por essas

consoladoras ideias? Sim, bem o sinto; falar-vos ainda é dar-vos

armas mais fortes contra mim; é submeter-me mais inteiramente

à vossa vontade. É mais fácil a defesa contra as vossas cartas;

as palavras são as mesmas, mas falta a vossa presença para lhes

dar força. Entretanto, o prazer de vos ouvir faz que eu arroste o

perigo: terei ao menos a felicidade de tudo tentar por vós, mesmo

contra mim; e os meus sacrifícios tornar-se-ão uma homenagem.

Considero-me feliz por vos provar de mil maneiras,

como de mil modos o sinto, que sois vós e sereis sempre o objecto

mais caro ao meu coração.

Castelo de..., 23 de Setembro de 17* *

CARTA LXXXIV

O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES

Viu bem como ontem fomos contrariados. Durante todo o

dia não pude entregar-lhe a carta que tinha para si; não sei se

hoje será mais fácil. Receio comprometê-la, pondo nisso mais

zelo do que habilidade; e não perdoaria a mim próprio uma imprudência

que lhe seria fatal e causaria o desespero do meu

amigo, tornando-a a si eternamente infeliz. No entanto, conheço

as impaciências do amor; sei quanto deve ser penoso, na sua

situação, suportar qualquer demora na única consolação que

possa experimentar neste momento. À força de me ocupar do

processo de afastar os obstáculos, encontrei uma cuja execução

será fácil, se nisso puser algum empenho.

Julgo ter reparado que a chave da porta de seu quarto, que

dá para o corredor, está sempre sobre a chaminé da sua Mamã.

Tudo se tornaria fácil com essa chave, como está vendo; mas, à

143

falta dela, procurarei arranjar-lhe uma parecida e que a substitua.

Bastar-me-á, para isso, ter a outra uma hora ou duas à

minha disposição. Devo achar facilmente ocasião de a tirar, e

para que ninguém dê pela falta, junto aqui uma, muito parecida,

e ninguém notará a diferença, a menos que a experimentem,

o que é pouco provável. Será preciso apenas que tenha o cuidado

de lhe pôr uma fita azul igual à que tem a outra.

Deve ter essa chave em seu poder amanhã ou depois de

amanhã, à hora do almoço, porque lhe será mais fácil dar-ma

nessa altura, e poderá voltar a pô-la no seu lugar à noite, que é

quando sua Mamã poderá dar-lhe mais atenção. Posso entregar-lha

na altura do jantar, se concordar com isto.

Como sabe, quando vamos do salão para a casa de jantar, é

sempre Madame de Rosemonde que vem em último lugar. Eu

dar-lhe-ei a mão. Terá apenas de deixar o seu tear vagarosamente,

ou então deixar cair qualquer coisa, de maneira a ficar

atrás de todos; nesse momento agarrará a chave, que eu lhe estenderei.

Não se esquecerá, logo que tenha a chave, de vir junto

da minha velha tia, fazendo-lhe algumas carícias. Se por acaso

deixar cair a chave, não lhe cause isso embaraço; eu fingirei que

é minha e respondo pelo resto.

A falta de confiança da sua Mamã e a maneira dura como a

trata autorizam-na a esta pequena fraude. Além do mais, é a

única maneira de continuar a receber as cartas de Danceny, e de

fazer que ele receba as suas; qualquer outro meio é realmente

demasiado perigoso, poderia perder-vos aos dois sem recurso; e

a minha prudente amizade não se consolaria de o ter empregado.

Uma vez de posse da chave, restar-nos-ão algumas precauções

a tomar para evitar o ruído da porta e da fechadura: mas

será coisa fácil. Por baixo do mesmo armário onde pus o papel,

encontrará óleo e uma pena. Como vai ao seu quarto algumas

vezes a horas em que está sozinha, aproveite para olear a fechadura

e os gonzos. Só deve ter cuidado em não deixar nódoas,

que fariam desconfiar. Por isso será melhor fazer esse trabalho à

noite, porque, se o fizer com a atenção de que a julgo capaz, no

dia seguinte de manhã não se notará nada.

Se apesar de tudo alguém notar alguma coisa, não hesite em

dizer que foi o serralheiro do castelo. Nesse caso, será preciso

especificar o tempo e até as conversas que ele teve consigo:

como, por exemplo, que ele toma esse cuidado, para evitar a ferrugem,

com todas as fechaduras de que se não faz uso; pois

está vendo que não seria verosímil ouvir esse barulho todo sem

perguntar a causa. São estes pequenos pormenores que dão verosimilhança,

e a verosimilhança faz que as mentiras não tenham

consequências, tirando o desejo de as verificar.

Depois de ter lido esta carta, peço-lhe que volte a lê-la, e,

mesmo, que a estude em pormenor: primeiro, porque é preciso

saber bem o que se quer fazer bem; em seguida, para ter a certeza

de que não omiti nada. Pouco habituado a usar por minha

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conta destas habilidades, não tenho feito delas grande uso. Foi

preciso até a minha viva amizade por Danceny, e o interesse que

me inspira, para me resolver a servir-me destes processos, aliás

bem inocentes. Tenho ódio a tudo que se pareça com enganar o

próximo; é este o meu carácter. Mas as vossas infelicidades tocaram-me

a tal ponto, que tentarei tudo para suavizá-las.

Como deve imaginar, depois desta combinação entre nós

ser-me-á mais fácil conseguir, com Danceny, o encontro que ele

deseja. Mas por agora não lhe fale nisto; não faria senão aumentar

a sua impaciência, e não chegou ainda o momento de a

satisfazer. Deve antes, segundo creio, empregar os seus cuidados

em acalmá-la, de preferência a agravá-la. A este respeito,

confio na sua delicadeza. Adeus, minha bela pupila. Ame um

pouco o seu tutor, e sobretudo empregue com ele docilidade; será

bem recompensada por isso. Ocupo-me da sua felicidade e

pode crer que nela encontrei também a minha.

24 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXXV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça.

Escute, e não me confunda com as outras mulheres. Cheguei ao

fim da minha ventura com Prévan; ao fim! Compreende bem o

que isto quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu

ou ele, se poderá gabar. A narração não é tão agradável como a

acção; por outro lado, não seria justo que, enquanto o Visconde

nada mais fez que raciocinar bem ou mal sobre este assunto,

extraísse dele tanto prazer como eu, que empreguei tempo e

trabalho.

Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar,

se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse

rival perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo

livre, pelo menos por algum tempo; talvez mesmo não torne

a erguer-se da prostação em que o lancei.

Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si

uma fada benfazeja! Enquanto vai definhando longe da beleza

que o atrai, eu digo uma palavra, e de novo se encontra junto

dela. Deseja vingar-se de uma mulher que lhe furta; eu marco o

sítio onde deve feri-la, e entrego-a à sua mercê. Por fim, para

afastar do combate um concorrente temível, sou ainda eu que o

inspiro e o ponho no mais alto lugar. Na verdade, se não passa a

vida a agradecer-me, é porque é um ingrato. Mas volto à minha

145

aventura, desde o início.

O encontro, marcado em voz alta, à saída da Ópera, foi

ouvido, como eu tinha esperado. Prévan compareceu; e quando

* Ver Carta LXXIV

a Marechala lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver

duas vezes seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de

responder que desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil

compromissos para poder assim dispor daquela noite. A bom

entendedor... No entanto, como eu desejava ter a certeza se era

ou não o verdadeiro objectivo daquela lisonjeira solicitude, quis

obrigar o novo apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto

dominante. Declarei que não jogava; de facto, ele encontrou,

por seu lado, mil pretextos para não jogar. E o meu primeiro

triunfo foi sobre o lansquené.

Tomei a meu cargo o bispo de... para ter com quem conversar;

escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a

quem eu queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo

tempo, sentia-me à vontade por ter uma testemunha respeitável

que, em caso de necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento

e os meus a-propósitos. Esta combinação deu resultado.

Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se

tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para

experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento,

como não acreditando nele; com o meu aspecto sério, fiz

deter a sua jovialidade, que me pareceu demasiado ligeira para

um início; baixou de tom, tomando o da amizade discreta; e foi

sob esta bandeira vulgar que começámos o nosso recíproco ataque.

Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o

braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso

ser justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa

particular, parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral,

da qual aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa,

falou-se de uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia

ir à cena no Teatro Francês. Afectei algum pesar por não ter

marcado o meu camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei,

como é da praxe; ao que ele respondeu muito agradavelmente

que eu não tinha ouvido bem; que com certeza não faria o sacrifício

do seu camarote a alguém que ele não conhecia, mas que

somente me avisava de que a senhora Marechala disporia dele.

Ela prestou-se a este gracejo e eu aceitei.

Quando subimos ao salão, ele pediu, como pode imaginar,

um lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com

muita bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a

ocasião para uma daquelas conversações de duplo sentido, para

146

as quais tem um talento que o Visconde já me gabou. De facto,

tendo-se posto de joelhos diante da Marechala, como uma

criança submissa, dizia ele, sob o pretexto de lhe pedir a opinião

e de implorar o seu auxílio, disse ainda muitas coisas lisonjeiras

e ternas, as quais me era fácil supor que se dirigiam a mim.

Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no

jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante;

mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse

eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem,

que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que

eu o admirava e me ocupava excessivamente do efeito prodigioso

que causava sobre mim. Julgo que o deixei muito satisfeito;

pelo meu lado, eu não estava menos contente.

Na segunda-feira seguinte, fui ao Teatro Francês, como tínhamos

combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro

Visconde, nada posso dizer-lhe do espectáculo, a não ser que

Prévan tem um talento maravilhoso para o galanteio, e que a

peça caiu; eis tudo o que lhe posso dizer. Era com pena que eu

via findar o serão, que realmente me agradava muito. E para o

prolongar, convidei a Marechala a vir cear comigo; o que me

forneceu pretexto para propor o mesmo ao amável galanteador,

que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a,casa das Condessas

de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome

reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar

as confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e

prometi a mim própria... continuar a aventura. Estava certa de

que o emendaria de tão perigosa tendência.

Estranho ao meu grupo, que naquela noite era pouco numeroso,

ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por

isso, quando fomos cear, ofereceu-me a mão. Eu tive a malícia,

ao aceitá-la, de pôr na minha um ligeiro frémito, e de conservar,

enquanto andávamos, os olhos baixos e a respiração alta.

Tinha o aspecto de pressentir a minha derrota e de temer o meu

vencedor. Ele notou-o à maravilha; e logo o traidor mudou de

tom e de maneira. De galanteador, tornou-se meigo. Os propósitos

que me dirigia eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias

forçavam-no a isso. Mas o seu olhar, que se tornara

menos vivo, era mais acariciador; as inflexões da sua voz, mais

doces; o seu sorriso já não era o da finura, mas o da satisfação.

Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo

de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntar-lhe:

faria melhor do que isto?

Pelo meu lado, dei-me ares de pensativa, a tal ponto que,

sendo forçado a notá-lo, mo censurou. Tive então a habilidade

de me defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um

olhar rápido, mas tímido e confundido, de propósito para o levar

a crer que todo o meu receio era que ele adivinhasse a causa

da minha preocupação.

Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala

147

contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar

na otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos

sonhos ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim;

de facto, ele honrou-me com uma atenção particular. O Visconde

imagina decerto que os meus tímidos olhares não ousavam

buscar os do meu vencedor; mas, dirigidos para ele da maneira

mais humilde, logo me deram a certeza de que eu obtinha o efeito

que pretendia produzir. Faltava ainda persuadi-lo de que o

mesmo encantamento me penetrava; por isso, quando a Marechala

anunciou que ia retirar-se, exclamei numa voz terna e

indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!" Todavia

levantei-me; mas, antes de me separar dela, perguntei-lhe quais

os seus projectos para ter um pretexto de lhe dizer os meus e de

dar a saber que estaria em minha casa no dia posterior ao seguinte.

Separámo-nos por fim.

Então, pus-me a reflectir. Não duvidava que Prévan aproveitasse

a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar;

que viesse bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse

com vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a

minha reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que,

por pouco hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres

dadas à aventura ou com as que não têm experiência; e

tinha a vitória certa se ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo

se tivesse a pretensão de a obter de mim.

É tão cómodo ter de lidar com as pessoas de princípios!

Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos desconcerta

pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos

transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios,

e algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão

facilmente quando o plano é traçado de antemão! A chegada, a

atitude, o tom, as palavras, tudo isso eu conhecia desde a véspera.

Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o Visconde

adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida

defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia: embaraço, para lhe

dar tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser

combatidas: receio e desconfiança, para provocar os protestos;

e da sua parte o perpétuo estribilho: peço-lhe apenas uma palavra;

e da minha um silêncio, comunicando-lhe uma expectativa

que fazia crescer o seu desejo; e, através de tudo isso, a mão que

se toma cem vezes, que se retira sempre e nunca se recusa. Poderia

passar-se assim um dia: passámos uma hora mortal. Estaríamos

talvez ainda nisso se não ouvíssemos o ruído de uma carruagem

entrando no pátio. Esse feliz contratempo tornou, como

é natural, as suas instâncias mais vivas; e eu, vendo chegado o

momento em que já nada me podia surpreender, depois de me

ter preparado para um longo suspiro, concedi a preciosa palavra.

Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois rodeava-nos

numerosa sociedade.

148

Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu

consenti; mas, cuidando da minha defesa, ordenei à criada de

quarto que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir,

donde, como sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir,

e foi neste que o recebi. O diálogo correu livremente, e como

ambos tínhamos o mesmo desejo, breve nos pusemos de acordo:

mas era preciso desfazer-nos daquele espectador importuno;

era aí que eu queria chegar.

Então, pintando-lhe a meu belo prazer o quadro da minha

vida interior, persuadi-o facilmente de que não chegaríamos a

encontrar um momento de liberdade, que devíamos olhar como

uma espécie de milagre aquele de que tínhamos gozado na véspera,

e que ainda assim tivera perigos excessivos para que eu me

expusesse a eles, pois a todo o instante alguém poderia entrar

no salão. Não me esqueci de acrescentar que os hábitos da minha

casa estavam assim estabelecidos porque, até ao presente,

nunca me tinham contrariado; e insisti ao mesmo tempo na

impossibilidade de os mudar, porque seria comprometer-me aos

olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer, ficar amuado,

dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde adivinha

quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o

golpe decisivo, chamei as lágrimas em meu socorro. Foi exacta

mente o Zaire, vous pleurezl. Julgando dominar-se, e na esperança,

afectuou estar possuído de todo o amor de Orosmane.

Passado o lance teatral, voltámos às combinações. Não

podendo ser durante o dia, pensámos escolher uma noite. Mas o

meu porteiro tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de

opinião que não se podia pensar em suborná-lo. Ele propôs-me

a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o previsto e inventei

um cão que, manso e silencioso de dia, era um verdadeiro demónio

durante a noite. A facilidade com que eu entrava em

todos aqueles pormenores era de molde a excitá-lo, o que deu

em resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse

que eu aceitei.

Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto

como ele próprio: nisto não me enganava Prévan, pois, em tal

matéria, patrão e criado valiam o mesmo. Eu daria uma grande

ceia em minha casa, à qual ele seria convidado. Chegado o

momento, despedir-se-ia, simulando sair só. O hábil confidente

chamaria a carruagem, abriria a porta; e ele, Prévan, em vez de

subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não chegaria a

dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha saído, e

entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de

conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso

que a minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal

projecto, razões suficientemente más para que ele tivesse a pretensão

de as destruir. Ele respondeu dando-me exemplos; segundo

ele, não havia processo mais vulgar. Já várias vezes se

servira dele. Era mesmo o de que fazia mais uso, como o menos

149

perigoso.

Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia

de candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto

do meu quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e

ser-lhe-ia possível entrar e esperar, sem grandes riscos, que as

criadas se recolhessem; e, para dar maior verosimilhança ao

meu consentimento, exigia que o momento do encontro fosse,

sem discussão, de uma submissão perfeita. Era preciso ter juízo,

oh! muito juízo! Enfim, eu queria apenas provar-lhe o meu

amor, mas não satisfazer o seu.

A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do

jardim: bastava esperar o romper do dia, o cão não daria sinal.

Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono

mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado;

pense na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos

de uma melhor combinação? Ele queria apenas que tudo viesse

a saber-se, eu estava certa de que ninguém o saberia. Combinámos

para o dia posterior ao seguinte.

Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que

ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o

a cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me

o seu camarote para uma peça nova, eu aceito nele um lugar.

Convido a minha amiga a cear, durante o espectáculo e diante

de Prévan; quase não posso dispensar-me de o convidar. Ele

aceita e, dois dias depois, faz-me a visita exigida pelas boas

normas. É certo que volta a visitar-me no dia seguinte de manhã;

mas, além de que as visitas de manhã não contam, só eu

podia julgar esta demasiado apressada. De facto, coloco-o no

número das pessoas que me estão menos ligadas, com um convite

escrito para uma ceia de cerimónia. Posso bem dizer como

Annette: e, todavia, eis tudo!

Chegado o dia fatal, o dia em que eu devia perder a minha

virtude e a minha reputação, dei as minhas instruções à fiel Vitória

e ela pô-las em execução como vai ver.

Entretanto, chegou a noite. Tinham já entrado muitos convidados,

quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a

polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala,

como acentuando que era por intermédio dela que nos tínhamos

conhecido. A ceia não produziu mais do que um bilhetinho,

que o discreto apaixonado encontrou meio de me entregar,

e que queimei conforme o meu costume. Anunciava-me que

podia contar com ele; e esta palavra essencial era rodeada de

todas as palavras parasitas, como amor, felicidade, etc., que

nunca faltam a festas desta natureza.

À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta macedónia.

O meu duplo projecto era favorecer a evasão de Prévan

* Algumas pessoas ignoram talvez que uma macedónia é um conjunto de

150

vários jogos de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher

quando lhe pertence dar cartas. É uma das invenções do século.

e ao mesmo tempo torná-la notada, o que não podia deixar de

acontecer, dada a sua reputação de jogador. Por outro lado,

todos viriam a lembrar-se de que eu não tivera pressa de ficar

só.

O jogo durou mais do que eu pensara. O diabo tentava-me e

eu sucumbia ao desejo de ir consolar o impaciente prisioneiro.

Encaminhava-me para a minha perda, quando reflecti que, logo

que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio

bastante para o manter vestido com a decência necessária

aos meus projectos. Tive a força de resistir. Retrocedi e voltei,

bastante aborrecida; a retomar o meu lugar naquele jogo que

não findava mais. Por fim lá acabou, e todos se foram embora.

Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e despedi-as.

Está a ver-me, Visconde, vestida ligeiramente, caminhando

com passo tímido e circunspecto, e com a mão mal segura abrir

a porta ao meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria

mais rápido. Que digo eu? Fui vencida, absolutamente vencida,

antes de ter podido dizer uma palavra para o deter ou me

defender. Ele quis em seguida tomar uma situação mais cómoda

e mais adequada às circunstâncias. Amaldiçoava o vestuário

que, dizia ele, o afastava de mim, e queria combater-me com

armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se ao projecto,

e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupou-se

de outra coisa.

Os seus direitos eram a dobrar e as suas pretensões voltaram.

Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para

uma agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a

muitas outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o

fim desta aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha

com toda a força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais

rápido do que a sua resposta. Mal tinha ainda balbuciado,

quando ouvi Vitória acudir, e chamar os criados que escondera

no seu quarto, como eu lhe ordenara. Então, tomando o meu

tom de rainha, continuei, elevando a voz: "Saia, senhor, e não

torne a aparecer diante de mim." Neste momento, o grupo dos

criados entrou.

O pobre Prévan perdeu a cabeça e, julgando ver uma cilada

no que era no fundo apenas um gracejo, levou a mão à espada.

Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente,

agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti

um terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe

deixassem livre a retirada, certificando-se apenas se ele saía da

minha casa. Os criados obedeceram, mas entre eles era grande o

rumor. Indignavam-se que alguém tivesse faltado ao respeito à

sua virtuosa senhora. Todos acompanharam o infeliz cavaleiro,

com algazarra e escândalo, como eu desejava. Só Vitória ficou e

151

ocupámo-nos durante esse tempo a reparar a desordem do meu

leito.

Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda

muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam

ainda todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que

tinha dado de cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa

no quarto delas, enfim, tudo o que tínhamos combinado.

Agradeci a todos e mandei-os retirar, ordenando a um deles que

fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que

estava autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além

disso, era um meio seguro de dar curso e celebridade à aventura.

O médico veio de facto, lamentou-me, e ordenou-me repouso.

Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar

com a vizinhança.

Tudo decorreu tão bem que, antes do meio-dia e assim que

consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira

uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade

e os pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a

desolar-me com ela, durante uma hora, sobre a corrupção destes

tempos. Um momento depois recebi da Marechala o bilhete

que junto aqui. Por fim, antes das cinco horas, vi chegar, com

grande espanto meu, o senhor... 1. Vinha, segundo me disse,

apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do seu regimento

ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o quando

estava jantando em casa da Marechala e tinha imediatamente

mandado ordem a Prévan para que se entregasse à prisão.

Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para lhe

dar a minha cumplicidade, era preciso resignar-me pelo meu

lado e afectar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta

e dizer que estava incomodada.

É à minha solidão que o Visconde deve esta longa carta.

Escreverei uma a Madame de Volanges, que com certeza há-de

* O comandante do regimento no qual servia o senhor Prévan.

fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser

contada.

Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer

absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente

terei tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou

repousar os meus, que estão fatigados de escrever. Adeus, Visconde.

25 de Setembro de 17* *, à noite.

CARTA LXXXVI

A MARECHALA DE... À MARQUESA DE MERTEUIL

152

(Bilhete junto à precedente)

Meu Deus! Que me contais, minha querida amiga? É possível

que Prévan seja capaz de semelhantes abominações! E logo

com a minha amiga! Ao que uma pessoa se expõe! Mas então

nem em sua casa uma pessoa está em segurança? Na verdade,

tais acontecimentos consolam-me de ser velha. Mas do que

nunca me poderei consolar, é de ter sido em parte causadora de

terdes recebido semelhante monstro em vossa casa. Prometo-vos

que, se o que me disseram é verdade, ele não tornará a pôr

os pés em minha casa. Todas as pessoas honestas procederão

assim com ele, se fizerem o que é devido.

Disseram-me que estáveis muito doente, e estou inquieta

pela vossa saúde. Peço-vos que me deis as vossas desejadas notícias;

ou que mas mandeis dar por uma das vossas criadas, se vós

mesma o não puderdes fazer. Não vos peço mais do que uma

palavra para minha tranquilidade. Se não fossem os meus banhos,

que o médico não me permite interromper, teria ido esta

manhã a vossa casa; e esta tarde tenho de ir a Versailles, sempre

por causa do assunto do meu sobrinho.

Adeus, minha querida amiga; conte com a minha sincera

amizade por toda a vida.

Paris, 25 de Setembro de 17* *

CARTA LXXXVII

A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES

Escrevo-vos do meu leito, querida e boa amiga. O mais desagradável

dos acontecimentos, e o mais impossível de prever,

pôs-me doente de susto e de tristeza. Não é que eu tenha de me

censurar por algum motivo; mas é sempre tão penoso para uma

mulher honesta, e que conserva a modéstia que convém ao seu

sexo, fixar sobre si as atenções públicas, que eu daria tudo no

mundo para ter podido evitar esta infeliz aventura, e não sei

ainda se decidirei ir para o campo, esperar que tudo tenha esquecido.

Vou contar-vos de que se trata.

Encontrei em casa da Marechala de... um tal senhor de Prévan,

que decerto conheceis de nome, e que eu não conhecia de

outro modo. Mas, encontrando-o nessa casa, estava bem autorizada,

parece-me, a julgá-lo boa companhia. Tem certa elegância

de figura e pareceu-me inteligente. O acaso e o aborrecimento

do jogo deixaram-me só entre ele e o bispo de..., enquanto

153

todos os outros convidados jogavam o lansquené. Conversámos

os três até à hora da ceia. À mesa falou-se de uma novidade teatral,

o que lhe deu ensejo a oferecer o seu camarote à Marechala,

que aceitou; e ficou combinado que eu teria lá um lugar. Era

para segunda-feira passada, no Teatro Francês. Como a Marechala

vinha cear comigo à saída do espectáculo, propus àquele

senhor que a acompanhasse, o que ele fez. Dois dias passados

fez-me uma visita que se passou nas conversas do costume, sem

que houvesse absolutamente nada a notar. No dia seguinte veio

ver-me de manhã, o que me pareceu um pouco apressado; mas

julguei que, em vez de lho fazer sentir pela minha maneira de o

receber, valia mais adverti-lo pela minha delicadeza de que não

estávamos ainda tão intimamente ligados como ele parecia supor.

Para isso enviei-lhe, nesse mesmo dia, um convite muito

seco e muito cerimonioso para uma ceia que dei anteontem.

Não lhe dirigi a palavra quatro vezes em toda a noite; e ele pelo

seu lado retirou-se logo que acabou de jogar. Haveis de convir

que até ali nada havia que parecesse conduzir a uma aventura.

Depois do jogo, houve ainda uma macedónia que durou até perto

das duas horas; e finalmente fui para a cama.

Havia pelo menos uma mortal meia hora que as minhas

criadas estavam recolhidas, quando ouvi ruído no meu quarto.

Abri o cortinado cheia de susto e vi um homem entrar pela porta

que conduz ao quarto de vestir. Soltei um grito agudo; e reconheci,

à luz da minha lamparina, esse senhor de Prévan, que,

com uma ousadia inconcebível, me disse que não me alarmasse;

que ia esclarecer-me o mistério da sua conduta e me suplicava

que não fizesse ruído algum. Ao falar assim, acendia uma vela.

Eu estava a tal ponto assustada que nem podia falar. O seu desembaraço

e tranquilidade petrificavam-me ainda mais, se é

possível. Mas não tinha ainda dito duas palavras, já eu vira qual

era o pretendido mistério; e a minha única resposta foi; como

podeis crer, puxar o cordão da campainha.

Por uma incrível felicidade, todos os criados se tinham reunido

no quarto de uma das minhas criadas, e não estavam ainda

deitados. A minha criada de quarto, que, dirigindo-se aos meus

aposentos, me ouviu falar com exaltação, ficou horrorizada, e

chamou toda aquela gente. Podeis imaginar o escândalo! Os

criados estavam furiosos; houve um momento em que um deles

queria matar Prévan. Confesso que, nesse momento, me senti

feliz por ter quem me auxiliasse. Reflectindo agora, gostaria

mais que só a minha criada de quarto tivesse acudido; teria sido

suficiente, e talvez se pudesse ter evitado o ruído, que me aflige.

Em vez disso, o tumulto despertou os vizinhos, os criados

falaram, e desde ontem a novidade corre todo Paris. O senhor

de Prévan está preso por ordem do comandante do seu regimento,

que teve a honestidade de passar por minha casa para me

apresentar desculpas. Esta prisão vai ainda aumentar o ruído;

mas não pude conseguir que fosse de outra maneira. A cidade e

154

a corte inscreveram-se à minha porta, que está fechada para

toda a gente. As poucas pessoas que vi disseram-me que me faziam

justiça e que a indignação contra o senhor de Prévan tinha

chegado ao cúmulo. É certo que ele o merece, mas nem por isso

a aventura deixa de ser muito desagradável.

Além do mais, esse homem tem com certeza alguns amigos,

e esses amigos devem ser maus; quem sabe, quem poderá saber

o que irão inventar para meu prejuízo? Meu Deus, como uma

mulher jovem é infeliz ! Sem ter feito nada, tem de se pôr ao

abrigo da maledicência; e é preciso ainda sobrepor-se à calúnia.

Dizei-me, peço-vos, o que teríeis feito se estivésseis no meu

lugar; enfim, tudo o que pensais. É sempre de vós que recebo as

mais doces consolações e os mais prudentes conselhos; por isso

é de vós que mais gosto de os receber.

Adeus, minha querida e boa amiga; conheceis os sentimentos

que para sempre me prendem a vós. Beijo a vossa adorável

filha.

Paris, 26 de Setembro de 17* *.

TERCEIRA PARTE

CARTA LXXXVIII

CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT

Apesar de todo o prazer que tenho, senhor, em receber as

cartas do Cavaleiro Danceny, e se bem que não deseje menos do

que ele que nos possamos voltar a ver, sem que nos perturbem,

não ousei no entanto fazer que me haveis prometido.

Em primeiro lugar, é demasiado perigoso: a chave que quereis

que ponha no lugar da outra assemelha-se-lhe bastante na

verdade: contudo, não deixa de haver certa diferença, e a Mamã

repara em tudo, dá por tudo. Para mais, se bem que ainda não

tenha sido utilizada desde que aqui estamos, bastava uma falta

de sorte; e se dessem por isso, estaria perdida para sempre.

Depois, isso parece-me muito mal; mandar fazer uma chave

dupla é demasiada ousadia! É certo que teríeis a bondade de vos

encarregardes disso; mas, mesmo assim, se o viessem a saber, a

censura e a falta recairiam sobre mim, visto que seria por mim

que o teríeis feito. Enfim, tentei duas vezes apoderar-me dela, e

certamente teria sido bastante fácil se se tratasse de outra coisa:

mas não sei porquê de ambas as vezes me pus a tremer e nunca

tive coragem. Por isso creio que é melhor ficar como estamos.

Se tiverdes a bondade de continuar tão prestável como até

155

aqui, sempre encontrareis processo de me entregar uma carta.

Mesmo quando da última, sem o azar que num certo momento

vos obrigou a afastar-vos de repente, ter-nos-ia sido muito fácil.

Sinto bem que não podeis, como eu, ocupar-vos disso apenas;

mas prefiro ter paciência e não arriscar tanto. Estou certa

de que o senhor Danceny pensaria como eu: porque sempre que

ele desejava qualquer coisa que me custasse demasiado, acabava

por ceder.

Entregar-vos-ei, ao mesmo tempo que esta carta, a vossa, a

do senhor Danceny e a vossa chave. Não vos estou menos reconhecida

por todas as atenções para comigo e suplico-vos que

continueis a dispensá-las. É bem verdade que sou muito infeliz,

e sem vós sê-lo-ia ainda muito mais: mas, apesar de tudo, trata-se

de minha mãe; é preciso ter paciência. E desde que o senhor

Danceny continue a amar-me, e vós não me abandoneis, talvez

venham tempos mais felizes.

Entretanto, tenho a honra de ser, senhor, cheia de reconhecimento,

a vossa muito humilde e obediente serva.

26 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXXIX

O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY

Se o seu caso não progride tão depressa como deseja, meu

amigo, não é comigo que se deve zangar. Tenho mais de um

obstáculo a vencer. A vigilância e a severidade de Madame de

Volanges não são os únicos; a sua jovem amiga também me cria

alguns. Seja frieza ou timidez, nem sempre faz o que lhe aconselho;

e creio no entanto saber melhor do que ela o que se deve

fazer.

Tinha encontrado um meio simples, cómodo e seguro, de

lhe entregar as cartas e até de facilitar, mais tarde, as entrevistas

que o meu amigo deseja: mas não pude decidi-la a utilizá-lo.

Estou tanto mais aflito, quanto é certo que não vejo outro para

o aproximar dela; e que, até por causa da vossa correspondência,

receio incessantemente que nos comprometamos os três.

Ora, deve imaginar que não quero correr esse risco, nem que

ambos a ele se exponham.

Contudo ficaria verdadeiramente penalizado se a falta de

confiança da sua amiguinha me impedisse de vos ser útil: talvez

o meu amigo fizesse bem em lhe escrever nesse sentido. Vejo o

que deseja fazer, é a si que cabe decidir; porque não basta ser

prestável aos amigos, é também preciso sê-lo da maneira que

lhes agrada. Poderia ser também um processo de se assegurar dos

156

sentimentos que ela lhe dedica: porque a mulher que teima

numa opinião não ama tanto como diz.

Não que suspeite da inconstância a sua eleita; mas é muito

nova; tem muito medo da Mamã que, como sabe, procura apenas

prejudicá-lo; e seria talvez perigoso deixar passar muito

tempo sem a ocupar a seu respeito.

No entanto, não se inquiete muito com o que lhe digo. No

fundo, não tenho nenhum motivo de desconfiança; é apenas a

solicitude da amizade.

Não me alongo mais porque tenho alguns assuntos meus a

cuidar. Não estou tão adiantado como o meu amigo; mas amo

com a mesma força, e isso consola; e mesmo que não tenha êxito

pela minha parte, se conseguir ser-lhe útil, darei sempre por

bem empregado o meu tempo. Adeus, meu amigo.

Castelo de..., 26 de Setembro de 17 * *

CARTA XC

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Desejo muito, senhor, que esta carta não vos faça sofrer;

mas, se assim não for, que ao menos a vossa dor seja suavizada

pela que experimento ao escrevê-la. Deveis conhecer-me o bastante,

presentemente, para estardes bem certo de que o meu

desejo é não vos magoar; mas vós, sem dúvida, não quereríeis

também mergulhar-me num desespero eterno. Suplico-vos pois,

em nome da terna amizade que vos prometi; em nome até dos

sentimentos porventura mais vivos, mas certamente não mais

sinceros, que tendes por mim, que não voltemos a ver-nos; deveis

partir. E até lá, evitemos sobretudo essas conversas particulares

e demasiado perigosas, durante as quais, por qualquer força

inconcebível, sem nunca conseguir dizer-vos o que quero,

passo o tempo a escutar o que não deveria ouvir.

Ainda ontem, quando viestes juntar-vos a mim no parque,

eu tinha como único projecto dizer o que hoje vos escrevo; e que

fiz, afinal, senão ocupar-me do vosso amor?... do vosso amor,

ao qual nunca poderei corresponder! Ah! por piedade, afastai-vos

de mim!

Não receeis que a ausência altere os meus sentimentos por

vós: como conseguiria vencê-los, quando já nem tenho coragem

para os combater? Como vedes, digo-vos tudo; temo menos

confessar a minha fraqueza do que sucumbir a ela. Perdi o domínio

dos sentimentos, mas conservarei o das acções; sim, conservá-lo-ei,

estou resolvida a isso; mesmo à custa da vida.

Ai! Não vai longe o tempo em que julgava que nunca teria

157

tais combates a sustentar! Felicitava-me talvez demasiado. O

céu puniu cruelmente este orgulho: mas, cheio de misericórdia,

no próprio momento em que fere, adverte-me ainda antes da

queda; e eu seria duplamente culpada se continuasse a ser imprudente,

prevenida já da minha pouca força.

Haveis-me dito cem vezes que não queríeis uma felicidade

comprada com as minhas lágrimas. Ah! não falemos já de felicidade;

deixai-me recuperar um pouco de sossego.

Se atenderdes ao meu pedido, que novos direitos não tereis

sobre o meu coração? Mas desses, assentes na virtude, não precisarei

defender-me. Como serei feliz no meu reconhecimento!

Ficarei a dever-vos a doçura de gozar sem remorsos um sentimento

delicioso. Neste momento, assustada com os meus sentimentos

e pensamentos, receio igualmente ocupar-me de vós e de

mim; só de pensar em vós me assusto: quando não posso fugir à

vossa imagem, combato-a; não a afasto, expulso-a.

Não será melhor para ambos cessar este estado de perturbação

e de ansiedade? Vós, cuja alma sempre sensível, mesmo no

meio dos erros, se conservou amiga da virtude,tereis certamente

piedade da minha dolorosa situação; sei que não rejeitareis a

minha súplica! Um interesse mais doce, e não menos terno, sucederá

a estas agitações violentas; então, devendo-vos a vida, a

existência ser-me-á cara,e na alegria do meu coração direi: esta

tranquilidade, devo-a ao meu amigo.

Parece-vos que este pequeno sacrifício, que vos não imponho,

mas peço, é um preço demasiado caro para dar termo aos

meus tormentos? Ah! se para vos tornar feliz bastasse aceitar a

infelicidade, podeis crer, não hesitaria um momento... Mas

cometer uma falta!... Não, meu amigo, não, antes morrer mil

vezes.

Assaltada pela vergonha, à beira dos remorsos, temo os outros

e a mim própria; coro quando estou acompanhada, e tremo

na solidão; a minha vida é apenas dor; só por vossa vontade

terei paz. As minhas resoluções mais louváveis não bastam para

me tranquilizar; formulei esta ordem e no entanto passei a noite

banhada em lágrimas.

Eis a vossa amiga, aquela que amais, a pedir-vos confusa e

suplicante o repouso e a inocência. Ah! meu Deus! sem vós,

nunca ela teria sido obrigada a pedido tão humilhante. Nada

vos censuro; sinto demasiado por mim própria como é difícil

resistir, a um sentimento imperioso. Uma queixa não é um

murmúrio. Fazei por generosidade o que faço por dever; e a

todos os sentimentos que me haveis inspirado acrescentarei uma

eterna gratidão. Adeus, adeus, senhor.

27 de Setembro de 17 * *

CARTA XCI

158

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Consternado pela vossa carta, ignoro ainda, senhora, como

lhe poderei responder. Sem dúvida, se for preciso escolher entre

a vossa infelicidade e a minha, sacrifico-me e não hesito; mas

assuntos tão importantes merecem, se bem me parece, ser antes

de mais nada discutidos e esclarecidos; mas como consegui-lo,

se não nos devemos falar, nem ver?

Pois quê! Apesar de nos unirem os sentimentos mais doces,

um vão terror bastará para nos separar, talvez irremediavelmente!

Debalde a terna amizade, o ardente amor, reclamarão os

seus direitos; essas vozes não serão escutadas; e porquê? Que

perigo tão premente vos ameaça então? Ah! acreditai, tais receios,

tão ligeiramente concebidos, são, só por si, fortes motivos

de segurança.

Permiti que vo-lo diga, reencontro aqui o vestígio das impressões

desfavoráveis que a meu respeito vos deram. Não se

treme junto do homem que se estima; não afastamos, principalmente,

quem julgamos digno de alguma amizade; tememos e

evitamos apenas o homem perigoso.

No entanto, existiu jamais alguém tão respeitador e submisso

como eu? Como notais, tomo já cautelas com as palavras, já

não me permito aqueles nomes tão doces, tão caros ao- meu coração,

que em segredo não cessa de vo-los dirigir.

Já não sou o amante fiel e infeliz, recebendo consolações e

conselhos duma amiga terna e sensível; sou o réu perante o juiz;

o escravo perante o senhor. Estes novos títulos impõem sem dúvida

novos deveres; assumo o compromisso de os cumprir a

todos. Escutai-me, e, se depois me condenardes, submeto-me e

parto. Prometo ainda mais; preferis o despotismo que julga sem

ouvir? Tendes a coragem de ser injusta? Ordenai e obedecerei

sempre.

Mas, ao menos, que essa sentença ou essa ordem a ouça da

vossa boca. "E porquê?", perguntais. Ah! se fazeis tal pergunta,

conheceis pouco o amor e o meu coração! Então o ver-nos ainda

uma vez não significaria nada? E quando finalmente a vossa

boca lançar o desespero sobre a minha alma, talvez um olhar

consolador a impeça de sucumbir. E se for obrigado a renunciar

ao amor e à amizade para que vivo, ao menos podereis ver a

vossa obra, e ficar-me-á a vossa piedade: mesmo que não mereça

este pequeno favor, arrisco-me, parece-me, a pagá-lo bem

caro, na esperança de o obter. Será possível que me afasteis de

vós? Permitis então que nos tornemos dois estranhos? Que digo?

Assim o desejais; e enquanto me afirmais que a minha ausência

não alterará os vossos sentimentos, apressais-me a partida

para mais facilmente os destruir.

159

Pois se já dizeis que a gratidão os substituirá! Assim, o sentimento

que obteria de vós um desconhecido pelo mais leve serviço,

ou até o vosso inimigo desde que já vos não afrontasse, eis o

que me ofereceis! E quereis que o coração se me alegre. Interrogai

o vosso: se o vosso amante, se o vosso amigo, um dia vos

falassem em gratidão, não diríeis indignada: "Retirai-vos, ingrátos?

"

Aqui me detenho e suplico a vossa indulgência. Perdoai a

expressão duma dor de que sois autora; não será obstáculo à

minha submissão total. Mas peço-vos em nome desses sentimentos

tão doces, que vós própria vos atribuís, aceitai ouvir-me;

e por piedade ao menos pelo tormento mortal em que me

haveis lançado, não retardeis o momento. Adeus, senhora.

27 de Setembro de 17 * *, à noite.

CARTA XCII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Oh! meu amigo! a sua carta gelou-me de receio. Cecília...

Meu Deus, será possível! Cecília já me não ama. Sim, vejo esta

verdade terrível através do véu com que a sua amizade a cerca.

Quis-me preparar para receber esse golpe mortal; agradeço-lhe

as cautelas, mas podemos impô-las ao amor? Ele antecipa-se em

tudo o que o interessa, não precisa que lhe digam a sua sorte,

adivinha-a. Da minha já não duvido; fale-me sem rodeios, pode

fazê-lo, suplico-lhe. Conte-me tudo: o que fez nascer as suas

suspeitas, o que as confirmou. Os mínimos pormenores são preciosos.

Esforce-se, principalmente, por se recordar das palavras

dela. Uma palavra em vez de outra pode transformar toda uma

frase; a mesma tem às vezes dois sentidos... O meu amigo pode

ter-se enganado: ai! procuro iludir-me ainda. Que lhe disse ela?

Fez-me alguma censura? Não se defende ao menos dos seus erros?

Eu devia ter previsto esta mudança pelas dificuldades que,

de há um tempo para cá, ela encontra em tudo. Ora o amor não

conhece tantos obstáculos.

Que devo fazer? Que me aconselhais? Se eu tentasse vê-la?

Será impossível? A ausência é tão cruel, tão funesta!... E ela

recusou um meio de me ver!... O Visconde não me explica do

que se tratava; se o perigo era demasiado grande, ela bem sabe

que não quero que se arrisque muito. Mas como conheço também

a sua prudência, nem posso para minha infelicidade acreditar

em tal.

Que vou eu fazer agora? Como hei-de escrever-lhe? Deixá-la

suspeitar dos meus receios? Talvez a desgostem, e, se são injustos,

nunca me perdoaria o tê-la afligido. Escondê-los? É enganá-la,

160

e não sei dissimular perante ela.

Oh! se ela soubesse o que sofro, o meu mal comovê-la-ia.

Sei que é sensível, tem um coração excelente e possuo mil provas

do seu amor. É demasiado tímida, algumas vezes indecisa, e

tão jovem! A mãe trata-a com tanta severidade! Vou escrever-lhe;

saberei conter-me; pedir-lhe-ei somente que confie plenamente

no meu amigo. Mesmo que recuse mais uma vez, não

poderá zangar-se com o meu pedido; e talvez consinta.

A si, meu amigo, peço-lhe mil perdões, por ela e por mim.

Asseguro-lhe que ela aprecia o valor dos seus cuidados, pelos

quais lhe está grata. Não é por desconfiança, é por timidez. Seja

indulgente; é a mais bela face da amizade. A sua é-me preciosa e

nem sei como agradecer tudo o que tem feito por mim. Adeus,

vou escrever-lhe já...

Sinto que todos os meus receios voltam; quem me diria que

alguma vez me custaria escrever-lhe! Ai! ainda ontem era o meu

mais doce prazer.

Adeus, meu amigo; continue a proteger-nos e tenha piedade

de mim.

Paris, 27 de Setembro de 17 * *

CARTA XCIII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Junta à precedente)

Não lhe posso esconder como fiquei aflito ao saber por

Valmont a escassa confiança que continua a ter nele. Não ignora

que é meu amigo, a única pessoa que nos pode aproximar:

julguei que estes títulos bastariam; vejo com mágoa que me

enganei. Poderei ao menos esperar que me diga as suas razões?

Não haverá ainda outras dificuldades que a impeçam de ter

confiança nele? Não posso no entanto, sem que mo diga, perceber

o mistério da sua conduta. Não ouso pôr em dúvida o seu

amor, sei também que não ousaria trair o meu. Ah ! Cecília !..

É então verdade que recusou um meio de me ver? Um meio

simples, cómodo e seguro? E é assim que me tem amor! Uma

tão curta ausência pôde alterar a tal ponto os seus sentimentos!

Mas para quê enganar-me? Para quê repetir que continua a

amar-me, e cada vez mais? A sua Mamã, ao destruir o seu amor,

destruiu-lhe também a candura? Se ela lhe deixou ao menos

161

* Danceny não sabe de que meio se trata; repete apenas a expressão de

Valmont.

alguma piedade, não será sem dor que a Cecília saberá os tormentos

horríveis que me causa. Ah ! sofreria menos ao morrer.

Diga-me pois: o seu coração fechou-se definitivamente para

mim? É certo que me esqueceu inteiramente? Graças à sua recusa,

não sei quando ouvirá as minhas queixas, nem quando lhes

responderá. A amizade de Valmont tinha assegurado a nossa

correspondência: mas a Cecília não quis; achava-a difícil, preferiu

que ela fosse mais rara. Não, não acreditarei mais no amor,

na boa fé. Em quem acreditar, se a Cecília me enganou?

Responda-me pois: é certo que já não me tem amor? Não,

isso não é possível; a Cecília ilude-se a si própria; calunia o seu

próprio coração. Um receio passageiro, um momento de desânimo,

que o amor depressa fez desaparecer: não é verdade, minha

Cecília? Ah! Sem dúvida, e faço mal em a acusar. Como eu seria

feliz se me tivesse enganado! Como gostaria de pedir ternas desculpas,

de compensar este momento de injustiça com uma eternidade

de amor!

Cecília, Cecília, tenha piedade de mim! Consinta em me ver;

aceite todos os meios! Veja o que produz a ausência: receios,

suspeitas, talvez frieza! Um só olhar, uma só palavra, e seremos

felizes. Mas quê! Posso eu ainda falar de felicidade? Talvez esteja

perdida para mim, perdida para sempre. Torturado pelo receio,

cruelmente apertado entre a suspeita injusta e a mais cruel

das verdades, não me posso agarrar a nenhum pensamento; o

pouco que conservo de vida é para sofrer e amar. Ah! Cecília! É

a única pessoa que tem o direito de me embelezar a existência,

de ma tornar cara; e espero das suas palavras o regresso à felicidade

ou a certeza dum desespero eterno.

Paris, 27 de Setembro de 17* *

CARTA XCIV

CECÍLiA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Nada percebo da sua carta, a não ser a dor que me causa. O

que lhe contou então o senhor de Valmont e o que é que lhe pôde

fazer crer que já não o amava? Talvez isso fosse bem melhor

para mim, porque certamente estaria menos atormentada; e é

muito duro, amando-o de tal maneira, ver como julga sempre

que não tenho razão, e que, em vez de me consolar, seja de si

que me vêm sempre as dores que mais magoam. Julga que o

engano e minto! Faz uma linda ideia de mim, não haja dúvida!

162

Mas mesmo que mentisse como me censura, que interesse teria

nisso? Certamente, se já o não amasse, bastava-me dizê-lo, e

todos me elogiariam; mas, por infelicidade, este amor é mais

forte do que eu; e ainda por cima por alguém que não tem qualquer

obrigação para comigo!

Que fiz eu para tanto se zangar? Não ousei roubar uma

chave, porque receei que a Mamã desse por tal e isso me trouxesse

mais dissabores, e a si também por minha causa; e, além

disso, parece-me uma coisa muito feia. Mas fora apenas o senhor

de Valmont quem me falara nisso; não podia adivinhar se

estava de acordo ou não, pois supus que de nada sabia. Agora

sabendo o que deseja, recuso por acaso roubá-la? Fá-lo-ei amanhã

mesmo; e veremos então se ainda tem alguma coisa a dizer.

O senhor de Valmont pode muito bem ser seu amigo; mas

julgo que o meu amor vale bem a amizade dele; e no entanto é

sempre ele quem tem razão e nunca a minha pessoa. Afirmo-lhe

que estou muito zangada. Tanto lhe faz, é claro, pois sabe que

me acalmo logo de seguida: mas desde que tenha chave, posso

vê-lo quando bem me apetecer; e garanto-lhe que não hei-de

querer quando me tratar assim. Prefiro sofrer por minha culpa

do que pela sua: veja bem o que faz.

Podíamo-nos amar tanto, se quisesse! E ao menos as únicas

penas que teríamos, seriam as provocadas pelos outros! Asseguro-lhe

que, se fosse dona do meu destino, nunca lhe daria motivo

de queixa: mas se não acredita em mim, seremos para sempre

infelizes e a culpa não será minha. Espero que nos poderemos

ver em breve e que então não teremos ocasião de nos irritarmos

como agora.

Se pudesse prever tudo isto, teria logo roubado a chave: mas

na verdade julgava proceder bem. Não se zangue pois comigo,

peço. Não esteja triste e ame-me tanto quanto eu o amo: dessa

forma ficarei muito contente. Adeus, querido amigo.

Castelo de. .., 28 de Setembro de 17 * *

CARTA XCV

CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT

Peço-vos, senhor, a bondade de me entregardes de novo a

chave que me tínheis dado para pôr no lugar da outra; visto que

todos o querem, sou obrigada a consentir.

Não sei por que haveis contado ao senhor Danceny que eu

já o não amava; creio que nunca vos dei lugar a pensar tal coisa;

tudo isso o fez sofrer e a mim também. Sei bem que sois amigo

dele; mas isso não é razão para o fazer infeliz, nem a mim tão

pouco: Dar-me-íeis prazer se lhe mandásseis dizer o contrário,

163

da próxima vez que lhe escreverdes, e que tendes bem a certeza:

por que é em vós que ele tem confiança; e eu, quando digo uma

coisa e não me acreditam, não sei já o que faça.

Acerca da chave, podeis estar tranquilo; lembro-me bem do

que me recomendáveis na vossa carta. No entanto, se ainda a

tendes e ma quiserdes dar de novo, prometo relê-la com atenção.

Se pudesse ser amanhã à hora do jantar, dar-vos-ia a outra

chave depois de amanhã ao almoço, e devolver-ma-íeis da mesma

maneira que a primeira. Desejava que tudo isto não demorasse

muito, porque nos arriscaríamos menos a que a Mamã

desse por qualquer coisa.

E depois, assim que tiverdes a chave, tereis a bondade de a

utilizar para receber as minhas cartas; dessa forma, o senhor

Danceny terá mais frequentemente notícias minhas. Na verdade

será mais cómodo que no presente; mas a princípio tive muito

medo. Peço-vos que me desculpeis e espero que não deixeis de

ser tão atencioso como dantes. Ficar-vos-ei sempre muito grata.

Tenho a honra de ser, senhor, vossa muito humilde e obediente

serva.

P. S. - Assim que tiverdes a chave, peço-vos que tenhais

cuidado e que ninguém a veja, porque seria muito perigoso.

28 de Setembro de 17 * *

CARTA XCVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os

meus cumprimentos e elogios; nem sequer duvido que esteja um

pouco aborrecida com o meu longo silêncio; mas que quer?

Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a uma

mulher, podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmo-nos

sossegadamente de outra coisa. No entanto agradeço-lhe

pela minha parte e felicito-a pela sua. Para a tornar verdadeiramente

feliz, concordo até que, desta vez, ultrapassoú a minha

expectativa. Depois disto, vejamos se pela minha parte terei ao

menos correspondido à sua.

Não é de Madame de Tourvel que lhe quero falar; o seu

passo lento desagrada-lhe. A minha amiga só gosta dos casos

arrumados. Aborrecem-na as cenas que se vão lentamente desenrolando;

e eu nunca tinha apreciado o prazer que sinto nestas

pretensas lentidões.

Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada,

sem disso se aperceber, num caminho que não permite regresso

164

e cuja ladeira rápida e perigosa a leva a seguir-me, mesmo

contra vontade e à força. Assustada com o perigo que corre,

gostaria de parar, mas não pode. As cautelas e a habilidade

podem tornar-lhe os passos mais curtos; mas eles suceder-se-ão

inevitavelmente. Às vezes, não ousando fitar o perigo, fecha os

olhos e, deixando-se guiar, entrega-se aos meus cuidados. Muitas

vezes um novo terror fá-la redobrar de esforços. Num pavor

mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças para subir penosamente

um curto espaço; e em breve um mágico poder a coloca

de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão pretendera

fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem

pensar em me censurar pela queda inevitável, implora-me que a

retarde. As preces fervorosas, as humildes súplicas, tudo o que

os mortais, no seu medo, oferecem à Divindade, recebo-o eu

dela; e quer a minha amiga que, surdo aos seus pedidos e destruindo

eu próprio o culto que ela me presta, me sirva, para a

aniquilar, do poder que ela invoca para a amparar! Ah! deixe-me

ao menos o tempo de observar estes tocantes combates entre

o amor e a virtude!

Pois quê! Esse mesmo espectáculo que a faz correr ao teatro

com ardor, e que aí aplaude com entusiasmo, julga-o menos

fascinante na vida real? Os sentimentos duma alma pura e terna,

que teme a felicidade que deseja e não pára de se defender,

mesmo quando deixa de resistir, escuta-os com exaltação: não

serão eles sem preço para aquele que os fez nascer? Eis no entanto

os prazeres deliciosos que esta mulher celestial me oferece

todos os dias! E censura-me que lhes saboreie as delícias! Ah!

Cedo virá o momento em que, degradada pela queda, ela não

será para mim mais do que uma mulher vulgar.

Mas esqueço, ao falar dela, que o não queria fazer. Não sei

que força me prende e sem cessar me atrai a ela, mesmo quando

a ultrajo. Afastemos essa imagem perigosa; recuperemos a calma

para tratar dum assunto mais alegre. Trata-se da sua discípula,

presentemente minha, e espero que agora me reconheça

em acção.

Desde há alguns dias, mais bem tratado pela terna devota,

por conseguinte menos ocupado com ela, notara eu já que a

pequena Volanges é com efeito muito bonita; e que, se era parvoíce

estar apaixonado por ela como Danceny, talvez não o fosse

menos da minha parte não procurar junto dela a distracção

que a solidão me tornava necessária. De resto pareceu-me justo

pagar-me dos trabalhos que tinha tido por ela: lembrava-me

além disso que a minha amiga ma tinha oferecido, antes que

Danceny tivesse qualquer pretensão; e considerava-me autorizado

a reclamar alguns direitos sobre um bem que ele possuía

apenas devido à minha recusa e abandono. A cara gentil da rapariguinha,

a boca tão fresca, o ar infantil, o próprio embaraço,

fortificavam estas sábias reflexões; resolvi portanto agir, e a

empresa foi coroada de êxito.

165

Tenta já adivinhar o meio pelo qual suplantei tão depressa o

ente querido; qual a sedução conveniente para esta idade e inexperiência.

Evite tanto trabalho; não me servi de nenhuma. Enquanto

que, manejando com habilidade as armas do seu sexo, a

minha cara amiga triunfava pela subtileza; eu, devolvendo ao

homem os seus direitos imprescritíveis, subjugava pela autoridade.

Seguro da presa se pudesse estar a sós com ela, necessitava

de astúcia apenas para me aproximar, e a de que me servi quase

nem merece esse nome.

Aproveitando-me da primeira carta que Danceny enviara à

sua bela e depois de a ter prevenido por um sinal combinado

entre nós, em vez de a minha habilidade servir para lha entregar,

serviu-me apenas para não encontrar um meio de o fazer: a

impaciência que fiz nascer, fingi compartilhá-la, e depois de ter

provocado o mal, indiquei o remédio.

A donzela dorme num quarto que tem uma das portas para

o corredor; mas, como mandam as regras, a Mamã guardara a

chave. Queria apenas apoderar-me dela. Nada mais fácil; bastava-me

dispor dela por duas horas e trataria de obter outra igual.

Então, correspondência, entrevistas, encontros nocturnos, tudo

se tornava cómodo e seguro: no entanto, será capaz de acreditar?

a virgem tímida teve medo e recusou. Outro qualquer ficaria

desolado; eu vi apenas a oportunidade para um prazer mais

picante. Escrevi a Danceny queixando-me da recusa, e fiz tanto

e tão bem que o nosso tonto não descansou enquanto não conseguiu,

exigindo até, que a receosa apaixonada acedesse ao meu

pedido e se entregasse totalmente aos meus cuidados.

Agradava-me, confesso, ter assim mudado de papel e que o

jovem fizesse por mim aquilo que esperava que eu fizesse por

ele. Esta ideia duplicava, a meus olhos, o valor da aventura: assim,

logo que possuí a preciosa chave, apressei-me a utilizá-la.

Foi a noite passada.

Depois de me ter certificado de que tudo estava tranquilo no

castelo, armado de lanterna de furta-fogo e com o vestuário que

a hora permitia e a circunstância exigia, fiz a primeira visita à

sua pupila. Tinha mandado preparar tudo (e até por ela própria),

para poder entrar sem ruído. Estava no primeiro sono,

aquele que é próprio da idade dela, de forma que pude chegar

até ao leito sem a acordar. A princípio estive tentado a ir mais

longe e a fazer-me passar por um sonho; mas temendo o efeito

da surpresa e o barulho que se lhe seguiria, preferi acordar com

precaução a bela adormecida, e consegui com efeito evitar o grito

que receava.

Depois de lhe ter acalmado os primeiros receios, e como

afinal não estava ali para conversar, arrisquei algumas liberdades.

Sem dúvida não lhe ensinaram bem no convento a quantos

perigos está exposta a tímida inocência e tudo o que ela deve

resguardar para não ser surpreendida; porque, juntando toda a

atenção e todas as forças para se defender dum beijo, que era

166

apenas um falso ataque, todo o resto era abandonado sem defesa;

como não me aproveitar! Alterei então a táctica e num ápice

ocupei o meu posto. Aqui pensámos ambos estarmos perdidos:

a pequena, toda assustada, quis gritar de verdade; felizmente as

lágrimas tinham-lhe roubado a voz. Procurara também o cordão

da campainha, mas a minha habilidade segurou-lhe o braço

a tempo.

"Que queres fazer", disse-lhe então, "perderes-te para sempre?

Que me importa se vier alguém. A quem convencerás que

não estou aqui com o teu consentimento? Quem me teria fornecido

o meio de entrar senão tu? E como explicarás a existência

desta chave que só pude arranjar por teu intermédio, que não

arranjaria sem a tua ajuda?" Este curto discurso não acalmou

nem a dor, nem a cólera; mas trouxe a submissão. Não sei se o

tom lhe dava eloquência; na verdade, não seria com certeza

embelezado pela postura em que me encontrava. Uma das mãos

empregada na força, a outra no amor, que orador em semelhante

posição pretenderia ser gracioso? Se está a ver bem, concordará

que em troca era propícia ao ataque; mas sou um pateta,

como diz, e a mulher mais simples, uma colegial, me leva como

a uma criança.

Esta, se bem que desolada, percebia que era preciso tomar

uma decisão, e negociar. Encontrando-me inexorável aos pedidos,

foi preciso passar às ofertas. Julga se calhar que vendi bem

caro um posto avançado tão importante: não, prometi ceder

tudo por um beijo. É verdade que depois dele, não cumpri a

promessa: mas tinha boas razões. Porventura tínhamos combinado

se o beijo seria passivo ou activo? À força de negociar,

acabámos por concordar num segundo; e este, assim foi combinado,

seria passivo. Então, tendo-lhe guiado os tímidos braços

em torno do meu corpo, e apertando-a amorosamente com um

dos meus, o doce beijo foi com efeito dado; mas perfeita e belamente

dado: de tal forma enfim que o próprio amor não poderia

ter feito melhor.

Tanta boa fé merecia recompensa, por isso acedi imediatamente

ao pedido. A mão retirou-se; mas não sei por que acaso,

encontrei-me eu próprio no lugar dela. Supõe-me já apressado e

activo, não é verdade? De forma nenhuma. Tomei o gosto da

lentidão, digo-lhe. Certo de chegar, para quê apressar a viagem?

A sério, tinha todo o vagar para observar por uma vez o

poder da ocasião, e encontrava-a aqui despida de toda a ajuda

alheia. Ela tinha no entanto de combater o amor; e o amor

apoiado pelo pudor ou pela vergonha; e fortificado sobretudo

pela ira que eu provocara. Tudo o que havia entre nós era a ocasião;

mas estava ali, oferecida, presente, e o amor estava longe.

Para certificar as minhas observações, tive a malícia de

empregar apenas a dose de força que a donzela podia combater.

Somente, se a encantadora inimiga, abusando da minha bondade,

se encontrava pronta a escapar-se-me, continha-a pelo

167

mesmo temor, que já antes tão felizes resultados dera. Pois bem!

Sem mais trabalho, a terna amorosa, esquecendo os juramentos,

começou por ceder e acabou consentindo: não sem que após o

primeiro momento as censuras e as lágrimas não tivessem voltado

simultaneamente; ignoro se eram verdadeiras ou fingidas:

mas, como sucede sempre, cessaram logo que me conduzi de

maneira a justificá-las de novo. Finalmente, de concessão em

censura, e de censura em concessão, só nos separámos depois de

satisfeitos e de acordo quanto ao encontro desta noite.

Só me retirei para os meus aposentos ao raiar do dia, e estava

exausto de fadiga e sono: no entanto sacrifiquei ambos ao

desejo de assistir de manhã ao pequeno almoço; adoro loucamente

o aspecto delas no dia seguinte. Não faz ideia do ar desta.

Era um embaraço na maneira de estar! Uma dificuldade no

andar! Olhos sempre baixos, tão inchados e batidos! O rosto

redondo tão comprido! Nada de mais agradável. E, pela primeira

vez, a mãe, alarmada com tão grande transformação, lhe testemunhava

um interesse assaz terno! E a Presidente também se

desvelava em volta dela! Oh! Estes cuidados são por agora dispensáveis;

um dia virá em que ela os merecerá de verdade, e esse

dia não está longe. Adeus, minha bela amiga.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17**.

CARTA XCVII

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Ah! Meu Deus, senhora, como estou aflita! Como sou infeliz!

Quem me consolará na minha dor? Quem me aconselhará

na dificuldade em que me encontro? Este senhor de Valmont!...

E Danceny! Não, a lembrança de Danceny lança-me no desespero...

Como contar? Como ousar dizer-vos?... Não sei como o

fazer. No entanto o meu coração transborda... Preciso de desabafar

com alguém e vós sois a única a quem posso escrever.

Tem sido tão boa para mim! Mas não espero que o sejais agora;

não sou digna disso; como dizer-vos? Já não o desejo. Hoje

foram todos aqui muito carinhosos para comigo, mas só contribuíram

para aumentar o meu sofrimento. Senti profundamente

que não merecia tanta atenção! Vós, pelo contrário,

ralhai-me; severamente, porque tenho imensa culpa: mas

depois salvai-me; se não tiverdes a bondade de me aconselhar,

morrerei de desgosto.

vergonha. Pois bem! Suportá-la-ei; será o primeiro castigo da

minha falta. Sim, dir-vos-ei tudo.

Sabei pois que o senhor de Valmont, que me entregara até

agora as cartas de Danceny, descobriu de repente que era demasiado

168

difícil; quis ter uma chave do meu quarto. Garanto-vos

que não queria: mas ele escreveu a Danceny e este concordou; e

a mim custa-me tanto recusar-lhe qualquer coisa, sobretudo

desde que a minha ausência o torna tão infeliz, que acabei por

consentir. Não previa a desgraça que daí resultaria.

Ontem, o senhor de Valmont serviu-se dessa chave para

entrar no meu quarto, enquanto eu dormia; estava tão longe de

esperar semelhante coisa que me assustei ao acordar; mas como

falou imediatamente, reconheci-o e não gritei; e além disso

veio-me logo a ideia de que talvez trouxesse uma carta de Danceny.

Nada disso. Passado um momento quis beijar-me; e enquanto

eu me defendia, como era natural, insinuou-se de tal

forma junto de mim, que não quereria por coisa alguma deste

mundo que ele continuasse naquela posição. Mas exigiu um beijo

primeiro. Forçoso foi; que fazer?, tanto mais que tentara tocar,

mas além de não ter podido, ameaçou-me que, se viesse

alguém, lançaria toda a culpa sobre mim; e com efeito seria

muito fácil, por causa da chave. Mas depois nem por isso se retirou.

Quis um segundo; e desta vez, não sei porquê, perturbou-me

de tal forma... e em seguida foi ainda pior. Oh! Não se faz uma

coisa destas. Enfim, depois..., dispensar-me-eis de dizer o resto;

sou tão infeliz quanto é possível sê-lo.

Aquilo de que mais me acuso, forçoso é que vo-lo diga, é o

receio de não me ter defendido quanto podia. Não sei como foi:

não amo o senhor de Valmont, bem pelo contrário; mas houve

no entanto momentos em que foi como se o amasse. Bem sabeis

que isso não me impedia de ir repetindo que não; mas senti que

não estava agindo como dizia; e tudo isto independentemente

da minha vontade; e depois também, ora, estava tão perturbada!

Se é assim tão difícil a gente defender-se, grande prática é

preciso! Também é verdade que este senhor de Valmont tem

umas maneiras de falar que não se sabe como responder-lhe,

enfim, quer acreditar que quando partiu eu estava de certo

modo zangada, e que apesar disso tive a fraqueza de consentir

que voltasse esta noite: o que me desola ainda mais que tudo o

resto.

Oh! Apesar disso, prometo-vos que o impedirei de entrar.

Mal ele saíra, já sentia como tinha errado ao consentir. O resto

do tempo não fiz senão chorar. Sobretudo a recordação de

Danceny fazia-me sofrer! Cada vez que pensava nele, as lágrimas

aumentavam ao ponto de sufocar, e não podia deixar de

pensar nele... E ainda agora, vede o efeito; eis o papel todo

molhado. Não, nunca mais me consolarei, quanto mais não seja

por causa dele... Estava exausta, e no entanto não dormi um

minuto. Esta manhã ao levantar-me, perante o espelho, metia

medo, de transtornada que estava.

A Mamã reparou assim que me viu, e perguntou-me o que

tinha. Desatei logo a chorar. Julguei que me ia ralhar, o que talvez

me tivesse custado menos: mas não. Falou-me com doçura!

169

Não o merecia, de forma nenhuma. Disse que não me afligisse!

Ignorava o motivo do meu desespero. Como me sentia mal! Há

momentos em que desejo a morte. Não resisti. Lancei-me nos

braços dela aos soluços, e dizendo: "Ah! Mamã, a vossa filha é

tão infeliz!" A Mamã não pôde deixar de chorar um pouco; o

que só teve como consequência aumentar a minha dor: felizmente

não perguntou por que razão eu era tão infeliz, pois não

saberia que responder.

Suplico-vos, senhora, escrevei o mais cedo que puderdes, e

dizei-me o que devo fazer: porque não tenho coragem de pensar

em nada, não faço outra coisa senão afligir-me. Enviai a carta

pelo senhor de Valmont; mas, peço-vos, se lhe escreverdes ao

mesmo tempo, não lhe faleis no que vos contei.

Tenho a honra de ser, minha senhora, com imensa amizade,

a vossa muito humilde e obediente escrava...

Não ouso assinar esta carta.

Castelo de..., 1 de Outubro de 17 * *, à noite.

CARTA XCVIII

MADAME DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Ainda há bem poucos dias, minha encantadora amiga, fostes

vós a pedir-me consolações e conselhos: hoje, é a minha vez;

faço-vos o mesmo pedido que então me fizestes. Estou muito

preocupada e receio não ter sabido evitar o desgosto que me

aflige.

Cecília é a causa da minha inquietação. Desde a nossa vinda

que a vejo sempre triste e desgostosa; mas já o esperava e tinha

escudado o coração com a severidade que julgara necessária.

Esperava que a ausência e as distracções destruiriam depressa

um amor que me parecia mais uma fantasia infantil do que uma

verdadeira paixão. No entanto, em vez de se ter restabelecido

com a estada aqui, apercebo-me de que a minha filha se entrega

cada vez mais a uma perigosa melancolia; e temo, até, que a sua

saúde se ressinta. Particularmente nos últimos dias ela muda a

olhos vistos. Ontem, sobretudo, comoveu-me, e todos aqui ficaram

sinceramente alarmados.

O que me revela até que ponto ela está profundamente ferida

é o vê-la pronta a deixar a timidez que sempre mostrou para

comigo. Ontem de manhã, ao perguntar-lhe apenas se estava

doente, precipitou-se nos meus braços dizendo-me que era muito

infeliz; e chorou abundantemente. Não posso exprimir quanto

isto me tocou; vieram-me logo as lágrimas aos olhos; e só tive

tempo para me voltar, para impedir que ela o visse. Mas felizmente

170

tive a prudência de não lhe fazer nenhuma pergunta,e ela

não ousou dizer mais nada: mas vejo claramente que é a sua

paixão infeliz que a atormenta.

Que fazer se isto continua? Serei a causadora da infelicidade

da minha filha? Estarei a voltar contra ela as qualidades mais

preciosas da alma, a sensibilidade e a constância? É assim que

cumpro o meu papel de mãe? E se abafar em mim este sentimento

tão natural de desejar a felicidade da minha filha; se considerar

como uma fraqueza o que creio, pelo contrário, o primeiro e

mais sagrado dos nossos deveres; se forço a sua escolha, não

serei a responsável pelas consequências funestas que possam

seguir-se? Que mau emprego de autoridade materna, colocar a

própria filha entre o crime e a infelicidade!

Não, minha amiga, não imitarei o que tantas vezes tenho

censurado. Ao tentar escolher em vez da minha filha, pretendia

ajudá-la com a minha experiência; não exercia um direito

cumpria um dever. Mas faltarei a um se, pelo contrário, dispuser

dela desprezando uma afeição que eu não soube impedir de

nascer e de que nem eu nem ela podemos conhecer a duração e a

força. Não, não posso admitir que case com este para amar

aquele, prefiro comprometer a minha autoridade a pôr em perigo

a sua virtude.

Acho que vou tomar a decisão mais ajuizada, retomar a

palavra que dei ao senhor de Gercourt. Expus-vos as razões

parecem-me mais importantes do que a minha promessa. Digo

mais: no estado em que as coisas estão, cumpri-la seria, na verdade,

violá-la. Porque enfim, se devo à minha filha o não revelar

o seu segredo ao senhor de Gercourt, devo também não abusar

da ignorância em que o deixo e fazer em vez dele o que creio que

ele faria se soubesse. Irei, pelo contrário, traí-lo indignamente,

e, enquanto ele confia em mim e me honra escolhendo-me para

segunda mãe, enganá-lo na escolha da mãe dos seus filhos? Estas

reflexões, tão verdadeiras e às quais me não posso furtar,

alarmam-me mais do que deixo transparecer.

Às desgraças que receio,comparo a minha filha, feliz com o

esposo que o seu coração escolheu, presa aos deveres só pela

doçura que encontra em cumpri-los; o meu genro também satisfeito

e felicitando-se sempre pela sua escolha; cada um deles

encontrando a felicidade na felicidade do outro, e a de ambos

conjugando-se para aumentar a minha. A esperança dum futuro

tão doce deve ser sacrificada a vãs considerações? E quais são

elas? Unicamente as ditadas pelo interesse. Para que terá servido

à minha filha ter nascido rica, se tem de ser do mesmo modo

escrava do dinheiro?

Concordo que o senhor de Gercourt é um partido melhor

do que eu poderia esperar para a minha filha; confesso até que

fiquei extremamente lisonjeada com a escolha dele. Mas enfim

Danceny é dum nome igualmente ilustre; não lhe é em nada inferior

em qualidades pessoais; tem sobre o senhor de Gercourt a

171

vantagem de amar e ser amado: não é rico, na verdade; mas não

o é minha filha o suficiente para ambos? Ah! Porquê tirar-lhe a

satisfação tão doce de enriquecer aquele que ela ama!

Estes casamentos arranjados, em vez de entregues ao livre

arbítrio do coração, e a que chamamos de conveniência, nos

quais tudo se ajusta de facto, menos os gostos e os caracteres,

não serão eles a nascente mais fecunda dessas rupturas escandalosas

hoje em dia tão frequentes? Prefiro adiar; pelo menos terei

tempo para estudar melhor a minha filha, que não conheço. Sinto-me

com coragem de lhe causar um desgosto passageiro, se ele

puder contribuir para uma felicidade mais sólida: mas arriscar-me

a arrastá-la para um desespero eterno, isso não me está no

coração.

Eis, querida amiga, as ideias que me atormentam e acerca

das quais vos peço a opinião. Estas preocupações sérias contrastam

muito com a vossa alegria gentil e nem são para a vossa

idade; mas vós estais muito acima dela! A amizade juntar-se-á

de resto à vossa prudência; e sei que uma e outra se não recusarão

à solicitude maternal que as implora.

Adeus, encantadora amiga; não duvideis nunca da sinceridade

dos meus sentimentos.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17* *

CARTA XCIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Apenas pequenos incidentes, minha bela amiga; mas só

cenas, nada de acções. Deste modo, arme-se de paciência; mesmo

muita: porque enquanto a minha Presidente avança com

lentidão, a sua pupila recua, o que é muito pior. Pois bem! Tenho

bom humor para me divertir com estas catástrofes. Na verdade

acostumei-me muito bem à minha estada aqui e posso afirmar

que no triste castelo da minha velha tia não experimentei

um momento de tédio. Pois não tenho aqui prazeres, privações,

esperança, incerteza? Que se tem a mais num teatro maior?

Espectadores? Ah! Esperemos, eles não faltarão. Se não me

vêem entregue ao trabalho, mostrar-lhes-ei a tarefa pronta; só

terão de admirar e aplaudir. Sim, aplaudirão; porque posso finalmente

prever, com exactidão, o momento da queda da minha

austera devota. Assisti esta tarde à agonia da virtude. A

doce fraqueza reinará agora. Prevejo esse momento para a nossa

primeira entrevista: mas já a oiço acusar-me de orgulho.

Anuncia a vitória, gaba-se antecipadamente! Bom, acalme-se!

Para lhe provar como sou modesto, vou começar pela história

da minha derrota.

172

A sua pupila é de facto uma criaturinha ridícula! É uma

criança que deveria ser tratada como tal e a quem não faríamos

mais que perdoar se nos limitássemos a pô-la de castigo ! Acredita

que, depois do que se passou anteontem entre ela e mim,

depois do modo amigável como nos despedimos ontem de

manhã, quando eu quis voltar à noite, como combináramos

encontrei a porta fechada por dentro? Que diz a isto? Aturam-se

às vezes infantilidades destas na véspera; mas no dia seguinte!

Não acha cómico?

Mas não ri logo, nunca sentiria de tal forma o peso do meu

mau génio. Asseguro-lhe que ia àquela entrevista sem prazer,

apenas por deliberação. O meu leito, de que muito necessitava,

parecia-me, nesse momento, preferível ao de outrem, e afastara-me

dele com pena. No entanto, logo que encontrei um obstáculo

ardi por o vencer; e acima de tudo senti-me humilhado por

uma criança me ter ludibriado. Retirei-me então de muito mau

humor e com o projecto de nunca mais me ocupar daquela

criança estúpida, nem dos seus problemas, escrevi-lhe imediatamente

um bilhete que pensava entregar hoje, em que a apreciava

no seu justo valor. Mas, como costuma dizer-se, a noite é boa

conselheira; pensei esta manhã que, não tendo aqui a possibilidade

de escolher distracções, não devia perder aquela: destruí

pois o severo bilhete. Depois reflecti, espantei-me de ter tido a

ideia de acabar uma aventura sem ter na minha mão com que

perder a heroína. Onde nos pode conduzir um primeiro movimento!

Felizes aqueles que desde sempre se acostumaram como

a minha boa amiga a nunca lhe ceder! Enfim, adiei a minha vingança;

fiz esse sacrifício às suas intenções em relação a Gercourt.

Agora que já não estou zangado, vejo só o ridículo na conduta

da sua pupila. Gostaria na verdade de descobrir o que espera

ela ganhar deste modo! Confesso-me incapaz; se é só para

se defender, concordemos que se acautela demasiado tarde. Um,

dia ela explicar-me-á este enigma! Anseio por conhecê-la. Seria

somente por se encontrar fatigada? Francamente acho possível,

porque, sem dúvida, ela ignora ainda que as flechas do amor,

como a lança de Aquiles, trazem consigo remédio para os golpes

que fazem. Mas não, pela expressão dela durante todo o dia,

iria apostar que há ali remorsos... uns resquícios de virtude...

Virtude! Bem precisa dela. Ah! Que a deixe mas é para a mulher

nascida na realidade para ela, a única que a sabe embelezar e

seria capaz de no-la fazer amar... Perdão, minha bela amiga,

mas foi esta tarde que se passou entre mim e Madame de Tourvel

a cena que quero narrar-lhe e de que ainda conservo a emoção.

Preciso fazer um esforço para sacudir a impressão que me

causou; é para me livrar disso que me pus a escrever-lhe. Deve-se

desculpar este momento de fraqueza.

Há já alguns dias que nós, Madame de Tourvel e eu, estamos

de acordo sobre os nossos sentimentos; discutíamos apenas

173

acerca de palavras. Era sempre a sua amizade que respondia ao

meu amor: mas essa linguagem de convenção não modificava o

fundo das coisas; e mesmo que assim nos tivéssemos mantido,

eu teria certamente avançado mais devagar, mas não menos

seguramente. Já não se tratava de me afastar, como ela queria

primeiro; e, quanto às conversas que temos tido diariamente, se

ponho os meus esforços em lhe oferecer a ocasião, ela põe os

dela em a agarrar.

Como é habitualmente nos passeios que se dão as nossas

conversas, o tempo terrível que fez hoje todo o dia não me permitia

ter esperança: estava muito contrariado; não previa quanto

lucraria com este contratempo.

Não se podendo passear, pusemo-nos a jogar quando deixámos

a mesa; como não jogo bem, e não era necessária a minha

presença, aproveitei para subir ao meu quarto, com o projecto

de esperar pouco mais ou menos o fim da partida.

Voltava para me juntar ao grupo, quando encontrei a encantadora

dama que entrava nos seus aposentos e que, por imprudência

ou fraqueza, me disse com voz doce: "Onde ides?

Não há ninguém no salão." Não foi preciso mais para eu, como

deve calcular, experimentar entrar com ela; encontrei menos

resistência do que esperava. É certo que eu tivera a precaução de

começar a conversa à porta, e de a começar com um tom indiferente,

mas assim que nos sentámos, voltei ao que me interessava

e falei do meu amor à minha amiga. A primeira resposta dela,

embora simples, pareceu-me expressiva: "Oh!, não", disse-me,

"não falemos disso aqui"; e tremia. Pobre mulher! Julga morrer.

No entanto não havia motivo para temer. Já há algum tempo

que, certo do sucesso mais cedo ou mais tarde, e vendo-a

gastar as forças em combates inúteis, tinha resolvido economizar

as minhas e esperar sem esforço que ela se entregasse por

cansaço. Vê bem como exijo um triunfo completo e nada quero

dever às circunstâncias. Foi mesmo de acordo com o plano assim

elaborado, e para poder insistir sem me empenhar muito,

que voltei à palavra amor, tão obstinadamente recusada: certo

de que ela me julgava demasiado ardoroso, tentei um tom mais

terno. A recusa já não me fazia zangar, afligia-me apenas; não

me devia a minha sensível amiga algumas consolações?

Enquanto me consolava, deixara uma das mãos na minha; o

lindo corpo apiava-se no meu braço, e estávamos estreitamente

unidos. Já reparou como nesta situação, à medida que a defesa

enfraquece, os pedidos e as recusas são feitos de mais perto; a

cabeça afasta-se, os olhares baixam-se, enquanto que as palavras

ditas em murmúrio se tornam raras e entrecortadas? Estes

sintomas preciosos anunciam de modo inequívoco o consentimento

da alma: mas raramente este chega aos sentidos; creio

mesmo que é sempre perigoso ousar demasiado: visto que este

estado de abandono é acompanhado por um doce prazer e não é

possível arrancar alguém a ele, sem causar um estado de espírito

174

que se torna infalivelmente favorável à defesa.

Mas, no caso presente, a prudência era-me tanto mais necessária

quanto eu tinha sobretudo a recear o susto que este

esquecimento de si própria não deixaria de causar à terna sonhadora.

Não exigia que a confissão que suplicava fosse pronunciada;

um olhar bastava; um só olhar e seria feliz.

Minha amiga, aqueles belos olhos ergueram-se de facto

para mim; aquela boca celeste pronunciou até: "Bom! Sim

eu..."

Mas de súbito extinguiu-se-lhe o olhar, faltou-lhe a voz e

esta mulher adorável caiu nos meus braços. Mal tivera tempo de

; a segurar e já ela, libertando-se com uma força convulsiva, o

olhar perdido, as mãos elevadas para o céu... "Deus, ó Deus,

salvai-me!", gritou; e, no mesmo instante, mais rápida do que

um relâmpago, caiu de joelhos a dez passos de mim. Sentia-a

prestes a sufocar. Avancei para a socorrer, mas, tomando-me as

mãos que banhava de lágrimas e abraçando-me por vezes pelos

joelhos, disse: "Sim, sereis vós que me salvareis! Se não quereis

a minha morte, deixai-me; salvai-me, deixai-me por amor de

Deus, deixai-me!" E outras palavras entrecortadas mal se ouviam

através de soluços redobrados. Entretanto prendia-se-me

com uma força que me não permitia afastar-me; então, juntando

as minhas, elevei-a nos meus braços. No mesmo momento

cessaram as lágrimas, deixou de falar, os membros inteiriçaram-se-lhe,

e violentas convulsões sucederam a esta tempestade.

Eu estava, confesso, violentamente comovido, e creio que

teria acedido aos seus rogos, mesmo que as circunstâncias não

me forçassem a tal. Depois de lhe ter dado algum amparo, deixei-a

conforme me pedia, e felicito-me por isso. Em breve receberei

o prémio.

Esperava que, tal como no dia da minha primeira declaração,

ela não aparecesse à noite. Mas, cerca das oito horas, desceu

ao salão e limitou-se a declarar que estivera muito incomodada.

Tinha o rosto abatido, a voz sumida, e os modos eram

afectados; mas o olhar era doce e muitas vezes me fixou. Como

se recusou a jogar fui obrigado a substituí-la e veio sentar-se a

meu lado. Durante a ceia ficou sozinha no salão. Quando voltámos,

reparei que chorara; para me certificar, disse-lhe que me

parecia que ela ainda se ressentia do seu mal-estar; ao que respondeu

delicadamente: "Este mal não se vai tão depressa como

vem!" Quando finalmente nos retirámos, dei-lhe a mão; e à

porta dos seus aposentos apertou a minha com força. É certo

que este movimento pareceu-me ter qualquer coisa de involuntário:

mas tanto melhor; é mais uma prova do meu poder.

Apostaria que neste momento ela está encantada com o

ponto a que chegámos: acabou-se o trabalho! Gozemos agora.

Talvez, no momento em que lhe escrevo, ela se ocupe já desta

doce ideia! E mesmo que pelo contrário ela se ocupasse dum

novo projecto de defesa, não sabemos já no que resultariam

175

todos esses projectos? Acha que isto pode ir além da nossa próxima

entrevista? Sei bem que se fará rogada para a conceder:

mas enfim! Saberão estas beatas austeras conter-se uma vez

franqueado o primeiro passo? O amor delas é uma verdadeira

explosão; a resistência dá-lhes mais força. A minha fanática

devota correria atrás de mim, se eu deixasse de a perseguir.

Enfim, minha bela amiga, em breve irei junto de si, para lhe

exigir o cumprimento da sua palavra. Não esqueceu sem dúvida

que prometeu, após o sucesso, uma infidelidade ao seu Cavaleiro?

Está preparada? Pelo meu lado, desejo-a como se nunca a

tivesse conhecido. Ou antes, conhecê-la é talvez uma razão para

a desejar ainda mais.

Je suis juste, et ne suis point galant.l

Será a primeira infidelidade que farei a esta severa conquista;

e prometo-lhe aproveitar o primeiro pretexto para me afastar

dela por vinte e quatro horas. Será o castigo por me ter mantido

tanto tempo longe de si. Sabe que há mais de dois meses

que esta aventura me prende? Sim, dois meses e três dias; já incluo

na verdade o dia de amanhã, pois ela só então se consumará.

Isto faz-me lembrar que Mademoiselle de B... resistiu três

meses inteiros. Estimo verificar que a coqueteria pura e simples

tem mais defesa que a austera virtude.

Adeus, minha bela amiga; tenho de a deixar porque é muito

tarde. Esta carta levou-me mais longe do que esperava; mas

como a envio amanhã de manhã a Paris, quis aproveitar, para a

fazer partilhar um dia mais cedo da alegria deste seu amigo.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17**, à noite.

CARTA C

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

- Minha amiga, fui ludibriado, traído, abandonado; estou

desesperado; Madame de Tourvel partiu. Partiu e eu não o soube!

E não estava lá para me opor à sua partida, para lhe censurar

tão indigna traição! Ah! Não julgue que a deixaria fugir; ela

teria ficado; teria ficado nem que fosse forçado a recorrer à violência.

Mas quê! Na minha crédula tranquilidade, dormia sossegadamente:

dormia e o raio fulminou-me. Não, não compreendo

este abandono; devemos renunciar a compreender as mulheres.

Quando me lembro do dia de ontem! Que digo! Da noite

*..Sou justo, e não sou galanteador... Voltaire. Comédie de Nanrne.

176

até! Aquele olhar doce! Aquela voz tão terna! E a mão que apertou

a minha! E durante todo esse tempo projectava fugir de

mim! Oh! Mulheres, mulheres! Queixais-vos depois se alguém

vos engana! Sim, toda a perfídia que empregamos é um roubo

que vos fazemos.

Que prazer terei em vingar-me! Tornarei a encontrar essa

pérfida mulher e retomarei o meu domínio sobre ela. Se o amor

me bastou para descobrir o caminho, que não farei guiado pela

vingança. Ainda a hei-de ver a meus pés, tremendo e banhada

em lágrimas, pedindo-me perdão com aquela voz enganadora;

serei sem piedade.

Que faz agora, que pensa? Talvez se regozije por me ter

enganado e, fiel aos gostos do seu sexo, este prazer lhe pareça o

mais doce. O que não pôde a tão louvada virtude, conseguiu-o a

manha sem esforço. Insensato! Eu temia a sensatez dela; devia

antes temer a má fé.

E ser obrigado a engolir o meu ressentimento! Ousar apenas

mostrar uma terna dor, quando tenho o coração cheio de raiva!

Ver-me reduzido a suplicar outra vez a uma mulher rebelde, que

se furtou ao meu poder! Merecia eu ser humilhado a este ponto?

E por quem? Por uma mulher tímida, sem prática destas lutas.

De que me vale ter-lhe conquistado o coração, tê-la abrasado

pelo fogo do amor, ter elevado até ao delírio a perturbação dos

sentidos, se, tranquila no seu refúgio, ela pode hoje orgulhar-se

mais da sua fuga do que eu das minhas vitórias? Suportarei isto?

A minha amiga não pode acreditar em tal; não tem de mim ideia

tão humilhante!

Mas que fatalidade me liga a esta mulher? Não há centenas

que desejam as minhas atenções? Que se apressariam a corresponder-me?

E mesmo que não se comparem a esta, a atracção

da variedade, o encanto de novas conquistas, o prestígio do seu

número, não oferecerão também doces prazeres? Por que correr

atrás de quem nos foge e desprezar os que nos procuram? Ah!

Porquê?. .. Ignoro-o mas não posso sentir de maneira diferente.

Não existe para mim felicidade. ou repouso se não possuir

esta mulher que odeio e amo com fúria igual. Só poderei suportar

a minha vida a partir do momento em que disponha da sua.

Então, tranquilo e satisfeito, vê-la-ei, por sua vez, entregue aos

tormentos que me sacodem nesta hora; e criarei ainda mil outros.

Quero que a esperança e o temor, a desconfiança e a tranquilidade,

todos os males inventados pelo ódio, e todos os bens

concedidos pelo amor, possuam o seu coração, e aí se alternem

segundo o meu desejo. Há-de chegar esse momento... Mas

quantos trabalhos ainda! Como ontem estive perto e hoje me

sinto afastado! Como aproximar-me? Não ouso tentar qualquer

movimento; para tomar uma decisão seria preciso estar

mais calmo, e o sangue ferve-me nas veias.

O que aumenta o meu tormento é o sangue-frio com que

177

todos respondem às minhas perguntas sobre este acontecimento

e sobre a causa, e tudo o que me parece tão extraordinário.

Ninguém sabe nada nem procura saber: nem teriam falado nisso,

se eu consentisse que se falasse doutra coisa. Madame de

Rosemonde, que visitei no seu quarto logo de manhã quando

soube a notícia, respondeu-me, com a calma da sua idade, que

se tratava da continuação natural da indisposição que Madame

de Tourvel tivera ontem; que ela receara uma doença e preferira

ir para casa. Achava muito natural e teria feito o mesmo, afirmou-me.

Como se pudesse haver qualquer coisa de comum entre

ambas!, entre esta, a quem não resta senão a morte, e a outra,

encanto e tormento da minha vida!

Madame de Volanges, que julguei primeiro cúmplice, parece

afinal ofendida por não ter sido consultada sobre esta partida.

Estou satisfeito, confesso, por ela não ter tido o prazer de

me dar um desgosto. Isto prova que ela não possui inteiramente,

tal como eu temia, a confiança da amiga; sempre é uma inimiga

a menos. Como se felicitaria se soubesse que era de mim que

fugiam! Como estaria inchada de orgulho se isso tivesse acontecido

devido aos seus conselhos! Como se sentiria importante!

Meu Deus, como a odeio! Oh, recomeçarei com a filha; quero

moldá-la segundo a minha fantasia; e creio que ficarei aqui algum

tempo. Pelo menos, as poucas reflexões que fiz levam-me a

esta conclusão.

Não acha que; depois desta decisão tão viva, a ingrata deve

recear a minha presença? Se pensou que podia segui-la, certamente

me proibiu a entrada; e não quero nem acostumá-la a

isso, nem sofrer a humilhação. Prefiro dizer-lhe que fico aqui;

rogar-lhe-ei que volte; e quando estiver persuadida da minha

ausência, apresentar-me-ei; veremos como reage a esta entrevista.

Mas é preciso adiá-la para lhe aumentar o efeito, e não sei se

terei paciência para isso: abri umas vinte vezes a boca durante o

dia para pedir os meus cavalos. Mas conseguirei dominar-me;

comprometo-me a receber a sua resposta aqui; peço-lhe só,

minha bela amiga, que ma não faça esperar.

O que me poderia contrariar mais seria não saber o que se

passa; mas o meu criado, que está em Paris, tem possibilidade

de acesso junto da criada de quarto e portanto poder-me-á ser

útil. Vou-lhe enviar instruções e dinheiro. Não se importará que

eu junte ambos a esta carta e que lhe peça o cuidado de lhos enviar

por um dos seus, com a ordem de lhos entregar pessoalmente.

Tomo esta precaução porque o tolo tem o hábito de

nunca receber as cartas que lhe escrevo, quando elas lhe ordenam

qualquer coisa que o mace; e, neste momento, não me parece

tão apaixonado pela sua conquista como eu o desejaria.

Adeus, bela amiga; se tiver ideia feliz, qualquer meio de

apressar a marcha, diga-me. Já mais de uma vez senti quanto a

sua amizade me pode ser útil, sinto-o ainda neste momento:

porque fiquei mais calmo enquanto lhe escrevia; pelo menos,

178

falo a alguém que me compreende, e não aos autómatos junto

de quem vegeto desde manhã. Na verdade, quanto mais penso

mais acredito que só existimos você e eu no mundo, que tenhamos

qualquer valia.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *

CARTA CI

O VISCONDE DE VALMONT A AZOLAN, SEU CRIADO

(Junta à precedente)

Deves ser muito imbecil para, tendo partido daqui esta

manhã, não teres descoberto que Madame de Tourvel também

partia; ou, se o soubeste, para me não teres prevenido. De que

serve gastares o meu dinheiro a beber com os criados, e que em

vez de empregares o tempo a servir-me o desperdices a fazer a

corte às criadas de quarto, se apesar disso não fico mais bem

informado acerca do que se passa? Tanta negligência! Mas previno-te

de que, se te acontecer uma que seja neste caso, será a última

que terás ao meu serviço.

Informar-me-ás de tudo o que se passar em casa de Madame

de Tourvel: da saúde dela; se dorme; se está triste ou alegre; se

sai muitas vezes e onde vai; se recebe visitas, e quem; em que

passa o tempo, se se zanga com as criadas, especialmente com a

que veio com ela; o que faz quando está só; se quando lê, lê seguidamente

ou se interrompe a leitura para meditar; e o mesmo

quando escreve. Procura tornar-te amigo do criado que leva as

cartas para o correio. Oferece-te até para fazer esse recado em

vez dele; e quando aceitar não mandes senão as que te parecerem

indiferentes, e envia-me as outras, sobretudo as endereçadas

a Madame de Volanges, se alguma houver.

Procura ser ainda por algum tempo o amante feliz da tua

Júlia. Se ela tem outro, como julgaste, que consinta em se dividir;

e não te aflijas com escrúpulos ridículos: estarás no caso de

muitos outros, que valem mais do que tu. Se no entanto o teu

rival se tornar importuno, se, por exemplo, vires que ele ocupa

demasiado a Júlia durante o dia, e que por isso ela está menos

tempo junto da senhora, afasta-o de qualquer modo; ou procura

uma questão com ele; não temas as consequências, responderei

por ti. Não deixes essa casa. É pela assiduidade que se

nota e percebe tudo. Se por um acaso algum dos criados for

despedido, apresenta-te para o substituir como se já me não pertencesses.

Podes dizer nesse caso que me deixaste para procurar

uma casa mais tranquila e regrada. Faz o possível para que te

aceitem. Ficarás do mesmo modo ao meu serviço durante esse

179

tempo: será como em casa da Duquesa de...: e, ainda por cima,

Madame de Tourvel te virá a recompensar.

Se tivesses jeito e zelo estas instruções deviam bastar, mas

para suprir a ambos envio-te dinheiro. O bilhete junto autoriza-te

como verás a levantar vinte e cinco luíses do meu administrador;

porque tenho a certeza de que estás sem dinheiro. Empregarás

desta quantia o que for necessário para decidir Júlia a

estabelecer correspondência comigo. O resto será para beberes

com os criados. Quando o fizeres, não esqueças que não são os

teus prazeres que eu quero pagar, mas os teus serviços.

Acostuma Júlia a observar e a contar-te tudo, mesmo o que

lhe pareça demasiado minucioso. Vale mais que ela escreva dez

frases inúteis do que omita uma com interesse; e muitas vezes o

que parece indiferente não o é. Como é necessário que possa ser

informado imediatamente, se acontecer qualquer coisa que te

pareça importante, assim que tenhas recebido esta carta mandarás

Filipe fixar-se em...1 com um cavalo; aí ficará até nova ordem;

haverá uma muda em caso de necessidade. Para a correspondência

corrente, bastará o correio.

Tem cuidado em não perder esta carta. Relê-a todos os dias,

não só para te certificares de que não te esqueceste de nada, mas

também para teres a certeza de ainda a possuires. Faz enfim

tudo o que é preciso, quando se tem a honra da minha confiança.

Não terás de que te arrepender se eu ficar satisfeito contigo.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *

CARTA CII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Ficareis muito admirada, senhora, ao saberdes que parto de

vossa casa assim tão precipitadamente. Parecer-vos-á extraordinária

esta atitude: mas a vossa surpresa aumentará ainda, quando

souberdes quais os motivos! Achareis talvez que, ao confiar-vo-los,

não respeitei como devia a tranquilidade tão necessária

à vossa idade; que me afasto até dos sentimentos de veneração

que a tantos títulos vos são devidos. Ah! senhora, perdão, mas o

meu coração está oprimido, e precisa de expandir a sua dor no

seio duma amiga simultaneamente doce e prudente: quem poderia

ele escolher senão vós? Considerai-me como vossa filha.

Tende para comigo toda a bondade maternal; imploro-vos. Os

meus sentimentos por vós talvez possam justificar as minhas

súplicas.

Onde está o tempo em que, inteiramente devotada a sentimentos

louváveis, não conhecia ainda aqueles que, lançando a

180

alma na perturbação que sinto agora, nos roubam a força de os

combater no momento exacto em que impõem esse dever? Ah!

Esta viagem fatal perdeu-me...

Que vos posso dizer? Amo, sim, amo loucamente. Ai! Esta

* Aldeia a meio caminho de Paris ao castelo de Madame de Rosemonde.

palavra que escrevo pela primeira vez, esta palavra tanta vez

desejada sem ser obtida, pagaria com a vida a doçura de a poder

dizer uma só vez àquele que ma inspira; e contudo devo sem

cessar abster-me de tal! Ele vai ainda duvidar dos meus sentimentos;

julgar-se-á com direito a queixar-se. Sou tão infeliz!

Por que não lê ele no meu coração com a mesma facilidade com

que aí reina? Sim, seria menos infeliz, se ele soubesse como sofro;

mas mesmo vós, a quem o revelo, não fazeis senão ainda

uma leve ideia da minha dor.

Dentro de poucos momentos vou fugir e afligi-lo. Julgar-se-á

ainda perto de mim, e já eu estarei longe: à hora a que nos

costumávamos ver todos os dias, estarei num local aonde nunca

veio, aonde não devo permitir que venha. Os preparativos estão

todos feitos; tenho tudo em frente dos meus olhos; não os posso

repousar sobre nada que não me anuncie a cruel partida. Está

tudo pronto, excepto eu. E quando mais o coração se recusa,

mais me prova a necessidade de me submeter a esta decisão.

Submeter-me-ei sem dúvida; antes morrer do que viver culpada.

De resto, sinto que já o sou; salvei apenas a sensatez, a

virtude já desapareceu. Não é preciso confessar-vos; o que ainda

me resta, devo-o apenas à generosidade dele. Entontecida

com o prazer de o ver, de o ouvir, com a doçura de o sentir junto

de mim e com a felicidade de poder fazer a dele, encontrava-me

sem recursos e sem forças; mal podia ainda lutar, já não resistia;

estremecia com o perigo sem conseguir fugir-lhe. Pois

bem! Viu a minha dor e teve piedade de mim. Como não o adorar?

Devo-lhe mais do que a vida.

Ah! Se ao ficar junto dele eu tivesse apenas que temer por

ela, podeis crer que nunca me afastaria. De que me serve a vida

sem ele? Não seria para mim uma felicidade perdê-la? Condenada

a provocar eternamente a infelicidade de ambos; a não ousar

queixar-me, nem consolá-lo; a defender-me todos os dias dele e

de mim própria; a pôr todos os meus cuidados em fazer-lhe mal,

quando afinal desejaria consagrá-los à sua felicidade: viver assim,

não serão mil mortes? Eis todavia o meu destino. Suportá-lo-ei

no entanto, não me faltará a coragem. Recebei vós, a

quem escolho por mãe, este juramento.

Recebei igualmente aquele que faço de nunca vos ocultar

nenhuma das minhas acções; recebei-o, suplico-vos; peço-vo-lo

como um auxílio precioso: obrigada assim a dizer-vos tudo,

sentirei como se estivesse sempre na vossa presença. A vossa virtude

substituirá a minha. Nunca consentirei, sem dúvida, em

181

corar diante de vós, e retida por esse freio poderoso, ao mesmo

tempo que adorei em vós a amiga tolerante e confidente da

minha fraqueza, venerarei ainda o anjo tutelar que me há-de

salvar da vergonha.

É já sentir muita o ter de fazer este pedido. Fatal efeito

duma presunçosa confiança! Por que não temi mais cedo esta

inclinação que senti nascer? Por que me lisonjeei de a poder

dominar ou vencer à minha vontade? Insensata! Muito mal

conhecia eu o amor! Ah! Se a tivesse combatido com mais cuidado,

talvez tivesse adquirido menos poder! E então talvez esta

fuga não fosse necessária; ou, submetendo-me embora a tão

dolorosa decisão, poderia não romper inteiramente uma ligação

que bastaria tornar menos frequente! Mas perder tudo duma só

vez, e para sempre! Ó minha amiga...! Mas quê? Mesmo ao escrever-vos,

desvairo ainda em desejos criminosos? Ah! Partamos,

partamos, e que ao menos estes erros involuntários sejam

expiados pelos meus sacrifícios.

Adeus, respeitável amiga; amai-me como filha, adoptai-me

como tal; e podes estar certa de que, apesar da minha fraqueza,

preferiria morrer a tornar-me indigna da vossa escolha.

3 de Outubro de 17* *, à uma hora da manhã.

CARTA CIII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Fiquei, minha querida amiga, mais aflita com a vossa partida

do que surpreendida pela causa; uma longa experiência e o

interesse que me inspirais bastaram para me esclarecer quanto

ao estado do vosso coração; e, para dizer tudo, nada me dissestes

na carta que eu não soubesse já. Se só por ela tivesse tomado

conhecimento, ignoraria ainda quem é aquele que amais; porque,

embora me faleis dele todo o tempo, não lhe escrevestes o

nome uma só vez. Mas não era preciso, sei bem de quem se trata.

Noto-o apenas, porque me lembrei que é sempre esse o estilo

do amor. Vejo que é ainda tal como no passado.

Pensei que nunca mais voltaria a recordações tão longínquas

e tão estranhas à minha idade. No entanto, desde ontem,

tenho pensado muito nelas, pelo desejo que sentia de encontrar

algo que vos pudesse ser útil. Mas que posso fazer além de vos

admirar e lamentar? Acho louvável a sensata decisão que tomastes:

mas assusta-me, porque concluo que a julgastes necessária;

e quando se está nesse ponto é difícil mantermo-nos afastadas

daqueles que o nosso coração chama sem cessar.

182

No entanto não deveis perder a coragem. Nada sei impossível

à vossa bela alma; e mesmo que um dia tivésseis a infelicidade

de sucumbir (que Deus não o permita!), acreditai-me, minha

querida amiga, ficar-vos-á ao menos a consolação de ter lutado

com todas as forças. E depois, o que a sensatez humana não

consegue, opera-o a graça divina quando quer. Talvez em breve

sejais socorrida; e a vossa virtude, experimentada nestes penosos

combates, sairá mais pura e brilhante. A força que não tendes

hoje, podeis recebê-la amanhã. Não deveis ter esperança

nela para vos repousardes, mas antes para vos encorajar a usar

todas as de que já podeis dispor.

Deixando à Providência o encargo de vos socorrer dum perigo

contra o qual nada posso, reservo-me o de vos ajudar e

consolar tanto quanto me for possível. Não aliviarei as vossas

penas, mas compartilhá-las-ei. É com esse fim que receberei de

boa vontade as vossas confidências. Sinto que o vosso coração

deve ter necessidade de se expandir. Abro-vos o meu; a idade

ainda não o gelou a ponto de ser insensível à amizade. Encontrá-lo-eis

sempre pronto para vos receber. Podeis vir com confiança

repousar-vos de cruéis agitações. Será fraco alívio para as

vossas dores, mas pelo menos não chorareis sozinha; e quando

esse amor infeliz, dominando-vos demasiado, vos obrigar a falar,

mais vale que seja comigo do que com ele. Eis que falo como

vós e creio que ambas não chegaremos a nomeá-lo; de resto

compreendemo-nos.

Não sei se faço bem em dizer-vos que ele me pareceu muito

atingido pela vossa partida; talvez fosse mais sensato não vos

falar nisso: mas não gosto dessa sensatez que faz afligir os amigos.

Sou forçada a não vos falar mais longamente. A vista débil,

a mão vacilante não me consentem longas cartas, quando é preciso

que eu própria as escreva.

Adeus, então, minha querida amiga; adeus, minha filha

adorável; sim, adopto-vos de boa vontade como minha filha;

tendes tudo o que é preciso para fazer o orgulho e o prazer

duma mãe.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *

CARTA CIV

A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES

Em verdade, minha querida e boa amiga, custou-me a evitar

um movimento de orgulho, ao ler a vossa carta. Quê! Pois honrais-me

com a vossa inteira confiança! E ides mesmo ao ponto

de me pedir conselhos! Ah! Sentir-me-ia muito feliz, se soubesse

183

merecer uma opinião tão favorável da vossa parte, e não devê-la

apenas à indulgência da amizade. De resto, qualquer que seja o

motivo, esta não é menos preciosa para o meu coração; e tê-la

obtido, é em minha opinião mais uma razão para procurar merecê-la.

Vou deste modo (mas sem pretender dar-vos um conselho),

dizer-vos livremente a minha maneira de pensar. Desconfio

dela porque é diferente da vossa: mas depois de vos expor as

minhas razões vós as julgareis; e se as condenardes submeto-me

antecipadamente ao vosso juízo. Terei pelo menos a sensatez de

me não julgar mais ponderada do que vós.

Se no entanto, e por uma só vez, a minha opinião fosse preferível,

a causa disso seriam as ilusões do amor maternal. E este

sentimento, visto que é louvável, encontrar-se-á por certo no

vosso coração. Foi ele com certeza que vos ditou a decisão que

estais a tomar! Se alguma vez vos acontecer errar é apenas na

escolha das virtude.

A prudência é, ao que me parece, a que se deve preferir,

quando temos nas nossas mãos o destino dos outros; e sobretudo

quando se trata de o fixar por um laço indissolúvel e sagrado

como o casamento. É então que uma mãe, simultaneamente

sensata e terna, deve, como tão bem dizeis, ajudar a filha com a

sua experiência. Ora, pergunto-vos, que deve fazer para o conseguir,

se não distinguir, para ela, entre o que agrada e o que

convém ?

Não será rebaixar a autoridade materna, não será reduzi-la

a nada, subordiná-la a um gosto frívolo, filho do capricho e pai

do delírio, cujo poder ilusório domina só os que o temem, e desaparece

logo que o desprezam? Por mim, confesso, nunca acreditei

nessas paixões arrebatadoras e irresistíveis com que, segundo

me parece, se convencionou desculpar de modo geral os

nossos desregramentos. Não concebo como um gosto, que nasce

num momento e logo morre, pode ter mais força que os princípios

inalteráveis do pudor, da honestidade e da modéstia; e

não compreendo que uma mulher que os trai possa ser mais justificada

pela sua pseudopaixão, que um ladrão pela paixão do

dinheiro, ou um assassino pela da vingança.

Oh! Quem se pode gabar de nunca ter tido que resistir? Mas

sempre tentei persuadir-me que para resistir basta querê-lo; e

até aqui, pelo menos, a minha experiência confirmou esta opinião.

Que seria a virtude sem os deveres que impõe? O seu culto

está nos nossos sacrifícios e a recompensa nos corações. Estas

verdades só podem ser negadas pelos que têm interesse em as

desconhecer; e que, já depravados, esperam iludir-se um momento,

tentando justificar a sua má conduta com más razões.

Mas podê-lo-emos recear quando se trata duma criança

simples e tímida, duma criança que é vossa filha, e cuja educação

modesta e pura fortificou as já felizes tendências naturais? É

no entanto a este temor, ouso dizer humilhante para vossa filha,

que quereis sacrificar o vantajoso casamento que a vossa prudência

184

preparara para ela! Gosto muito de Danceny; e há muito

tempo, como sabe, que pouco vejo o senhor de Gercourt: mas a

amizade por um e a indiferença que sinto pelo outro não me

impedem de sentir a enorme diferença que existe entre esses dois

partidos.

O nascimento é igual, concedo; mas um não tem fortuna, e

a do outro é tal que, mesmo sem o nascimento, teria bastado

para lhe abrir todas as portas. Confesso que o dinheiro não faz

a felicidade; mas devemos confessar também que ajuda muito.

Mademoiselle de Volanges é, como dizeis, rica por dois: no entanto,

as sessenta mil libras de renda de que ela gozará não são

já tanto quando se traz o nome de Danceny e quando se tem de

pôr e manter uma casa que lhe corresponda. Já não estamos no

tempo de Madame de Sévigné. O luxo absorve tudo; censuramo-lo,

mas é preciso imitá-lo; e o supérfluo acaba por nos privar

do necessário.

Quanto às qualidades pessoais que tendes, com razão, em

tão grande conta, nada há com certeza a censurar ao senhor de

Gercourt; e, quanto a ele, as provas estão feitas. É-me agradável

crer, e creio de facto, que Danceny em nada lhe é inferior; -mas

poderemos ter absoluta certeza? É certo que até aqui me pareceu

isento dos defeitos próprios da sua idade e, apesar das tendências

da época, mostra um gosto pelas boas companhias que

parece ser de bom augúrio; mas quem sabe se não deve esta

aparente sensatez à mediocridade da fortuna? Mesmo que se

não tema ser corrupto ou devasso, é preciso dinheiro para se ser

jogador ou libenino, e até se podem amar os defeitos de que

tememos os excessos. Enfim, não seria o único que procuraria

as boas companhias unicamente por não poder ocupar-se mais

a seu gosto.

Não digo (Deus me livre!) que creia tudo isto a seu respeito:

mas sempre seria correr um risco; e que censuras não faríeis a

vós mesma, se o acontecimento não fosse feliz! Que responderíeis

à vossa filha quando ela vos dissesse: " Mãe, eu era jovem e

sem experiência, era arrastada por um erro perdoável na minha

idade; mas o céu, prevendo a minha fraqueza, dera-me uma

mãe sensata, para tudo remediar e me acautelar desse mal. Por

que foi então que, esquecendo a vossa prudência, consentistes

na minha infelicidade? Seria eu que deveria escolher marido,

quando nada sabia do estado de casada? Mesmo que eu o quisesse

não tínheis o dever de mo impedir? Mas nunca tive esse

louco desejo. Decidida a obedecer-vos, esperei a vossa escolha

com respeitosa resignação; nunca me afastei da submissão que

vos devia, e hoje suporto os males qUe só caem sobre os filhos

rebeldes. A vossa fraqueza perdeu-me." Talvez o respeito lhe

sufocasse estas queixas, mas o amor materno adivinhá-las-ia: e

as lágrimas da vossa filha; apesar de disfarçadas, correriam do

mesmo modo sobre o vosso coração. Ser-vos-ia possível então

encontrar consolações? Seria possível encontrá-las nesse amor

185

louco, contra o qual vos deveríeis ter armado e pelo qual ao

contrário vos deixastes afinal seduzir?

Talvez, querida amiga, eu tenha contra a paixão uma prevenção

demasiado grande: mas julgo-a temível, mesmo no casamento.

Claro que não desaprovo que um sentimento honesto e

doce venha embelezar o laço conjugal e suavizar de algum

modo os deveres que impõem; mas não é a ele que compete

criar este último; não é à ilusão dum momento que cabe fazer a

escolha de toda a nossa vida. Com efeito, para escolher, é preciso

comparar; e como é isso possível quando um só objecto nos

ocupa; quando nem esse podemos conhecer, mergulhados como

estamos na embriaguez e na cegueira?

Encontrei, como podeis supor, várias mulheres atingidas

por esse perigoso mal; ouvi as confidências de algumas. De ouvi-las,

convencer-nos-emos que não há nenhuma que não tenha

como amante um ser perfeito: mas essas perfeições quiméricas

existem só na imaginação delas. A sua cabeça exaltada só vê

atractivos e virtudes; adornam à sua vontade aqueles que

amam; é o vestuário dum Deus, envergado muitas vezes por um

modelo abjecto: mas não importa o que ele é, depois de o terem

ornado, enganadas pela sua própria obra prostram-se para o

adorar.

Ou a vossa filha não ama Danceny, ou é vítima desta ilusão;

que é comum a ambos, se o seu amor é recíproco. O vosso motivo

para os unir para sempre reduz-se afinal à certeza de que eles

se não conhecem, se não podem conhecer. Mas, responder-me-eis,

o senhor de Gercourt e minha filha conhecem-se melhor?

Não, sem dúvida; mas pelo menos não se enganam a si próprios,

ignoram-se apenas. O que acontece neste caso entre dois

esposos, que julgo honestos? Cada um estuda o outro, observa-se

em relação a ele, procura e depressa encontra em que deve

ceder nos seus gostos e vontades para a tranquilidade comum.

Esses ligeiros sacrifícios fazem-se sem esforço, porque são recíprocos

e já previstos; em breve fazem nascer uma mútua benevolência;

e o hábito que fortifica todas as tendências que não

destrói, conduz pouco a pouco a essa doce amizade, a essa terna

confiança, que, juntas à estima, formam, ao que me parece, a

verdadeira e sólida felicidade.

As ilusões do amor podem ser mais doces, mas não sabemos

bem que são também menos duráveis? E que perigos não traz

consigo o momento que as destrói! É então que os mínimos defeitos

parecem chocantes e insuportáveis, pelo contraste que

formam com a ideia de perfeição que nos seduzira. Cada um

dos esposos pensa que só o outro mudou, e que ele é ainda o

mesmo que o outro apreciara afinal num momento de desvario.

Espanta-se de já não fazer nascer o encanto que ele próprio já

não sente; isto humilha-o: a vaidade ferida azeda os espíritos,

aumenta os agravos, produz o mal-estar, faz nascer o ódio; e os

frívolos prazeres são pagos por longos infortúnios.

186

Eis, minha querida amiga, a minha opinião sobre o assunto

que nos ocupa; não a defendo, exponho-a apenas; é a vós que

cabe decidir. Mas se persistis no vosso parecer, peço-vos que me

comuniqueis as razões que venceram as minhas; ficarei radiante

por me esclarecer junto de vós, e sobretudo por ficar descansada

quanto à sorte da vossa adorável filha, para quem desejo ardentemente

a felicidade, não só pela amizade que tenho por ela,

mas também pela que me une para sempre a vós.

Paris, 4 de Outubro de 17 * *

CARTA CV

A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES

Ora bem, minha pequena, eis-te muito zangada e cheia de¨

vergonha! E o senhor de Valmont é um homem mau, não é?

Pois então! Ousa tratar-te como à mulher que mais amasse!

Ensina-te aquilo que morrias de desejo por saber! De facto, essas

coisas não se fazem. E tu, pelo teu lado, querias guardar a

tua pureza para o teu amado (que não abusa dela); do amor só

apreciavas os males e não os prazeres! Nada de melhor para dar

uma bela figura de romance. Paixão, infortúnio, virtude ainda

por cima, que belas coisas! Por vezes no meio desse cortejo

aborrecemo-nos deveras, mas representa-se bem a nossa parte.

Vejam como a pobre pequena é de lamentar! Tinha os olhos

pisados no dia seguinte! E que dirás quando forem os do teu

amante? Consola-te, belo anjo, não os terás sempre assim; nem

todos os homens são Valmonts. E depois, não ousar levantar

esses olhos! Oh! Tiveste razão, toda a gente leria neles a tua

aventura. Mas crê-me, se assim fosse, as nossas mulheres e raparigas

teriam o olhar mais modesto.

Apesar dos louvores que sou forçada a fazer-te, como vês,

concordemos no entanto que falhaste a tua obra-prima; devias

contar tudo à tua Mamã! Tinhas começado tão bem! Eis-te já

lançada, soluçando, nos seus braços; ela choraria também: que

cena patética! E que pena não a teres levado até ao fim! A tua

terna Mamã, arrebatada de contentamento, para reforçar a tua

atitude, ter-te-ia enclausurado para toda a vida num convento;

e aí amarias Danceny enquanto te agradasse, sem rivais nem

pecado: poder-te-ias desolar à tua vontade, e Valmont não iria,

seguramente, perturbar a tua dor com prazeres importunos.

Seriamente, admiro-me que, já feitos os quinze anos, se possa

ser tão criança! Tens razão em dizer que não mereces a minha

atenção. Gostaria no entanto de ser para ti uma amiga: terás

necessidade talvez duma amizade com a mãe que tens, e o marido

187

que ela te quer dar! Mas se não progrides, que queres que

façam de ti? Que se pode esperar, se o que costuma despertar o

espírito às raparigas parece, pelo contrário, tirar-to?

Se fores capaz de raciocinar um momento, depressa verás

que te deves felicitar em vez de te queixares. Mas és uma envergonhada

e isso inibe-te! Bem! Tranquiliza-te; a vergonha que o

amor causa é como a dor que ele desperta: experimentamo-la

uma só vez. Podemos ainda fingi-la, mas nunca mais a sentimos.

No entanto fica o prazer e já é alguma coisa. Julgo ter depreendido,

através da tua tagarelice, que para ti valerá mesmo muito.

Vamos, um pouco de boa fé. Então essa perturbação que te

impedia de agir, como dizias, que te fazia achar tão dificil defender-te,

que te fez ficar de certo modo zangada quando Valmont

partiu, era a vergonha que a causava, ou era o prazer? E as suas

maneiras de falar às quais não se sabe como responder, não

provinha tudo isso da maneira de ele agir? Ah, menina, mentes e

mentes à tua amiga! Isso não está bem. Mas deixemo-lo.

O que para toda a gente seria um prazer, e poderia ser apenas

isso, torna-se na tua situação uma verdadeira felicidade.

Com efeito, colocada entre uma mãe por quem te convém fazeres-te

amada, e um apaixonado pelo qual desejas sê-lo sempre,

como não vês que o único meio de obter estes propósitos tão

contrários é ocupar-te duma terceira pessoa? Distraída por uma

nova aventura, enquanto diante de tua mãe tens o ar de sacrificar

à submissão por ela um gosto que lhe desagrada, adquires

perante o teu amado a honra duma bela defesa. Assegurando-lhe

sem cessar o teu amor, nunca lhe concederás as últimas

provas. Estas recusas, tão pouco difíceis na situação em que te

encontras, não deixará ele de as tomar à conta de virtude; talvez

se queixe, mas amar-te-á ainda mais; e para ter o duplo mérito,

aos olhos de um de sacrificar o amor, aos do outro de lhe resistir,

terás apenas de fazer o sacrifício de lhe saborear os prazeres.

Oh, quantas mulheres perderam a reputação, quando com cuidado

a poderiam ter conservado se se tivessem podido servir de

semelhantes processos !

Esta solução que porponho não te parece a mais razoável, a

mais doce? Sabes o que ganhaste com a que tomaste? A tua mãe

atribuiu a redobrada tristeza a um redobrado amor, está indignada

e espera apenas ter a certeza para te castigar. Acaba de me

escrever; tentará tudo para obter de ti mesma a confissão. Talvez

vá até, segundo me disse, propor-te Danceny como esposo, e

isso só para te fazer falar. E se te deixasses seduzir por essa enganadora

ternura, respondendo segundo o teu coração, em breve

enclausurada por muito tempo, talvez para sempre, chorarias

com vagar a tua cega credulidade.

É preciso opor um outro a este ardil que ela quer empregar

contra ti. Deves começar por mostrar menos tristeza e fazer-lhe

crer que pensas menos em Danceny. Ela persuadir-se-á tanto

mais facilmente, quanto é esse efeito habitual da ausência; e ficar-te-á

188

muito grata porque encontrará uma ocasião para

aplaudir a sua prudência, que lhe sugeriu este processo. Mas se,

conservando ainda dúvidas, ela persistisse no entanto em experimentar-te,

se viesse a falar-te de casamento, deverias encerrar-te,

como filha bem educada, numa inteira submissão. Afinal

que arriscas? Para aquilo de que nos serve um marido, tanto faz

um como outro; e o mais incómodo é ainda menos importuno

do que uma mãe.

Uma vez contente contigo, a tua mãe casar-te-á enfim; e então,

mais livre nas tuas acções, poderás, a teu gosto, deixar

Valmont para tomar Danceny, ou mesmo conservar os dois.

Porque, toma atenção, o teu Danceny é gentil, mas é um homem

que se tem quando se quer e enquanto se quer; podemos deste

modo estar à vontade com ele. Não acontece o mesmo com

Valmont: é difícil guardá-lo; perigoso deixá-lo. Deve-se usar

com ele de muita habilidade, ou, quando a não temos, de muita

docilidade. Mas se conseguisses prendê-lo como amigo, seria

uma sorte. Colocar-te-ia na primeira fila das mulheres da moda.

É assim que se adquire uma posição no mundo, e não a corar e a

chorar, como quando as religiosas te obrigavam a jantar de joelhos.

Procura, se és sensata, reconciliar-te com Valmont, que deve

estar muito zangado contigo; e como é preciso saber emendar

os nossos erros, não receeis tomar a iniciativa; e aprenderás logo

que, se são os homens que ousam primeiro, somos quase sempre

nós as obrigadas a atraí-los em seguida. Tens um pretexto: não

deves guardar esta carta; peço-te e exijo-te que a entregues a

Valmont assim que a tiveres lido. Não te esqueças de a tornar a

lacrar antes. Primeiro, é preciso deixar-te o mérito do gesto que

vais fazer, e que não deve parecer ter-te sido aconselhado; e

depois, porque és tu a única pessoa no mundo de quem sou suficientemente

amiga para te falar como o faço.

Adeus, meu anjo; segue os meus conselhos, e dir-me-ás se

foram úteis.

P. S. - A propósito, esquecia-me... uma palavra ainda. Cuida

mais do teu estilo. Escreves ainda como uma criança. Vejo

bem qual a causa; dizes tudo o que pensas e nada do que não

pensas. Isso não tem importância entre nós, que nada devemos

esconder uma à outra: mas com os outros, e sobretudo com o

teu amado, parecerás sempre uma tontinha. Pensa que quando

escreves a alguém, é para essa pessoa e não para ti: deves antes

procurar dizer aquilo que lhe agradará, de preferência àquilo

que pensas.

Adeus, meu coração; beijo-te em vez de te ralhar, na esperança

de que te tornarás mais razoável.

Paris, 4 de Outubro de 17* *

189

CARTA CVI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Maravilhoso, Visconde, e, pelo seu êxito, adoro-o perdidamente!

De resto, após a sua primeira carta, a continuação era de

esperar; por isso, não me espantou; e enquanto que, já orgulhoso

dos futuros sucessos, solicitava a devida recompensa, e me

perguntava "se eu estava pronta", percebi bem que não havia

necessidade de me apressar. Sim, por minha honra; lendo a bela

descrição dessa terna cena, que o tinha tão "violentamente

emocionado"; vendo o seu comedimento, digno dos mais belos

tempos da nossa cavalaria, repeti vinte vezes: "Eis um caso falhado !

"

Mas é que não podia ser doutra forma! Que quer que faça

uma pobre mulher que se lhe entrega, e de quem não se apoderou?

Por minha fé, num caso desses, é preciso ao menos salvar a

honra; foi o que fez a Presidente. Proponho-me, vendo o efeito

do procedimento dela, utilizá-lo por minha conta, na primeira

ocasião que se me apresente: mas prometo que se, tal como o

meu amigo, aquele por quem eu fizer toda a cena não souber

aproveitar-se dela, pode renunciar a mim para sempre.

Ei-lo pois reduzido a nada, e isto entre duas mulheres uma

já vencida, e outra que não pedia senão a mesma sorte! Pois

bem! Vai crer que me gabo, e dizer que é fácil profetizar depois

do acontecimento: mas juro-lhe que já o esperava. É que realmente

não tem o génio próprio da condição de libertino; sabe

apenas o que aprendeu e não é capaz de inventar. Assim, desde

que as circunstâncias não se adaptam às manhas usuais e é preciso

seguir caminho novo, fica desarmado como um rapazinho.

Enfim, criancice dum lado, regresso ao pudor do outro em virtude

de não acontecerem todos os dias, bastam para o desconcertar;

e nem sequer os sabe evitar ou remediar. Ah! Visconde,

visconde, ensina-me a não julgar os homens pelos seus êxitos; e

em breve se dirá a seu respeito: outrora teve mérito." E depois

de ter feito asneira sobre asneira, recorre a mim! Parece que eu

não tenho outra coisa a fazer senão dar-lhe remédio. Seria na

verdade trabalho de sobra.

Dessas duas aventuras, uma foi iniciada contra a minha

vontade, e por isso não me intrometo nela; quanto à outra,

como a aceitou por amabilidade para comigo, encarrego-me eu

dela. A carta que envio junto, e que entregará à pequena Volanges

depois de a ter lido, é mais do que suficiente para a fazer

regressar aos seus braços; mas, peço-lhe, dê alguma atenção a

esta criança, e façamos dela, de comum acordo, o desespero da

mãe e de Gercourt. Não receemos forçar as doses. Vejo claramente

que a garota não se assustará; uma vez realizados os nossos

190

desígnios, que se arranje como puder.

Desinteresso-me inteiramente dela. Tive desejo de a tornar

ao menos uma intrigante inferior, que representaria os segundos

papéis sob a minha direcção: mas não tem estofo; sofre duma

ingenuidade estúpida que não cedeu sequer ao específico que o

Visconde empregou, e contudo costuma dar resultado: é na

minha opinião, a doença mais perigosa que uma mulher possa

ter. Ela indica, sobretudo uma fraqueza de carácter quase sempre

incurável e que se opõe a tudo; de maneira que, se procurássemos

formar a rapariguinha para a intriga, criaríamos apenas

mais uma mulher fácil. Ora, não conheço nada mais vulgar do

que a facilidade da estupidez, que se entrega sem saber nem

como nem porquê, unicamente porque a atacam e não sabe resistir.

Mulheres desta espécie são puras máquinas de prazer.

Dir-me-á que não há outra coisa a fazer dela e que isso basta

para os nossos projectos. Seja assim! Mas não esqueçamos que

cedo toda a gente descobre as molas e os motores dessas máquinas;

assim, para nos servirmos desta sem perigo, é preciso

apressarmo-nos, parar oportunamente e destruí-la em seguida.

Na verdade, não nos faltarão os meios para nos desfazermos

dela, e Gercourt fá-la-á enclausurar quando quisermos. De facto,

quando ele já não puder duvidar do seu infortúnio, quando

este for bem público e notório, que nos importa que se vingue,

contanto que não se console? O que digo do marido, pensa-o

sem dúvida da mãe; por isso mãos à obra.

Esta posição, que julgo a melhor, decidiu-me a conduzir a

jovem um pouco mais depressa, como verá pela minha carta;

importa nada deixar nas suas mãos que nos possa comprometer.

Atente nisto, peço-lhe. Tomada esta precaução, encarrego-me

eu do moral; o resto é consigo. Contudo, se virmos que a

ingenuidade se corrige, estaremos sempre a tempo de mudar de

projecto. De qualquer forma seria preciso, mais dia menos dia,

ocuparmo-nos do que vamos fazer: em qualquer dos casos, as

canseiras não serão inúteis.

Sabe que as minhas quase o foram, e que a boa estrela de

Gercourt ia levando a melhor sobre a minha ciência? Madame

de Volanges teve um momento de fraqueza maternal! Queria

dar a filha a Danceny! Eis o que anunciava esse interesse mais

terno que o meu amigo notara "no dia seguinte". Seria ainda o

Visconde o causador de semelhante obra-prima! Felizmente a

mãe carinhosa escreveu-me e espero tê-la dissuadido. Na minha

carta falo tanto de virtude, e sobretudo lisonjeei-a tanto, que ela

deve achar que tenho razão.

Tenho pena de não ter tempo para copiar a carta a fim de o

edificar quanto à austeridade moral. Veria como desprezo as

depravadas capazes de terem um amante! É tão cómodo ser-se

rigorista nas palavras! Só pode ser prejudicial aos outros e não

nos estorva de forma alguma... E depois, não ignoro que essa

"virtuosa" mulher. teve as suas fraquezas como qualquer outra,

191

nos seus tempos, e não me desagradou humilhá-la ao menos na

sua consciência; isso consolou-me um pouco dos elogios que lhe

fiz à custa da minha. Foi isso que, na mesma carta, a ideia de

fazer mal a Gercourt me deu coragem para dizer bem dele.

Adeus Visconde; aprovo a decisão de permanecer aí. Não

tenho meios para apressar a sua marcha; mas convido-o a

distrair-se com a nossa comum aluna. Quanto a mim, apesar da

delicada citação que usou, bem vê que ainda é preciso esperar; e

concorda, sem dúvida, que não é minha a culpa.

Paris, 4 de Outubro de 17 * *.

CARTA CVII

AZOLAN AO VISCONDE DE VALMONT

Senhor:

Obedecendo às vossas ordens, fui, logo que recebi a vossa

carta, a casa do senhor Bertrand, que me entregou os vinte e

cinco luíses, como vós lhe havíeis ordenado. Ainda lhe pedi

mais dois para Filipe, a quem mandara partir imediatamente,

como o senhor tinha ordenado, e que estava sem dinheiro; mas

o vosso administrador não quis, afirmando que não recebera tal

ordem da vossa parte. Fui obrigado a dar-lhos do meu bolso, e

espero que o senhor terá a bondade de levar isso em conta.

Filipe partiu ontem à tarde. Recomendei-lhe muito que não

deixasse a estalagem, para o podermos encontrar se for preciso.

Fui logo a seguir a casa da senhora Presidente para ver a Júlia:

mas ela tinha saído e só falei ao La Fleur, por quem nada

consegui saber, porque desde a chegada que não vai ali senão à

hora das refeições. E o segundo criado que faz todo o serviço, e

o senhor sabe bem que a este eu não o conhecia. Mas comecei

hoje.

Voltei esta manhã a estar com a Júlia e ela ficou muito satisfeita

por me ver. Interroguei-a sobre a causa do regresso da patroa;

mas respondeu-me que nada sabia, e julgo que falava verdade.

Censurei-a por me não ter avisado da partida e ela afirmou-me

que só soubera naquela noite, quando fora deitar a

senhora; tanto assim que passara toda a noite a arranjar as coisas

e a pobre rapariga não chegou a dormir duas horas. Saíra

nessa noite do quarto da patroa depois da uma hora, e quando a

deixou punha-se esta a escrever.

De manhã, Madame de Tourvel, ao partir, entregou uma

carta ao porteiro do castelo. Júlia não sabia para quem: disse

que talvez fosse para o senhor, mas o senhor não me fala nisso.

192

Durante toda a viagem a senhora tinha um grande capuz na

cabeça, o que impedia que se lhe visse o rosto: mas Júlia julga

que ela chorou muito. Não disse uma palavra durante o caminho,

e não quis parar em...1, como fizera à ida; o que desagradou

a Júlia, que não tinha almoçado. Mas, tal como eu lhe disse,

manda quem pode.

À chegada, a senhora deitou-se; mas só ficou duas horas na

cama. Quando se levantou, mandou chamar o porteiro e deu-lhe

ordem de não deixar entrar ninguém. Nem sequer se arranjou.

Sentou-se à mesa para jantar, mas só comeu um pouco de

sopa e levantou-se logo. Levaram-lhe o café ao quarto, Júlia

entrou ao mesmo tempo. Viu que a patroa arrumava os papéis

da secretária e reparou que eram cartas. Apostaria que são as do

senhor; e das três que recebeu durante a tarde, houve uma que

conservou diante dela até à noite. Tenho a certeza de que se trata

ainda de alguma vossa. Mas por que regressou ela deste

modo? Espanta-me! Mas, enfim, com certeza que o senhor o

sabe, e não tenho nada com isso.

A senhora Presidente foi à tarde à biblioteca e escolheu dois

livros para o tocador: mas Júlia afirma que ela não leu nem um

quarto de hora em todo o dia e que não fez outra coisa senão ler

a tal carta, e pensar apoiada a uma mão. Como julguei que o

senhor ficaria contente por saber de que livros se trata, e Júlia

não sabia, consegui ir hoje à biblioteca, com o pretexto de a ver.

Só estava vazio o lugar de dois livros: um é o segundo volume

dos Pensées Chrétiennes; e n outro o primeiro dum livro que

* Ainda a mesma aldeia a meio do caminho.

tem por título Clarisse. Escrevo tal como lá estava: o senhor

saberá talvez do que se trata.

Ontem à noite, a senhora não jantou: só tomou chá. Chamou

cedo esta manhã; pediu logo os cavalos e foi antes das

nove a Feuillants, onde ouviu missa. Quis confessar-se mas o

seu confessor estava ausente e só voltará dentro de oito a dez

dias. Pensei que o senhor gostaria de saber isto.

A senhora voltou logo, almoçou, e pôs-se a escrever, e assim

esteve quase até à uma hora. Aproveitei a ocasião para fazer o

que o senhor tanto desejava: fui eu que levei as cartas ao correio.

Não havia nenhuma para Madame de Volanges; mas envio-lhe

uma que era para o senhor Presidente: pensei que seria a

mais interessante. Havia também uma para Madame de Rosemonde,

mas achei que o senhor a conseguiria ler quando quisesse,

e deixei-a seguir. De resto, o senhor saberá tudo porque a

senhora Presidente também lhe escreve. Verei de futuro todas

as cartas que eu quiser; porque é a Júlia que as entrega aos criados,

e ela prometeu-lhe que por amizade por mim, e pelo senhor,

fará de boa vontade o que eu lhe pedir.

Ela nem sequer quis o dinheiro que lhe ofereci: mas acho

193

que o senhor deverá querer recompensá-la com algum presente;

se o desejar e se for da sua vontade que eu me encarregue disso,

saberei achar facilmente algo que lhe agradará.

Espero que o senhor não ache deste vez que mostrei negligência

em servi-lo e desejo lavar-me das censuras que me fez. Se

não soube da partida da senhora Presidente, foi por causa do

meu zelo em servir-vos, pois foi devido a ele que parti às três da

manhã; desse modo não vi Júlia na véspera à noite, como de

costume, visto que fui dormir a Tournebride, para não acordar

no castelo.

Quanto ao que o senhor me censura de estar muitas vezes

sem dinheiro, em primeiro lugar é porque gosto de me vestir

convenientemente, como o senhor pode ver: depois porque preciso

corresponder ao fato que se traz: bem sei que devia economizar

um pouco para o futuro, mas confio inteiramente na generosidade

do senhor, que é tão bom patrão.

Quando entrar para o serviço de Madame de Tourvel, ficando

na mesma no do senhor, espero que não o exigirá de

mim. Era muito diferente em casa da senhora duquesa; eu não

poderia usar uma libré, e para mais uma libré de nobreza de

toga, depois de ter tido a honra de ser vosso criado. Para tudo o

resto, o senhor pode dispor daquele que tem a honra de ser, com

muito respeito e consideração, vosso humilde servidor.

Roux Azolan, criado.

Paris, 5 de Outubro de 17* * às onze horas da noite.

CARTA CVIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Oh, minha indulgente mãe! Como vos agradeço e como me

era necessário a vossa carta! Li-a e reli-a sem cessar; não podia

arrancar-me dela. Devo-lhe os únicos momentos menos penosos

que passei desde a minha partida. Como sois boa! A sensatez e a

virtude sabem pois condoer-se da fraqueza! Tendes piedade dos

meus males! Ah, se os conhecêsseis!... São terríveis. Julgava ter

experimentado os males do amor; mas o tormento inexprimível,

que é preciso ter sentido para o poder avaliar, é separarmo-nos

daquele que amamos, separarmo-nos para sempre!... Sim,

a dor que hoje sinto voltará amanhã, depois de amanhã, toda a

minha vida! Meu Deus, como sou jovem ainda, e que longo

tempo me resta para sofrer!

Sermos nós próprios os autores da nossa infelicidade; rasgar

o coração com as próprias mãos; e enquanto sofro dores insuportáveis,

194

sentir a cada instante que as posso fazer cessar com

uma palavra, e que essa palavra é um crime!Ah, minha amiga!..

Quando tomei esta decisão tão penosa de me afastar dele,

esperava que a ausência me aumentaria a coragem e as forças:

como me enganei! Parece-me que pelo contrário acabei por destruí-las.

Precisava de combater mais, é verdade: mas mesmo resistindo,

nem tudo era privação; ao menos via-o algumas vezes;

muitas vezes, mesmo sem ousar olhá-lo, sentia os olhos dele

fixos em mim; sim, minha amiga, sentia-os, parecia que me

aqueciam a alma; e mesmo sem me atravessarem os olhos, chegavam-me

ao coração. Agora, na minha triste solidão, isolada

de tudo o que me é caro, frente ao meu infortúnio, todos os

momentos da minha triste existência são regados de lágrimas, e

nada me suaviza a amargura; nenhuma consolação se junta aos

meus sacrifícios; e os que até hoje fiz só serviram para tornar

mais dolorosos os que me resta fazer.

Ontem ainda, senti-o vivamente. Nas cartas que me trouxeram,

havia uma dele; estavam ainda a dois passos de mim e já

eu a reconhecera entre as outras. Levantei-me involuntariamente:

tremia, a custo escondia a minha emoção; e este estado

não deixava de me ser agradável. Quando fiquei só no momento

seguinte, essa enganadora doçura depressa se desvaneceu, e

ficou-me apenas mais um sacrifício a fazer. Com efeito, poderia

eu abrir essa carta que tanto ansiava por ler? Pela fatalidade que

me persegue, mesmo as consolações que parecem apresentar-se-me

impõem-me pelo contrário novas privações; e estas tornam-se

mais cruéis ainda pela ideia de que o senhor de Valmont

as compartilha.

Ei-lo enfim, esse nome que me ocupa sem cessar e que tanto

me custou a escrever; a quase censura que me fazeis a este propósito,

alarmou-me deveras. Suplico-vos que acrediteis que uma

falsa vergonha não alterou a minha confiança em vós; e por que

temeria nomeá-lo? Coro dos meus sentimentos e não do objecto

que os causa. Ah! Quem é mais digno do que ele de os inspirar!

E contudo não sei por que me é tão difícil escrever esse nome; e

mesmo desta vez, foi deliberadamente que o escrevi. Volto a ele.

Contais-me que vos pareceu vivamente afectado com a

minha partida. Que fez ele? Que disse? Falou em voltar a Paris?

Peço-vos que o afasteis dessa ideia tanto quanto puderdes. Se ele

me interpretou bem, não deve ter levado a mal a minha partida:

mas deve sentir também que é uma decisão sem apelo. Um dos

meus maiores tormentos é não saber o que ele pensa. Ainda

conservo a carta...; mas sois seguramente da minha opinião,

não a devo abrir.

É a vós, minha indulgente amiga, que devo não estar inteiramente

separada dele. Não quero abusar da vossa bondade; vejo

bem que as vossas cartas não podem ser longas: mas não negareis

duas palavras à vossa filha; uma para lhe manter a coragem,

a outra para a consolar. Adeus, minha respeitável amiga.

195

Paris, 5 de Outubro de 17* *

CARTA CIX

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Foi só hoje, senhora, que entreguei ao senhor de Valmont a

carta que me destes a honra de escrever. Guardei-a durante quatro

dias, apesar do terror de que fosse encontrada, guardei-a

com muito cuidado; e quando a tristeza me assaltava, fechava-me

para a reler.

Vejo que o que julgava uma tão grande infelicidade não o é;

e devo confessar até que me dá muito prazer; de modo que isso

já quase me não aflige. Somente a ideia de Danceny ainda me

atormenta às vezes. Mas há muitos momentos em que nem sequer

penso nisso e o senhor de Valmont é tão amável!

Fiz as pazes com ele há dois dias; foi-me muito fácil; porque

ainda mal eu pronunciara duas palavras, já ele me dizia que se

eu tinha qualquer coisa a dizer-lhe iria nessa noite ao meu quarto,

e só tive de responder-lhe que me agradaria muito. E depois,

logo que entrou, pareceu-me tão contente comigo como se eu

nada lhe tivesse feito. Só depois é que me ralhou, mas muito

docemente; e duma maneira... Tal como vós; isso provou-me

que ele também tem muita amizade por mim.

Não seria capaz de dizer-vos quantas coisas engraçadas ele

me contou, coisas que nunca teria acreditado; especialmente

sobre a Mamã. Agradecer-vos-ia muito se me dissésseis se tudo

aquilo é verdade. O que é certo, é que eu não podia impedir-me

de rir; duma vez mesmo às gargalhadas, o que nos causou grande

medo: porque a Mamã podia ter ouvido; e se tivesse vindo,

que me teria acontecido? Desta vez é que me mandaria para o

convento!

Como devemos ser prudentes e o senhor de Valmont me

disse que por nada deste mundo queria correr o risco de me

comprometer, combinámos que de ora avante ele viria só abrir

a porta e iríamos para o seu quarto. Aí nada há a recear; já lá

estive ontem, e no momento em que vos escrevo aguardo que

me venha buscar. Agora, minha senhora, espero que me não

ralheis mais.

Há no entanto uma coisa que me surpreendeu muito na vossa

carta; é o que me mandais dizer acerca de Danceny e do senhor

de Valmont quando eu estiver casada. Parece-me que um

dia, na Ópera, me dissestes, pelo contrário, que, uma vez casada,

não poderia amar senão o meu marido, e que devia mesmo

esquecer Danceny; de resto, talvez não tenha percebido bem, e

196

prefiro que não seja assim, porque então, já não terei tanto receio

de me casar. Desejo-o até visto que terei mais liberdade; e

espero então arranjar maneira de pensar só em Danceny. Sinto

bem que só com ele serei verdadeiramente feliz: porque a sua

lembrança agora atormenta-me sempre, e só tenho felicidade

quando consigo não pensar nele, o que é muito difícil; e logo

que penso, volto a ficar desgostosa.

O que me consola um pouco é a certeza que me dais de que

Danceny me ficará amando mais devido a isto: mas tendes bem

a certeza... Oh, sim, seríeis incapaz de me enganar. É engraçado

que seja Danceny que eu ame, e que seja o senhor de Valmont...

Mas, pelo que me dizeis, é talvez uma sorte ! Enfim, veremos.

Não compreendi bem o que me dizeis a respeito da minha

maneira de escrever. Parece-me que Danceny acha as minhas

cartas bem tal como são. No entanto, sinto que nada lhe devo

dizer acerca do que se passa com o senhor de Valmont; nada

tendes a temer.

A Mamã ainda me não falou do meu casamento: mas não

nos preocupemos; quando me falar, visto que é para me apanhar,

prometo-vos que saberei mentir.

Adeus, minha boa amiga, agradeço-vos, e prometo-vos que

nunca esquecerei todas as bondades que tendes para comigo.

Devo acabar, é quase uma hora e o senhor de Valmont não tarda.

Castelo de..., 10 de Outubro de 17 * *

CARTA CX

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

" Poderes do céu, eu tinha uma alma para a dor; dai-me outra

para a felicidade." Creio que é assim que se exprime o terno

Saint-preux. Mais bem dotado do que ele, possuo simultaneamente

as duas existências. Sim, minha amiga, sou ao mesmo

tempo muito feliz e muito desgraçado; e visto que lhe dou inteira

confiança, devo-lhe a dupla história das minhas dores e dos

meus prazeres.

Saiba pois que a ingrata devota continua a ser severa para

comigo. Já estou na quarta carta devolvida. Quarta, digo mal;

porque, tendo adivinhado desde a primeira devolução que outras

se lhe seguiriam, e não querendo desperdiçar tempo, tomei

a decisão de escrever os meus queixumes em lugares-comuns, e

de não datar: desde o segundo correio, é sempre a mesma carta

que vai e vem; mudo apenas o sobrescrito. Se a minha bela acabar

como acabam geralmente as belas, e se se enternecer um dia,

197

pelo menos de cansaço, guardará enfim a missiva, e então será a

altura de me pôr em dia. Bem vê que, com este novo género de

correspondência, não posso estar nem mais avançado, nem

mais informado do que no primeiro dia.

Descobri contudo que a volúvel criatura mudou de confidente:

tenho a certeza de que, desde a partida daqui, não veio

nenhuma carta dela para Madame de Volanges, ao passo que já

vieram duas para a velha Rosemonde; e como esta nada nos diz,

como já não abre a boca sobre "a sua querida filha", de quem

antes falava sem cessar, concluí que fora ela quem recebera a

confidência. Presumo que por um lado a necessidade de falar de

mim; e por outro lado a vergonha de expor, perante Madame de

Volanges, um sentimento há tanto tempo renegado, produziram

esta grande revolução. Receio ter perdido com a troca: porque

as mulheres quanto mais velhas, mais ríspidas e severas se tornam.

A primeira dir-lhe-ia mal de mim: mas esta dir-lhe-á ainda

pior do amor; e a sensível e pudibunda dama tem mais terror do

sentimento do que de mim.

A única maneira de saber o que se passa é, como vê, interceptar

a correspondência clandestina. Já dei ordem ao meu criado;

e aguardo a execução de dia para dia. Até lá, só posso agir

ao acaso: assim, há oito dias, revejo inutilmente todos os processos

conhecidos, os dos romances e os das minhas memórias

secretas; não encontro nenhum que convenha às circunstâncias

da aventura ou ao carácter da heroína. O difícil não seria introduzir-me

em casa dela, mesmo de noite, adormecê-la e transformá-la

numa nova Clarisse: mas depois de mais de dois meses de

cuidados e de trabalhos, recorrer a meios que me são estranhos,

arrastar-me servilmente pelo caminho dos outros, e triunfar sem

glória! :.. Não, ela não terá "os prazeres do vício e as honras da

virtude". Não me basta possuí-la, quero que ela se entregue.

Ora, para tal não basta penetrar até junto dela, mas sim fazê-lo

com o seu consentimento; encontrá-la só e na disposição de me

escutar; sobretudo fechar-lhe os olhos quanto ao perigo, porque,

se o vê, saberá vencê-lo ou morrer. Mas quanto melhor sei

o que é preciso fazer, mais reconheço as dificuldades, e ainda

que a minha amiga faça outra vez troça de mim, confesso-lhe

que o meu embaraço aumenta à medida que me ocupo cada vez

mais do caso.

A cabeça ficar-me-ia tonta, creio, sem as felizes distracções

que me dá a nossa comum aluna; é a ela que devo o ter ainda

alguma coisa a fazer que não elegias.

Acredita que a rapariguinha estava de tal modo furiosa, que

se passaram três longos dias antes que a sua carta produzisse

efeito completo? Eis como uma só ideia falsa pode estragar o

mais agradável dos temperamentos!

Enfim; só no sábado é que veio andar à roda de mim, e balbuciar-me

algumas palavras; pronunciadas no entanto tão baixo

e abafadas de tal maneira pela vergonha, que era impossível

198

ouvi-las. Mas o rubor que causaram fez-me adivinhar o sentido.

Até aqui tinha-me mantido sobranceiro: mas amaciado por um

tão agradável arrependimento, consenti em encontrar-me nessa

mesma noite com a linda penitente; e esta graça da minha parte

foi recebida com todo o reconhecimento devido a uma tão grande

mercê.

Como nunca perco de vista os seus projectos e os meus, resolvi

aproveitar a ocasião para conhecer ao certo o valor desta

criança e também para lhe apressar a educação. Mas, para continuar

este trabalho com mais liberdade, tive necessidade de

mudar o local dos nossos encontros; porque um pequeno gabinete,

que separa o quarto da sua aluna do da mãe, não lhe inspirava

suficiente segurança para a deixar manifestar-se à vontade.

Prometera a mim mesmo provocar "inocentemente" algum ruído

susceptível de lhe causar o receio bastante para a decidir a

escolher, de futuro, um asilo mais tranquilizador; ela poupou-me

o trabalho.

A pequena gosta de rir; e, para lhe agradar, decidi-me, nos

intervalos, a contar-lhe todas as aventuras escandalosas que me

passavam pela cabeça; para as tornar mais picantes e prender-lhe

a atenção, atribuí-as todas à Mamã dela, que me deliciei

desta forma a galardoar de vícios e de ridículos.

Não era sem motivo que tinha tomado esta decisão: de facto

não havia melhor maneira de encorajar a tímida aluna e de

lhe inspirar ao mesmo tempo o mais profundo desprezo pela

mãe. Já há muito tinha notado que, se este meio nem sempre é

necessário para seduzir uma rapariga, é indispensável, e muitas

vezes até o mais eficaz, quando a queremos depravar; porque

aquela que não respeita a mãe não se respeitará a si própria:

verdade moral que acho tão útil, que me foi bem fácil fornecer

um exemplo em apoio do preceito.

No entanto, a sua aluna, que não pensava na moral, sufocava

de riso a cada instante; e enfim, uma vez, ia quase rebentando

às gargalhadas. Não tive dificuldade em lhe fazer crer que

tinha sido "um barulho horrível". Fingi um grande medo que

ela facilmente compartilhou. Para que ela se lembrasse bem,

não permiti que o prazer nascesse de novo, e deixei-a três horas

mais cedo que de costume; combinámos também, ao despedir-nos,

que a partir do dia seguinte seria no meu quarto que nos

encontraríamos:

Já aqui a recebi duas vezes; e neste curto intervalo a aprendiza

tornou-se quase tão sabida como o mestre. Sim, na verdade,

ensinei-lhe tudo, até mesmo as complacências! Omiti apenas

as precauções.

Ocupado toda a noite, ganho desta forma o benefício de

dormir uma grande parte do dia; e como não há neste momento

no castelo companhia que me atraia, limito-me a aparecer no

salão durante uma hoca. Tomei mesmo, a partir de hoje, a decisão

de comer no meu quarto, e não tenciono deixá-lo a não ser

199

para pequenos passeios: Estas excentricidades são levadas à

conta do meu estado de saúde. Declarei que estava ligeiramente

indisposto; anunciei também um pouco de febre. Tenho apenas

de falar com uma voz lenta e apagada. Quanto à alteração do

meu rosto, confie na sua aluna. "O amor providenciará."1

* Regnard, Folies Amoureuses.

Ocupo o ócio pensando nos meios de reconquistar à minha

ingrata as vantagens que perdi, e também a escrever uma espécie

de catecismo da depravação para uso da minha pupila. Divirto-me

a designar tudo pelo termo técnico: e rio antecipadamente

da interessante conversa que daqui resultará entre ela e

Gercourt, na noite de núpcias. Nada mais agradável do que a

ingenuidade com que ela se serve já do pouco que sabe desta língua!

Ela não imagina que se possa falar doutra forma. Esta

criança é realmente sedutora! O contraste entre a ingénua candura

e a linguagem descarada não deixa de fazer efeito, e, não

sei porquê, agora só me agradam as coisas extravagantes.

Talvez me abandone demasiado a esta, visto que comprometo

o tempo e a saúde: mas espero que a minha fingida doença,

além de me salvar do tédio do salão, ainda me possa ser de

qualquer utilidade junto da austera devota, cuja virtude de tigre

se alia contudo à doce sensibilidade! Não duvido que já esteja

instruída deste grande acontecimento, e gostava imenso de saber

o que ela pensa; tanto mais que apostaria de bom grado que

não deixará de se atribuir as honras. Regularei o meu estado de

saúde pela impressão que produzir sobre ela.

Ei-la, minha bela amiga, ao corrente dos meus problemas

como se fora eu próprio. Desejo ter em breve notícias mais interessantes

para lhe transmitir, e, peço-lhe que o creia, no prazer

que prometo a mim mesmo, conto muito com a recompensa que

espero de si.

Castelo de..., 11 de Outubro de 17

CARTA CXI

O CONDE DE GERCOURT A MADAME DE VOLANGES

Parece que tudo está tranquilo nesta região, minha senhora;

e esperamos, dum dia para o outro, a licença de voltar a França.

Espero que não duvidareis que desejo sempre com o mesmo

ardor regressar e atar os laços que me deverão unir a vós e a

Mademoiselle de Volanges. No entanto o duque de..., meu

200

primo, a quem sabeis bem que devo obrigações, acaba de me

participar a sua chamada a Nápoles. Manda-me dizer que tenciona

visitar Roma e ver, no caminho, a parte da Itália que lhe

falta conhecer. Exorta-me a acompanhá-lo nessa viagem que

durará aproximadamente seis semanas ou dois meses. Não devo

ocultar-vos que me seria agradável aproveitar esta ocasião, pois

bem vejo que uma vez casado não terei tempo para mais ausências

do que as exigidas pelo serviço. Talvez seja, aliás, mais conveniente

adiar o casamento para o Inverno; pois só então todos

os meus parentes estarão reunidos em Paris, e principalmente o

marquês de..., - a quem devo a esperança de vir a pertencer à

vossa família. Apesar destas considerações, os meus projectos a

este respeito subordinar-se-ão inteiramente aos vossos; e se preferirdes

o que combinámos em primeiro lugar, renunciarei a

estes meus planos. Peço-vos somente que me façais saber o mais

depressa possível as vossas intenções a este respeito. Esperarei a

vossa resposta aqui e só por ela regularei o meu procedimento.

Sou com todo o respeito, minha senhora, e com todos os

sentimentos que convêm a um filho, o vosso muito humilde, etc.

Conde de Gercourt

Bastia, 10 de Outubro de 17

CARTA CXII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

(Ditada)

Só agora recebi, minha querida filha, a vossa carta de 1/11, e

as doces censuras que contém. Confessai que tivestes vontade de

me fazer ainda mais; e que se vos não tivésseis lembrado de que

éreis minha filha, ter-me-íeis ralhado a valer. Teríeis sido no

entanto bem injusta! Era o desejo e a esperança de vos poder

responder eu própria que me faziam adiar todos os dias; e vedes

que ainda hoje sou obrigada a servir-me da mão da minha criada

de quarto. O maldito reumatismo voltou-me; anichou-se

desta vez no braço direito e estou mesmo maneta. Eis de que vos

serve, jovem e fresca como sois, ter uma amiga tão velha! Pagais

pelos meus incómodos.

Logo que as dores me dêem um pouco de descanso, prometo

conversar longamente convosco. Entretanto dir-vos-ei apenas

201

que recebi as vossas duas cartas, que teriam duplicado, se

tal fosse possível, a minha terna amizade por vós; e que nunca

deixarei de compartilhar intensamente tudo o que vos diz respeito.

O meu sobrinho também está um pouco indisposto, mas

sem gravidade, nada de inquietante; um ligeiro incómodo, que,

ao que me parece, lhe afecta mais o espírito do que a saúde.

Quase não o vemos.

O afastamento dele e a vossa partida tiraram a alegria ao

nosso grupo. A pequena Volanges sobretudo não diz uma palavra

e boceja desalmadamente durante todo o dia. Especialmente

de há alguns dias para cá, dá-nos a honra de adormecer profundamente

logo após o jantar.

Adeus, minha querida filha; serei sempre para vós a amiga,

a mãe, e até a irmã, se a avançada idade me permitisse tal título.

Enfim, estou-vos ligada pelos mais ternos sentimentos.

Assinada: Adelaide, em nome de Madame de Rosemonde.

Castelo de.. ., 14 de Outubro de 17* *.

CARTA CXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Creio que devo preveni-lo, Visconde, que começam a falar

de si em Paris; reparam na sua ausência e já se começa a adivinhar

a causa. Assisti ontem a um jantar muito concorrido, onde

se disse positivamente que estava preso na aldeia por um amor

romanesco e infeliz; logo a alegria se pintou no rosto de todos

os invejosos dos seus êxitos e de todas as mulheres que desprezou.

Se me acreditar, não deixará aumentar estes murmúrios

perigosos e virá destruí-los imediatamente com a sua presença.

Pense que, se uma vez deixar perder a ideia de que se lhe não

resiste, em breve sentirá que lhe resistem com efeito mais facilmente;

e que os seus rivais lhe perdem o respeito e ousam combatê-lo:

qual de entre eles se não julga mais forte que a virtude?

Sobretudo pense que, na multidão de mulheres de que se vangloriou,

todas as que não possuiu vão tentar elucidar o público,

enquanto as outras procurarão enganá-lo. Enfim, conte com ser

julgado tão abaixo do seu valor, como até agora o foi acima.

Volte, Visconde, não sacrifique a reputação a um capricho

pueril. Cumpriu todos os nossos planos em relação à pequena

Volanges; quanto à sua Presidente, não será, parece-me, permanecendo

a dez léguas dela que se libertará dessa fantasia. Julga

que ela o irá procurar? Talvez já se se não se lembre de si, ou só

se recorde para se felicitar de o ter humilhado. Ao menos aqui,

poderá achar ocasião para reaparecer com brilho, e bem precisa

202

disso; e mesmo que se obstine na sua ridícula aventura, não vejo

em que o seu regresso o possa prejudicar; antes pelo contrário.

Com efeito, se a sua Presidente o "adora" como tantas vezes

me disse, e tão poucas provou, a sua única consolação e prazer

deve ser agora falar de si, saber o que faz, o que diz, o que pensa,

tudo enfim que lhe diga respeito. Estas misérias tornam-se

importantes em relação às privações que se sofrem. São as migalhas

de pão que caem da mesa do rico: este desdenha-as; mas o

pobre recolhe-as avidamente e alimenta-se delas. Ora, a pobre

Presidente recebe agora todas essas migalhas, e quantas mais

tiver, menos pressa terá em ceder ao apetite do resto.

Para mais, visto que lhe conhece a confidente, não duvidará

que cada carta contenha um pequeno sermão, e tudo o que ela

julga próprio para corroborar a sensatez e fortificar a virtude.

Para quê, pois, deixar a uma recursos para se defender e à outra

para o prejudicar?

Não que eu seja da sua opinião quanto à perda que julga ter

sofrido com a mudança de confidente. Em primeiro lugar,

Madame de Volanges odeia-o, e o ódio é sempre mais engenhoso

e clarividente do que a amizade. A virtude da sua velha tia

não se empregará nem um só instante a denegrir o querido sobrinho;

porque a virtude também tem fraquezas. Para mais os

seus receios partem duma observação absolutamente falsa.

Não é verdade que as mulheres quanto mais velhas, mais

rispidas e severas se tornam. É dos quarenta aos cinquenta anos

que o desespero de ver no rosto fanar-se, a raiva de se sentirem

obrigadas a abandonar as pretensões e prazeres a que estão ainda

presas, tornam quase todas as mulheres azedas e hipócritas.

Precisam desse longo intervalo para fazer por inteiro esse grande

sacrifício: mas uma vez consumado, dividem-se todas em

duas classes.

A mais numerosa é a das mulheres que, nunca tendo tido

mais do que beleza e juventude, caem numa apatia imbecil de

que só acordam por causa do jogo ou de algumas práticas de

devoção; estas são sempre ameaçadoras, muitas vezes impertinentes,

às vezes um pouco intriguistas, mas raramente más.

Nem se pode dizer se essas mulheres são ou não severas: sem

ideias e sem consistência, repetem, sem compreender e indiferentemente,

tudo o que ouvem dizer e conservam-se por si

próprias absolutamente nulas.

A outra classe, muito mais rara, mas verdadeiramente preciosa,

é a das mulheres que, tendo tido um carácter e não desprezando

alimentar a razão, sabem criar-se uma existência

quando a da natureza lhes falta; e tomam o partido de enfeitar o

espírito com os ornatos que dantes empregavam para o corpo.

Estas têm geralmente uma sã maneira de julgar, o espírito ao

mesmo tempo sólido, alegre e gracioso. Substituem as graças

sedutoras por uma bondade que prende, e ainda por uma alegria

cujo encanto aumenta em proporção com a idade: é assim

203

que conseguem aproximar-se de juventude e fazer-se amar por

ela. Mas então, em vez de serem, como o seu amigo diz, rispidas

e severas, o hábito da indulgência, as longas reflexões sobre a

natureza humana, e enfim, as recordações da juventude, os únicos

laços que ainda as prendem à vida, colocá-las-iam talvez

demasiado perto da facilidade.

O que lhe posso dizer é que tendo sempre procurado as senhoras

idosas, de quem cedo achei útil a aprovação, encontrei

muitas para quem me atraía tanto a inclinação como o interesse.

Fico por aqui; porque como o meu amigo agora se inflama

tão depressa e de forma tão moralona, tenho medo que se apaixone

subitamente pela sua velha tia e que vá com ela a sepultar

no túmulo onde afinal o Visconde já vive de há uns tempos a

esta parte. Volto pois ao que me interessa.

Apesar do encantamento em que está com a colegialzinha,

não creio que ela pese qualquer coisa nos seus projectos. Achou-a

à mão de semear, apossou-se dela: ainda bem! Mas não se

trata verdadeiramente duma inclinação. Nem sequer é, vendo

bem, um verdadeiro prazer: o meu amigo possui-lhe apenas o

corpo! Já não falo do coração, pois duvido que se preocupe com

isso: mas nem sequer lhe ocupa o espírito. Não sei se deu conta

disso, mas tenho a prova na última carta que ela me escreveu;

envio-lha para que veja com os seus próprios olhos. Repare que,

quando fala de si, é sempre o senhor de Valmont; que todas as

ideias, mesmo as que lhe faz nascer, conduzem-na sempre a

Danceny e a este não chama senhor, mas simplesmente Danceny.

É assim que ela o distingue de todos os outros; e mesmo

quando se entrega a si, é apenas dele que se torna íntima. Se tal

conquista lhe parece sedutora, se os prazeres que ela oferece o

prendem, é certamente modesto e pouco exigente! Admito que a

guarde para si; entra até nos nossos projectos. Mas acho que

isso não vale qualquer espécie de incómodo; deveríamos ter

também algum domínio sobre ela e não permitir, por exemplo,

que se aproxime de Danceny senão depois de lho termos feito

esquecer um pouco.

Antes de deixar de me ocupar de si, para chegar à minha

vez, quero ainda dizer-lhe que esse processo de se desculpar com

uma doença me parece demasiado conhecido e usado. De facto,

Visconde, que falta de imaginação! Também me repito às vezes,

como irá ter ocasião de ver; mas procuro variar os pormenores,

e, o que é mais importante, o êxito dá-me razão. Vou tentar

obter mais um e correr uma nova aventura. Concordo que esta

não será uma distracção, e morro de tédio.

Não sei porquê, mas desde a aventura de Prévan que Belleroche

se me tornou insuportável. Está de tal forma atencioso,

terno e cheio de veneração, que já não posso mais. A cólera dele,

no primeiro momento, agradou-me; no entanto tive de o

* Ver Carta CIX.

204

acalmar, porque deixá-lo agir seria comprometer-me: não haveria

maneira de o chamar à razão. Decidi pois mostrar-lhe mais

amor para pôr ponto final no assunto, mas ele tomou-me a sério,

e desde essa altura exaspera-me com o seu encantamento

eterno. Noto principalmente a insultante confiança que vai

depositando em mim e a segurança com que me considera sua

para sempre. Sinto-me verdadeiramente humilhada. Deve apreciar-me

bem pouco, para se julgar com bastante valor para me

prender! Pois não me dizia ultimamente que eu nunca amara

ninguém além dele? Oh, naquele momento foi preciso apelar

para toda a minha prudência para o não desiludir, contando-lhe

a verdade. Eis mais um cavalheiro que pretende direito exclusivo!

Concordo que é elegante e tem um belo rosto: mas no fundo

é apenas um recruta nestas coisas do amor. Chegou finalmente

o momento, é preciso que nos separemos.

Há já quinze dias que experimento, e tentei sucessivamente

a frieza, o mau humor, as discussões; mas o sujeito é tenaz e não

larga a presa facilmente: é preciso portanto tomar uma decisão

mais violenta; por isso levo-o para a minha casa de campo. Partimos

depois de amanhã. Irão connosco apenas algumas pessoas

desinteressadas e pouco perspicazes, e teremos quase tanta liberdade

como se estivéssemos sós. Então, sobrecarregá-lo-ei a

tal ponto de amor e carícias, viveremos de tal modo unicamente

um para o outro, que aposto que ele desejará ainda mais do que

eu o fim desta estada, que agora considera uma tão grande felicidade;

se não regressar mais farto de mim do que eu já estou

dele, poderá dizer, caro Visconde, que não percebo mais disto

que o meu amigo.

O pretexto para esta retirada é ter de me ocupar seriamente

com o meu processo, que irá finalmente a tribunal no começo

do Inverno. O que sem dúvida me convém, porque é muito desagradável

ter assim toda a fortuna em perigo. Não chego a estar

inquieta: primeiro porque a razão está do meu lado; todos

os meus advogados mo asseguram. E mesmo que assim não fosse,

era preciso ser bem inábil se não soubesse ganhar um processo

em que tenho por adversários apenas menores e o velho tutor!

Mas como é preciso não descurar nada num assunto tão

importante, terei efectivamente comigo dois advogados. Parece-lhe

triste esta viagem? No entanto, se ela me fizer ganhar o

processo e perder Belleroche, não lamentarei o meu tempo.

E agora, Visconde, adivinhe-lhe o sucessor; aposto cem contra um.

Ora! Como se eu não soubesse já que nunca acerta em

nada... Pois bem, é Danceny. Admirado? Porque, enfim, ainda

não estou reduzida à educação de crianças! Mas este merece que

se lhe faça excepção; tem todas as graças da juventude e de forma

nenhuma a frivolidade. A sua grande reserva é de molde a

afastar todas as suspeitas, e não se pode imaginar nada de mais

agradável na intimidade. Não que tenhamos chegado já a vias

205

de facto, por enquanto sou apenas a confidente; mas sob o véu

da amizade, creio ver-lhe uma grande simpatia por mim, e sinto

que vou retribuir. Seria na verdade grande lástima que tanto espírito

e delicadeza se fossem sacrificar e embotar junto dessa

imbecil da Volanges! Espero que ele se engane quando julga

amá-la: ela está tão longe de o merecer! Não que tenha ciúmes

dela; mas seria um crime e quero salvar Danceny. Peço-lhe pois,

Visconde: evite que durante a minha viagem ele se possa encontrar

com a sua Cecília, como tem ainda o mau hábito de a chamar.

Um primeiro amor tem sempre maior poder do que julgamos,

e não respondo por nada se ele a tornasse a ver agora; sobretudo

durante a minha ausência. Depois do meu regresso, tratarei

de tudo e responsabilizo-me pelo êxito.

Ainda pensei levá-lo comigo, mas sacrifiquei este plano à

minha habitual prudência; e depois tive medo que percebesse

qualquer coisa entre mim e Belleroche; ficaria desesperada se ele

tivesse a menor ideia do que se passa. Quero pelo menos que me

imagine pura e sem mácula; enfim, tal como seria preciso ser

para o merecer.

Paris, 15 de Outubro de 17* *

CARTA CXIV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Minha querida amiga, cedo a uma viva inquietação; e sem

saber se estareis em estado de me responder, não posso impedir-me

de vos interrogar. O estado do senhor de Valmont, que

vós considerais "sem perigo", não me deixou tão tranquila

como pareceis estar. Não é raro que a melancolia e o desejo de

solidão sejam sintomas precursores de alguma grave doença; os

sofrimentos do corpo, como os do espírito, fazem desejar o isolamento;

e muitas vezes censuramos o mau humor de quem

deveríamos antes lamentar os males.

Parece-me que ele devia pelo menos consultar alguém.

Como é que estando também tão doente, não tendes um médico

ao pé de vós? O meu, que já hoje vi, e não vos esconderei que o

consultei indirectamente, é de opinião que nas pessoas activas

essa espécie de apatia súbita não deve ser deixada sem vigilância;

e acentuou que as doenças só cedem quando tratadas a

tempo. Por que deixar correr esse risco a alguém que vos é tão

caro?

O que faz aumentar a minha inquietação é que há quatro

dias não recebo notícias dele. Meu Deus! Não me estareis a

enganar quanto ao seu estado? Porque teria deixado de me escrever

206

tão de repente? Se fosse somente o efeito da minha teimosia

em lhe devolver as cartas, creio que ele teria tomado mais

cedo essa decisão. Enfim, mesmo sem crer em pressentimentos,

desde há uns dias pesa sobre mim uma tristeza que me assusta.

Ah, talvez eu esteja na véspera da maior das infelicidades!

Não podeis calcular, e tenho vergonha de vo-lo contar,

quanto me custa não receber essas mesmas cartas, que afinal me

recusaria a ler. Tinha ao menos a certeza de que ainda pensava

em mim, e tocava qualquer coisa vinda dele. Não abri essas cartas,

mas chorava olhando-as: as minhas lágrimas eram mais

doces e mais fáceis; e só elas dissipavam um pouco a constante

opressão que sinto desde o meu regresso. Suplico-vos, minha

indulgente amiga,escrevei-me assim que puderdes; e entretanto

enviai-me todos os dias notícias vossas e dele.

Apercebo-me de que mal escrevi uma palavra em especial

para vós: mas conheceis os meus sentimentos, a dedicação sem

reservas, o terno reconhecimento que dedico à vossa amizade;

perdoareis a perturbação em que estou, devida às penas mortais,

ao terrível tormento de recear males de que sou talvez a

causadora. Meu Deus! Esta ideia desesperante persegue-me e

dilacera-me o coração; faltava-me esta infelicidade, e sinto que

estou destinada a sofrê-las todas.

Adeus, minha querida amiga: não me falteis com a vossa

amizade, e lamentai-me. Receberei hoje carta vossa?

Paris, 16 de Outubro de 1 7* *

CARTA CXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É inconcebível, minha bela amiga, como as pessoas deixam

de se compreender assim que se afastam. Enquanto estive ao pé

de si, .tivemos sempre as mesmas reacções, a mesma maneira de

ver; e porque já não vos vemos há três meses, não chegamos a

acordo sobre nada. Quem tem a culpa? Certamente a Marquesa

não hesitaria em responder: mas eu, mais prudente, ou mais delicado,

prefiro calar-me. Responderei apenas à sua carta, e continuarei

a contar-lhe o que faço.

Em primeiro lugar, quero agradecer-lhe o conselho que me

dá acerca dos boatos que correm a meu respeito; mas não me

inquieto por enquanto; tenha a certeza de os fazer cessar em

breve. Esteja tranquila; reaparecerei mais célebre do que nunca

e cada vez mais digno de si.

Espero até que venham a atribuir qualquer mérito à aventura

da pequena Volanges, que despreza tão facilmente: como se

207

não fosse nada roubar, numa noite, uma rapariga ao bem-amado:

em seguida servir-se dela como de coisa sua, e sem

qualquer embaraço; obter dela aquilo que nem sequer se ousa

exigir a todas as profissionais, e isto, sem a perturbar no seu

terno amor, sem a tornar inconstante, nem mesmo infiel - porque,

com efeito, não lhe ocupo apenas a cabeça -, de maneira

que, depois de me passar a fantasia, a colocarei de novo nos

braços do bem-amado, sem que ela tenha dado por nada. Será

isto um feito vulgar? E, além disto, creia-me, uma vez saída das

minhas mãos, os princípios que lhe revelei continuarão a desenvolver-se;

e profetizo que a tímida aluna se lançará em breve em

largos voos, capazes de honrarem o mestre.

No entanto, se alguém preferir o género heróico, mostrarei a

Presidente, esse modelo de todas as virtudes, respeitada mesmo

pelos mais libertinos, a tal ponto que se tinha perdido até a ideia

de a atacar! Mostrá-la-ei, digo, esquecida dos deveres e da virtude,

sacrificando reputação e dois anos de prudência, para correr

atrás da felicidade de me agradar, para se embriagar com a de

me querer bem; julgando-se paga de tantos sacrifícios, com uma

palavra, um olhar, que nem sequer obterá sempre. Farei ainda

mais, abandoná-la-ei; e ou não conheço esta mulher ou não terei

sucessor. Ela resistirá à necessidade de consolação, ao hábito

do prazer, ao desejo de vingança. Enfim, terá vivido apenas

para mim; e quer a sua vida seja longa ou não, terei sido o único

a abrir e a fechar a barreira. Realizado este triunfo, direi aos

meus rivais: "Eis a minha obra, e procurem um segundo exemplo

em todo o século!"

Vai-me perguntar donde me vem hoje este excesso de confiança?

É que desde há oito dias sou confidente da minha bela;

ela não me diz os seus segredos, mas eu surpreendo-lhos. Duas

cartas dela para Madame de Rosemonde bastaram para me instruir,

e só lerei as outras por curiosidade. Aproximar-me dela

será mais do que suficiente para alcançar o êxito, e os meios

para tal já os encontrei. Vou imediatamente pô-los em acção.

Está curiosa, suponho? Mas não, para a castigar de não

acreditar nas minhas invenções, não as saberá. Merecia que lhe

retirasse radicalmente a minha confiança, pelo menos nesta

aventura; e, com efeito, sem o doce prémio atribuído por si ao

meu bom sucesso, não lhe voltaria a falar nela. Bem vê que estou

zangado. No entanto, na esperança de que se venha a corrigir,

limitar-me-ei a esta ligeira punição; e, regressando à indulgência,

esqueço por uns momentos os meus grandes projectos,

para conversar consigo acerca dos seus.

Ei-la portanto no campo, enfadonho como o sentimento e

triste como a fidelidade! E esse pobre Belleroche! Não se contenta

em o obrigar a beber a água do esquecimento, necessita

ainda de o atormentar! Como está ele? Suporta bem as náuseas

do amor? Divertir-me-ia se ele ainda por cima se prendesse mais

a si; teria curiosidade de ver que remédio mais eficaz conseguireis

208

empregar. Lamento-a de facto por ter sido obrigada a recorrer

a esse. Só uma vez, na minha vida, utilizei o amor como processo.

Tinha certamente um forte motivo, visto que se tratava

da Condessa de...; e vinte vezes, nos braços dela, tentei dizer-lhe:

"Minha senhora, renuncio ao lugar,que solicito, e permita-me

que abandone aquele que ocupo." E também, de todas as

mulheres que possuí, a única de quem tenho verdadeiramente

prazer em dizer mal.

Quanto ao seu motivo, acho-o, para dizer a verdade, dum

ridículo raro; e tinha razão em crer que não conseguiria adivinhar

o sucessor. Pois quê? É por Danceny que está com esse trabalho

todo? Ah! Cara amiga, deixe-o lá adorar a sua virtuosa

Cecília e não se meta nessas brincadeiras de crianças. Deixe-as

educarem-se junto das criadas, ou entregarem-se a pequenos

jogos inocentes umas com as outras. Para que se vai ocupar

dum noviço que não saberá nem possuí-la nem deixá-la, e a

quem será preciso ensinar tudo? Digo-lhe muito a sério, desaprovo

a escolha, e por muito secreta que venha a ficar, humilhá-la-á

pelo menos a meus olhos e perante a sua consciência.

Diz que começa a tomar interesse por ele: oca vamos, vamos,

engana-se certamente, e creio até que já descobri a causa

do seu erro. O seu fastio por Belleroche veio num tempo de escassez

e, não lhe oferecendo Paris por onde escolher, as suas

ideias, sempre demasiado vivas, concentraram-se sobre o primeiro

objecto que lhe apareceu. Mas pense que, no regresso,

poderá escolher entre mil; e se enfim receia cair na inacção

adiando, ofereço-me para a distrair.

Daqui até ao seu regresso, os meus grandes afazeres terão

terminado duma maneira ou doutra; e, certamente, nem a pequena

Volanges, nem a própria Presidente me ocuparão de tal

modo que não possa estar ao pé de si sempre que a minha amiga

o desejar. Talvez mesmo que, daqui até lá, já eu tenha reposto a

rapariguinha nas mãos do seu discreto apaixonado. Sem concordar,

por mais que a Marquesa diga, que não seja um gozo

atraente como tenho em projecto que ela guarde de mim toda a

vida uma ideia superior à de todos os outros homens, lancei-me

com ela num ritmo que não poderei manter por muito tempo

sem prejudicar a saúde; e já apenas me prende a ela o interesse

devido aos assuntos de família...

Compreende-me, não é verdade?... É que espero uma segunda

época para confirmar a minha esperança, e assegurar-me

de que realizei plenamente os meus projectos. Sim, bela amiga,

já possuo um indício de que o marido da minha aluna não correrá

o risco de morrer sem posteridade; e que o futuro chefe da

casa de Gercourt será apenas um rebento da de Valmont. Mas

deixe-me terminar segundo a minha fantasia esta aventura que

encetei a seu pedido. Pense que, se fizer de Danceny um inconstante,

tirará todo o picante à história. Considere finalmente

que, oferecendo-me para o representar junto de si, tenho, parece-me,

209

alguns direitos à preferência.

Como estou certo dela, não receei contrariar os seus objectivos,

concorrendo eu próprio para aumentar a terna paixão do

discreto apaixonado pelo primeiro e digno objecto da sua escolha.

Tendo ontem encontrado a sua aluna ocupada em lhe escrever,

e tendo-a primeiro arrancado desta doce ocupação para

outra mais doce ainda depois para ler a carta; e como a achei

fria e constrangida, fiz-lhe sentir que não era assim que ela consolaria

o seu namorado, e decidia-a a escrever outra ditada por

mim; na qual, imitando o melhor que pude o seu tom disparatado,

tratei de alimentar o amor do jovem com uma esperança

mais certa. A pequena estava toda encantada, disse-me, por se

ver a escrever tão bem, e daqui em diante serei eu o encarregado

da correspondência. Que não terei eu sido para Danceny? Fui,

sucessivamente, amigo, confiante, rival e amante! Ainda neste

momento, presto-lhe o serviço de o salvar dos perigosos tentáculos

da minha amiga. Sim, sem dúvida, perigosos; porque possuí-la

e perdê-la, é comprar um momento de felicidade por uma

eternidade de saudades.

Adeus, bela amiga; tenha a coragem de liquidar Belleroche

o mais depressa que puder. Deixe Danceny sossegado, e prepare-se

para me reencontrar e me dar de novo os deliciosos prazeres

da nossa primeira ligação.

P. S. - Felicito-a pela próxima decisão do grande processo, e

agradar-me-ia imenso que esse feliz acontecimento se desse sob

o meu reinado.

Castelo de..., 19 de Outubro de 17* "

CARTA CXVI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Madame de Merteuil partiu esta manhã para o campo; assim,

minha encantadora Cecília, eis-me privado do único prazer

que me restava na sua ausência, o de falar de si à nossa amiga.

Permitiu-me há pouco tempo que lhe desse este título; apressei-me

a servi-me dele, pois parecia-me que assim me aproximava

mais de si. Meu Deus, como essa mulher é amável! E que encanto

lisonjeiro ela sabe dar à amizade! Na Marquesa parece que

este belo sentimento se embeleza e se fortifica com tudo o que

ela recusa ao amor. Se soubesse como ela gosta de si e como

gosta de me ouvir falar a seu respeito!... É sem dúvida isso o

que me prende a ela. Que felicidade poder viver unicamente

para ambas, passar incessantemente das delícias do amor à

210

doçura da amizade, consagrar-lhes toda a minha existência, ser

de qualquer forma o ponto de encontro da vossa recíproca afeição;

e sentir sempre que, ocupando-me com a felicidade duma,

trabalho igualmente para a da outra! Tem o dever de gostar

muito, muito, encantadora amiga, desta mulher adorável. A

afeição que tenho por ela, deve a Cecília dar-lhe ainda mais valor,

compartilhando-a comigo. Depois de ter experimentado o

encanto da amizade, desejo que o conheça também. Os prazeres

que não compartilhamos juntos, parece-me que os gozo apenas

por metade. Sim, minha Cecília, gostaria de cercar o seu coração

dos mais doces sentimentos; que cada uma das suas palpitações

a fizesse experimentar uma sensação de felicidade; e julgaria

ainda retribuir-lhe apenas uma parte da felicidade que receberia

de si.

Por que é que estes encantadores projectos são apenas uma

quimera da minha imaginação, e a realidade não me oferece senão

privações dolorosas e indefinidas? A esperança que me tinha

dado de nos vermos nesse castelo, compreendo que é preciso

renunciar a ela. Só me resta a consolação de me persuadir de

que na realidade tal lhe não é possível. E esquece-se de mo dizer,

de chorar comigo! Já por duas vezes as minhas queixas a este

respeito ficaram sem resposta. Ah! Cecília! Cecília! Creio que

me tem amor com todas as forças da sua alma, mas a sua alma

não é ardente como a minha! Por que não me cabe a mim afastar

os obstáculos? Por que não são os meus interesses que devo

proteger, em vez dos seus? Em breve lhe provaria que nada é

impossível ao amor.

Também não me informa quando deve terminar esta cruel

ausência. Ao menos aqui, ver-nos-íamos algumas vezes. Os seus

olhos maravilhosos reanimariam a minha alma abatida; a enternecedora

expressão deles tranquilizaria o meu coração, que

algumas vezes bem o precisa. Perdão, minha Cecília; este receio

não é uma suspeita. Acredito no seu amor, na sua constância.

Ah, muito infeliz seria se duvidasse. Mas tantos obstáculos, e

sempre renovados! Minha amiga, estou triste, muito triste. Parece

que a partida de Madame de Merteuil avivou em mim o

sentimento de todas as minhas dores.

Adeus, Cecília; adeus, minha bem-amada. Pense que o seu

amado se aflige, e que está na sua mão fazê-lo feliz.

Paris, 17 de Outubro de 17* *

CARTA CXVII

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

211

(Ditada por Valmont)

Acredita pois, meu bom amigo, que é preciso censurar-me

para eu estar triste, quando sei que se aflige? E duvida que sofra

também por todas as suas dores? Compartilho consigo mesmo

as que lhe causo voluntariamente; e ainda por cima me entristeço

por ver que não me faz justiça. Oh! Isso não está certo. Bem

vejo o que o aborrece; é que nas duas últimas vezes em que me

pediu para vir aqui, nada lhe respondi a esse respeito; mas será

essa resposta tão fácil de dar? Julga que não sei que o que deseja

não me fica bem? E no entanto, se me é tão penoso recusar de

longe, que seria se estivesse presente? E depois, por o ter querido

consolar um momento, ficaria infeliz toda a minha vida.

Repare, nada lhe escondo por minha parte: eis as minhas

razões; julgue agora por si. Teria talvez feito o que quer se não

fosse o que lhe contei, que o senhor de Gercourt, causador de

todas as nossas dores, não chegará tão cedo; e que, como, de há

um tempo para cá, a Mamã me testemunha muito mais amizade

e eu, pelo lado, a acarinho quanto posso, nem sei o que não será

possível obtermos dela. E se pudermos ser felizes sem que eu

nada tenha a censurar-me, não será muito melhor? A acreditar

no que me dizem, os homens gostam menos das suas mulheres

quando elas os amaram muito antes de o serem. É esse temor

que me contém ainda mais que tudo o resto. Meu amigo, não

está seguro do meu coração, e não será sempre tempo?

Escute, prometo-lhe que, se não puder evitar a infelicidade

de casar com esse senhor de Gercourt, que já tanto odeio mesmo

antes de o conhecer, nada me impedirá depois de me dedicar

a si tanto quanto puder e de o amar acima de tudo. Como só me

interessa ser amada por si, e saberá bem que se procedo mal não

é por minha culpa, nada mais me importará; contanto que me

prometa amar-me sempre tanto como agora. Mas, meu amigo,

até lá, deixe-me continuar a proceder assim; e não insista mais

numa coisa que tenho razões para não fazer, e no entanto me

penaliza recusar-lhe.

Gostaria também que o senhor de Valmont não fosse tão

solícito por si; isso torna-me ainda mais triste Oh! Tem ali um

grande amigo, asseguro-lhe! Tudo o que faria se aqui estivesse,

ele o faz. Mas adeus, querido amigo; comecei a escrever-lhe

demasiado tarde e passei nesta tarefa uma parte da noite. Vou-me

deitar e recuperar o tempo perdido. Beijo-o, mas não me

ralhe mais.

Castelo de..., 18 de Outubro de 17* *

212

CARTA CXVIII

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Se acreditar no calendário, adorável amiga, há apenas dois

dias que estais ausente; mas, se acreditar no meu coração, há

dois séculos. Ora, sei-o por vós, é sempre no coração que devemos

acreditar; é pois já tempo que regresseis, todos os vossos

assuntos devem estar mais que tratados. Como quereis que me

interesse pelo vosso processo, se, perdido ou ganho, devo do

mesmo modo pagar-lhe as custas pelo tédio da vossa ausência?

Oh! Que vontade eu tenho de ralhar! E como é triste, com um

tão belo pretexto para estar zangado, não ter o direito de o mostrar!

Não vos parece que é uma verdadeira infidelidade, uma

negra traição, deixar este amigo longe de vós, depois de o ter

habituado à vossa presença? Por mais que consulteis os advogados,

nunca encontrarão justificação para este mau procedimento;

e, de resto, essa gente só dá razões, e não bastam razões para

responder aos sentimentos.

Por mim, tanto me assegurastes que era a razão que vos

ordenava essa viagem, que me indispusestes com ela. Já não a

quero ouvir; mesmo que me ordene que vos esqueça. E no

entanto essa razão é bem razoável; e na verdade não seria tão difícil

como pensais. Bastaria apenas desabituar-me de pensar em

vós: e nada aqui, asseguro-vos, me faria recordar de vós.

As nossas mais belas mulheres, as que são consideradas

mais desejáveis, estão tão longe de vós que só dariam uma pálida

ideia da vossa beleza. Creio mesmo que com olhos mais experimentados,

quanto mais parecidas convosco as julgamos a

princípio, maiores diferenças se acham depois; por mais que

façam, por mais que empreguem tudo o que sabem, falta-lhes

sempre o serem vós, e é aí que reside positivamente o encanto.

Infelizmente, quando os dias são longos, e se está desocupado,

sonha-se, constroem-se castelos de areia, inventam-se quimeras;

pouco a pouco a imaginação exalta-se: quer-se embelezar a

obra, junta-se tudo o que pode agradar, atinge-se por fim a perfeição;

e quando aqui se chega, o retrato conduz-nos de novo ao

modelo, e fica-se espantado por ver que afinal não se fazia outra

coisa senão pensar em vós.

Neste mesmo momento, sou ainda vítima dum erro idêntico.

Pensais talvez que foi para me ocupar de vós que me pus a

escrever-vos? Nada disso: foi pelo contrário, para vos esquecer.

Tinha cem coisas a dizer-vos, de que não éreis o objecto, e que,

como o sabeis, me interessam vivamente; foi contudo destas que

acabei por me desviar. Desde quando o encanto da amizade

suplanta o do amor? Ah! Se eu observasse melhor, talvez tivesse

uma pequena censura a fazer-lhe! Mas chiu! Esqueçamos esta

213

ligeira falta com medo de nela recair; e que a minha própria

amiga o ignore.

Também, porque não estais aqui presente para me responder,

para me conduzir ao bom caminho se me perco, para me

falar da minha Cecília, para aumentar, se é possível, a felicidade

que experimento ao amá-la, com a ideia tão doce ao meu coração

de que é a vossa amiga que amo? Sim, confesso, o amor que

ela me inspira tornou-se-me ainda mais precioso, desde que tivestes

a bondade de ser minha confidente. Gosto tanto de vos

abrir o coração, de ocupar o vosso com os meus sentimentos, de

os depositar nele sem reserva! Parece-me que os acarinho melhor

desde que vos dignastes acolhê-los; e depois, olhando-vos,

digo para comigo: "É nela que está guardada toda a minha felicidade.

Nada tenho de novo a comunicar-vos sobre a minha situação.

A última carta que recebi dela aumenta e confirma a minha

esperança, mas retarda-a ainda. No entanto as razões dela são

tão ternas e tão honestas, que não posso nem censurá-la nem

queixar-me. Talvez não vos seja possível compreender muito

bem o que vos digo; mas porque não estais aqui? Conquanto se

diga tudo à amiga, nem tudo se ousa escrever. Os segredos do

amor, sobretudo, são tão delicados que não é possível confidenciá-los

de qualquer maneira. Se algumas vezes permitimos que

se nos escapem, é preciso não os perder de vista e, de certo

modo, vê-los entrar no seu novo asilo. Ah, regressai pois, adorável

amiga; bem vedes que o vosso regresso é necessário. Esquecei

finalmente as mil razões que vos retêm onde vos encontrais

ou então dai-me uma que me ensine a viver onde não estais.

Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 19 de Outubro de 17* *

CARTA CXIX

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Se bem que ainda sofra muito, querida amiga, tento no entanto

escrever-vos eu própria, a fim de poder falar do que vos

interessa. O meu sobrinho continua na sua misantropia. Manda

regularmente saber notícias minhas todos os dias; mas nem uma

única vez veio ele próprio informar-se, se bem que lho tivesse

pedido: de forma que não o vejo mais do que se ele estivesse em

Paris. Encontrei-o no entanto esta manhã, onde menos o esperava.

Foi na capela, aonde desci pela primeira vez depois da minha

dolorosa doença. Soube hoje que há quatro dias ele vai regularmente

ouvir missa. Deus queira que isto dure!

Quando entrei, dirigiu-se-me e felicitou-me afectuosamente

pelas minhas melhoras. Como a missa começasse, abreviei a

214

conversa que tencionava retomar depois, mas desapareceu antes

que o pudesse encontrar. Não vos esconderei que o achei um

pouco mudado. Mas, querida filha, não me façais arrepender da

confiança na vossa sensatez com inquietações demasiado vivas;

e sobretudo podeis estar certa de que preferiria afligir-vos a

enganar-vos.

Se o meu sobrinho continuar a evitar-me, tomarei a decisão,

assim que estiver melhor, de o visitar no seu quarto e tratarei de

adivinhar a causa desta singular mania, que creio bem tenha

algo a ver convosco. Informar-vos-ei do que tiver sabido. Deixo-vos,

já não posso mexer os dedos: e além disso, se a Adelaide

soubesse que escrevi, ralhar-me-ia toda a noite. Adeus, querida

amiga.

Castelo de..., 20 de Outubro de 17* *

CARTA CXX

O VISCONDE DE VALMONT AO PADRE ANSELMO

(Bernardo do convento da Rua Saint-Honoré)

Não tenho a honra de ser conhecido por vós, senhor: mas

sei da inteira confiança que em vós tem a senhora de Tourvel e

sei, além disso, quanto essa confiança é dignamente merecida.

Creio portanto poder, sem ser indiscreto, dirigir-me a vós, para

obter um favor essencial, verdadeiramente digno do vosso santo

mister, e no qual o interesse da senhora de Tourvel se encontra

aliado ao meu.

Tenho em meu poder papéis importantes que lhe dizem respeito,

que não podem ser confiados a ninguém e que não quero

nem devo entregar senão nas próprias mãos dela. Não tenho

maneira de a informar disto, porque certas razões, que talvez

conheçais por ela, mas que não me julgo autorizado a comunicar-vos,

a levaram a tomar a decisão de recusar toda a correspondência

comigo: decisão que hoje voluntariamente confesso

não poder censurar, visto que ela não podia prever acontecimentos

que eu próprio estava bem longe de esperar e que apenas

foram possíveis pela força sobre-humana que é forçoso reconhecer

neles.

Peço-vos, pois, senhor, vos digneis informá-la das minhas

novas resoluções, e pedir-lhe da minha parte uma entrevista

particular, durante a qual possa, pelo menos em parte, reparar

os erros com as desculpas; e, com este último sacrifício, destruir

a seus olhos os únicos vestígios ainda existentes dum erro ou

duma falta que me tornou culpado para com ela.

Só após esta expiação preliminar ousarei depor a vossos pés

215

a humilhante confissão das minhas imensas loucuras; e implorar

a vossa mediação para uma reconciliação bem mais importante

ainda, e infelizmente mais difícil. Posso contar, senhor,

que não me recusareis as vossas atenções, tão necessárias e tão

preciosas? E que vos dignareis encorajar a minha fraqueza e

guiar os meus passos num caminho novo que desejo sinceramente

seguir, mas que confesso, corando, não conhecer ainda?

Espero a vossa resposta com a impaciência do arrependido

que deseja reparar o mal feito, e peço-vos que me acrediteis tão

reconhecido quão venerador,

Vosso muito humilde, etc.

P. S. - Autorizo-vos, senhor, caso o julgueis conveniente,

a comunicar esta carta por inteiro a Madame de Tourvel, a

quem me considerarei toda a vida no dever de respeitar e em

quem não deixarei jamais de venerar aquela de quem o Céu se

serviu para reconduzir a minha alma à virtude, por meio da tocante

visão da sua.

Castelo de..., 22 de Outubro de 17*.

CARTA CXXI

A MARQUESA DE MARTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY

Recebi a vossa carta, meu jovem amigo; mas antes de vos

agradecer é preciso que vos ralhe e vos previna de que, se não

vos corrigirdes, não obtereis resposta para a próxima vez. Se

quereis ter a minha confiança, abandonai pois esse tom galanteador,

que é apenas gíria do amor, desde que não seja a expressão

dele. É esse o estilo da amizade? Não, meu amigo, cada sentimento

tem a linguagem que lhe é peculiar; servir-se de outra, é

disfarçar o pensamento que se exprime. Bem sei que as mulheres

vulgares nada entendem do que se lhes diz se não for traduzido,

de qualquer maneira, na gíria do costume; mas julgava merecer,

confesso-o, que me distinguísseis delas. Estou verdadeiramente

zangada, talvez mais do que deveria, por me terdes avaliado

mal.

Encontrareis pois na minha carta tudo o que falta na vossa:

franqueza e simplicidade. Dir-vos-ei de boa vontade, por exemplo,

que teria um grande prazer em vos ver, e que estou contrariada

por só ter à minha volta pessoas que me aborrecem, em

vez de outras que me agradam; mas vós, a esta mesma frase,

traduzi-la-eis assim: ensinai-me a viver onde não estais; de

maneira que quando estiverdes, suponho, junto da vossa amada,

não vos sentiríeis bem se eu não estivesse presente como terceiro

216

elemento. Que pena! E essas mulheres, a quem falta sempre

serem eu, achais por acaso que isso também falta à vossa

Cecília? Eis no entanto aonde conduz uma linguagem que, pelo

abuso que dela se faz hoje em dia, está ainda a baixo da gíria

dos cumprimentos, e se transforma cada vez mais num simples

protocolo em que se acredita tanto como no "muito-humilde-servidor" !

Meu amigo, quando me escreverdes, que seja para me dizer

a vossa maneira de pensar e sentir, e não para me enviar frases

que encontrarei, sem precisar de vós, mais ou menos bem ditas

no romance em moda. Espero que não vos zangareis com o que

vos digo, mesmo que verifiqueis um pouco de mau humor; porque

não nego que o tenha: mas para evitar até a suspeita do defeito

que vos censuro, não vos direi que este mau humor seja

talvez um pouco aumentado pelo afastamento em que me encontro

de vós. Parece-me afinal de contas que valeis mais que

um processo e dois advogados, e talvez até do que o atencioso

Belleroche.

Vede como em vez de vos desolardes com a minha ausência,

vos deveríeis felicitar; porque nunca vos tinha feito um tão belo

elogio. Creio que o exemplo me contagia e que desejo também

dizer-vos galanteios: mas não, prefiro continuar na minha franqueza;

é pois apenas ela que vos assegura da terna amizade que

tenho por vós, e do interesse que ela me inspira. É maravilhoso

ter um jovem amigo cujo coração está ocupado junto de outra.

Não é o sistema de todas as mulheres; mas é o meu. Parece-me

que nos entregamos com mais prazer a um sentimento do qual

nada se pode ter a recear: foi por isso que desde muito cedo passei

convosco ao papel de confidente. Mas escolhei as vossas

amadas tão jovens, que pela primeira vez me apercebi de que

começo a envelhecer: preparai-vos assim para uma longa carreira

de constâncias, e sinceramente desejo que seja recíproca.

Tendes razão em vos submeterdes às razões ternas e honestas

que, segundo dizeis, retardam a vossa felicidade. Uma defesa

prolongada é o único mérito que resta às que não resistem sempre;

e aquilo que eu acharia imperdoável em qualquer outra,

excepto numa criança como a pequena Volanges, seria o não

saber evitar um perigo, de que já foi suficientemente advertida

pela confissão que ela própria fez do seu amor. Vós, os homens,

não avaliais o que é a virtude, e quanto custa sacrificá-la! Mas

por pouco que uma mulher raciocine, ela deve saber que independentemente

da falta que comete, um momento de fraqueza é

para ela a maior das infelicidades; e não percebo como pode

haver alguma que se deixe conquistar, desde que tenha um

momento para reflectir.

Não deveis combater esta ideia, porque ela é que me prende

principalmente a vós. Salvar-me-eis dos perigos do amor; e se

bem que até aqui tenha sabido defender-me sem vós, consinto

em estar-vos reconhecida por tal, e amar-vos-ei mais e melhor.

E após isto, caro Cavaleiro, peço que Deus vos tenha na Sua

217

santa e digna guarda.

Castelo de. . ., 22 de Outubro de 17*

CARTA CXXII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Esperava, querida filha, poder finalmente acalmar as vossas

inquietações; e vejo com pesar que vou pelo contrário aumentá-las

de novo. Sossegai, no entanto; o meu sobrinho não está

em perigo; não se pode mesmo dizer que esteja verdadeiramente

doente. Mas passa-se certamente qualquer coisa de extraordinário

nele. Não compreendo absolutamente nada; mas saí do

quarto dele com um sentimento de tristeza, talvez até de medo,

que me censuro de vos fazer compartilhar, e acerca do qual não

posso no entanto impedir-me de conversar convosco. Eis o que

se passou: podeis estar certa que sou fiel, porque mesmo que eu

viva ainda outros oitenta anos, não esquecerei a impressão que

me fez essa cena tão triste.

Fui pois esta manhã aos aposentos do meu sobrinho: encontrei-o

a escrever, e cercado por uma multidão de montes de papéis,

que pareciam ser o objecto do seu trabalho. Estava de tal

forma entretido, que já eu estava no meio do quarto, ainda ele

não tinha voltado a cabeça para saber quem entrara. Assim que

me viu, notei que enquanto se levantava se esforçava por dar

uma certa compostura ao rosto, e talvez tenha sido isso mesmo

que me fez reparar com mais atenção. Para dizer a verdade, não

se tinha arranjado nem empoado; mas achei-o pálido e magro, e

sobretudo com a fisionomia transtornada. O olhar, que vimos

já tão vivo e tão alegre, estava triste e abatido; enfim, aqui entre

nós, não gostaria que o tivésseis visto assim: porque tinha um

aspecto comovente, e muito próprio, segundo creio, a inspirar

essa terna piedade, que é uma das mais perigosas armadilhas do

amor.

Se bem que abalada pelo que observava, comecei no entanto

a conversa como se não me tivesse apercebido de nada. Inquiri

primeiro da sua saúde, e sem me dizer que era boa, não se lamentou

no entanto que fosse má. Então queixei-me da sua ausência,

que tinha um pouco o aspecto de mania, e procurei juntar

um pouco de bom humor ao meu "sermão"; mas respondeu-me

apenas, e num tom compenetrado: ah mais um erro,

confesso... mas será reparado conjuntamente com os outros."

A expressão do rosto, ainda mais do que as palavras, desconcertou-me,

e apressei-me a dizer-lhe que estava a dar demasiada

importância a uma simples censura ditada pela amizade.

218

Começámos então a conversar tranquilamente. Declarou-me,

pouco depois, que talvez um assunto, "o caso mais importante

da sua vida", o chamasse em breve a Paris: mas como tive

medo de adivinhar o que era, querida, e que este intróito levasse

a uma confidência que não queria ouvir, não lhe fiz perguntas, e

contentei-me em dizer que esperava que as distracções lhe fossem

úteis à saúde. Acrescentei que desta vez não lhe faria nenhum

pedido, visto amar os meus amigos por eles próprios; a

esta simples frase, cerrando-me as mãos e falando com uma

veemência que não consigo reproduzir: "Sim, minha tia", disse-me,

"amai, amai muito um sobrinho que vos respeita e vos

adora; e, como dizeis, amai-o por ele próprio. Não vos preocupeis

com a sua felicidade, e não perturbeis com nenhum remorso

a eterna tranquilidade que espera fruir em breve. Repeti que

me perdoais e amais: sim, haveis de perdoar-me; conheço a vossa

bondade; mas como esperar a mesma indulgência daqueles

que ofendi tantas vezes?". Então curvou-se um pouco, para me

esconder, creio, os traços de dor que o timbre da voz traía contra

a vontade dele.

Mais comovida do que posso dizer-vos, levantei-me precipitadamente;

e sem dúvida notou o meu susto, porque imediatamente,

retomando a compostura, disse: "Perdão, perdão, senhora;

sinto que me perturbo contra minha vontade. Peço-vos

que esqueçais as minhas palavras e recordeis apenas o meu profundo

respeito. Não deixarei", acrescentou, "de ir junto de vós

renovar as minhas homenagens antes de partir". Pareceu-me

que esta última frase me convidava a terminar a visita; e de facto

retirei-me.

Mas quanto mais reflicto, menos percebo o que ele quis dizer.

Que assunto é este, que considera "o mais importante da

sua vida" ? Por que me pedia perdão? Donde lhe veio este enternecimento

involuntário com que me falava? Já formulei mil

vezes estas interrogações, sem conseguir responder-lhes. Nada

vejo nelas que se relacione convosco: no entanto, como os olhos

do amor são mais clarividentes que os da amizade, quis que

nada ignorásseis do que se passou entre mim e meu sobrinho.

Tive de me interromper quatro vezes para escrever esta longa

carta, que seria ainda mais longa se me não sentisse tão fatigada.

Adeus, minha querida filha.

Castelo de..., 25 de Outubro de 17"*

CARTA CXXIII

O PADRE ANSELMO AO VISCONDE DE VALMONT

219

Recebi, senhor Visconde, a carta com que me honrastes; e

ontem dirigi-me, conforme os vossos desejos, a casa da pessoa

em questão. Expus-lhe o objecto e os motivos da diligência que

me havíeis pedido para desempenhar junto dela. Apesar de

achar demasiado presa à sensata decisão que tomara, depois de

lhe ter demonstrado que se arriscava com a sua recusa a pôr um

obstáculo ao vosso feliz regresso e a opor-se assim aos projectos

misericordiosos da Divina Providência, acabou por consentir na

vossa visita, com a condição de que seria a última, e encarregou-me

de vos anunciar que estaria em casa na próxima quinta-feira,

28. Pede-vos que se esse dia vos não convier, a informeis

e lhe indiqueis um outro. A vossa carta será recebida.

No entanto, senhor Visconde, permiti-me que vos peça que

não adieis sem fortes razões, para que mais cedo vos possais

consagrar inteiramente às louváveis disposições que me afirmastes.

Pensai que o que se não apressa a aproveitar o momento

da graça se arrisca a que ela lhe seja retirada; que embora a

bondade divina seja infinita, a sua aplicação é regulada pela justiça;

e pode haver um momento em que o Deus de misericórdia

se transforme em Deus de vingança.

Se continuardes a honrar-me com a vossa confiança, peço-vos

que acrediteis que estarei às vossas ordens sempre que o

desejardes: e por maiores que sejam os meus afazeres, a minha

importante tarefa será sempre cumprir os deveres do santo ministério

a que me dediquei inteiramente; e o momento mais belo

da minha vida seria aquele em que visse os meus esforços serem

realçados pela bênção do Todo-Poderoso. Somos fracos e pecadores

e nada podemos por nós próprios!

Mas o Deus que vos chama tudo pode; e devemos também à

sua bondade, vós, o desejo constante de vos unirdes a Ele, e eu,

os meios de aí vos conduzir. E com o Seu socorro, espero convencer-vos

de que só a santa religião pode dar, mesmo neste

mundo, a felicidade sólida e durável que vãmente se procura na

fogueira das paixões humanas.

Tenho a honra de ser, com respeitosa consideração, etc.

Paris, 25 de Outubro de 17*

CARTA CXXIV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Tomada ainda do espanto em que se lançou a nova de que

ontem conhecimento, não esqueço, senhora, a satisfação

que ela vos deve causar, e apresso-me a dar-vos parte dela. O

senhor de Valmont já se não ocupa de mim nem do seu

amor; agora pretende apenas emendar, com uma vida mais edificante,

220

as faltas, ou antes, os erros da juventude. Fui informada

dessa resolução pelo padre Anselmo, a quem se dirigiu para de

futuro o guiar, e também para lhe conseguir um encontro comigo,

que segundo julgo terá como principal objectivo devolver-me

as minhas cartas que conservara até aqui, apesar do meu

pedido em contrário.

Só me resta, sem dúvida, aplaudir esta feliz transformação,

e felicitar-me se, tal como diz, pude de algum modo concorrer

para ela. Mas por que havia de ser eu o instrumento, e por que

me custaria isso o repouso da minha vida? Por que motivo seria

o meu infortúnio o preço da felicidade do senhor de Valmont?

Oh, minha indulgente amiga, desculpai este queixume. Sei que

não me cabe perscrutar os desígnios de Deus: mas enquanto eu

lhe suplico sem cessar, e sempre em vão, força para vencer este

meu desgraçado amor, Ele prodigaliza-a a quem a não pedia, e

deixa-me sem socorro, inteiramente entregue à minha fraqueza.

Mas abafemos murmúrios tão culpados. Bem sei que o filho

pródigo recebe, no regresso, mais graças do pai do que o filho

que nunca se ausentara. Como poderemos pedir contas Àquele

que nada nos deve? E mesmo que gozássemos perante Ele de

alguns direitos, quais poderiam ser os meus? Ousarei vangloriar-me

duma sensatez que só devo a Valmont? Salvou-me

como poderia queixar-me por sofrer por ele? Não: ser-me-ão

caros os meus sofrimentos, se são o preço da sua felicidade. Era

necessário que ele regressasse ao Pai. O Deus que o formou ama

com certeza a sua obra. Não criou esse ser encantador para fazer

dele um réprobo. Devo suportar a dor da minha audaciosa

imprudência; pois não devia eu compreender que, se me era

interdito amá-lo, nem sequer me devia permitir-me vê-lo?

O meu erro ou a minha desdita foi não ter aceitado durante

muito tempo esta verdade. Sois testemunha, minha querida e

digna amiga, de que me submeti a esse sacrifício, assim que o

reconheci necessário; mas para que ele fosse completo, faltava

só que o senhor de Valmont o não compartilhasse. Ousarei confessar-vos

que esta ideia é agora a que mais me atormenta?

Insuportável orgulho, que adoça os males que experimentamos com

aqueles que fazemos sofrer! Ah! Hei-de vencer este coração rebelde

e acostumá-lo às humilhações.

Foi sobretudo para conseguir isso que consenti em receber,

na próxima quinta-feira, a penosa visita do senhor de Valmont.

Será, então, o próprio a dizer-me que já não represento nada

para ele, que a frágil passageira emoção que nele despertara se

extinguiu inteiramente! Verei o seu olhar pousar-se sobre mim,

sem comoção, enquanto o medo de denunciar a minha me obrigará

a baixar os olhos. E receberei da sua indiferença essas

mesmas cartas que recusou durante tanto tempo às minhas insistentes

súplicas; devolvê-las-á como objectos inúteis que já lhe

não interessam; e as minhas mãos trémulas, ao receber esse despojo

vergonhoso, sentirão que ele lhe é entregue por uma mão

221

firme e tranquila! Enfim, vê-lo-ei afastar-se, afastar-se para

sempre, e os meus olhos segui-lo-ão, sem verem os seus voltarem-se

para mim.

Era preciso que suportasse tanta humilhação! Ah! Tentarei

ao menos torná-la útil, deixando-me penetrar pelo sentimento

da minha fraqueza. Sim, conservarei precisamente essas cartas

de que ele já não faz caso. Impor-me-ei a vergonha de as ler

todos os dias, até que as lágrimas lhes apaguem os últimos traços;

e as dele, hei-de queimá-las, porque estão contaminadas

com o perigoso veneno que corrompeu a minha alma. Oh! Mas

que é o amor, que nos faz até ter saudades dos perigos a que nos

expõe; e que sobretudo tememos sentir ainda, quando já o não

inspiramos! Deixemos esta paixão funesta, que só permite a

escolha entre a vergonha e a desgraça, e que por vezes as reúne;

que pelo menos a prudência substitua a virtude.

Como quinta-feira ainda está longe! Que pena não poder

consumar imediatamente esse doloroso sacrifício e esquecer-lhe

em seguida a causa e o desejo! Esta visita importuna-me; arrependo-me

de ter acedido. Oh! Para que precisa ainda ver-me?

Que representamos agora um para o outro? Se me ofendeu,

perdoo-lhe. Felicito-o e louvo-o por querer emendar as suas faltas.

Farei mais, imitá-lo-ei; e visto que fui seduzida pelos mesmos

erros, o exemplo dele ajudar-me-á. Mas se projecta fugir de

mim, por que começa por me procurar? Não está cada um de

nós empenhado em esquecer o outro? Ah! Será esse de hoje em

diante o meu único cuidado.

Se o permitirdes, minha respeitável amiga, será junto de vós

que me irei ocupar desse difícil trabalho. Se necessito socorro e

até mesmo consolação, só de vós os quero receber. Só vós sabeis

ouvir-me e falar ao meu coração. A vossa preciosa amizade

preencherá toda a minha existência. Nada me parecerá difícil

para secundar os cuidados que me dispensardes. Dever-vos-ei a

tranquilidade, a felicidade, a virtude; e o fruto das vossas bondades

será o de me tornardes digna de tudo isto.

Julgo que me dispersei muito nesta carta; presumo-o pela

perturbação em que estive sempre enquanto vos escrevia. Se

nela se encontrar algum sentimento de que eu deva corar, cobri-lo

com a vossa indulgente amizade. Confio inteiramente

nela. De vós não esconderei nenhum movimento do meu coração.

Adeus, minha respeitável amiga. Espero dentro de poucos

dias anunciar-vos a minha chegada.

Paris, 25 de Outubro de 17*.

QUARTA PARTE

222

CARTA CXXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Eis vencida essa mulher orgulhosa que ousara crer que me

podia resistir! Sim, minha amiga, tive-a, possuí-a inteiramente; e

desde ontem que nada mais tem a conceder-me.

Estou ainda demasiado cheio da minha felicidade para a

poder apreciar: espanto-me do encanto desconhecido que experimentei.

Será pois verdade que a virtude aumenta o valor duma

mulher, até no momento em que deixa de a ter? Mas não, releguemos

essa ideia pueril para as almas simplórias. Não se encontra

quase por toda a parte uma resistência mais ou menos

bem fingida ao primeiro triunfo? E já alguma vez tinha eu encontrado

o encanto de que falo? Contudo, não é o do amor;

porque, enfim, se junto desta mulher espantosa tive por vezes

momentos de fraqueza que se assemelhavam a essa paixão pusilânime,

soube sempre vencê-los e voltar aos meus princípios.

Mesmo que a cena de ontem me tenha, segundo suponho, levado

um pouco mais longe do que contava; mesmo que tenha partilhado

por um momento a perturbação e a embriaguez que inspirava,

essa ilusão passageira estaria dissipada presentemente;

e, no entanto, o mesmo encanto subsiste. Expermentaria até,

confesso-o, um prazer assaz doce em me entregar a ele, se isso

não me causasse uma certa inquietação. Seria eu, na minha idade,

dominado como um principiante por um sentimento involuntário

e desconhecido? Não: é preciso, antes de tudo, combatê-lo

e aprofundá-lo.

De resto, talvez já tenha entrevisto a causa! Comprazo-me

pelo menos com esta ideia, e gostaria que fosse verdadeira.

Na multidão de mulheres junto das quais desempenhei até

hoje o papel e as funções de amante, não tinha ainda encontrado

nenhuma que não tivesse pelo menos tanta vontade de se

" entregar como eu de a isso a forçar; tinha-me até habituado a

chamar pudibundas às que faziam apenas metade do caminho,

por oposição a tantas outras, cuja defesa provocante cobria

imperfeitamente os primeiros favores que tinham concedido.

Aqui, pelo contrário, encontrei a princípio uma prevenção

desfavorável, fundamentada depois nos conselhos e nas informações

duma mulher odienta, mas sagaz; uma timidez natural e

extrema que fortificava um pudor lúcido; um apego à virtude,

conduzida pela religião, e que contava já dois anos de triunfo; e,

para finalizar, iniciativas súbitas, inspiradas por estes diferentes

motivos, tendo por fim furtar-se à minha perseguição.

Não se trata, pois, como nas minhas outras aventuras

duma simples capitulação mais ou menos vantajosa, da qual é

mais fácil tirar proveito do que vaidade; é uma vitória completa,

223

arrancada por uma campanha penosa e resolvida definitivamente

por sábias manobras. Nada de espantar pois que este êxito,

devido apenas a mim, me seja mais precioso; e o acréscimo

de prazer que experimentei no triunfo, e que ainda sinto, é a

doce impressão do sentimento da glória. Acarinho esta maneira

de ver, que me poupa a humilhação de pensar que possa depender

de qualquer maneira da escrava que submeti: que não detenho

apenas em mim a plenitude da minha felicidade; e que a

faculdade de ma fazer gozar em toda a sua força esteja reservada

a tal ou tal mulher, com exclusão de qualquer outra.

Estas sensatas reflexões regularão toda a minha conduta

nesta importante ocasião; e pode estar certa de que não me deixarei

prender de maneira a não poder, a todo o momento, quebrar

a meu bel-prazer estes novos laços. Falo-lhe já da ruptura,

e ignorais ainda por que meios a ela adquiri direitos; leia, pois, e

veja a que se expõe a sabedoria quando tenta socorrer a loucura.

Estudava tão atentamente as minhas palavras e as respostas

, que obtinha, que espero reproduzi-las com uma exactidão que,

satisfaça.

Verá, pelas duas cópias de cartas aqui juntas, qual o medianeiro

que escolhera para me aproximar da minha bela, e com

que zelo a santa criatura se empenhou em nos unir. O que é preciso

saber também, e que eu tinha descoberto por uma carta,

* Cartas CXX e CXXIII.

interceptada como de costume, é que o receio e a pequena humilhação

de ser abandonada tinham perturbado um pouco a pudicícia

da austera devota; e tinham-lhe enchido o coração e a cabeça

de ideias que, lá por não terem sentido, nem por isso deixavam

de ser interessantes. Foi depois destes preparativos indispensáveis

que ontem, quinta-feira, 28, dia marcado e concedido

pela ingrata, me apresentei, escravo tímido e arrependido, em

casa dela, para sair mais tarde coroado vencedor.

Eram seis horas da tarde quando cheguei a casa da bela reclusa;

porque, desde o regresso, a sua porta tem estado fechada

a toda a gente. Tentou levantar-se quando fui anunciado; mas

os joelhos trémulos não lho permitiram: voltou a sentar-se imediatamente.

Como o criado que me tinha introduzido tivesse

qualquer serviço a fazer na sala, pareceu impacientar-se e preenchemos

este intervalo com os cumprimentos usuais. Mas para

não perder tempo numa ocasião em que todos os instantes eram

preciosos, examinei cuidadosamente o local; e marquei logo

qual seria o teatro da minha vitória. Poderia ter escolhido um

mais cómodo: porque neste mesmo quarto havia uma otomana.

Mas notei que em face dela estava um retrato do marido; e receei,

confesso-o, que, com esta mulher tão singular, um simples

olhar lançado por acaso para aquele lado bastasse para destruir

num ápice o resultado de tantos esforços. Ficámos finalmente

224

sós e entrei no assunto.

Depois de explicar, em poucas palavras, que o padre Anselmo

a devia ter informado do motivo da minha visita, queixei-me

do tratamento rigoroso a que fora submetido; e acentuei

particularmente o desprezo que me tinha sido testemunhado.

Defendeu-se, como esperava; e, como certamente calcula, apresentei

como provas a desconfiança e o medo que eu inspirara; a

fuga escandalosa que se seguira, a recusa de responder às minhas

cartas, de as receber até, etc., etc. Quando começou a justificação,

que seria bem fácil, julguei dever interrompê-la; e para

me fazer perdoar por esta brusquidão, cobri-a logo de lisonjas.

"Se tais encantos", recomecei eu, "produziram uma impressão

tão profunda sobre o meu coração, as vossas virtudes não fizeram

menos sobre a minha alma. Seduzido, sem dúvida, pelo

desejo de me aproximar, atrevi-me a julgar-me digno delas. Não

vos censuro por terdes sido de opinião diferente; mas castigo-me

pelo meu erro. Como o embaraço a forçasse ao silêncio,

continuei: "Desejei, senhora, ou justificar-me aos vossos olhos,

ou obter o vosso perdão pelos erros que me atribuís, a fim de

poder ao menos terminar com alguma tranquilidade uma vida a

que já não dou valor, desde que vos recusastes embelezá-la. "

Aqui tentou responder. "O meu dever não me permitia..."

E a dificuldade de terminar a mentira que o dever lhe exigia não

a deixou acabar a frase. Recomecei então no tom mais terno: "É

então verdade que foi de mim que fugistes?" - "Aquela partida

era necessária." - "E também que me afastais de vós?" - "Assim

é preciso." - "E para sempre?" - "É o meu dever." Desnecessário

se torna dizer-lhe que, durante este curto diálogo, a voz

da terna devota estava opressa e que os seus olhos não se erguiam

para mim.

Julguei dever animar um pouco esta cena esmorecente; assim,

levantando-me com ar de despeito, disse então: "A vossa

firmeza devolve-me a minha. Pois bem, senhora, ficaremos separados

- sim; mais separados até do que pensais: e tereis então

todo o tempo para vos felicitardes da vossa obra." Um pouco

,; surpreendida por este tom de censura, quis replicar. "A resolução

que haveis tomado", disse ela... "É apenas o efeito do desespero",

acrescentei com ímpeto. "Quisestes fazer-me infeliz;

provar-vos-ei que o haveis conseguido para além mesmo dos

vossos desejos." "Desejo a vossa felicidade", respondeu. E o

tom da voz começava a anunciar uma emoção assaz forte. Assim,

lançando-me aos seus pés, e com o tom dramático que me

, conhece, exclamei: "Ah, cruel! Como pode existir para mim

uma felicidade se vós a não compartilhardes? Como encontrá-la

longe de vós? Ah, nunca, nunca!" Confesso que, abandonando-me

a este ponto, contara imenso com o auxílio das minhas

lágrimas; mas, ou por má disposição, ou talvez apenas por efeito

da atenção penosa e contínua que prestava a tudo, foi-me

impossível chorar.

225

Por felicidade recordei-me que para subjugar uma mulher

todos os meios são bons; e que bastava impressioná-la com um

forte arrebatamento, para que a impressão permanecesse profunda

e favorável. Supri então a falta de sensibilidade pelo terror;

e para tal, mudando apenas a inflexão da voz, e mantendo

a mesma atitude, continuei: "Sim, faço este juramento a vossos

pés: ou vos possuo ou morro." Ao pronunciar estas últimas

palavras, os nossos olhares encontraram-se. Não sei o que a tímida

criatura viu ou julgou ver nos meus; mas levantou-se com

ar assustado e escapou-se dos meus braços que a rodeavam.

Verdade seja que nada fiz para a reter: porque já notara várias

vezes que as cenas de desespero, conduzidas com demasiada

vivacidade, caem no ridículo quando se tornam longas ou quando

só deixam saídas verdadeiramente trágicas, coisa que eu estava

muito longe de desejar. Entretanto, enquanto ela se esquivava,

acrescentei num tom baixo e sinistro, mas de maneira a

poder ser ouvido: "Pois bem! A morte!"

Levantei-me então; e, guardando um momento de silêncio,

lançava sobre ela, como por acaso, olhares selvagens, que lá por

parecerem alucinados nem por isso eram menos clarividentes e

observadores. O porte pouco seguro, a respiração apressada, a

contracção dos músculos, os braços trémulos e meio levantados,

tudo me provava que o efeito fora tal como o desejava:

mas, como no amor só de perto algo se concretiza, e como estávamos

um pouco afastados um do outro, era necessário antes

do mais que nos aproximássemos. Para o conseguir, passei o

mais rapidamente possível a uma aparente tranquilidade, propícia

para acalmar os efeitos desta situação violenta, mas sem lhe

enfraquecer a impressão.

A minha transição foi: "Sou um infeliz. Quis viver para a

vossa felicidade, e estraguei-a. Consagrei-me à vossa tranquilidade,

e perturbo-a." Em seguida, com um ar calmo mas constrangido:

"Perdão, senhora: pouco habituado às tempestades

das paixões, não sei reprimir-lhes os ímpetos. Se fiz mal em deixar-me

levar por eles, pensai ao menos que é a última vez. Ah,

acalmai-vos, acalmai-vos, peço-vos.. E durante esta longa frase,

aproximei-me insensivelmente. "Se quereis que me acalme,

respondeu a bela amedrontada, "estai também mais tranquilo".

- "Pois bem! Sim, prometo-vos", disse-lhe eu. E acrescentei

com uma voz mais fraca: "Se o esforço é grande, ao menos não

será longo. Mas", acrescentei logo com um ar alucinado, "vim,

não é verdade, para restituir as vossas cartas? Por piedade, dignai-vos

aceitá-las. É mais um sacrifício que me resta fazer; não

me deixeis nada que me me possa diminuir a coragem. E tirando

do bolso a preciosa colecção, disse: "Eis o enganador testemunho

das afirmações da vossa amizade! Era o que me prendia

à vida; tomai-o. Dai pois vós mesma o sinal que nos deve separar

para todo o sempre."

Aqui, a amante receosa cedeu inteiramente à sua meiga inquietação.

226

"Mas, senhor de Valmont, que tendes, que quereis

dizer? O passo que hoje destes não é voluntário? Não é o fruto

das vossas próprias reflexões? E não são elas que vos levaram a

aprovar a atitude absolutamente necessária que tomei por dever?

" - "Pois bem!", disse eu, "essa atitude impede-me uma

decisão." - "Qual!?" - "A única que pode, ao mesmo tempo

que me separa de vós, pôr fim aos meus tormentos." - "Mas,

respondei-me, que decisão é?" Neste ponto, apertava-a nos

meus braços, sem que ela se defendesse; e calculando, por este

esquecimento do decoro, quanto a emoção devia ser forte e

poderosa: "Mulher adorável", disse eu, ousando o entusiasmo,

"não fazeis ideia do amor que inspirais. Nunca sabereis até que

ponto fostes adorada, e como este sentimento me era mais caro

que a minha existência! Que os vossos dias sejam afortunados e

tranquilos; que se embelezem com toda a felicidade de que me

haveis privado! Retribuí ao menos este desejo sincero com um

remorso, uma lágrima; e crede que o último dos meus sacrifícios

não será o mais doloroso para o meu coração. Adeus."

Enquanto falava assim, sentia o seu coração palpitar com

violência; observava-lhe a alteração do rosto; sobretudo via as

lágrimas sufocá-la, e no entanto só corriam raras e penosas. Só

então tomei a decisão de fingir afastar-me; mas agarrando-me

com força: "Não, escutai-me", disse ela vivamente. "Deixai-me",

respondi. "Tendes de me escutar, quero que me escuteis."

- "Devo afastar-me de vós!" - "Não!", gritou ela... Com esta

última palavra lançou-se, ou antes, caiu desmaiada nos meus

braços. Como duvidava ainda de tão feliz êxito, fingi um grande

susto; mas ao mesmo tempo, conduzi-a, ou melhor, levei-a ao

colo para o local precedentemente escolhido como terreno da

minha glória; e com efeito, quando voltou a si já estava abandonada

e submetida ao seu feliz vencedor.

Até aqui, minha bela amiga, achar-me-á, creio, duma pureza

de método que lhe agradará; e verá que não me afastei em

nada dos verdadeiros princípios desta guerra, que já muitas vezes

notáramos ser tão parecida com a outra. Compare-me pois

com Turenne ou Frederico. Obriguei a combater um inimigo

que queria apenas contemporizar; consegui, por meio de sábias

manobras, escolher o terreno e a disposição das forças; inspirei

confiança ao inimigo para mais facilmente o poder alcançar no

seu esconderijo; nada deixei ao acaso, considerando o valor que

teria o triunfo e a necessidade de reservar uma saída em caso de

derrota; finalmente, só abri as hostilidades quando já tinha uma

retirada assegurada, de forma a poder proteger e conservar tudo

o que conquistara anteriormente. Eis, creio, tudo o que é possível

fazer; mas receio agora ter-me deixado amolecer, como Aníbal

pelas delícias de Cápua. Eis o que aconteceu depois.

Esperava evidentemente que um tão grande acontecimento

não se passaria sem as lágrimas e o desespero do costume; ora

notei a princípio sobretudo um estado de confusão e uma espécie

227

de recolhimento; mas atribuí ambos à sua pudicícia: assim,

sem me preocupar com estas ligeiras diferenças, que supus meramente

locais, enveredei pela grande estrada das consolações,

convencido de que, como de costume, as sensações ajudariam o

sentimento, e que uma só acção fazia mais do que todas as palavras,

que eu, porém, não deixava de lado. Mas encontrei uma

resistência verdadeiramente assustadora, menos pela sua força

do que pela forma que revestia.

Imagine uma mulher sentada, rígida, rosto imóvel; sem aspecto

de pensar, ouvir ou compreender; de cujos olhos fitos as

lágrimas deslizam continuamente e sem esforço. Assim estava

Madame de Tourvel enquanto eu lhe falava; mas se eu tentava

chamar-lhe a atenção para mim por meio duma carícia, mesmo

pelo gesto mais inocente, a esta aparente apatia sucedia imediatamente

o terror, a sufocação, as convulsões, e alguns gritos

entrecortados, mas sem articular uma palavra.

Estas crises repetiram-se várias vezes, e cada vez mais fortes;

a última foi mesmo tão violenta que fiquei inteiramente desanimado,

e receei por momentos ter obtido uma vitória inútil.

Recorri então aos lugares-comuns do costume, entre os quais se

encontrava este: "Desesperais-vos porque me haveis feito feliz?

" A estas palavras, a adorável mulher voltou-se para mim; e

o rosto, se bem que ainda um pouco alucinado, já tinha no entanto

retomado a sua expressão celestial. "Sois pois feliz?" Afirmei

com mais força ainda. "E feliz por minha causa!" Multipliquei

as lisonjas e as meiguices. Enquanto eu falava os membros

distenderam-se-lhe; tombou com moleza, apoiada contra o sofá;

e abandonando-me uma das mãos de que ousara apossar-me,

disse: "Sinto que essa ideia me consola e alivia."

Calcula certamente que uma vez colocado no bom caminho,

não o voltei a abandonar; era realmente o que tinha a fazer.

Assim, quando quis tentar um segundo êxito, encontrei a princípio

certa resistência, e o que se passara anteriormente tornou-me

circunspecto. Mas chamando de novo em meu auxílio

aquela mesma ideia da minha felicidade, verifiquei logo o seu

efeito benéfico: "Tendes razão", disse-me a meiga criatura; "só

posso suportar a minha existência na medida em que ela servir

para vos fazer feliz. Vou-me consagrar inteiramente a isso: a

partir deste momento entrego-me, e nunca mais encontrareis da

minha parte nem recusas, nem remorsos." Foi com esta ingénua

e sublime candura que me abandonou a sua pessoa e os seus

encantos, e aumentou assim a minha felicidade ao compartilhá-la.

A embriaguez foi completa e recíproca; e, pela primeira

vez, a minha sobreviveu ao prazer. Ao sair dos braços dela caía-lhe

aos pés, jurando-lhe amor eterno; e, é preciso confessá-lo,

eu acreditava no que dizia. Enfim, mesmo depois de nos termos

separado, a sua lembrança não me deixava, e tive de fazer um

esforço para a esquecer.

228

Ah, por que não está aqui para equilibrar o mérito da acção

pelo da recompensa? Mas não perderei nada por esperar, não é

verdade? E espero poder considerar como assente entre nós o

feliz acordo que lhe propus na minha última carta. Bem vê que

cumpro a minha parte, e que, como lhe prometi, os meus assuntos

estarão suficientemente avançados para lhe poder dedicar

uma parte do meu tempo. Apresse-se a despachar esse estorvo

do Belleroche, e deixe em paz o dulçoroso Danceny, para se

ocupar apenas de mim. Mas o que faz no campo, que nem sequer

me responde? Sabe que tenho vontade de lhe ralhar? Mas a

felicidade predispõe à indulgência. E não esqueço, aliás, que ao

colocar-me de novo no número dos seus apaixonados, devo

submeter-me às suas pequenas fantasias. Lembre-se, porém, de

que o novo amante nada quer perder dos antigos direitos do

amigo...

Adeus, como outrora... Sim, adeus, meu anjo! Envio-te

todos os beijos do amor.

P. S. - Sabe que Prévan ao fim do seu mês de prisão foi obrigado

a abandonar o regimento? É a novidade do dia em Paris.

Na verdade, ei-lo cruelmente punido por uma patifaria que não

cometeu, e a minha amiga obteve um êxito completo!

Paris, 29 de Outubro de 17* *

CARTA CXXVI

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Ter-vos-ia respondido mais cedo, minha amável filha, se a

fadiga da minha última carta me não tivesse provocado dores

que me impediram durante estes dias de poder utilizar o braço.

Estava desejando agradecer-vos as boas notícias que me destes

do meu sobrinho, e de vos dar, a vós, as minhas sinceras felicitações.

Temos de ver nisto um golpe da Providência, que, tocando

um, salvou o outro. Sim, minha querida filha, Deus que queria

apenas experimentar-vos, socorreu-vos no momento em que as

vossas forças estavam esgotadas; e apesar do vosso queixume,

deveis, creio, prestar-Lhe acções de graças. Não é que eu não

veja muito bem que seria mais agradável para vós que tivésseis

sido a primeira a tomar essa resolução, e que a de Valmont fosse

apenas a sequência; parece-me até, falando humanamente, que

os direitos do nosso sexo teriam sido assim mais resguardados,

e nós não queremos perder nenhum! Mas que interessam essas

considerações ligeiras perante os importantes objectivos que se

encontram realizados? Vemos alguém que se salva dum naufrágio

queixar-se por não ter podido escolher o meio?

229

Sentireis em breve, minha querida filha, que as penas que

temeis se hão-de aligeirar por si próprias; e mesmo que subsistissem

sempre e com a mesma agudeza, não deixaríeis por isso

de sentir que seriam ainda mais fáceis de suportar que os remorsos

do crime e o desprezo por si própria. Inutilmente vos teria

falado mais cedo com esta aparente severidade: o amor é um

sentimento independente, que a prudência pode fazer evitar,

mas que não sabe vencer; e que, uma vez nascido, morre apenas

ou de morte natural, ou pela ausência absoluta de esperança. É

este último caso, no qual vos encontrais, que me dá a ousadia e

o direito de vos dizer livremente a minha opinião. É cruel assustar

um doente desesperado, a quem só se devem consolações e

paliativos: mas é sensato esclarecer um convalescente sobre os

perigos que correu, para lhe inspirar a prudência de que necessita

e a submissão aos conselhos que lhe podem ser necessários.

Visto que me escolhestes como médico, é como tal que vos

falo, e que vos digo que os incomodozinhos que sentis agora, e

que talvez necessitem ainda alguns remédios, nada são comparados

com a doença alarmante de que está agora assegurada a

cura. E em seguida como amiga, amiga duma mulher razoável e

virtuosa, permitir-me-ei acrescentar que essa paixão, que vos

subjugou, paixão tão infeliz em si própria, era-o ainda mais

pelo seu objecto. A acreditar no que se diz, o meu sobrinho, que

confesso amar talvez com fraqueza, e que reúne muitas qualidades

louváveis e outros tantos atractivos, é perigoso para as mulheres

e culpado perante elas, e para ele seduzi-las e desgraçá-las

é o mesmo. Creio que o teríeis convertido. Nunca alguém foi

mais digno disso: mas já tantas se gabaram do mesmo, vendo

depois essa esperança desenganada, que prefiro não vos ver

reduzida a esse recurso.

Pensai agora, minha querida filha, que em vez de tantos perigos

que correríeis, tereis, além do repouso de consciência e da

tranquilidade, a satisfação de ter sido a principal causa da feliz

transformação de Valmont. Por mim, não duvido que seja grande

parte trabalho da vossa corajosa resistência, e que um momento

de fraqueza da vossa parte teria deixado o meu sobrinho

numa danação eterna. É-me agradável pensar assim, e desejo

ver-vos pensar da mesma maneira; encontrareis assim as primeiras

consolações, e eu terei razões para vos amar ainda mais.

Espero-vos aqui dentro de poucos dias, minha amável filha,

tal como anunciais. Vinde encontrar de novo a calma e a felicidade

nos mesmos lugares em que as perdestes, vinde principalmente

regozijar-vos com a vossa terna mãe, de terdes tão fielmente

cumprido a palavra que lhe havíeis dado de nada fazer

que não fosse digno dela e de vós!

Castelo de..., 30 de Outubro de 17

230

CARTA CXXVII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONdE DE VALMONT

Se ainda não respondi, Visconde, à sua carta de 19, não foi

por falta de tempo; mas simplesmente porque ela me irritou e a

não achei razoável. Tinha pensado que o melhor era deixá-la no

esquecimento; mas visto que insiste, que parece empenhado nas

ideias que sugere, e que toma o meu silêncio por um consentimento,

urge que lhe exponha claramente a minha opinião.

Tive por vezes a pretensão de substituir sozinha um serralho

inteiro; mas nunca aceitei fazer parte de um. Pensava que o meu

amigo sabia isso. Pelo menos, neste momento, já não o ignora e

julgará facilmente quanto me pareceu ridícula a sua proposta.

Pois quê! Poderia eu sacrificar uma inclinação, e para mais uma

inclinação recente, para me ocupar de si? E ocupar-me como?

Esperando a vez, como escrava submissa, dos sublimes favores

de Sua Alteza. Quando, por exemplo, se quiser distrair por um

momento desse encanto desconhecido que a adorável, a celeste

Madame de Tourvel foi a única a fazer-lhe sentir, ou quando

temer comprometer perante a atraente Cecília a ideia superior

que ela conserve de si; então, descendo até mim, virá procurar

prazeres, na verdade menos vivos, mas sem consequências; e as

suas preciosas bondades, embora um pouco raras, bastarão

para a minha felicidade.

Vejo que está cheio de si: mas eu também não sou modesta;

e por mais que me olhe, não me acho decaída até esse ponto.

Talvez seja defeito da minha parte, mas previno-o de que possuo

ainda muitos outros.

Em primeiro lugar o de acreditar que o colegial, o dulçoroso

Danceny, só se ocupando de mim, sacrificando-me, sem se fazer

valer, uma primeira paixão, ainda antes de a ter satisfeito, e

amando-me enfim como se ama na idade dele, poderia, apesar

dos seus vinte anos, contribuir bem mais do que o Visconde

para a minha felicidade e os meus prazeres. Permito-me mesmo

acrescentar que, se me desse na fantasia a ideia de lhe dar um

adjunto, não seria certamente o Visconde, pelo menos por agora.

Por que razões?, perguntará. Em primeiro lugar poderia não

haver nenhuma: porque o capricho que me faria preferi-lo,

pode igualmente excluí-lo. Mas quero, por delicadeza, dar-lhe o

motivo da minha decisão. Parece-me que teria de me fazer demasiados

sacrifícios: e eu, em vez de mostrar o reconhecimento

que esperaria de mim, seria capaz de julgar que ainda merecia

mais! Bem vê que, tão afastados um do outro pela nossa maneira

de pensar, de nenhum modo nos podemos unir; e temo que

me seja necessário muito tempo, mesmo muito, antes de mudar

de sentimentos. Prometo avisá-lo quando estiver corrigida. Até

231

lá, creia-me, pode arranjar outras aventuras e guardar os seus

beijos; tem muito onde empregá-los melhor!..

Adeus, como antigamente, diz? Antigamente, porém, fazia

muito mais caso de mim; não me limitava aos terceiros papéis e

esperava que eu dissesse sim

, para estar certo do meu consentimento.

Aceite pois que em vez de lhe dizer também adeus, como

antigamente, lhe diga adeus como agora.

A sua serva, senhor Visconde.

Do castelo de..., 31 de Outubro de 17* *

CARTA CXXVIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Só ontem recebi, senhora, a vossa resposta tardia. Ter-me-ia

causado imediatamente a morte se a minha existência me pertencesse:

mas outro a possui; e esse outro é o senhor de Valmont.

Vede que nada vos escondo. Considerareis talvez que á

não sou digna da vossa amizade, mas prefiro perdê-la a iludi-la.

Tudo o que vos posso dizer é que, obrigada pelo senhor de

Valmont a escolher entre a sua morte e a sua felicidade me decidi

por esta. Não me envaideço, nem me acuso: digo simplesmente

o que se passou.

Podeis imaginar facilmente, depois disto, como me fez impressão

a vossa carta e as severas verdades que contém

não julgueis que ela tenha feito nascer em mim o remorso ou

que possa transformar os meus sentimentos ou conduta. Não é

que eu não passe por momentos cruéis; mas quando sinto o

coração despedaçado, quando temo já não poder suportar os

tormentos, penso: Valmont é feliz; e tudo desaparece perante

essa ideia ou antes, tudo se transforma em prazer.

Dediquei-me pois ao vosso sobrinho; foi por ele que me

perdi. Tornou-se o centro único dos meus pensamentos, sentimentos

e acções. A vida ser-me-á preciosa enquanto for necessária

à sua felicidade, e considerá-la-ei sempre venturosa. Se algum

dia ele pensar doutro modo.... não terá da minha parte

nem queixas nem censuras. Já ousei imaginar esse momento

fatal, e a minha decisão está tomada.

Já vedes quão pouco me pode afectar o temor, que pareceis

ter, de que um dia o senhor de Valmont me desgrace: porque,

antes de o querer, terá cessado de amar-me; e que me importarão

as vãs censuras que não ouvirei? Só ele será o meu juiz.

Como terei vivido só para ele, será ele o detentor da minha memória;

e se se vir obrigado a reconhecer que o amava, sentir-me-ei

suficientemente justificada.

Acabais, senhora, de ler o meu coração. Preferi a desgraça

232

de perder a vossa estima, pela minha franqueza, à de me tornar

indigna dela pelo aviltamento da mentira. Pensei que devia esta

inteira confiança às vossas antigas bondades para comigo. Se

acrescentasse uma palavra poder-vos-ia levar a suspeitar que

tenho o orgulho de contar ainda com ela, quando pelo contrário

me faço justiça deixando de pretendê-la.

Sou com respeito, senhora, a vossa muito humilde e obediente

serva.

Paris, 1 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Diga-me pois, minha bela amiga, donde vem esse tom de

azedume e de sarcasmo que predomina na sua última carta?

Que crime cometi eu, aparentemente sem dar por isso, e que

tanto a irrita? Acusa-me de me ter dado ares de contar com o

seu consentimento antes de o ter obtido: mas julguei que o que

para os outros poderia parecer presunção, seria sinal da confiança

que deposito em si; e desde quando este sentimento prejudica

a amizade ou o amor? Unindo a esperança ao desejo, cedi

apenas ao impulso natural que nos leva a colocar-nos sempre o

mais perto possível da felicidade que buscamos; e tomou como

efeito do orgulho o que era apenas o reflexo da minha ansiedade.

Bem sei que é costume, nestes casos, aparentar uma dúvida

respeitosa: mas sabe perfeitamente que é apenas uma fórmula

um simples protocolo; e achei-me autorizado a supor que essas

precauções minuciosas não eram necessárias entre nós.

Parece-me até que esta atitude franca e livre, quando fundada

sobre uma antiga ligação, é preferível às insípidas meiguices,

que tão frequentemente tornam o amor desenxabido. De resto,

o valor que vejo nesta atitude talvez resulte apenas daquele que

atribuo à felicidade que ela me lembra: mas por isso mesmo,

ser-me-ia penoso vê-la discordar de mim.

Eis o único erro que suponho ter cometido: porque não

imagino que pudesse ter pensado seriamente que existisse uma

mulher no mundo que me parecesse preferível a si; e, ainda

menos, que tenha podido apreciá-la tão mal como finge crer.

diz-me a este respeito que olhou para si própria e que não se

encontrou decadente a esse ponto. Disso estou certo, e prova

apenas que o seu espelho é fiel. Mas não poderia ter concluído,

com mais facilidade e justiça, que eu não iria pensar isso de si ?

Procuro em vão a causa de tão estranha ideia. Parece-me

no entanto que ela resulta, mais ou menos, dos elogios que fiz a

233

outras mulheres. Deduzo-o pelo menos da sua afectação em salientar

os epítetos de adorável, celeste, atraente, de que me servi

ao falar-lhe em Madame de Tourvel e na pequena Volanges.

Mas não sabe que estas palavras, mais escolhidas ao acaso que

por reflexão, exprimem menos a opinião que se tem da pessoa,

do que a situação em que nos encontramos quando dela falamos?

E se, no próprio momento em que me sentia tão vivamente

afectado, quer por uma quer por outra, eu não a desejava

menos; se lhe dava a preferência sobre ambas, visto que enfim

não poderia renovar a nossa ligação senão em prejuízo das outras

duas, não vejo que isso fosse motivo de grande censura.

Não me será mais difícil justificar-me do encanto desconhecido,

com que parece ter ficado também um pouco chocada:

porque, antes do mais, nem sempre as sensações desconhecidas

são as mais fortes. Oh, quem poderia levar a melhor sobre os

deliciosos prazeres que só a minha amiga sabe tornar sempre

novos, e cada vez mais vivos? Quis portanto apenas dizer que

aquele encanto era dum género que ainda não tinha experimentado;

mas sem pretender atribuir-lhe qualquer classificação; e

acrescentei, o que hoje repito, que o saberei combater e vencer.

E nisto aplicarei todo o meu zelo, se vir nesse ligeiro trabalho

uma homenagem a oferecer-lhe.

Quanto à pequena Cecília creio inútil falar dela. Foi a seu

pedido que me encarreguei dessa criança, e só espero a sua ordem

de partida para me pôr ao largo. Notei a ingenuidade e a

frescura dela; achei-a atraente por momentos porque nos comprazemos

sempre na nossa obra: mas não possui consistência

suficiente para prender as atenções.

Agora, minha bela amiga, apelo para o seu senso de justiça,

para as suas primeiras bondades para comigo; para a longa e

perfeita amizade, para a inteira confiança que depois estreitaram

ainda mais os laços que nos uniam: mereci porventura o

tom rigoroso que tomou para comigo? Mas como lhe será fácil

compensar-me quando quiser! Uma palavra sua apenas, e verá

se existem encantos e afeições que me retenham um só minuto.

Voaria para os seus braços, e provar-lhe-ia, mil vezes e de mil

maneiras, que é, que será sempre, a verdadeira soberana do meu

coração.

Adeus, bela amiga; espero a sua resposta com toda a ansiedade.

Paris, 3 de Novembro de 17* *

CARTA CXXX

MADAME DE ROSEMONDE À PRESIDENTE DE TOURVEL

234

Por que motivo, minha querida, já não quereis ser minha

filha? por que é que pareceis comunicar-me que vai acabar a

correspondência entre nós? É para me castigar de não ter adivinhado

o que era tão pouco verosímil? Ou desconfiais que vos

afligi voluntariamente? Não, conheço demasiado o vosso coração

para crer que assim possa julgar o meu. Desta forma o desgosto

em que me mergulhou a vossa carta é muito menos por

minha causa do que por vós!

Ó minha jovem amiga! Digo-vos com tristeza; mas sois

demasiado digna de ser amada, para que alguma vez o amor vos

torne feliz.

Ah! Qual foi a mulher verdadeiramente delicada e sensível

que não encontrou o infortúnio nesse mesmo sentimento que

lhe parecia anunciar tanta felicidade! Saberão os homens apreciar

a mulher que possuem?

Alguns haverá honestos no procedimento e constantes na

afeição: mas, mesmo entre esses, quão poucos se sabem elevar à

altura do nosso coração! Não penseis, minha querida filha, que

o amor deles seja igual ao nosso. Experimentam a mesma loucura;

muitas vezes entregam-se-lhe com mais arrebatamento; mas

desconhecem este zelo inquieto, esta delicada solicitude, que

nos obriga a cuidados ternos e contínuos, cujo único fim é sempre

o objecto amado. O homem goza com a felicidade que sente,

e a mulher com a que proporciona. Esta diferença, tão importante

e tão pouco notada, influi no entanto, de modo bem

palpável, na totalidade das respectivas condutas. O prazer de

um consiste em satisfazer os seus desejos, o da outra, principalmente,

em os fazer nascer. Agradar é para ele um meio de chegar

ao triunfo; enquanto para ela é o próprio triunfo. E a coqueteria,

tantas vezes censurada às mulheres, representa apenas o

exagero desta forma de sentir e prova a sua verdade. Enfim, o

gosto exclusivo, que caracteriza particularmente o amor, é no

homem apenas uma preferência, que serve, quando muito, para

graduar um prazer, que um outro objecto enfraqueceria talvez

mas não destruiria; enquanto nas mulheres é um sentimento

profundo, que não só destrói todo o desejo estranho, mas que,

mais forte do que a natureza, e independente até do domínio

dela, só as deixa experimentar repugnância e desgosto, onde

pareceria dever nascer a voluptuosidade.

E não deveis pensar que as excepções, mais ou menos numerosas,

que seja possível citar, se oponham com êxito a estas verdades

comuns! Estão até confirmadas pelo consenso geral, que

distinguiu, apenas para os homens, a infidelidade da inconstância:

distinção de que se orgulham, em vez de por ela se sentirem

humilhados; e que, no nosso sexo, só foi adoptado por essas

mulheres depravadas que fazem a vergonha dele, e para quem

todos os processos são bons, a fim de se salvarem da penosa

sensação da sua baixeza.

235

Julguei, minha querida filha, que podia ser-vos útil ter estas

reflexões a opor às ideias quiméricas duma felicidade perfeita,

com que o amor ilude sempre a nossa imaginação; esperança

enganadora, a que nos conservamos presas, mesmo quando nos

vemos forçadas a abandoná-la, e cuja perda agrava e multiplica

os desgostos já demasiado reais duma viva paixão! Este papel

de vos suavizar as dores, de lhes diminuir o número, é o único

que quero, que posso desempenhar neste momento. Nos males

sem remédio, os conselhos só podem incidir sobre o regime a

seguir. Peço-vos somente que vos lembreis que lamentar um

doente não é censurá-lo. Oh, quem somos nós para nos censurarmos

uns aos outros? Deixemos o direito de julgar Àquele que

lê nos corações; e tenho a ousadia de acreditar que, aos seus

olhos paternais, uma multidão de virtudes pode resgatar uma

fraqueza.

Mas, suplico-vos, minha querida amiga, evitai sobretudo

essas resoluções violentas, que não mostram força mas antes um

desânimo completo: não esqueçais que, tornando um outro

possuidor da vossa existência, para me servir da vossa expressão,

não pudestes contudo privar os vossos amigos do que já

antes possuíam, e que nunca cessarão de reclamar.

Adeus, minha querida filha, lembrai-vos às vezes da vossa

terna mãe, e crede que sereis sempre, e acima de tudo, o objecto

dos seus mais queridos pensamentos.

Castelo de..., 4 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Até que enfim, Visconde; desta vez estou mais contente consigo

do que da outra; e agora, falemos amigavelmente, espero

convencê-lo de que, tanto para si como para mim, o acordo que

parece desejar seria uma verdadeira loucura.

Nunca reparou que o prazer, que é com efeito o único fim

de reunião dos dois sexos, não basta no entanto para os unir? E

que, se é precedido do desejo que aproxima, é também seguido

do alheamento que afasta? uma lei da natureza, que só o amor

pode transformar; e o amor; é possível senti-lo quando se quer?

No entanto é sempre necessário; e seria na verdade embaraçoso,

se se não tivesse notado que felizmente bastava que existisse

dum lado. A dificuldade tornou-se de metade do tamanho, e

nem sequer há muito a perder; com efeito um goza a felicidade

de amar, o outro a de agradar, um pouco menos viva na verdade,

236

mas a que se junta o prazer de trair, o que provoca o equilíbrio;

enfim, tudo se arranja.

Mas, diga-me, Visconde, qual de nós dois se encarregará de

trair o outro? Conhece a história dos dois batoteiros, que se

reconheceram durante o jogo: nada conseguiremos, disseram

paguemos as despesas a meias; e abandonaram a partida. Sigamos,

creia-me, este exemplo prudente, e não percamos juntos

um tempo que podemos empregar tão bem algures.

Para lhe provar que penso tanto no seu interesse como no

meu, e que não procedo assim nem por irritação nem por capricho,

não lhe recuso o prémio combinado entre nós: de resto

bem vejo que uma única noite nos bastará; e tenho a certeza de

que saberemos tão bem embelezá-la, que a veremos findar com

pena. Mas não esqueçamos que essa mágoa é necessária à felicidade;

e por mais doce que seja a nossa ilusão, não vamos acreditar

que possa ser durável.

Como vê, resigno-me, e isto sem que o Visconde tenha ainda

cumprido a obrigação que tinha para comigo: porque enfim,

devia ter-me dado a primeira carta da celeste pudibunda; e no

entanto, ou porque ela representa algo para si, ou porque esqueceu

as condições do contrato, que talvez o interesse menos do

que me pretende fazer crer, não recebi nada, absolutamente

nada. No entanto, ou me engano muito, ou a terna devota deve

escrever bastante: pois em que se há-de ocupar quando está só?

Certamente que não tem ânimo para se distrair. Como vê, teria

se quisesse algumas censuras a fazer-lhe; mas deixo-as em silêncio,

para compensar um pouco da irritação que pus talvez na

minha última carta.

E agora, Visconde, só me resta fazer-lhe um pedido; e é tanto

por si como por mim: é o de adiar o momento que também

desejo muito, mas que me parece dever ser retardado até ao meu

regresso à cidade. Por um lado, aqui não teríamos a necessária

liberdade; e, por outro, eu correria um risco: porque bastaria

um pouco de ciúme para prender sem remédio este triste Belleroche,

que no entanto agora parece estar por um fio. Vejo bem

que ele já se esforça para continuar a amar-me; e eu ponho por

vezes tanta malícia como prudência nas carícias com que o sobrecarrego.

Ao mesmo tempo, bem vê que não seria um sacrifício

digno de si! Uma infidelidade recíproca dará um encanto

bem mais picante.

Sabe que às vezes lamento que estejamos reduzidos a estes

recursos? No tempo em que nos amávamos, porque creio que

era amor, eu era feliz; e o Visconde? Mas porque ocupar-me

ainda duma felicidade que não volta? Não, por mais que diga, o

regresso é impossível. Em primeiro lugar, exigirei sacrifícios que

não poderia ou não quereria fazer-me, e que eu talvez não mereça;

e depois, como prendê-lo? Oh, não, não, nem quero pensar

nisso; e apesar do prazer que acho em escrever-lhe, prefiro deixá-lo

bruscamente. Adeus, Visconde.

237

Castelo de..., 6 de Novembro de 17 *.

CARTA CXXXII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Comovida pelas vossas bondades para comigo, senhora, teria

repousado inteiramente nelas se me não retivesse de algum

modo o receio de as profanar, aceitando-as. Por que motivo é

que sou forçada a considerá-las tão preciosas, no próprio momento

em que já não me sinto digna delas? Ah, mas ousarei pelo

menos testemunhar-vos o meu reconhecimento; admirarei, sobretudo,

essa indulgência da virtude, que só conhece as nossas

fraquezas para se apiedar, e cujo poderoso encanto exerce sobre

os corações uma influência tão doce e tão forte, mesmo comparada

com o encanto do amor.

Mas essa amizade, merecê-la-ei ainda quando já não basta

para a minha felicidade? Posso dizer o mesmo dos vossos conselhos;

aprecio-lhes o valor e não os posso seguir. E como não

acreditar numa felicidade perfeita, quando a experimento neste

momento? Sim, se os homens são tal como dizeis, é necessário

fugir-lhes, são odiosos; mas como Valmont está longe de se lhes

assemelhar! Se tem como eles essa violência da paixão, a que

chamais arrebatamento, é nele ultrapassada pelo excesso da sua

delicadeza! Oh, minha amiga, falais-me de partilhar as minhas

penas, regozijai-vos então com a minha felicidade; é ao amor

que a devo, e o objecto dele aumenta-lhe o valor. Amais o vosso

sobrinho, dizeis, talvez por fraqueza. Ah, se o conhecêsseis

como eu! Amo-o idolatradamente, e muito menos do que ele

merece. deixou-se sem dúvida arrastar para alguns erros, ele

próprio concorda; mas quem conheceu como ele o verdadeiro

amor? Que mais posso dizer? Sente-o com a mesma força com

que o inspira.

Irei julgar que esta é uma das ideias quiméricas com que o

amor ilude sempre a nossa imaginação: mas nesse caso, por que

se teria tornado mais terno, mais solícito, agora que nada mais

tem a obter? Confesso que antes lhe notava um ar de reflexão

de reserva, que raramente abandonava, é que muitas vezes me

recordava, mesmo sem querer, as falsas e cruéis impressões que

me haviam dado acerca dele. Mas desde que se pode entregar

sem constrangimento aos movimentos do seu coração, parece

adivinhar todos os desejos do meu. Quem sabe se não nascemos

um para o outro? Se me não estava reservada a felicidade de lhe

ser necessária? Ah, se é uma ilusão, que eu morra antes que ela

acabe. Mas não; quero viver para o amar, para o adorar. Por

238

que deixaria de amar-me? Que outra mulher o poderia tornar

mais feliz do que eu? E, sinto-o por mim, a felicidade que damos

é a mais forte cadeia, a única que prende verdadeiramente. Sim,

é este sentimento delicioso que enobrece o amor, que o purifica

e o torna digno de uma alma terna e generosa, como a de Valmont.

Adeus, minha querida, respeitável e indulgente amiga. Quereria

demorar mais tempo a escrever-vos; mas chegou a hora em

que ele me prometeu vir, e qualquer outra ideia me abandona.

Perdão! Mas sei que desejais a minha felicidade; e é tão grande

neste momento que me abandono totalmente a ela.

Paris, 7 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXIii

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Quais são pois, minha bela amiga, esses sacrifícios que me

julga incapaz de fazer, e cujo prémio seria afinal agradar-lhe?

Ah! Dê-mos somente a conhecer, e, se hesitar em lhos oferecer

permito-lhe que recuse as minhas homenagens. Que.julga de

mim desde há algum tempo, se, mesmo quando é indulgente,

ainda continua a duvidar dos meus sentimentos ou da minha

energia? Sacrifícios que eu não poderia ou não queria fazer! Supõe-me

então apaixonado, dominado? E o valor que dei ao

triunfo, suspeita que o atribuo à pessoa? Ah, graças ao Céu, não

estou ainda reduzido a isso, e guardo-me para lho provar. Sim,

prová-lo-ei, mesmo que seja com Madame de Tourvel. Seguramente,

depois disso, não lhe ficarão dúvidas.

Foi-me possível, julgo que sem me comprometer, conceder

algum tempo a uma mulher, que tem pelo menos o mérito de ser

dum género que raramente se encontra. Talvez também a estação

morta em que veio esta aventura me tenha levado a entregar-me

com mais entusiasmo; e agora que o grande movimento

mal recomeça, não é de admirar que ela me ocupe ainda quase

inteiramente. Pense no entanto que ainda não há oito dias que

gozo o fruto de três meses de trabalhos. Tantas vezes me demorei

mais tempo com o que valia muito menos e não me custara

tanto! E nunca a minha amiga me julgou mal por isso.

Mais ainda, quer saber a verdadeira causa da solicitude que

emprego? Ei-la. Esta mulher é naturalmente tímida; durante os

primeiros dias duvidava sem cessar da sua felicidade, e essa dúvida

bastava para a perturbar: de forma que só agora começo a

poder observar até onde vai o meu poder nesse campo. Eis uma

coisa que ardia em curiosidade por saber; e a oportunidade não

é tão fácil de encontrar como se julga.

239

Em primeiro lugar, para muitas mulheres, o prazer é apenas

o prazer e nada mais do que isso; e para essas, seja qual for o título

que nos concedam, somos simples criados, puros moços de

recados, cujo mérito reside apenas na actividade, e entre os

quais o que mais faz é sempre o que faz melhor.

Numa outra classe, talvez hoje a mais numerosa, a celebridade

do amante, o prazer de o ter arrebatado a uma rival, o receio

de que por sua vez lhe seja roubado, ocupa quase inteiramente

as mulheres: nós contribuímos, claro, mais ou menos

para esta felicidade de que gozam; mas ela depende mais das

circunstâncias do que da pessoa. Vem-lhes por nós, mas não de

nós.

Precisava por isso de encontrar, para as minhas observações,

uma mulher delicada e sensível, que se dedicasse unicamente

ao amor, e que, no próprio amor, visse só o amante; cuja

emoção, não seguindo o caminho habitual, partisse sempre do

coração para os sentidos; já a vi, por exemplo (e não falo do

primeiro dia), sair do prazer toda chorosa, e um instante depois

reencontrar a voluptuosidade numa palavra que respondia à

sua alma. Enfim, era necessário ainda acrescentar essa natural

candura, tornada invencível de tanto se lhe entregar, e que lhe

não permite esconder nenhum dos sentimentos do coração.

Ora, concordará que tais mulheres são raras; e julgo mesmo

que, sem esta, nunca me teria sido dado encontrar nenhuma.

Não será pois de estranhar se ela me prender mais tempo do

que qualquer outra; e se a observação que quero fazer sobre ela

exige que a torne feliz, inteiramente feliz, por que me recusaria

eu a tal, tanto mais que isso serve os meus planos, em vez de os

contrariar? Mas por que o espírito se encontra ocupado, segue-se-lhe

que o coração seja escravo? Não, sem dúvida. Mas o

valor que não deixo de atribuir a esta aventura não me impedirá

de me entregar a outras, ou mesmo de a sacrificar a algumas

mais agradáveis.

Sinto-me de tal modo livre que nem sequer descurei a pequena

Volanges, a quem afinal dou tão pouca importância. A

mãe trá-la para a cidade dentro de três dias; e desde ontem que

arranjei maneira de assegurar as minhas comunicações: uma

gratificação ao porteiro, e umas bugigangas à mulher, resolveram

o assunto. E imaginar que Danceny não soube encontrar

um processo tão simples! E ainda dizem que o amor nos torna

inventivos! Pelo contrário, embrutece aqueles que domina. E

pensa que me não saberei defender? Ah! Esteja tranquila. Vou

já, dentro de poucos dias, enfraquecer, partilhando-a, a impressão

talvez demasiado viva que experimentei; e se uma só partilha

não bastar, multiplicá-las-ei.

Mas estarei pronto a entregar a jovem colegial ao seu discreto

amante, logo que a minha amiga o julgue oportuno. Parece-me

que já não tem razões para o impedir; e eu consinto em

prestar esse insigne serviço ao pobre Danceny. É, na verdade, o

240

mínimo que lhe devo por todos os que me prestou. Está agora

numa grande inquietação por saber se será recebido em casa de

Madame de Volanges. Vou-o acalmando o melhor que posso,

assegurando-lhe que, dum ou doutro modo, o tornarei feliz na

primeira oportunidade: e enquanto espero, continuo a ocupar-me

da correspondência, que ele quer recomeçar logo após a

chegada da sua Cecília. Já tenho seis cartas dele, e ainda receberei

mais uma ou duas antes desse dia feliz. É preciso que o rapaz

esteja muito desocupado!

Mas deixemos esse par infantil, voltemos a nós; que eu possa

ocupar-me unicamente da tão doce esperança que me deu a

sua carta. Sim, prender-me-á, sem dúvida; nem lhe perdoaria se

duvidasse. Alguma vez deixei de lhe ser constante? Os nossos

laços foram desfeitos, mas não quebrados; a nossa pretensa

ruptura foi um erro da nossa imaginação: os nossos sentimentos

e interesses mantiveram-se unidos. Tal como o viajante que regressa

desenganado, reconhecerei que deixara a felicidade para

perseguir a esperança; e direi como d'Hancourt:

Plus je vis d'étrangers, plus j'amai ma patrie.

Não fuja mais à ideia, ou antes, ao sentimento que a reconduz

até mim; e depois de termos provado todos os prazeres nas

nossas diversas incursões, regozijemo-nos com a felicidade de

sentir que nenhum deles é comparável ao que experimentáramos

e que reencontraremos mais delicioso ainda.

Adeus, encantadora amiga. Acedo em esperar pelo seu regresso:

mas apresse-o e não esqueça que o desejo muito.

Castelo de..., 11 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXIV

A MARQUESA DE MERTEUiL AO VISCONdE DE VALMONT

Na verdade o Visconde é como as crianças, diante de quem

não se pode dizer nada e a quem não se pode mostrar nada, que

não desejem imediatamente! Bastou passar-me uma simples

ideia pela cabeça, à qual, aliás, o preveni de que não queria

prestar atenção, e foi o bastante para que tentasse prender-me a

ela, quando eu a procurava esquecer, querendo, por assim dizer,

obrigar-me a compartilhar os seus estouvados desejos! Acha

generoso da sua¨parte deixar-me carregar sozinha o fardo da

prudência? Torno a dizer-lho, e repito-o a mim própria mais

frequentemente ainda, o acordo que me propõe é realmente

impossível. Ainda que o Visconde pusesse no assunto toda a

241

generosidade que me mostra neste momento, não acredita que

eu tenha também as minhas susceptibilidades, e não queira aceitar

sacrifícios que prejudiquem a sua felicidade?

Ora, não será verdade, Visconde, que se ilude quanto ao

sentimento que o prendeu a Madame de Tourvel? É amor, ou

esse sentimento nunca existiu: nega-o de cem maneiras mas

prova-o de mil. O que é, por exemplo, esse subterfúgio de que se

serve para consigo mesmo, porque acredito que seja sincero

comigo, e que o leva a atribuir ao prazer de observar, o desejo,

que não pode esconder nem combater, de conservar essa mulher?

Não parecerá que nunca fez nenhuma outra feliz perfeitamente

feliz? Ah! Se duvida, tem a memória bem curta! mas não

não se trata de nada disto. Muito simplesmente o coração ilude-lhe

o espírito, e obriga-o a recorrer a fracas justificações;

mas eu, que não tenho nenhum interesse em enganar-me a mim

própria, não sou tão fácil de contentar.

É o caso que, notando embora a delicadeza que o levou a

suprimir cuidadosamente todas as palavras que imaginou pudessem

ter-me desagradado, vi no entanto que, talvez sem dar

por isso, conservava as mesmas ideias. Com efeito, já não se trata

da adorável, da celeste Madame de Tourvel: mas é ainda uma

mulher espantosa, uma mulher delicada e sensível, e isto, com

exclusão de todas as outras; uma mulher rara, enfim, e como

não se encontra outra igual. O mesmo se passa com o tal encanto

desconhecido, que não é o mais forte. Pois bem, seja: mas visto

que até aqui nunca o tinha encontrado, é bem de crer que não

o volte a encontrar no futuro, e que a sua perda seja irreparável.

Ora, ou isto são sintomas infalíveis de amor, ou então temos de

renunciar a encontrá-lo em parte alguma.

Tenha a certeza que desta vez lhe falo sem mau humor.

Prometi a mim mesma nunca mais me deixar assaltar por ele;

reconheci que se podia tornar uma armadilha perigosa. Creia-me,

sejamos amigos, e fiquemos por aí. Agradeça-me a coragem

que mostrei em defender-me: sim, coragem; porque às vezes

é bem precisa, até para não se tomar uma decisão que se

sabe errada.

É pois apenas para o pôr de acordo comigo por persuasão

que vou responder à sua pergunta sobre os sacrifícios que eu

exigiria e que o Visconde não poderia fazer. Sirvo-me de propósito

da palavra exigir, porque tenho a certeza de que, dentro em

breve, irá achar-me, com efeito, demasiado exigente: mas tanto

melhor! Em vez de me zangar com as suas recusas, agradecer-lhas-ei.

Olhe, não é consigo que quero dissimular, embora o

devesse talvez fazer.

Exigirei pois, veja a crueldade!, que essa rara, essa espantosa

Madame de Tourvel não seja para si mais do que uma mulher

vulgar, uma mulher como ela é, afinal: porque, não nos deixemos

enganar, esse encanto, que supomos achar nos outros, é em

nós que existe; é apenas o amor a embelezar o objecto amado.

242

Mesmo que este sacrifício lhe seja impossível, tem no entanto

que mo prometer, jurar até; mas, aviso, não acreditarei em falsas

promessas. Só me deixarei convencer pelo conjunto do seu

procedimento.

Mas ainda não é tudo; sou muito caprichosa! O sacrifício

da pequena Cecília, que me oferece com tão boa vontade, não

me interessa. Pedir-lhe-ei, pelo contrário, que continue esse

penoso serviço, até nova ordem da minha parte; talvez porque

goste de abusar do meu poder ou talvez porque, mais indulgente

ou mais justa, me baste dispor dos seus sentimentos, sem querer

prejudicar os seus prazeres. De qualquer forma, quero ser obedecida;

e as minhas ordens serão rigorosas!

Considerar-me-ia então obrigada a agradecer-lhe; quem

sabe? Talvez até a recompensá-lo. Por exemplo, abreviaria uma

ausência que se me tornaria insuportável. Encontrar-nos-íamos

finalmente, Visconde, encontrar-nos-íamos... de que maneira?...

Mas lembre-se de que isto é apenas uma conversa, o simples

relato dum projecto impossível, e não quero ser a única a

esquecê-lo...

Sabe que o meu processo me inquieta um pouco? Quis finalmente

conhecer ao certo quais eram as minhas armas; os advogados

citam-me as leis, e sobretudo autoridades, como eles lhes

chamam: mas já não me acho tão forte como supunha. Quase

lamento não ter aceitado o acordo. No entanto tranquilizo-me,

pensando que o procurador é hábil, o advogado eloquente e a

demandista bonita. Se estes três argumentos não bastassem, seria

preciso alterar toda a sequência do assunto, e que viria a

acontecer ao respeito pelos antigos costumes?

O processo é actualmente a única coisa que me retém aqui.

Belleroche, acabou-se: desistiu; trabalho compensado. Chegou

ao ponto de se lamentar por não ter ido ao baile desta noite

queixume desocupado! Restituí-lo-ei à liberdade quando regressar

a Paris. Ao fazer este doloroso sacrifício, consolo-me com a

generosidade que ele me atribui.

Adeus, Visconde, escreva muitas vezes: os pormenores dos

seus prazeres compensam-me em parte dos aborrecimentos que

enfrento.

Castelo de...11 de Novembro de 17 -"

CARTA CXXXV

A PRESiDENTE DE TOURVEL A MADAME dE ROSEMONDE

Tento escrever-vos, sem saber ainda se serei capaz. Ah! Meu

Deus Quando penso que na minha última carta era o excesso

de felicidade que me impedia de a continuar! É o de desespero

que me pesa agora; só me deixa força para sentir as dores, e

243

rouba-ma quando tento exprimi-las.

Valmont... Valmont já me não ama, o seu amor nunca existiu.

O amor não desaparece assim. Ele engana-me, trai-me, ultraja-me.

Suporto todos os infortúnios e humilhações que é possível

reunir, e é dele que me vêm !

E não julgueis que é uma simples suspeita: estava bem longe

de as sentir. Nem tenho a sorte de poder duvidar. Vi-o: que me

poderá dizer para se justificar?... Mas que lhe importa! Nem

sequer tentará... Infeliz! Que lhe interessarão as tuas censuras e

lágrimas? Não é de ti que ele se ocupa!..

É pois verdade que me sacrificou, me abandonou mesmo...

E por quem? Por uma vil criatura... Mas que digo? Ah! Já nem

tenho o direito de a desprezar. Ela traiu menos deveres, é menos

culpada do que eu. Oh! Como é doloroso o desgosto, quando é

fruto remorso! Sinto que os meus tormentos redobram. Adeus

minha querida amiga; por muito indigna de piedade que me

tenha tornado, senti-la-íeis certamente por mim, se pudésseis

fazer uma ideia do que sofro.

Acabo de reler a carta e apercebi-me de que em nada vos

pode elucidar; vou pois tentar a coragem de vos contar este

cruel acontecimento. Foi ontem; eu devia, pela primeira vez

desde o meu regresso, cear fora da minha casa. Valmont veio

ver-me às cinco horas; nunca me parecera tão terno. Deu-me a

entender que o meu projecto de sair o contrariava, e, como imaginais,

tive logo a ideia de ficar em casa. No entanto, duas horas

depois, e de repente, o seu ar e tom mudaram sensivelmente.

Não sei se me escapou qualquer coisa que lhe tenha desagradado;

pelo quer que fosse, pouco tempo depois, afirmou lembrar-se

de uma ocupação que o obrigava a deixar-me, e foi-se embora:

mas não o fez sem manifestar uma muito viva pena, que me

pareceu carinhosa, e que então julguei sincera.

Entregue a mim própria, achei mais conveniente não faltar

aos meus primeiros compromissos, visto que estava livre agora.

Acabei por me arranjar e parti na carruagem. Infelizmente o

cocheiro fez-me passar diante da Ópera, e vi-me envolvida no

tumulto da saída; uns quatro passos à minha frente, e na fila ao

lado da minha, vi a carruagem de Valmont. O coração bateu-me

logo com mais força, mas não de temor; e a única ideia que

me ocupava era o desejo de que a minha carruagem avançasse.

Em vez disso, foi a dele que foi obrigada a recuar, e que ficou ao

lado da minha. Debrucei-me imediatamente: qual não foi o meu

espanto quando vi a seu lado uma prostituta, bem conhecida

como tal! Afastei-me, como podereis supor, e era já bastante

para me afligir o coração; mas o que vos deve custar a acreditar,

é que essa rapariga, aparentemente instruída por alguma odiosa

confidência, não deixara a portinhola, nem cessara de me olhar,

com gargalhadas capazes de provocarem uma cena.

No acaMrunhamento em que me encontrava, deixei-me no

entanto conduzir à casa onde devia cear; mas foi-me impossível

244

ficar; sentia-me a cada instante prestes a desmaiar, e sobretudo

custava-me reter as lágrimas.

Assim que regressei escrevi ao senhor Valmont e enviei-lhe

logo a carta; não estava em casa. Querendo, por qualquer preço,

sair do estado de morte em que me achava, ou confirmá-lo

para sempre, reenviei-a com ordem de o esperar; mas antes da

meia-noite o meu criado voltou, com a notícia de que o cocheiro,

que recolhera, lhe dissera que o patrão não voltaria nessa

noite. Esta manhã julguei nada mais ter a fazer do que tornar a

pedir as minhas cartas, e dizer-lhe que não voltasse a minha

casa. Dei ordens nesse sentido; mas eram, certamente, inúteis.

Passa do meio-dia; ainda não apareceu, nem recebi qualquer

recado da parte dele.

Agora, querida amiga, nada mais tenho a acrescentar: eis-vos

instruída e conheceis o meu coração. A minha única esperança

é de que não tenha muito tempo para afligir a vossa delicada

amizade.

Paris, 15 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Com certeza, senhor, que, depois do que ontem se passou,

não esperais voltar a ser recebido em minha casa, e com certeza

que nem sequer o desejais! Este bilhete é pois menos para vos

pedir que não volteis, do que para vos solicitar essas cartas que

nunca deveriam ter existido; e que, se puderam interessar-vos

um momento, como provas da cegueira que tínheis procurado

fazer nascer, só poderão ser-vos indiferentes agora que ela se

dissipou, visto que exprimem um sentimento que destruístes.

Reconheço e confesso que errei ao depositar em vós uma

confiança de que tantas outras antes de mim tinham sido vítimas;

nisto só tenho de me acusar a mim própria: mas julgava

que pelo menos não merecia ser abandonada por vós ao desprezo

e ao insulto. Julgava que, tendo-vos sacrficado tudo, e renunciando

por vós aos direitos, à estima dos outros e à minha

própria, podia esperar todavia não ser julgada por vós mais severamente

que pelo público, cuja opinião separa ainda, por um

imenso intervalo, a mulher fraca da depravada. Estes erros, que

são os de toda a gente, são os únicos de que vos falo. Calo os

queixumes de amor; o vosso coração não compreenderia o meu.

Adeus, senhor.

Paris, 15 de Novembro de 17 *

245

CARTA CXXXVII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Acabam agora, senhora, de me entregar a vossa carta; tremi

ao lê-la, e mal me deixou forças para lhe responder. Que ideia

horrível faz de mim! Ah, sem dúvida tenho defeitos; e tais que

nunca mos perdoarei em toda a vida, mesmo que os cubrísseis

com a vossa indulgência. Mas os de que me acusais estiveram

sempre bem longe da minha alma! O quê, eu! humilhar-vos!

aviltar-vos! quando vos respeito tanto como vos amo; quando

só conheci o orgulho, no momento em que me julgastes digno

de vós. As aparências iludiram-vos; e confesso que eram contra

mim: mas não tínheis no coração o que bastava para as combater?

E ele não se revoltou só com a ideia de que poderia ter razões

para queixar-se do meu? Contudo acreditastes! Assim, não

só me julgastes capaz desse delírio atroz, mas haveis até receado

ser vítima dele em virtude das vossas bondades para comigo.

Ah, se vos julgais degradada a esse ponto pelo vosso amor, é

porque eu próprio sou aos vossos olhos bem vil!

Oprimido pelo sentimento doloroso que esta ideia me causa,

perco a afastá-la o tempo que devia empregar a destruí-la.

Confessarei tudo; ainda uma outra consideração me retém. É

então preciso recordar factos que queria aniquilar, e fixar a vossa

atenção e a minha sobre um momento de erro que quereria

resgatar com o resto da minha vida, de que procuro ainda a

causa, e cuja lembrança deve fazer para sempre a minha humilhação

e o meu desespero? Ah, se acusando-me excito a vossa

cólera, não tereis ao menos que procurar longe a vingança; bastar-vos-á

deixar-me entregue aos meus remorsos.

E no entanto, quem acreditará? Este acontecimento teve

como causa primeira o poderoso encanto que sinto junto de

vós. Foi ele que me fez esquecer por tempo excessivo um assunto

importante, que não podia ser adiado. Deixei-vos demasiado

tarde e não encontrei a pessoa que procurava. Esperava avistá-la

na Ópera, mas a minha tentativa foi também baldada. Encontrei

aí Emília, com quem me relacionei num tempo em que

estava bem longe de vos conhecer ou de conhecer o amor; não

tinha levado carruagem e pediu-me que a deixasse em casa, bem

perto dali. Não vi nenhum perigo nisso e acedi. Mas foi então

que vos encontrei; senti logo que seríeis levada a julgar-me culpado.

O temor de vos desagradar ou de vos afligir é tão forte em

mim, que deveria ser e foi com efeito logo notado. Confesso

mesmo que me levou a tentar evitar que a rapariga se mostrasse;

este esforço de delicadeza voltou-se afinal contra o amor. Habituada,

como todas as da sua espécie, a só se sentir segura dum

prestígio sempre usurpado por meio de abusos a que se atrevem,

Emília não quis deixar escapar uma ocasião tão retumbante.

246

Quanto mais via aumentar o meu embaraço, mais fazia por se

mostrar; e a sua louca alegria, de que coro que tenhais podido

julgar-vos objecto, tinha apenas por motivo a dor cruel que eu

sentia, dor essa proveniente ainda do meu respeito e do meu

amor.

Até aqui sou sem dúvida mais infeliz do que culpado; e estes

erros, que são os de toda a gente, e os únicos de que me falais,

estes erros, não existindo, não me podem ser censurados. Mas

calais em vão os queixumes do amor; não poderei guardar sobre

eles o mesmo silêncio; um interesse demasiado vivo obriga-me

a rompê-lo.

Não é que, na confusão em que fui lançado por este inconcebível

equívoco, possa, sem uma dor aguda, dedicar-me a evocar

lembranças. Compenetrado dos meus erros, consentirei em

suportar o castigo, ou esperarei com o tempo o perdão merecido

pela minha constante ternura e pelo meu arrependimento.

Mas como me poderei calar, quando o que me falta dizer é tão

importante para a sensibilidade de todo o vosso ser?

Não penseis que procuro um subterfúgio para desculpar ou

aliviar a minha falta; confesso que sou culpado. Mas não confesso,

nem confessarei nunca, que este erro humilhante possa

ser encarado como um ultraje feito ao amor. Oh, que pode haver

de comum entre uma surpresa dos sentidos, entre um momento

de esquecimento de nós próprios, logo seguido pela vergonha

e pelo remorso, e um sentimento puro, que só pode nascer

numa alma delicada, manter-se pela afeição, e ter como fruto

a felicidade! Ah, não profaneis assim o amor! Evitai sobretudo

profanar-vos, reunindo no mesmo ponto de vista o que nunca

se pôde confundir. Deixai as mulheres vis e degradadas recearem

uma rivalidade que sentem que contra elas se pode estabelecer,

e sofrer os tormentos duma inveja igualmente cruel e

humilhante: mas vós! afastai os olhos desses objectos que maculariam

os vossos olhares; e, pura como a Divindade, puni como

ela a ofensa sem a sentirdes.

Mas que pena me podereis impor que me seja mais dolorosa

do que a que sinto? Que possa ser comparada ao remorso de

vos ter desagradado, ao desespero de vos ter afligido, à ideia

insuportável de me ter tornado menos digno de vós? Procurais

castigar-me! E eu peço-vos consolações: não porque as mereça,

mas porque me são necessárias, e só me podem vir de vós.

Se de repente, esquecendo o nosso amor deixando de dar

valor à minha felicidade, quiserdes pelo contrário arrastar-me

para uma dor eterna, tendes esse direito: feri; mas se, mais indulgente

ou mais sensível, vos lembrais ainda dos sentimentos

tão ternos que uniam os nossos corações; dessa voluptuosidade

da alma, sempre renascente e de cada vez mais vivamente sentida;

desses dias tão doces, tão felizes que cada um de nós deve ao

outro; de todos esses bens do amor que só ele pode dar; preferireis

talvez fazê-los renascer a destruí-los. Que mais poderei dizer?

247

Perdi tudo, e por minha culpa, mas tudo posso reaver pela

vossa bondade. Compete-vos decidir agora. Acrescento só uma

palavra. Ainda ontem me juráveis que a minha felicidade estava

segura enquanto dependesse de vós! Ah! senhora, abandonar-me-eis

hoje a um desespero eterno?

Paris, 15 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXVIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA De MERTEUIL

Insisto, minha bela amiga: não estou apaixonado; e não

tenho culpa se as circunstâncias me forçam a representar esse

papel. Basta que consinta, e volte; verá com os seus próprios

olhos como sou sincero. Prestei ontem as minhas provas, e estas

não podem ser anuladas pelo que se passa.

Estava eu ontem em casa da meiga e púdica dama, e não

tinha mais nenhum assunto a tratar: porque a pequena Volanges,

apesar do seu estado prematuro, devia passar toda a noite no baile

de Madame V... A desocupação fizera-me desejar

prolongar o encontro; e exigira até para isso um pequeno sacrifício:

mas apenas me fora concedido, e já todo o prazer que esperava

tinha sido perturbado pela ideia desse amor que se obstina

em atribuir-me; ou pelo menos em censurar-me; de forma

que só sentia o desejo de poder simultaneamente certificar-me e

convencê-la de que era da sua parte pura calúnia.

Tomei então uma decisão violenta; e, alegando um pretexto

bastante inconsistente, abandonei a minha bela, algo surpreendida,

e sem dúvida bastante aflita. Eu, porém, fui tranquilamente

ter com Emilia à Ópera; e ela poder-lhe-ia contar que, até à

manhã de hoje em que nos separámos, nenhum remorso perturbou

os nossos prazeres.

No entanto eu teria uma grande causa de inquietação, se a

minha perfeita indiferença me não tivesse salvo: imagine que

estando a uns quatro prédios de distância da Ópera, com Emília

na minha carruagem, veio a da austera devota arrumar-se exactamente

ao lado da minha, e a dificuldade de circulação deixou-no

perto dum quarto de hora ao lado um do outro. Via-se

tão bem como se fosse meio-dia e não havia maneira de escapar.

Mas não foi tudo; decidi dizer a Emília que se tratava da

senhora da carta. (Lembra-se talvez dessa loucura e de que Emília

era a mesa.) Ela, que o não tinha esquecido, e que é zombeteira,

não descansou enquanto não examinou à vontade esta

virtude, como ela dizia, e isso com grandes e irritantes gargalhadas.

Mas também ainda não foi tudo; pois a dama ciumenta não

248

mandou logo uma carta a minha casa nessa mesma noite? Eu

não estava: mas, na sua obstinação, tornou a mandar com ordem

para me esperarem. Eu, como estava decidido a ficar com

Emília, mandara embora a carruagem, com ordem ao cocheiro

de voltar a buscar-me esta manhã; e quando ao chegar encontrou

o mensageiro do amor, achou bem dizer-lhe simplesmente

que eu já não regressava naquela noite. Imaginará o efeito desta

notícia; na volta encontrei-me despedido com toda a dignidade

que exigia a circunstância!

Assim esta aventura, que acha interminável, teria podido,

como vê, acabar esta manhã; se não acabou, não foi, como irá

talvez pensar, porque dê muito valor à continuação: mas antes

porque, por um lado, não achei decente deixar que outrem

rompesse; e, por -outro, porque quis reservar-lhe a homenagem

desse sacrifício.

Respondi pois ao severo bilhete com uma longa epístola

sentimental. Expus longas razões, e contei com o amor para as

fazer passar por boas. êxito total. Acabo de receber um segundo

bilhete, ainda muito severo, que confirma a eterna ruptura,

como é das regras; mas já num tom diferente. Insiste em que

não quer voltar a ver-me: essa decisão é enunciada quatro vezes

repetida da maneira mais irrevogável. Concluí que não tinha

um momento a perder para aparecer. Enviei já o meu criado

para entreter o porteiro; e dentro dum momento irei eu próprio

fazer assinar o meu perdão: porque nas questões desta espécie,

só há uma fórmula capaz de obter a absolvição geral, e essa só

se executa pessoalmente.

Adeus, minha encantadora amiga; parto para tentar este

grande golpe.

Paris, 15 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXIX

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Como me acuso, minha sensível amiga, por vos ter falado

demasiado, e demasiado cedo,de males passageiros! Sou a causa

de que vos aflijais neste momento; esses desgostos que vos vêm

de mim duram ainda, e eu sou já de novo feliz. Sim, tudo está

esquecido, perdoado; digamos antes sanado. Ao estado de dor e

angústia sucederam a calma e as delícias. Oh, alegria do meu

coração, como posso exprimir-vos! Valmont está inocente; não

se é culpado quando se ama tanto. Esses erros graves e ofensivos

que eu lhe censurava com tanta amargura, não os cometera; e

se, num só ponto, precisei de indulgência, não é certo que também

eu tinha injustiças a serem perdoadas?

249

Não vos falarei pormenorizadamente dos factos ou das razões

que os justificam; talvez até o espírito os apreciasse mal:

só ao coração é que compete senti-los. Mas se me acusardes de

fraqueza, chamarei a vossa opinião para apoiar a minha. Em

relação aos homens, vós própria o dissestes, a infidelidade não é

inconstância.

Não é que eu não sinta que esta distinção, aprovada pelo

consenso geral, fere ainda a delicadeza; mas de que se queixaria

a minha, quando a de Valmont sofre mais ainda? Esse erro que

esqueço, não penseis que ele o perdoe a si próprio ou se console;

e no entanto, já reparou bem essa ligeira falta pelo excesso do

seu amor e da minha felicidade!

Ou a minha felicidade é maior, ou aprecio-a mais desde que

receei tê-la perdido: mas o que vos posso dizer é que, se ainda

me sentisse com força para suportar desgostos tão cruéis como

os que acabo de sofrer, não julgaria pagar assim demasiado

caro o acréscimo de felicidade que depois saboreei. Oh, minha

terna mãe! Repreendei a esta vossa filha irreflectida por vos ter

afligido com tanta precipitação; ralhai-lhe por ter julgado temerariamente

e caluniado aquele que ela não devia cessar de adorar:

mas ao mesmo tempo que a reconheceis imprudente, contemplai-a

feliz e aumentai-lhe a alegria compartilhando-a.

Paris, noite de 16 de Novembro de 17* *

CARTA CXL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Que se passa, minha bela amiga, que não recebo resposta

sua? A minha última carta parecia-me no entanto merecê-la; já

há três dias que a devia ter recebido e espero ainda! O menos

que lhe posso dizer é que estou zangado; deste modo nada lhe

contarei das minhas aventuras.

Acerca do belíssimo efeito da reconciliação; de ter dado

lugar a novas ternuras, em vez de censuras e desconfiança; de

ser eu agora quem recebe as desculpas e reparações devidas à

minha candura caluniada, nada lhe direi; e sem o acontecimento

imprevisto da última noite, nem sequer lhe escreveria. Mas

como diz respeito à sua pupila, e como naturalmente ela não

estará capaz de lhe escrever durante algum tempo, encarrego-me

eu disso.

Por motivos que facilmente adivinhará ou não, de há uns

dias para cá que Madame de Tourvel não me podia ocupar o

tempo; e como essas razões não podiam existir na pequena Volanges,

tornara-me mais assíduo junto dela. Graças ao amável

250

porteiro, não precisava de vencer quaisquer obstáculos; e levávamos,

a sua pupila e eu, uma vida cómoda e regrada. Mas o

hábito conduz à negligência; nos primeiros dias, achávamos

sempre as precauções insuficientes para a nossa segurança; tremíamos

ainda detrás dos ferrolhos. Ontem, uma distracção inacreditável

causou o acidente que lhe quero contar; e se pelo meu

lado apanhei um susto, a donzela pagou mais caro.

Não dormíamos, mas estávamos no repouso e no abandono

que se seguem à voluptuosidade, quando ouvimos a porta do

quarto abrir-se de repente. Agarrei logo a espada, tanto para

minha defesa como para da nossa comum pupila: avancei e não

vi ninguém, mas com efeito a porta estava aberta. Como tínhamos

luz, fiz uma busca, mas não encontrei vivalma. Lembrei-me

então que nos esquecêramos das precauções habituais; e que a

porta, apenas encostada, ou mal fechada, se abrira por si própria.

Voltei para me juntar à minha tímida companheira e tranquilizá-la,

mas não a encontrei no leito; caíra ou tentara esconder-se

na alcova: enfim, estava desmaiada e sem outro movimento

a não ser fortes convulsões. Imagine o meu embaraço!

Ainda consegui deitá-la na cama, e até fazê-la voltar a si: mas

ferira-se na queda, e as consequências não tardaram.

Dores de rins e cólicas violentas, outros sintomas ainda

menos equívocos, depressa me esclareceram quanto ao seu estado:

mas, para a elucidar, foi preciso revelar-lhe primeiro que se

encontrava grávida; porque não fazia a mínima ideia. Nunca

ninguém, antes desta pequena, conservou tanta inocência, fazendo

ao mesmo tempo tão bem tudo o que é preciso para se

desfazer dela! Oh, esta não perde tempo a reflectir!

Mas lamentava-se e vi que era preciso tomar uma decisão.

Ficou então combinado que eu iria imediatamente ao médico e

ao cirurgião da casa, e que os preveniria de que alguém os viria

buscar, contando-lhes tudo, sob segredo; que ela, por seu lado,

chamaria a criada de quarto logo que eu saísse; que lhe confidenciaria

tudo ou não, como quisesse; mas que a mandaria buscar

socorro, e proibiria sobretudo que acordassem Madame de

Volanges: delicada e natural atenção duma filha que teme inquietar

a mãe.

Fiz as duas diligências e as duas confissões o mais depressa

que pude, e voltei para casa, donde não saí ainda: mas o cirurgião,

que eu aliás já conhecia, veio ao meio-dia relatar-me o estado

da doente. Não me enganara; mas ele espera que, se não

sobrevier qualquer complicação, ninguém lá em casa dará por

nada. A criada de quarto está no segredo; o médico deu um

nome à doença; e este assunto arrumar-se-á como milhares de

outros, a não ser que mais tarde nos possa ser útil que dele se

fale.

Mas haverá ainda interesses comuns entre a minha amiga e

eu? O seu silêncio deixa-me dúvidas; já nem acreditaria nisso, se

o meu desejo não procurasse a todo o custo manter-me a esperança.

251

Adeus, minha bela amiga: beijo-a, mau-grado o seu rancor.

Paris, 21 de Novembro de 17* *

CARTA CXLI

A MARQUESA DE MARTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Meu Deus! Visconde, como me maça com a sua obstinação!

Que lhe importa o meu silêncio? Pensa talvez que o mantenho

por falta de razões para me defender? Ah! Prouvera a Deus!

Mas não, é antes porque me custa dizer-lhas.

Fale-me francamente; ilude-se a si próprio ou procura enganar-me ?

A diferença entre as suas palavras e acções deixa-me

hesitar apenas entre esses dois sentimentos: qual é o verdadeiro?

Que quer que lhe diga, quando eu própria não sei que pensar?

Parece que dá grande valor à sua última cena com a Presidente;

mas o que é que ela prova a favor da sua opinião e contra

a minha? Com certeza que eu lhe não disse que amava essa

mulher o bastante para não a enganar, para não aproveitar todas

as ocasiões que lhe parecessem agradáveis ou fáceis: nem

sequer duvido de que para si seja quase a mesma coisa satisfazer

com outra, com a primeira que apareça, os desejos que aquela

lhe tem feito nascer; e nem sequer me surpreende que, por uma

libertinagem de espírito que é inútil negar-lhe, tenha uma vez

feito por deliberação o que fez mil outras por acidente. Quem

sabe se isso não é moda do tempo, e o que fazem todos, desde o

perverso ao mais idiota dos inocentes? Hoje o que se abstém

passa por romanesco, e não é esse, parece-me, o defeito de que o

acuso.

Mas o que disse, o que pensei, o que penso ainda é que nem

por isso deixa de amar a Presidente; não, com certeza, com um

amor puro e terno, mas com o que lhe é dado sentir; com aquele

que faz, por exemplo, ver numa mulher atractivos ou qualidades

que ela não tem; que a coloca num lugar à parte, e todas as

outras abaixo; que o conserva preso a ela, mesmo quando a ultraja;

tal como um sultão pode sentir pela favorita, o que não o

impede de preferir muitas vezes uma simples odalisca. Esta

comparação parece-me tanto mais certa, quanto é verdade que,

tal como ele, o Visconde nunca é nem o amigo, nem o amante

duma mulher; mas sempre ou o seu tirano ou o seu escravo. Por

isso estou bem certa que se humilhou e aviltou, para voltar a

estar nas graças desse belo objecto! E demasiado feliz por tê-lo

conseguido, assim que julgou chegado o momento de obter o

perdão, deixa-me por virtude desse grande acontecimento.

252

Ainda na sua última carta, se me não fala unicamente dessa

mulher, é porque nada me quer dizer das suas grandes aventuras;

são para si tão importantes, que julga o silêncio que faz

sobre elas uma punição para mim. E é depois de mil provas da

sua acentuada preferência por uma outra, que me pergunta

tranquilamente se há ainda interesses comuns entre nós! Tome

cuidado, Visconde! Quando eu responder, a minha resposta será

irrevogável; e recear pronunciá-la neste momento é já talvez esclarecer

demasiado. Deste modo, não quero falar nisso.

O mais que posso fazer é contar-lhe uma história. Não terá

talvez tempo para a ler, ou para lhe prestar a necessária atenção?

Isso é consigo. Será afinal, supondo o pior, apenas uma história

deitada ao mar.

Um dos meus conhecidos tinha-se deixado prender, tal

como o meu amigo, por uma mulher que não estava à sua altura.

Mas ao mesmo tempo tinha a lucidez de ver que, mais tarde

ou mais cedo, aquela aventura o prejudicaria; e corava de vergonha

por não ter coragem para romper. O seu embaraço era

tanto maior, quanto se gabara aos amigos de se manter inteiramente

livre; e não ignorava que o ridículo aumenta à medida

que procuramos fugir-lhe. Passava assim a vida a fazer tolices e

a dizer depois: não tenho culpa. Este homem tinha uma amiga

que por um momento esteve tentada a revelá-lo a todos nesse

estado de embriaguez, e a tornar assim o seu ridículo perpétuo:

mas, mais generosa do que maliciosa, ou talvez por qualquer

outro motivo, quis tentar um último recurso, para poder, em

qualquer caso, dizer como o amigo: não tenho culpa. Remeteu-lhe

então, sem mais palavra, a carta que segue, como um remédio

cujo uso poderia ser útil para debelar o mal.

"De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza;

não tenho culpa.

Se agora me aborreço duma aventura que me ocupou inteiramente

durante quatro longos meses, não tenho culpa.

Se tive tanto amor como tu virtude, e já é afirmar muito,

não é para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que

a outra. Não tenho culpa.

Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas

também a tua implacável ternura a isso me obrigava! Não tenho

culpa.

Hoje, uma mulher que amo loucamente exige que te sacrifique.

Não tenho culpa.

Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares

perjuro: mas se a natureza concedeu aos homens apenas a constância,

e legou às mulheres a obstinação, não tenho culpa.

Crê-me; tal como eu, escolhe outro amante. Este conselho é

bom, muito bom; se o achas mau, não tenho culpa.

Adeus, meu amigo, tive-te com prazer, deixo-te sem pena;

talvez volte ainda. É assim o mundo. Não tenho culpa. "

253

Não é o momento para lhe dizer, Visconde, o efeito desta

última tentativa, e o que se lhe seguiu: mas prometo que lho direi

na próxima carta. Nela encontrará também o ultimatum

sobre a renovação do tratado que me propõe. Até lá, simplesmente

adeus...

A propósito, agradeço-lhe todos os pormenores sobre a

pequena Volanges; é um artigo que se deve guardar até ao dia

seguinte ao casamento, para a gazeta de maledicência. Entretanto,

apresento-lhe os meus pêsames pela perda da sua descendência.

Boa noite, Visconde.

Castelo de..., 24 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Palavra, minha bela amiga, não sei se li mal ou se não compreendi

a sua carta, a história que me narra e o modelo epistolar

que continha. O que lhe posso dizer, é que este último me pareceu

original e próprio para o efeito: por isso copiei-o simplesmente

e, mais simplesmente ainda, enviei-o à celestial Presidente.

Não perdi um momento, pois enviei ontem à tarde a terna

missiva. Preferi assim, em primeiro lugar porque prometera

com efeito escrever-lhe ontem; e também porque pensei que

toda a noite não seria demais para ela se recolher e meditar sobre

esse grande acontecimento, mesmo que pela segunda vez me

censure a expressão.

Esperava poder enviar-lhe esta manhã a resposta da minha

bem-amada: mas é quase meio-dia e ainda nada recebi. Esperarei

até às três horas, e se até então não tiver notícias, irei eu próprio

procurá-las; porque, quando se trata de decisões, só o primeiro

passo é que custa.

Agora, como pode imaginar, estou ansioso por saber o fim

da história desse seu conhecido, tão cruelmente suspeitado de

não saber, em caso de necessidade, sacrificar uma mulher. Ter-se-á

corrigido? E a generosa amiga ter-lhe-á perdoado?

Anseio também por receber o seu ultimatum: como diz tão

politicamente! Tenho curiosidade em saber se, mesmo nesta última

diligência, ainda encontrará amor. Oh, sem dúvida, há, e

muito! Mas por quem? No entanto, não quero pôr nada em

realce, e espero tudo da sua bondade.

Adeus, minha encantadora amiga; só fecharei esta carta às

duas horas, na esperança de lhe poder juntar a desejada resposta.

254

Duas horas da tarde

Não veio nada, o tempo urge; só posso acrescentar uma

palavra: recusar-me-á ainda desta vez os ternos beijos de amor?

Paris, 27 de Novembro de 17

CARTA CXLIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MEDAME DE ROSEMONDE

Minha senhora, despedaçou-se o véu em que estava pintada

a ilusão da minha felicidade. A funesta verdade alumia-me, e só

me deixa esperar uma morte certa e próxima, cujo caminho está

traçado entre a vergonha e o remorso. Segui-la-ei e bendirei os

meus tormentos se eles me abreviarem a existência. Envio-vos a

carta que ontem recebi; não acrescentarei nenhuma reflexão,

não o necessita. Não é já altura para queixas, resta-me sofrer.

Não preciso de piedade, mas de força.

Recebei pois, minha senhora, o meu único adeus, e atendei

o meu último pedido; é que me deixeis entregue à minha sorte,

que me esqueçais inteiramente, que não conteis mais comigo.

Há um limite na infelicidade, para além do qual até a própria

amizade aumenta os sofrimentos e não os pode sarar. Quando

as feridas são mortais, todo o socorro se torna desumano. Qualquer

sentimento que não seja o desespero me é alheio. Nada me

pode convir mais do que a noite profunda em que vou ocultar a

minha vergonha. Chorarei as minhas faltas, se é que ainda posso

chorar, pois desde ontem que não deito uma lágrima. O meu

coração seco já as não consente.

Adeus, minha senhora. Não deveis responder-me. Jurei sobre

essa carta cruel que não receberia mais nenhuma outra.

Paris, 27 de Novembro de 17".

CARTA CXLIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Minha bela amiga, ontem às cinco horas da tarde, impaciente

por não ter notícias, apresentei-me em casa da bela abandonada;

disseram-me que saíra. Vi, nesta frase, uma recusa de

me receber que me não zangou, nem surpreendeu; e retirei-me,

255

na esperança de que esta diligência da minha parte levaria pelo

menos uma dama tão educada a honrar-me com uma palavra de

resposta. O desejo que tinha de a receber fez-me passar de propósito

por minha casa por volta das nove horas, mas nada encontrei.

Espantado com este silêncio, que não esperava, encarreguei

o meu criado de ir buscar informações, e saber se a sensível

criatura estava morta ou moribunda. Enfim, quando voltei informou-me

que Madame de Tourvel saíra de facto, às onze horas

da manhã, com a criada de quarto; que mandara seguir para

o convento de..., e que às sete da tarde reenviara a carruagem e

os criados, dizendo que a não esperassem em casa. Evidentemente,

tomou a grande decisão. O convento é o refúgio próprio

para uma viúva; e se persiste numa tão louvávél resolução,

acrescentarei, a todas as obrigações que já lhe devo, a da celebridade

que vai ter esta aventura.

Bem lhe dizia, há já algum tempo, que, apesar das suas inquietações,

eu reapareceria na sociedade brilhando com um

novo esplendor. Que se mostrem, pois, esses críticos severos,

que me acusavam dum amor romanesco e infeliz; que façam

rupturas mais rápidas e mais brilhantes: ou antes, exijo melhor:

que se apresentem como. consoladores, o caminho está-lhes

aberto. Pois bem! Que ousem tentar a carreira que percorri até

ao fim; e se um deles obtiver o mínimo êxito, cedo-lhe o primeiro

lugar. Mas todos sentirão que, quando me emprego a fundo,

a impressão que deixo é inapagável. Ah! Esta sê-lo-á, sem dúvida;

e deixarei de me vangloriar de todos os meus outros triunfos,

se algum dia tiver junto desta mulher um rival preferido.

Concordo que esta decisão que ela tomou lisonjeia o meu

amor-próprio; mas custa-me que ela tenha encontrado em si

força suficiente para se separar de mim. Não haverá pois, entre

nós ambos, outros obstáculos além dos que eu próprio coloquei!

O quê! Se eu ansiasse pela reconciliação, ela poderia não a

querer; que digo? Não a desejar, não a considerar a suprema felicidade!

E então é assim que se ama! Acha, minha bela amiga, que

devo permitir isto? Não poderei eu, e não seria preferível tentar

conduzir de novo esta mulher a encarar a possibilidade de uma

reconciliação, tão desejada quanto esperada? Poderia tentar

esta diligência sem lhe atribuir qualquer importância; e, deste

modo, sem que representasse qualquer menosprezo em relação

a si. Seria, pelo contrário, uma simples experiência que tentaríamos

de acordo; e mesmo que obtivesse êxito, seria um processo

de renovar, à sua vontade, um sacrifício que lhe deve ter sido

agradável. Agora, minha bela amiga, resta-me receber o prémio,

e faço votos pelo seu regresso. Volte depressa para reencontrar

o seu amante, os seus prazeres, os seus amigos, e a continuação

das aventuras.

A da pequena Volanges correu maravilhosamente. Ontem

como a minha inquietação me não permitia permanecer em

256

lado nenhum, passei, nas minhas diversas saídas, pela casa de

Madame de Volanges. Encontrei a sua pupila já no salão, ainda

com trajos de doente, mas em plena convalescença, e cada vez

mais fresca e interessante. Vós, mulheres, num tal caso, ficaríeis

um mês num sofá: palavra, vivam as raparigas! Esta, na verdade,

deu-me desejo de me certificar se a cura fora perfeita!

Devo ainda dizer-lhe que este acidente da menina quase

tornou louco o seu sentimental Danceny. Primeiro de desgosto;

hoje de alegria. A sua Cecília estava doente! Como deve imaginar,

a cabeça anda à volta com uma tal desgraça. Três vezes por

dia mandava saber notícias, e não deixava passar nem um sem

se apresentar ele próprio; enfim pediu, numa bela missiva à

mãe, licença para a ir felicitar pela convalescença dum ente tão

querido; Madame de Valanges consentiu; de modo que encontrei

o rapaz instalado como noutro tempo, apenas com um pouco

mais de familiaridade que ele não ousava ainda permitir-se.

Foi mesmo por ele que soube pormenores; porque saímos

ao mesmo tempo e o fiz tagarelar. Não imagina o efeito que esta

visita lhe causou. Uma alegria, desejos e transportes impossíveis

de exprimir. Eu, que gosto das grandes iniciativas, acabei de lhe

fazer perder a cabeça, garantindo-lhe que dentro de poucos dias

lhe arranjaria maneira de ver ainda de mais perto a sua bela.

Estou, de facto, decidido a entregar-lha, logo que faça a

minha experiência. Quero consagrar-me inteiramente a si; e

depois valeria a pena que a sua pupila fosse também minha aluna,

se não soubesse enganar senão o marido? A obra-prima é

que engane também o amante, e sobretudo o seu primeiro

amante; porque eu, por mim, não tenho que me acusar de alguma

vez ter pronunciado a palavra amor.

Adeus, minha bela amiga; volte logo que possa para gozar

do seu poder sobre mim, receber as homenagens e pagar-me o

prémio.

Paris, 28 de Novembro de 17* *

CARTA CXLV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Seriamente, Visconde, abandonou a Presidente? Enviou-lhe

a carta que redigi para ela? É na verdade encantador; e ultrapassou

as minhas esperanças! Confesso com sinceridade que esse

triunfo me lisonjeia mais do que todos os que até agora tenho

obtido. Achará talvez que avalio muito alto essa mulher, que

antes apreciava tão pouco; nada disso: é que não foi sobre ela

que alcancei esta vitória; foi sobre o Visconde. Eis o que me diverte,

257

e que é verdadeiramente delicioso.

Sim, Visconde, sei que amava muito Madame de Tourvel e

que a ama ainda; ama-a como um louco: mas porque eu me

divertia a envergonhá-lo, sacrificou-a corajosamente. Teria sacrificado

mil para não ser vítima dum gracejo. Ao que nos conduz

a vaidade! Le Sage tem razão quando diz que ela é inimiga

da felicidade.

Como ficaria agora, se eu tivesse querido apenas pregar-lhe

uma partida? Mas sou incapaz de enganar, bem o sabe; e mesmo

que, por minha vez, ficasse agora reduzida ao desespero e ao

convento, corro todos os riscos, e entrego-me ao vencedor.

No entanto, se capitulo é por pura fraqueza: porque, se eu

quizesse, quantas brincadeiras não teria ainda para fazer! E talvez

o Visconde o merecesse! Admiro, por exemplo, a subtileza

ou a falta de jeito com que docemente me propõe que o deixe

reconciliar-se com a Presidente. Convinha-lhe muito, não é assim,

vangloriar-se dessa ruptura sem perder os prazeres da posse?

E como então esse aparente sacrifício nada significaria para

si, oferece-se para o renovar segundo a minha vontade! Por esta

infeliz combinação, a celeste devota julgar-se-ia sempre a única

eleita do seu coração, enquanto eu me orgulharia de ser a rival

preferida; seríamos ambas enganadas, mas o meu amigo estaria

contente, e o resto que importa?

É pena que com tanto talento para os projectos, tenha tão

pouco para a execução; e que por uma só diligência inconsiderada

tenha levantado um obstáculo invencível ao que mais deseja.

O quê! Tinha a ideia de tentar uma reconciliação e ousou

escrevê-lo na minha carta! Supôs-me inábil a esse ponto! Creia-me,

Visconde, quando uma mulher quer ferir o coração de outra,

raramente deixa de encontrar o ponto mais sensível, e o ferimento

é incurável. Enquanto feria esta, ou antes, dirigia os

seus golpes, não esqueci que esta mulher era minha rival, que

por um momento a preferiu a mim, e que enfim me colocara

abaixo dela. Se falhei na vingança, consinto em pagar o erro.

Por isso, Visconde, acho que deve tentar todos os meios: insisto

mesmo, e prometo não me aborrecer com o seu êxito, se o alcançar.

Estou tão descansada a este respeito que nem penso

mais nisso. Falemos doutra coisa.

Por exemplo, da saúde da pequena Volanges. Dar-me-á

notícias seguras no meu regresso, não é verdade? Muito estimarei

recebê-las. Depois disso, compete-lhe a si decidir do que mais

convirá: entregar a menina ao namorado, ou tentar ser pela

segunda vez o fundador dum novo ramo dos Valmont, sob o

nome de Gercourt. Esta ideia diverte-me muito; deixo-lhe a escolha,

mas peço-lhe que não tome uma decisão definitiva sem

que conversemos ambos. Não se trata de adiar uma data longínqua,

porque brevemente estarei em Paris. Não lhe posso dizer

precisamente o dia; mas tenho a certeza que, logo que eu chegue,

será o primeiro a ser informado.

258

Adeus, Visconde; apesar das minhas disputas, partidas e

censuras, amo-o sempre muito, e preparo-me para lho provar.

Até à vista, meu amigo.

Castelo de..., 29 de Novembro de 17 **.

CARTA CXLVI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY

Parto enfim, meu jovem amigo, e amanhã à tarde estarei de

volta a Paris. No meio de toda a confusão que acarreta uma

viagem, não receberei ninguém. No entanto, se tiverdes alguma

confidência urgente a fazer-me, abrirei uma excepção à regra

geral; mas só para vós: por isso, peço-vos segredo da minha

chegada. O próprio Valmont não será informado.

Se alguém me tivesse dito, há uns tempos atrás, que dentro

em pouco teríeis a minha exclusiva confiança, não o acreditaria.

Mas a vossa foi a causa da minha. Quase estou tentada a acreditar

que usastes de muita habilidade, direi mesmo sedução. E isso

seria muito mal! Todavia não seria perigosa agora; tendes de

facto mais com que vos ocupar! Quando a heroína está em cena,

esquece-se a confidente.

Por isso não tivestes tempo de me contar os vossos últimos

triunfos. Quando a vossa Cecília estava ausente, o tempo não

chegava para escutar as vossas ternas queixas. Tê-las-íeis feito

para o eco, se não existisse eu para as escutar. Quando, depois,

ela esteve doente, ainda fui honrada com o relato das vossas

inquietações, tínheis necessidade de alguém a quem as contar.

Mas agora que ela está em Paris, que recoperou a saúde, e sobretudo

que a vedes às vezes, ela basta-vos, e os vossos amigos já

não valem nada.

Não vos repreendo; a culpa é dos vossos vinte anos. Desde

Alcibíades até vós, não sabemos já que os jovens só recorrem à

amizade nos desgostos de amor? A felicidade torna-os às vezes

indiscretos, mas jamais confidentes. Direi tal como Sócrates:

gosto que os meus amigos venham até mim, quando se sentem

felizes: mas, na sua qualidade de filósofo, passava bem sem eles

quando não apareciam. Nisso, não sou tão sensata como ele, e

senti o vosso silêncio com toda a fraqueza duma mulher.

Não penseis que sou exigente: estou muito longe de o ser! O

mesmo sentimento que me leva a notar estas privações faz com

que as suporte com coragem, quando são a causa ou a prova da

felicidade dos meus amigos. Conto convosco amanhã à tarde,

contanto que o amor vos deixe livre e desocupado: proíbo-vos

de me fazerdes o mínimo sacrifício.

259

Adeus, Cavaleiro; terei muito prazer em ver-vos: vireis?

Castelo de..., 29 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLVII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Ficareis certamente tão aflita como eu, minha digna amiga,

quando souberdes do estado em que se encontra Madame de

Tourvel; está doente desde ontem: a doença atacou-a profundamente,

e apresenta sintomas tão graves que estou verdadeiramente

alarmada.

Uma febre ardente, um delírio violento e quase contínuo,

uma sede que se não sacia nunca, eis tudo o que se observa. Os

médicos dizem que não podem diagnosticar ainda; e o tratamento

será tanto mais difícil quanto é certo que a doente recusa

com obstinação toda a espécie de remédios: a ponto que foi preciso

agarrá-la para a sangrar; e de duas outras vezes foi necessário

usar do mesmo processo para lhe tornar a pôr a ligadura,

que ela pretendia arrancar no meio do delírio.

Vós que a conhecestes como eu, tão fraca, tão tímida e tão

doce, podereis imaginar que quatro pessoas mal a possam conter,

e que logo que lhe tentem falar razoavelmente se lance

numa ira inexprimível? Por mim, creio que não seja mais do que

delírio, e que não se trate duma verdadeira alienação do espírito.

O que aumenta os meus receios a esse respeito é o que se

passou anteontem.

Nesse dia, ela chegou pelas 11 horas da manhã, com a criada

de quarto, ao convento de... Como foi educada nessa casa e

conservou o hábito de aí voltar às vezes, foi recebida como habitualmente,

e pareceu a todos tranquila e de boa saúde. Aproximadamente

duas horas depois, perguntou se o quarto que

ocupara quando era pensionista estava vago, e como lhe respondessem

que sim, pediu para o ir ver; a superiora e outras religiosas

acompanharam-na. Foi então que declarou que voltava

a viver nesse quarto, que, afirmava, nunca deveria ter abandonado;

e donde só sairia por morte: foram as palavras dela.

Primeiro ninguém soube que dizer; mas, passado o primeiro

espanto, expuseram-lhe que o seu estado de mulher casada não

autorizava a que a recebessem sem permissão especial. Nem

essa razão, nem mil outras conseguiriam nada; e a partir desse

momento obstinou-se, não só a não sair do convento, mas até a

não deixar o quarto. Enfim, impotentes, às sete horas da tarde,

consentiram que passasse lá a noite. Mandaram embora as carruagens

e os criados, e adiaram para o dia seguinte a decisão.

260

Certificam que durante o serão o seu ar e porte nada tinham

de alucinados, ambos eram modestos e reflectidos; apenas caiu

quatro ou cinco vezes num cismar tão profundo que não conseguiram

despertá-la falando-lhe; e que, cada vez que saía dele,

levava as mãos à fronte como se a apertasse com força: e por

isso, como uma das religiosas presentes lhe perguntasse se lhe

doía a cabeça, olhou-a longamente antes de responder, e disse

por fim: "Não é aí que está o mal!" Um momento depois pediu

que a deixassem só, e que de futuro lhe não fizessem mais perguntas.

Toda a gente se retirou, excepto a criada de quarto, que felizmente

devia dormir no mesmo quarto que a senhora, por falta

de lugar.

Conforme a narração da rapariga, a ama esteve muito tranquila

até às onze da noite. Disse então que se queria deitar: mas,

antes de estar completamente despida, pôs-se a andar pelo quarto,

com muitos movimentos e gestos. Júlia, que fora testemunha

de tudo o que se passara durante o dia, não ousou dizer nada e

esperou em silêncio durante perto de uma hora. Por fim, Madame

de Tourvel chamou-a duas vezes seguidas; só teve tempo de

acudir, e a senhora caiu-lhe nos braços dizendo: "Não posso

mais." Deixou-se conduzir até ao leito, mas não quis tomar

nada, nem que alguém fosse buscar socorro. Mandou somente

pôr água perto dela, e ordenou a Júlia que se deitasse.

Esta assegura que esteve sem dormir até às duas da manhã,

e que não ouviu, durante esse tempo, nem movimentos nem

queixas. Mas. afirma que foi acordada às cinco horas pelo delírio

da ama, que falava em voz alta e forte; e que tendo-lhe então

perguntado se não precisava de nada, e não obtendo resposta,

acendeu o castiçal e foi ao leito de Madame de Tourvel, que a

não reconheceu; mas que, interrompendo de repente a conversação

sem seguimento que ia discorrendo, gritou vivamente:

"Deixem-me só, deixem-me nas trevas; são as trevas que me

convêm." Eu própria notei ontem que esta frase lhe volta muitas

vezes.

Enfim, Júlia aproveitou-se desta ordem para sair e ir procurar

gente e socorro: mas Madame de Tourvel recusou ambos,

com iras e delírios que depois se repetiram frequentemente.

A confusão em que isto fez mergulhar o convento decidiu a

superiora a mandar procurar-me ontem às sete da manhã...

Ainda não era dia. Acudi imediatamente. Quando me anunciaram

a Madame de Tourvel, pareceu retomar o conhecimento, e

respondeu: "Ah, sim, que entre." E assim que me aproximei do

leito, olhou-me fixamente, tomou-me a mão, que apertou, e disse

com voz forte, mas triste: "Morro por vos não ter acreditado.

" Mas logo em seguida, escondendo os olhos, voltou à sua

frase mais frequente: "Deixem-me só, etc."; e perdeu por completo

o conhecimento.

Estas palavras que me dirigiu, e ainda outras que deixou

escapar no seu delírio, fazem-me temer que esta cruel doença

261

tenha uma causa mais cruel ainda. Mas respeitemos os segredos

da nossa amiga, e limitemo-nos a lastimar a sua infelicidade.

Todo o dia de ontem foi muito agitado, e dividido entre

aterradores acessos de delírio e momentos de abatimento letárgico,

os únicos em que tem e dá algum repouso. Deixei a sua

cabeceira só às nove da noite, e voltarei esta manhã para todo o

dia. Claro que não abandonarei a minha amiga tão infeliz; mas

o que é desolador é a obstinação dela em recusar todos os cuidados

e socorros.

Envio-vos o boletim desta noite, que acabo de receber, e

que, como vereis, é um pouco consolador. Terei o cuidado de

vos trazer inteiramente a par de tudo.

Adeus, minha digna amiga, vou para junto da doente. A

minha filha, que felizmente está quase inteiramente restabelecida,

cumprimenta-vos.

Paris, 29 de Novembro de 17* *

CARTA CXLViii

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Ó vós que eu amo! ó tu que eu adoro! vós que fizestes a

minha felicidade! tu que a cumulaste! Amiga sensível, terna

amante, por que é que a lembrança da tua dor vem perturbar o

encanto que experimento? Ah! acalmai-vos, é a amizade que

vo-lo roga. Oh! minha amiga, sede feliz! é a súplica do amor.

Ah! que censuras tendes a fazer-vos? Crede-me, a vossa delicadeza

engana-vos. Os remorosos que vos causa, os erros de

que me acusa, são igualmente ilusórios; e sinto no meu coração

que houve entre nós um sedutor único: o amor. Não temas entregar-te

aos sentimentos que inspiras, deixar-te penetrar pelo

fogo que fazes nascer. O quê! Seriam os nossos corações menos

puros por só tarde terem sido esclarecidos? Não, com certeza. É

só a sedução que, agindo sempre com um fim, pode combinar a

marcha e os meios, e prever de longe os acontecimentos. Mas o

verdadeiro amor não permite meditar e reflectir: afasta-nos dos

projectos por meio dos sentimentos; o seu poder é tanto mais

forte quanto nos é desconhecido, e é na sombra do silêncio que

nos prende por laços que são impossíveis de conhecer ou de

romper.

Deste modo, ainda ontem, apesar da viva emoção que me

causava a ideia do vosso regresso, do prazer intenso que senti ao

ver-vos, julgava no entanto ser chamado e conduzido apenas

pela tranquila amizade: ou antes, inteiramente entregue aos

doces sentimentos do meu coração, bem pouco me preocupava

em esclarecer-lhes a origem ou a causa. Tal como eu, minha terna

262

amiga, também tu sentias, sem o saber, esse encanto poderoso

que entregava as nossas almas às doces impressões da ternura;

e ambos só reconhecemos o amor ao sair da embriaguez em

que esse deus nos mergulhara.

Mas é isso que nos justifica em vez de nos condenar. Não,

não traíste a amizade, nem eu abusei da tua confiança. Ambos,

é certo, ignorávamos os nossos sentimentos; mas essa ilusão

experimentávamo-la apenas, não a procurávamos fazer nascer.

Ah, em vez de a lamentarmos, pensemos na felicidade que nos

trouxe; e sem a perturbarmos com injustas censuras, dediquemo-nos

antes a aumentá-la ainda com o encanto da confiança é

da segurança. Oh, minha amiga! Como esta esperança é cara ao

meu coração! Sim, de ora em diante, livre de todo o temor, inteiramente

dada ao amor, partilharás os meus desejos, os meus

êxtases, o delírio dos meus sentidos, a embriaguez da minha

alma; e cada instante dos nossos dias afortunados será assinalado

por uma nova voluptuosidade.

Adeus, adoro-te! Ver-te-ei esta tarde, mas encontrar-te-ei só?

Não ouso esperá-lo. Ah! Tu não o desejas tanto como eu.

Paris, 1 de Dezembro de 17* *.

CARTA CXLIX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Ontem durante todo o dia tive esperanças, minha digna

amiga, de vos poder dar esta manhã notícias mais favoráveis da

saúde da nossa querida doente; mas desde ontem à tarde que

essa esperança foi destruída, e só me resta a pena de a ter perdido.

Um acontecimento, bem indiferente na aparência, mas bem

cruel pelas consequências que teve, tornou o estado da doente

tão lastimável como antes, se é que o não agravou.

Nada teria compreendido desta súbita transformação, se

ontem não tivesse recebido as confidências da nossa infeliz amiga.

Como ela me não deixou ignorar que também estáveis informada

de todos os seus infortúnios, posso falar sem reserva sobre

a sua triste situação.

Ontem de manhã, quando cheguei ao convento, disseram-me

que a doente dormia há mais de três horas; e o sono era tão

profundo e tranquilo, que por um momento receei que fosse letárgico.

Algum tempo depois acordou, e abriu ela própria as

cortinas do leito. Olhou-nos a todos surpreendida; e quando me

levantei para ir junto dela, reconheceu-me, chamou-me e pediu-me

que me aproximasse. Não me deu tempo para a interrogar,

e perguntou-me onde estava, o que fazíamos ali, se estava

263

doente e por que não se encontrava em casa. Primeiro pensei

que se tratava dum novo delírio, embora mais tranquilo que o

precedente: mas vi que ela compreendia muito bem as minhas

respostas. Tinha com efeito recuperado a razão, mas não a memória.

Interrogou-me, com muitos pormenores, sobre tudo o que

lhe acontecera desde que chegara ao convento, para onde não se

lembrava de ter vindo. Respondi com exactidão, suprimindo

apenas o que teria podido assustá-la: e quando pelo meu lado

lhe perguntei como estava, respondeu-me que não sofria nesse

momento; mas que tinha sido muito atormentada durante o

sono, e que ainda se sentia fatigada. Exortei-a a acalmar-se e a

falar pouco; depois disto, fechei em parte as cortinas, que deixei

somente entreabertas, e sentei-me perto do leito. Ao mesmo

tempo, ofereceram-lhe um caldo que tomou e achou bom.

Ficou assim cerca de meia hora, durante a qual não falou

senão para agradecer os cuidados que eu lhe dispensara; e pôs

nos agradecimentos a gentileza e a graça que lhe conheceis. Em

seguida guardou durante algum tempo um absoluto silêncio,

que só rompeu para dizer: "Ah, sim, lembro-me de aqui ter vindo";

e um momento depois, gritou dolorosamente: "Minha

amiga, minha amiga, lamentai-me; reencontro os meus infortúnios.

" Como nesse momento me aproximei dela, agarrou-me na

mão e, apoiando nela a cabeça, continuou: "Grande Deus, não

poderei então morrer?" A sua expressão, mais ainda que as palavras,

enterneceu-me até às lágrimas; compreendeu-o pela

minha voz, e disse-me: "Lamentais-me! Ah, se soubésseis..." E

depois interrompendo-se: "Ordenai que nos deixem sós, e dir-vos-ei

tudo. "

Tal como julgo ter-vos indicado, tinha já suspeitas sobre

qual deveria ser o assunto desta confidência; e temendo que esta

conversa, que previa dever ser longa e triste, prejudicasse o estado

da nossa infeliz amiga, recusei-me a princípio, sob o pretexto

de que ela necessitava de repouso: mas insistiu e acedi às suas

instâncias. Assim que ficámos sós, contou-me tudo o que já vos

narrou, e que por essa razão vos não repetirei.

Falou-me enfim da maneira cruel como foi sacrificada e

acrescentou: "Estava certa de que morreria por causa disso e

tinha coragem; mas sobreviver ao infortúnio e à vergonha, é-me

impossível." Tentei combater este desânimo, ou antes, este desespero,

com as armas da religião, até então com tanto poder

sobre ela; mas senti logo que não tinha força suficiente para

essas augustas funções, e propus-lhe então que se chamasse o

padre Anselmo, que sei ser depositário de toda a sua confiança.

Consentiu e pareceu mesmo desejá-lo muito. Mandámos com

efeito buscá-lo, e ele veio imediatamente. Permaneceu muito

tempo com a doente, e disse ao sair que, se os médicos pensassem

como ele, julgava poder adiar a cerimónia dos sacramentos,

e que voltaria no dia seguinte.

Eram cerca das três horas da tarde, e até às cinco a nossa

264

amiga esteve muito tranquila: de modo que todos voltáramos a

ter esperança. Por desgraça, trouxeram-lhe então uma carta.

Quando pretenderam entregar-lha, respondeu não querer receber

nenhuma e ninguém insistiu. Mas a partir desse momento,

ficou muito agitada. Pouco depois, perguntou donde vinha a

carta. Não estava selada. Quem a trouxera? Ninguém sabia. Da

parte de quem vinha? Não o tinham dito ao porteiro. Em seguida

guardou silêncio durante algum tempo; depois disto, recomeçou

a falar: mas as suas frases sem seguimento só nos indicaram

que o delírio voltara.

Contudo houve ainda um intervalo tranquilo, até que pediu

que lhe entregassem a carta que haviam trazido para ela. Assim

que lhe lançou um olhar gritou: "Dele! Meu Deus!", e depois

com uma voz forte, mas abafada: "Tomem-na, tomem-na."

Mandou imediatamente fechar as cortinas do leito e proibiu

todos de se aproximarem: mas pouco depois fomos obrigados a

voltar junto dela. O delírio recomeçara mais violento do que

nunca, e era acompanhado de convulsões verdadeiramente assustadoras.

Estes acidentes não cessaram em toda a tarde; e o

boletim desta manhã informa-me de que a noite não foi menos

agitada. Enfim, o seu estado é tal, que me espanto que não tenha

já sucumbido; e não vos escondo que me restam poucas

esperanças.

Suponho que essa funesta carta seria do senhor de Valmont,

mas que ousará ele dizer-lhe ainda? Perdão, minha cara amiga;

evitarei qualquer reflexão: mas é muito cruel ver perecer tão

desgraçadamente uma mulher, até agora tão feliz e tão digna de

o ser.

Paris, 2 de Dezembro de 17 *

CARTA CL

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Enquanto espero a felicidade de te tornar a ver, minha terna

amiga, entrego-me ao prazer de te escrever; e é ocupando-me de

ti que atenuo a pena de estar afastado. Expor-te os meus sentimentos,

recordar-me dos teus, é para o meu coração um verdadeiro

prazer; e é através dele que mesmo o momento das privações

me oferece ainda mil bens preciosos. No entanto, segundo

disseste, não receberei resposta tua: mesmo esta carta será a última;

e privar-nos-emos duma correspondência que, quanto a

ti, é perigosa, e de que não temos necessidade. Claro que, se insistes,

te acreditarei: pois que podes tu querer que por essa

mesma razão eu não queira também? Mas antes de dizer a última

palavra, não consentirás que falemos sobre isso?

265

Quanto aos perigos, deves tu decidir: nada posso prever, e

limito-me a pedir-te que olhes pela tua segurança, porque não

posso estar tranquilo sabendo-te inquieta. No que respeita a

este assunto, não somos nós ambos que formamos um, és tu que

és nós ambos.

Não é o mesmo quanto à necessidade: aqui temos de pensar

do mesmo modo, e se temos opiniões diferentes, é com certeza

por não nos explicarmos ou compreendermos. Eis pois o que

julgo sentir.

Sem dúvida que uma carta parece muito pouco necessária

quando nos podemos ver livremente. Que poderá ela dizer, que

uma palavra, ou olhar, ou mesmo um silêncio, não exprimissem

cem vezes melhor? Isto parece-me tão verdadeiro que, no momento

em que me falaste de não mais nos escrevermos, essa

ideia deslizou facilmente sobre a minha alma; perturbou-a talvez,

mas não a afectou. Tal como quando, querendo beijar-te

sobre o coração, encontro uma fita ou um véu; afasto-o apenas,

sem chegar a ter o sentimento de um obstáculo.

Mas depois separámo-nos; e logo que deixaste de estar presente,

essa ideia da carta voltou a atormentar-me. Porquê,

murmurei, mais essa privação? Pois quê! Por estarmos afastados

nada mais teremos a dizer-nos? Suponhamos que, favorecidos

pelas circunstâncias, passamos juntos um dia inteiro; será

preciso que o tempo para conversar seja roubado ao do prazer?

Sim, ao do prazer, minha terna amiga; porque ao pé de ti, mesmo

os momentos de repouso fornecem ainda uma voluptuosidade

deliciosa. Enfim, mesmo que tenhamos muito tempo, acabamos

por nos separar; e, depois, fica-se tão só! É então que

uma carta se torna preciosa! Se a não lemos, pelo menos olhamo-la...

Ah! Sem dúvida, pode-se olhar uma carta sem a ler, tal

como de noite sinto que teria ainda prazer em tocar o teu retrato...

O teu retrato, digo? Mas uma carta é o retrato da alma.

Não tem, como a fria imagem, essa fixidez que tão distante é do

amor; presta-se a todos os nossos movimentos: alternadamente

anima-se, goza, repousa-se... Todos os teus sentimentos me são

tão preciosos! Privar-me-ás dum meio de os coligir?

Tens a certeza de que a necessidade de me escrever nunca te

atormentará? Se na solidão o teu coração se dilata ou se aflige,

se um movimento de alegria agita a tua alma, se uma involuntária

tristeza a vem perturbar por um momento, não será então no

seio do teu amigo que expandirás a tua felicidade ou o teu desgosto?

Terás então um sentimento que ele não partilhará? Deixá-lo-ás

então, sonhador e solitário, vaguear longe de ti?...

Minha amiga!... Minha terna amiga!... Mas é a ti que compete

decidir. Quis somente debater o assunto e não seduzir-te; só te

apresentei razões, ouso crer que seria mais convincente com súplicas.

Procurarei, se persistes, não me afligir; farei esforços

para dizer a mim próprio o que me terias escrito: mas escuta,

di-lo-ias melhor do que eu; e sobretudo ser-me-ia muito mais

266

agradável de ouvir.

Adeus, minha encantadora amiga; aproxima-se a hora em

que te poderei ver: abandono-te com pressa, para te reencontrar

mais cedo.

Paris, 3 de Dezembro de 17* *

CARTA CLI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Sem dúvida, Marquesa, me não julga tão inexperiente, a

ponto de pensar que me pude deixar iludir quanto ao encontro

a sós em que a surpreendi esta tarde, e ao espantoso acaso que

conduzira Danceny a sua casa! Não é que a sua fisionomia tão

treinada não tenha sabido assumir às mil maravilhas uma expressão

calma e serena, nem que se tenha traído por alguma das

frases que às vezes escapam à perturbação ou ao pesar. Concordo

até que os seus olhares dóceis a serviram perfeitamente; e se

se tivessem feito acreditar tão bem como compreender, eu estaria

longe de sentir ou conservar a mínima suspeita, e nem por

um momento desconfiaria do desgosto enorme que lhe causava

esse estranho importuno. Mas, para não ostentar em vão tão

grandes talentos, para obter o êxito que desejava, para conseguir

enfim a ilusão que procurava fazer nascer, seria preciso em

primeiro lugar instruir o seu cândido amante com mais cuidado.

Visto que se começa a dedicar à educação, ensine os seus

alunos a não corarem e a não se desconcertarem ao mínimo

gracejo; a não negarem tão vivamente, quanto a uma só mulher,

as mesmas coisas de que se defendem tão debilmente quanto a

outras. Ensine-lhes ainda a saberem escutar o elogio da sua

amante, sem se julgarem obrigados a prestar-lhe as homenagens;

e se permite que a olhem em sociedade, que ao menos saibam

disfarçar esse olhar de posse tão fácil de reconhecer, e que

confundem tão inabilmente com o do amor. Então pode mandá-los

comparecer aos exames públicos, sem que a sua conduta

deixe mal a sábia professora; e eu próprio, muito feliz por concorrer

para a sua celebridade, prometo-lhe elaborar e publicar

os programas desse novo colégio.

Mas até lá espanto-me, confesso, que fosse a mim que experimentasse

tratar como um colegial. Oh, com qualquer outra

mulher, depressa me vingaria! E teria nisso um tão grande prazer!

Como esse prazer ultrapassaria facilmente o que ela me julgara

fazer perder! Sim, é só para si que prefiro a reparação à

267

vingança; e não julgue que esteja preso pela mínima dúvida ou

pela mais ligeira incerteza; sei tudo.

Está em Paris há quatro.dias; e todos os dias recebeu Danceny,

e só ele. Ainda hoje a sua porta estava fechada; e só faltou

ao porteiro, para me impedir de chegar a si, uma segurança

igual à sua. No entanto eu podia ter a certeza, como me mandou

dizer, de ser o primeiro informado da sua chegada; dessa

chegada de que ainda me não podia informar o dia, enquanto

me escrevia na véspera da partida. Negará estes factos ou tentará

desculpar-se? uma e outra coisa são igualmente impossíveis;

e no entanto ainda me contenho! Por aqui reconhecerá o seu

poder; mas creia-me: satisfeita por o ter experimentado, não

deverá abusar dele mais tempo. Conhecemo-nos bem, Marquesa;

estas palavras devem bastar-lhe.

Disse-me que amanhã estará fora de casa todo o dia? Oxalá

que saia de facto; pode ter a certeza de que o saberei. Mas, enfim,

voltará ao fim da tarde; e para a nossa difícil reconciliação,

não teremos tempo de sobra até ao dia seguinte. Mande-me

dizer se será em sua casa, ou na outra, que se farão as nossas

numerosas e recíprocas expiações. Sobretudo, acabou-se o

Danceny. A sua má cabeça estava cheia dele, não posso ter ciúmes

desse delírio da imaginação: mas pense que a partir deste

momento, o que era apenas uma fantasia tornar-se-á uma nítida

preferência. Não me julgo feito para essa humilhação, e não

quero recebê-la de si.

Conto até que esse sacrifício não vos pareça tal. Mas mesmo

que lhe custasse um tanto, parece-me que já lhe dei um belo

exemplo! Uma mulher simultaneamente sensível e bela, que só

vivia para mim, e que neste momento morre talvez de amor e

remorso, vale bem um jovem colegial, a quem, poderemos dizer,

não falta figura nem espírito, mas que não tem nem prática nem

segurança.

Adeus, Marquesa; nada lhe digo dos meus sentimentos por

si. Prefiro neste momento não sondar o meu coração. Espero a

sua resposta. Medite bem nela, pense bem que tanto quanto lhe

é fácil ainda fazer-me esquecer a ofensa que me infligiu, tanto

mais uma recusa da sua parte, um simples adiamento, a gravará

no meu coração em traços inapagáveis.

Paris, noite de 3 de Dezembro de 17* *

CARTA CLII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Tenha cuidado, Visconde, poupe mais a minha extrema timidez!

Como quer que eu suporte a ideia deprimente de incorrer

268

na sua indignação; e sobretudo que não sucumba ao terror

da sua vingança? Tanto mais que, como sabe, se me fizer uma

infâmia ser-me-á impossível retribuí-la. Seria escusado que eu

falasse, a sua existência não seria nem menos brilhante, nem

menos tranquila. Na verdade, que teria a temer? Ser obrigado a

partir, se lhe dessem tempo. Mas não se vive no estrangeiro tão

bem como aqui? E afinal de contas, contanto que a Corte de

França o deixasse tranquilo onde se fixasse, para si seria apenas

mudar o cenário dos seus triunfos. Após ter tentado chamá-lo à

razão por meio destas considerações morais, voltemos ao nosso

problema.

Sabe, Visconde, por que é que não tornei a casar? Não foi

com certeza por não ter encontrado partidos vantajosos; mas

unicamente para que ninguém tenha o direito de censurar as

minhas acções. Nem sequer foi por medo de não poder fazer o

que me apetecesse, pois sempre acabaria por o conseguir: mas

porque me teria incomodado a ideia de que alguém se julgasse

com direito a queixar-se; e, enfim, porque só gosto de atraiçoar

por prazer, e não por necessidade. E eis que o Visconde me escreve

a carta mais conjugal que se possa imaginar! Só me fala

de erros do meu lado e de benevolência do seu! Mas como se

pode faltar àquele a quem nada se deve? Não sou capaz de o

saber !

Vejamos: afinal de que se trata? Encontrou Danceny em

minha casa, e isso desagradou-lhe? Pois bem: e que concluiu

daí? Ou que se tratava dum acaso, como eu lhe disse, ou que

fora por minha vontade, ao contrário do que lhe dizia. No

primeiro caso a sua carta é injusta; no segundo, ridícula; não valia

a pena escrevê-la! Mas está com ciúmes, e os ciúmes não raciocinam.

Pois bem! Pensarei eu por si.

Ou tem rival, ou não. Se tem, deve agradar para ser preferido;

se não tem, deve agradar ainda mais para evitar vir a tê-lo.

Em ambos os casos, deve seguir a mesma conduta; assim, para

que atormentar-se! Para quê, sobretudo, atormentar-me a mim!

Já não sabe ser amável? Já duvida do seu êxito? Vejamos, Visconde,

é injusto para si próprio. Mas não é isso; é que, aos seus

olhos, eu não mereço tanto trabalho. Deseja muito menos as

minhas bondades, do que abusar do seu poder. Vamos, o Visconde

é um ingrato. E aqui estou eu a ficar sentimental! E por

pouco que eu continuasse neste tom, esta carta podia tornar-se

muito terna: mas o senhor não o merece.

Também não merece que eu me justifique. Para o castigar

das suas suspeitas, deixo-o ficar com elas: deste modo, nada

direi sobre a data do meu regresso, nem sobre as visitas de Danceny.

Teve muito trabalho para se informar, não é verdade?

Pois bem! Já está mais adiantado? Espero que tenha tido muito

prazer nessa tarefa; quanto a mim, em nada estragou o meu.

O que posso responder à sua ameaçadora carta, é que ela

não teve nem o dom de me agradar, nem o poder de me intimidar;

269

e que neste momento não estou nada disposta a aceder aos

seus pedidos.

Para falar verdade, aceitá-lo tal como hoje se mostra, seria

fazer-lhe realmente uma infidelidade. Não era recomeçar com o

meu antigo amante; mas antes arranjar um novo, e que nem de

longe vale o outro. Ainda não esqueci bastante o primeiro para

assim me enganar. O Valmont que eu amava era encantador.

Concordo mesmo que não encontrei homem mais agradável.

Ah, suplico-lhe, Visconde, se o encontrar, traga-mo; esse será

sempre bem recebido.

Contudo previna-o de que, em qualquer caso, não será nem

para hoje nem para amanhã. O seu Menechmel prejudicou-o; e,

apressando-me demasiado, temo enganar-me. Ou talvez já eu

tenha dado a palavra a Danceny para esses dois dias? E a sua

carta mostrou-me que se zangava quando faltavam à palavra.

Bem vê que é preciso esperar.

Mas que lhe importa? Acabará por se vingar bem do seu

rival. Ele não fará pior à sua amante do que o Visconde já fez à

dele; e afinal, não vale uma mulher o mesmo que outra? São

estes os seus princípios. Mesmo aquela que fosse terna e sensível,

que existisse só para si, que morresse por fim de amor e

remorso, seria do mesmo modo sacrificada à primeira fantasia,

ao terror de ser troçado por um momento; e quer que nos mortifiquemos?

Ah, isso não é justo.

Adeus, Visconde; volte de novo a ser amável. Escute, só

quero achá-lo outra vez encantador; e desde que esteja certa

disso, comprometo-me a provar-lho. Sou na verdade demasiado

indulgente.

Paris, 4 de Dezembro de 17

Alude à comédia de Plauto Os Menechmes, que trata de dois irmãos

gémeos, inteiramente semelhantes. (N. do T.)

CARTA CLIII

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

Respondo imediatamente à sua carta, e procurei ser claro; o

que não é fácil em relação a si, quando por vezes toma a decisão

de não compreender.

Não eram necessários longos discursos para estabelecer

que, tendo cada um de nós na mão tudo o que é preciso para

destruir o outro, temos igual interesse em nos pouparmos mutuamente:

não é disso que se trata. Mas, entre a decisão violenta

de nos destruirmos, e a outra, sem dúvida melhor, de ficarmos

270

unidos como temos sido, de nos tornarmos ainda mais íntimos

reatando a nossa antiga ligação; entre estas duas decisões, dizia

eu, há mil outras a tomar. Não é ridículo dizer-lhe, repetir-lhe

que, a partir de hoje, serei seu amante ou seu inimigo.

Bem vejo que a necessidade da escolha a importuna; que lhe

agradaria mais tergiversar; e não ignoro que nunca foi do seu

agrado ser assim colocada entre o sim e o não: mas deve sentir

também que a não posso deixar sair desse círculo estreito sem

me arriscar a ser iludido; e devia prever que o não suportaria.

Compete-lhe pronunciar-se: deixo-lhe a decisão, mas não posso

ficar na incerteza.

Já a previno de que me não enganará com os seus raciocínios,

bons ou maus; que me não seduzirá com lisonjas a enfeitar

recusas; e que enfim chegou o momento da franqueza. Desejo

até dar-lhe o exemplo; e declaro com prazer que prefiro paz e

união: mas se é preciso quebrar ambas, quero ter o direito e os

meios para tal.

Acrescento até que o mínimo obstáculo levantado do seu

guerra: bem vê que a resposta que lhe peço não exige frases largas

e belas. Bastam duas palavras.

Paris, 4 de Dezembro de 17

Resposta da Marquesa de Merteuil escrita no fim

da mesma carta

Pois bem: guerra.

CARTA CLIV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Os boletins informar-vos-ão melhor do que eu poderia fazer,

minha cara amiga, acerca do estado grave da nossa doente.

Inteiramente entregue aos cuidados que lhe dispenso, só roubo

tempo para vos escrever, quando há outros acontecimentos

além dos da doença. Eis um, que eu estava bem longe de esperar.

Trata-se duma carta do senhor de Valmont, a quem aprouve

escolher-me como confidente e mesmo como intermediária

junto de Madame de Tourvel, para quem juntara uma carta à

minha. Devolvi uma ao mesmo tempo que respondia à outra.

Mando-vos esta última e penso que julgareis, como eu, que não

podia nem devia fazer o que ele me pede. Mesmo que o tivesse

querido, a nossa infeliz amiga não estaria em estado de me

271

compreender. O delírio é contínuo. Mas que dizeis deste desespero

do senhor de Valmont? Em primeiro lugar, devemos acreditá-lo,

ou quererá ele somente iludir todos e até ao fim? Se

desta vez é sincero, bem pode dizer que construiu ele próprio a

sua infelicidade. Creio que terá ficado pouco satisfeito com a

minha resposta: mas confesso que tudo o que me faz pensar

sobre esta funesta aventura me revolta cada vez mais contra o

seu autor.

Adeus, minha querida amiga; volto às minhas tristes funções,

e pouca esperança tenho de as ver coroadas de êxito. Conheceis

os meus sentimentos para convosco.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *

N. dos T. - Na edição Classiques Garnier", de 1952, elaborada sobre o

manuscrito autógrafo, dá-se em nota a carta referida por Madame de Volanges,

que Laclos teria escrito e depois suprimido, e de que damos a tradução:

O VISCONDE DE VALMONT A MADAME DE VOLANGES

Sei, minha senhora, que não gostais de mim; também não ignoro que fostes

sempre contrária à minha pessoa junto de Madame de Tourvel, e do mesmo

modo não tenho dúvidas de que, mais do que nunca, experimenteis os mesmos

sentimentos a meu respeito. Convenho até que possais julgar justos esses

sentimentos.

Entretanto, é a vós que me dirijo, e não receio pedir-vos que entregueis

a Madame de Tourvel a carta que junto aqui para ela, e ainda solicitar-vos que

consigais que a leia e a disponhais a isso dando-lhe a certeza do meu

arrependimento, do meu pesar e sobretudo do meu amor. Sinto que esta

diligência poderá parecer-vos estranha; a mim próprio ela admira. Mas

o desespero apodera-se dos meios

sem os calcular, e, por outro lado, um interesse tão grande, tão caro e

que nos é comum deve afastar qualquer outra consideração. Madame de Tourvel

está à morte; Madame de Tourvel é infeliz: é necessário restituir-lhe a vida, a

saúde e a felicidade. Eis o objectivo a cumprir. Todos os meios são bons, desde

que possam assegurar ou apressar o êxito. Se rejeitardes este que vos ofereço,

ficareis responsável pelo acontecimento da sua morte: o vosso pesar e o meu

desespero eterno, tudo será obra vossa. Sei que ultrajei indignamente uma

mulher digna de toda a minha adoração; sei que só as minhas torpes ofensas são

a causa de todos os males que ela suporta. Não pretendo diminuir as minhas

faltas nem desculpá-las. Mas vós, senhora, deveis temer tornar-vos cúmplice

impedindo-me de as reparar. Mergulhei o punhal no coração da vossa amiga, mas

só eu posso retirar o ferro da ferida, só eu conheço os meios de a curar. Que

importa que eu seja culpado, se posso ser útil? Salvai a vossa amiga, salvai-a!

272

É do vosso socorro que ela necessita, e não da vossa vingança.

Paris, 4 de Dezembro de 17" "

CARTA CLV

O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY

Passei duas vezes por sua casa, meu caro Cavaleiro: mas

desde que abandonou o papel de apaixonado pelo de aventureiro

galante, é impossível encontrá-lo. Todavia o seu criado de

quarto assegurou-me que voltaria a casa esta tarde, e que tinha

ordem para o esperar; mas eu, que estou ao par dos seus projectos,

bem vi que o meu amigo não voltaria senão por um momento,

para vestir o trajo apropriado, e que imediatamente recomeçaria

as suas corridas vitoriosas. Ainda bem, e só devo

aplaudi-lo: mas talvez, para esta noite, seja tentado a mudar de

direcção. Ignora ainda o caminho que tomaram metade dos

assuntos que lhe dizem respeito; devo pô-lo ao corrente daquele

que desconhece, e depois decidirá. Dedique algum tempo a ler

esta carta. Não será afastá-lo dos seus prazeres, pois, pelo contrário,

ela tem como objectivo permitir-lhe a escolha.

Se fosse eu o depositário de todas as suas confidências, se

tivesse sabido por si a parte dos segredos que fui forçado a adivinhar,

a elucidação teria vindo a tempo; e o meu zelo, menos

hábil, não entravaria agora os seus movimentos. Mas partamos

do ponto em que estamos. Qualquer que seja a decisão que

tome, nunca deixará de fazer a felicidade de alguém.

Tem um encontro para esta noite, não é verdade? Com uma

mulher encantadora e a quem adora? Pois na sua idade, que

mulher não adoramos, pelo menos nos oito primeiros dias! O

cenário deve contribuir também para o prazer. Uma casinha

deliciosa, que existe só para si, deve aumentar a voluptuosidade

com os encantos da liberdade e do mistério. Está tudo combinado,

esperam-no e o meu amigo arde no desejo de chegar! Eis o

que ambos sabemos, se bem que nada me tenha dito. Agora, eis

o que não sabe, e de que devo informá-lo.

Desde o meu regresso a Paris que me ocupava com os meios

de o pôr em contacto com Mademoiselle de Volanges, tal como

lhe prometera; e ainda da última vez que lhe falei, tive ocasião

de julgar pelas suas respostas, direi até pelo seu entusiasmo, que

contribuía para a sua felicidade. Sozinho não conseguiria eu

resolver esta questão tão difícil, mas, depois de ter preparado os

:- meios, deixei o resto entregue ao zelo da sua jovem apaixonada.

Ela encontrou, no seu amor, recursos que faltavam à minha

experiência: enfim, para mal do meu amigo, ela conseguiu o que

273

desejava. Há dois dias, disse-me ela esta tarde, que todos os obstáculos

estão vencidos e que a vossa felicidade depende só de si.

Há dois dias que anseia por transmitir-vos ela própria a notícia,

e, apesar da ausência da mãe, não deixaria por isso de ser

recebido: mas nem sequer apareceu! E, para lhe não esconder

nada, ou por capricho ou a valer, a criaturinha pareceu-me um

tanto zangada por essa falta de ardor da sua parte. Encontrou

enfim um meio de me mandar chamar e obrigou-me a prometer

que lhe enviaria o mais cedo possível a carta que junto. Pelo zelo

que mostrou, iria apostar que se trata dum encontro para esta

noite. Seja o que for, prometi, pela honra e pela amizade, que

lhe faria chegar às mãos a terna missiva durante o dia, e não

posso nem quero faltar à minha palavra.

E agora, jovem, que tenciona fazer? Colocado entre a coqueteria

e o amor, entre o prazer e a felicidade, qual vai ser a

sua escolha? Se eu falasse ainda ao Danceny de há três meses, ou

mesmo de há oito dias, conhecedor do coração dele, sê-lo-ia

também das suas decisões; mas o Danceny de hoje, arrastado

pelas mulheres, entregando-se a aventuras, e tornado, como é

costume, um tanto nervoso, preferirá ele uma donzela tímida,

que só tem por si a beleza, a inocência e o amor, aos atractivos

duma mulher experiente?

Por mim, meu caro amigo, parece-me que, mesmo dentro

dos seus novos princípios, que confesso serem também um pouco

os meus, as circunstâncias far-me-iam decidir pela jovem

amante. Primeiro, será mais uma, e depois a novidade, e ainda o

temor de perder o fruto dos seus cuidados desprezando colhê-lo;

porque, enfim, por esse lado, seria de facto uma oportunidade

falhada, que nem sempre volta, sobretudo se se trata duma

primeira fraqueza: muitas vezes, neste caso, basta um momento

de zanga, uma suspeita de ciúme, menos ainda, para impedir o

mais belo triunfo. A virtude que se afoga agarra-se às vezes aos

ramos; mas uma vez salva, mantém uma certa reserva e não é já

fácil de surpreender.

E do outro lado, afinal que se arrisca? Nem sequer uma ruptura;

quando muito uma disputa, que, com alguns cuidados,

pagará o prazer duma reconciliação. Que mais resta a uma

mulher que se entregou, a não ser á indulgência? Que poderá

ganhar com a severidade? A perda dos prazeres, sem proveito

para a sua reputação.

Se, como suponho, seguir o caminho do amor, que me parece

ser também o da razão, creio que será prudente não se desculpar

pela falta do encontro; deixe simplesmente que o esperem:

se se arrisca a dar uma desculpa é muito possível que tentem

verificá-la. As mulheres são curiosas e obstinadas; tudo se pode

descobrir: acabo, como sabe, de ser vítima de um exemplo disso.

Mas se lhe deixar a esperança, como será alimentada pela

vaidade, só morrerá muito tempo depois do momento propício

para as informações: e então amanhã o meu amigo só terá de

274

escolher o obstáculo intransponível que o reteve; esteve doente,

morto até se for preciso, ou qualquer outra coisa com que estará

igualmente desesperado, e tudo se arranjará.

De resto, qualquer que seja a decisão que tome, peço-lhe só

que me informe; e como não tenho qualquer interesse, acharei

sempre que fez bem. Adeus, meu caro amigo.

Acrescento ainda que lastimo Madame de Tourvel; estou

desesperado por estar separado dela; daria metade da minha

vida pela felicidade de lhe consagrar a restante. Ah! Acredite-me,

só o amor nos pode fazer felizes.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *

CARTA CLVI

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Junta à precedente)

Por que é que acontece, meu caro amigo, que deixo de o ver,

quando não deixo de lhe querer? Não o deseja tanto como eu?

Ah! Agora é que estou triste! Mais triste do que quando estávamos

completamente separados. O desgosto que os outros me

faziam sofrer é agora de si que me vem, e isso custa-me muito

mais.

Desde há uns dias que a Mamã nunca está em casa, bem o

sabe; e esperava que procurasse aproveitar esse tempo de liberdade:

mas já nem sequer pensa em mim; sou muito infeliz! Tanta

vez me disse que era eu que amava menos! Eu bem sabia que

era o contrário, e eis a prova. Se tivesse vindo ver-me, ter-me-ia

visto de facto: porque eu não sou como o Cavaleiro; penso só

no que nos pode reunir. Merecia que eu nada lhe dissesse do que

fiz para isso, e que me deu tanto trabalho: mas amo-o demasiado

e tenho tanta vontade de o ver, que não posso fugir a dizer-lhe

tudo. E depois, verei se realmente me tem amor!

Trabalhei tão bem que convenci o porteiro, o qual me prometeu

que o deixará entrar como se o não visse todas as vezes

que venha: e podemos confiar nele, porque é muito boa pessoa.

Trata-se apenas de evitar que o vejam em casa; e isso será muito

fácil, se só vier à noite, quando já nada há a temer. Por exemplo,

desde que a Mamã sai todos os dias, deita-se todas as noites às

onze horas; assim teremos tempo de sobra.

O porteiro disse-me que quando quiser vir deste modo, em

vez de bater à porta, deve bater à janela dele e que ele abrirá

imediatamente; e, depois, achará a escada interior; e como não

275

pode usar luz, deixarei a porta do meu quarto entreaberta, o

que sempre o iluminará um pouco. Tomará cuidado em não

fazer barulho, principalmente ao passar pela porta da Mamã.

Quanto à da minha criada de quarto, não faz mal, porque me

prometeu que não acordaria; é também muito boa rapariga! E

para se ir embora, será o mesmo. Agora, veremos se vem.

Meu Deus, por que é que sinto o coração bater tão forte

enquanto lhe escrevo? É porque me vai acontecer alguma infelicidade,

ou é a esperança de o ver que assim me perturba? O que

sinto é que nunca o amei tanto, e nunca desejei tanto dizer-lho.

Venha, meu amigo, meu querido amigo; para que lhe possa repetir

cem vezes que o amo, que o adoro, que só o amarei a si.

Achei um meio de mandar dizer ao senhor de Valmont que

precisava falar-lhe; e ele, como é um bom amigo, virá com certeza

amanhã, e vou pedir-lhe que lhe mande logo a minha carta..

Esperá-lo-ei pois amanhã à noite, e virá sem falta se não quiser

que a sua Cecília seja muito infeliz.

Adeus, meu caro amigo; beijo-o com todo o amor.

Paris, 4 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLVII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Não duvide, meu caro Valmont, nem do meu coração, nem

do meu procedimento: como poderia eu resistir a um desejo da

minha Cecília? Ah! É certamente ela a única que amo, que sempre

amarei! A sua ingenuidade, a sua ternura, têm para mim um

encanto de que pude ter a fraqueza de me deixar afastar, mas

que nada apagará. Metido noutra aventura, por assim dizer sem

dar por isso, muitas vezes a lembrança de Cecília me veio perturbar

mesmo nos mais doces prazeres; e talvez nunca o meu

coração lhe tenha rendido homenagens mais verdadeiras do que

no próprio momento em que lhe era infiel. Contudo, meu amigo,

respeitemos a delicadeza dela, e escondamos-lhe os meus

erros; não para a iludir, mas para a não afligir. A felicidade de

Cecília é o mais ardente voto que formulo; nunca me perdoaria

uma falta que lhe tivesse custado uma lágrima.

Mereci, bem o sinto, as zombarias que me dirige, sobre o

que chama os meus novos princípios, mas pode crer que não é

por eles que me guio neste momento; e a partir de amanhã estou

decidido a prová-lo. Ir-me-ei acusar àquela que foi a causa do

meu desvario e o partilhou; dir-lhe-ei: "Lede no meu coração;

ele tem por vós a mais terna amizade; a amizade unida ao desejo

parece-se tanto com o amor!... Enganámo-nos ambos; mas,

276

susceptível de erro, sou incapaz de má fé." Conheço a minha

amiga; é tão honesta como indulgente; fará mais do que perdoar,

aprovar-me-á até. Ela própria muitas vezes se censurava

por ter traído a amizade; muitas vezes a sua susceptibilidade

perturbava o amor. Mais sensata do que eu, fortificará na minha

alma esses temores que eu temerariamente procurava sufocar

na sua. Ficar-lhe-ei devendo o ter-me tornado melhor e a si o

ser mais feliz. Ó meus amigos! Partilhem o meu reconhecimento.

A ideia de que lhes devo a felicidade aumenta-lhe o valor.

Adeus, meu caro Visconde. O excesso de alegria não me

impede de pensar nas suas penas, e de as compartilhar. Se lhe

pudesse ser útil! Madame de Tourvel continua então inexorável?

Dizem-na doente. Meu Deus, como tenho pena de si! Oxalá

que ela recupere simultaneamente a saúde e a indulgência, e o

faça eternamente feliz! São os desejos da amizade; espero que o

amor os escute.

Gostaria de falar mais tempo consigo; mas o tempo urge, e

talvez já Cecília me espere.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *, à noite.

CARTA CLVIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

(Ao despertar)

Então, Marquesa, que tal os prazeres da noite passada? Um

pouco fatigada? Concorde que Danceny é encantador! Faz prodígios,

esse rapaz! Não esperava isto dele, não é verdade? Vamos,

quero ser justo para comigo mesmo; semelhante rival merecia

bem que eu lhe fosse sacrificado. A sério, é um rapaz cheio

de boas qualidades! Mas sobretudo de amor, constância, delicadeza!

Ah! Se conseguir que ele a ame como ama a sua Cecília,

nunca mais terá rivais a temer: ele provou-lhe esta noite. Talvez,

à força de coqueteria, outra mulher possa roubá-lo por um

momento; os jovens não sabem resistir a fosquinhas provocantes;

mas esteja tranquila, uma palavra só do objecto amado basta,

como agora vê, para dissipar as ilusões; assim só lhe falta vir

a ser esse objecto para ser perfeitamente feliz.

Certamente a Marquesa não falhará; possui um tacto demasiado

seguro para que se possa recear tal. No entanto, a amizade

que nos une, tão sincera da minha parte como reconhecida

da sua, levou-me a desejar-lhe a experiência desta noite; foi

277

obra do meu zelo, que teve um belo êxito: mas nada de agradecimentos;

não vale a pena: nada podia ser mais fácil.

No fundo, que me custou? Um ligeiro sacrifício e um pouco

de habilidade. Consenti em partilhar com esse jovem os favores

da amada dele; mas enfim, ele sempre tinha tantos direitos

como eu; esquecera-me disso! A carta que ela lhe escreveu, fui

eu que a ditei: mas foi só para ganhar tempo, porque bem sabíamos

em que o empregar. A que eu próprio enviei, oh!, não era

nada, quase nada; algumas reflexões da amizade para guiar a

escolha do novo amante: mas, por minha honra, eram inúteis; a

verdade deve dizer-se, ele não hesitou um momento.

E depois, com toda aquela candura, irá hoje a sua casa contar-lhe

tudo; e certamente essa narrativa lhe agradará ! Começará

assim: "Lede no meu coração"

é o que ele me escreveu: e

bem vê que desta forma tudo se remedeia. Espero que, ao fazer

essa leitura, compreenda finalmente que os amantes demasiado

jovens têm os seus perigos; e ainda que mais vale ter-me como

amigo do que como inimigo.

Adeus, Marquesa; até à primeira ocasião.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *

CARTA CLIX

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Não gosto que se acrescentem graças de mau gosto a atitudes

deselegantes; e isso não está mais nos meus hábitos que no

meu gosto. Quando tenho motivos de queixa de alguém, não o

escarneço; faço melhor: vingo-me. Por muito contente que esteja

neste momento, não se esqueça de que não seria a primeira

vez que se aplaudiria antecipadamente, na esperança dum triunfo

que lhe escaparia no próprio momento em que se felicitava.

Adeus.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *

CARTA CLX

MADAME DE VALaNGES A MADAME DE ROSEMONDE

Escrevo do quarto da nossa infeliz amiga, cujo estado é mais

ou menos o mesmo. Hoje à tarde haverá uma conferência de

quatro médicos. O que, como sabeis, costuma ser mais uma

prova de perigo do que um socorro.

278

Parece no entanto ter recuperado um pouco de lucidez durante

a noite passada. A criada de quarto informou-me esta

manhã que, por volta da meia-noite, a sua ama a chamou; quis

ficar sozinha com ela, e ditou-lhe uma carta assaz longa. Júlia

acrescentou que, quando estava ocupada a preencher o sobrescrito,

o delírio se apossou de novo de Madame de Tourvel: de

forma que a rapariga ficou sem saber a quem o remeter. Admirei-me

a princípio de que a própria carta não bastasse para lho

revelar, e tendo-me ela respondido que receara enganar-se e que

a Presidente lhe recomendara que enviasse a carta imediatamente,

tomei a decisão de a abrir.

Mando-vos justamente o que encontrei, e que na verdade

não se dirige a ninguém, visto que se dirige a toda a gente. Creio

no entanto que foi ao senhor de Valmont que a nossa infeliz

amiga quis primeiro escrever, mas acabou por ceder, sem dar

por isso, à desordem das ideias. Como quer que seja, pensei que

esta carta não devia ser remetida a ninguém. É a vós que a envio,

pois assim podereis ver melhor os pensamentos que ocupam

o cérebro da nossa doente. Enquanto permanecer tão vivamente

afectada, não terei esperanças. O corpo dificilmente se

restabelece quando o espírito está tão pouco tranquilo.

Adeus, querida e digna amiga. Felicito-vos por estardes

afastada do triste espectáculo que tenho diariamente debaixo

dos olhos.

Paris, 6 de Dezembro de 17*2.

CARTA CLXI

A PRESIDENTE DA TOURVEL A...

(Ditada por ela e escrita pela criada de quarto)

Ente cruel e malfazejo, não deixarás de me perseguir? Não

te basta teres-me torturado; degradado, aviltado, queres ainda

roubar-me a paz do túmulo? Pois como! Nesta mansão de trevas

onde a ignomínia me obrigou a enterrar-me, as dores não

dão tréguas e a esperança é desconhecida? Não imploro um

perdão que não mereço: para sofrer sem me queixar, bastará

que os sofrimentos não excedam as minhas forças. Mas não

tornes os tormentos insuportáveis. Deixa-me as dores, apaga-me

a cruel memória dos bens que perdi. Depois de mos roubares,

não traces de novo diante dos meus olhos a sua desoladora

imagem. Eu era inocente e tranquila: foi por te ter visto que

perdi o repouso; foi ao escutar-te que me tornei criminosa. Autor

dos meus erros, que direito tens de os punir?

279

Onde estão os amigos que me adoravam, onde estão eles? O

meu infortúnio horroriza-os. Nenhum ousa aproximar-se. Sinto-me

oprimida, e eles deixam-me sem auxílio.! Morro, e ninguém

me lamenta. Toda a consolação me é recusada. A piedade

detém-se nas margens do abismo onde o criminoso mergulha.

Os remorsos dilaceram-no, e os seus gritos não são ouvidos !

E tu, a quem ultrajei; tu, cuja estima aumenta o meu suplício;

tu, que serias afinal o único a ter o direito de te vingares,

que fazes longe de mim? Vem punir uma mulher infiel. Que eu

sofra finalmente tormentos merecidos. Já me teria submetido à

tua vingança; mas faltou-me a coragem de te revelar a tua desonra.

Não foi por dissimulação, foi por respeito. Que ao menos

esta carta te informe do meu arrependimento. O céu assumiu

a defesa da tua causa e vinga-te duma injúria que ignoravas.

Foi ele que me prendeu a língua e me reteve as palavras;

receou que me perdoasses uma falta que ele queria punir.

Subtraiu-me à tua indulgência, que teria ferido a sua justiça.

Implacável na sua vingança, abandonou-me àquele que me

desgraçou. Este último é simultaneamente o causador do meu

desvario e o carrasco que me castiga. Em vão lhe quero fugir;

persegue-me; está sempre presente, obceca-me sem cessar. Mas

como está mudado! Os olhos exprimem apenas ódio e desprezo.

A boca só profere insultos e censuras. Os braços, que dantes me

abraçavam, querem despedaçar-me. Quem me salvará do seu

bárbaro furor?

Mas quê? É ele... Não me engano; é ele que volto a ver. Oh,

meu adorável amigo! Acolhe-me nos teus braços; esconde-me

no teu seio: sim, és tu, és tu mesmo! Por que funesta ilusão não

te tinha reconhecido? Como sofri com a tua ausência ! Oh ! Não

nos separemos outra vez. Nunca mais nos separemos. Deixa-me

respirar. Vê como o meu coração bate! Ah! Já não é de receio,

mas sim da doce emoção do amor. Por que te recusas às minhas

ternas carícias? Mostra-me o teu olhar tão doce! Que laços procuras

desta maneira romper? Para quem preparas esse cadafalso?

Que é que te transtorna assim a fisionomia? Que fazes?

Deixa-me: tremo! Deus! É outra vez esse monstro!

Minhas amigas, não me abandoneis. Vós que me aconselháveis

a evitá-lo, ajudai-me a combatê-lo; e vós que, mais indulgente,

havíeis prometido diminuir as minhas dores, vinde pois

para junto de mim. Onde estais ambas? Se já não é permitido

ver-vos, respondei ao menos a esta carta; dizei ao menos que a

vossa amizade é ainda a mesma.

Larga-me, cruel! Que nova fúria te anima? Receias que um

sentimento suave penetre até à minha alma? Duplicas os meus

tormentos; obrigas-me a odiar-te. Oh! Como o ódio é doloroso!

Como corrói o coração que o destila! Por que me persegues?

Que podes ter ainda para me dizer? Não me colocaste na impossibilidade

de te escutar e de te responder? Não esperes mais

nada de mim. Adeus, senhor.

280

Paris, 5 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Estou informado, senhor, do vosso procedimento para comigo.

Sei também que, não contente por me terdes indignamente

enganado, não receais vangloriar-vos e aplaudir-vos. Vi a

prova da traição escrita por vosso punho. Confesso que senti o

coração compungido, e que tive vergonha de ter contribuído

para o odioso abuso que fizestes da minha cega confiança: contudo

não vos invejo este vergonhoso triunfo; tenho apenas curiosidade

de saber se o conservareis no campo da honra. Espero

ter a resposta amanhã de manhã, entre as oito e nove horas, se

quiserdes aparecer na porta do bosque de Vincennes, aldeia de

Saint-Mande. Encarregar-me-ei de aí fazer aparecer tudo o que

for necessário para os esclarecimentos que me restam obter de

vós.

Cavaleiro Danceny.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *, à noite.

CARTA CLXII

O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

É com grande pena que cumpro o doloroso dever de anunciar

uma notícia que vos vai causar um tão grande desgosto.

Permiti que exorte em primeiro lugar essa piedosa resignação

que todos admiram por vós, e que é o único sentimento capaz

de nos ajudar a suportar os males de que está semeada a nossa

miserável vida.

O senhor vosso sobrinho... Meu Deus! Ver-me obrigado a

afligir uma tão respeitável dama! O vosso sobrinho teve a infelicidade

de sucumbir num combate singular que teve esta manhã

com o Cavaleiro Danceny. Ignoro inteiramente a causa da disputa;

mas afigura-se-me, pelo bilhete que encontrei ainda na

algibeira do senhor Visconde e que tenho a honra de vos enviar,

afigura-se-me, dizia, que não era ele o agressor. E foi justamente

ele que o céu permitiu que sucumbisse!

281

Estava eu em casa do senhor Visconde, esperando-o, no

próprio momento em que o trouxeram. Imaginai a minha perturbação,

ao ver o vosso sobrinho conduzido por dois criados e

todo banhado em sangue. Recebera dois golpes, e já se encontrava

muito fraco. O senhor Danceny estava também presente, e

chorava. Ah! Sem dúvida que deve chorar: mas de que serve

derramar lágrimas quando se causou uma desgraça irreparável !

Eu por mim não me contive; e apesar do pouco que sou, disse-lhe

o que pensava do caso. Mas foi então que o senhor Visconde

se mostrou verdadeiramente grande. Ordenou que me

calasse; agarrou na mão do assassino, chamou-lhe amigo, beijou-o

diante de todos, e disse-nos: "Ordeno-vos que trateis este

senhor com toda a consideração devida a um homem valente e

de brio." Mandou ainda que lhe entregassem, diante de mim,

uns papéis volumosos que não conheço, mas de que sei terem

para ele muita importância. Em seguida, quis que os deixassem

sós por um momento. Entretanto eu mandara sem demora

buscar todos os socorros, tanto espirituais como temporais:

mas, ai!, o mal não tinha remédio. Menos de meia hora depois,

o senhor Visconde perdera o conhecimento. Só pôde receber a

extrema-unção; e mal a cerimónia acabara, dava ele o último

suspiro.

Meu Deus! Quando recebi nos braços à nascença este precioso

esteio duma ilustre casa, poderia eu prever que seria nos

meus braços que ele expiraria e que teria de chorar a sua morte?

Uma morte tão precoce e tão infeliz! As lágrimas deslizam-me

mesmo sem eu querer. Peço-vos perdão, minha senhora, de ousar

misturar a minha dor à vossa: mas em todas as classes se

pode ter coração e sensibilidade; e seria muito ingrato se não

chorasse toda a vida um senhor que tantas atenções tinha para

comigo, e que me honrava com a máxima confiança.

Amanhã, depois do funeral, mandarei selar tudo e podeis

descansar inteiramente nos meus cuidados. Não ignorais certamente,

minha senhora, que este infeliz acontecimento anula o

vosso testamento e torna as vossas disposições inteiramente livres.

Se vos puder ser de qualquer utilidade, peço-vos que me

queirais dar as vossas ordens: porei todo o meu zelo em as executar

pontualmente.

Sou, com o mais profundo respeito, minha senhora, vosso

muito humilde, etc.

Bertrand

Paris, 7 de Dezembro de 17 * *.

CARTA CLXIV

282

MADAME DE ROSEMONDE AO SENHOR BERTRAND

Recebi a vossa carta mesmo agora, meu caro Bertrand, e

por ela soube do terrível acontecimento de que o meu sobrinho

foi a infeliz vítima. Sim, sem dúvida que terei ordens a dar-vos;

e só elas me farão pensar noutra coisa que não seja a minha

mortal aflição.

O bilhete do senhor Danceny, que me enviastes, é prova

convincente de que foi ele o provocador do duelo: e a minha

intenção é que apresenteis queixa imediatamente em meu nome.

Perdoando ao seu inimigo, ao seu assassino, o meu sobrinho

pôde satisfazer a sua natural generosidade; mas cabe-me a mim

vingar ao mesmo tempo a sua morte, a humanidade e a religião.

Nunca será demais excitar a severidade das leis contra este resto

de selvajaria que ainda infecta os nossos costumes; e não creio

que o perdão das injúrias nos possa ser prescrito num caso destes.

Espero pois que seguireis esta questão com todo o zelo e

toda a actividade de que vos sei capaz, e que deveis à memória

do meu sobrinho. Tratareis, antes de tudo, de ir ter da minha

parte com o senhor Presidente de..., e de conferenciar com ele.

Não lhe escrevo, apressada como estou de me entregar inteiramente

à minha dor. Apresentareis as minhas desculpas, e mostrar-lhe-eis

esta carta.

Adeus, meu caro Bertrand; louvo e agradeço os vossos bons

sentimentos, e estou para sempre ao vosso dispor.

Castelo de..., 8 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Sei que já estais informada, minha querida e digna amiga,

da perda que acabais de sofrer; conhecia a vossa ternura para

com o senhor de Valmont, e partilho sinceramente a aflição que

deveis sentir. Custa-me imenso na verdade ver-me forçada a

acrescentar novas dores às que já sofreis: mas só vos resta também

verter lágrimas pela nossa infeliz amiga. Perdemo-la ontem,

às onze horas da noite. Por uma fatalidade ligada ao seu

destino, e que parecia troçar de toda a prudência humana, o

curto intervalo que sobreviveu ao senhor de Valmont foi o bastante

para tomar conhecimento da morte dele; e, como ela própria

o disse, para sucumbir sob o peso das suas desgraças, só

depois da medida estar completamente cheia.

Com efeito, já vos informara de que havia dois dias que ela

283

estava absolutamente inconsciente; e ainda ontem de manhã,

quando o médico chegou e nos aproximámos do leito, não nos

reconheceu e não pudemos obter nem uma palavra, nem o

menor sinal. Pois bem! Mal nos tínhamos aproximado da chaminé,

e enquanto o médico me informava do triste acontecimento

da morte do senhor de Valmont, aquela infeliz mulher

recuperou a lucidez, ou porque a natureza sozinha tivesse produzido

essa transformação, ou porque fosse causada pelas repetidas

palavras de "senhor de Valmont" e de "morte", que talvez

tenham recordado à doente as únicas ideias de que ela se ocupava

de há muito tempo a esta parte.

Seja como for, abriu precipitadamente as cortinas do leito,

gritando: "O quê! Que dizeis? O senhor de Valmont morreu?"

Ainda tive esperanças de lhe fazer crer que se enganara, e assegurei-lhe

a princípio que tinha ouvido mal: mas, longe de se

deixar convencer, exigiu que o médico recomeçasse a cruel narrativa;

e vendo que eu procurava ainda dissuadi-la, chamou-me

e disse-me em voz baixa: "Para quê querer enganar-me? Ele já

tinha morrido para mim!" Foi forçoso ceder.

A nossa infeliz amiga escutou primeiro com um ar bastante

tranquilo; mas logo interrompeu a narrativa, dizendo: "Basta,

já sei o suficiente." Pediu imediatamente que se fechassem as

cortinas; e quando o médico lhe quis prestar os cuidados que o

seu estado exigia, não consentiu que ele se aproximasse.

Assim que ele saiu, mandou também embora a enfermeira e

a criada de quarto; e quando já estávamos sós, pediu-me que a

ajudasse a pôr-se de joelhos sobre o leito, e que a segurasse.

Permaneceu algum tempo em silêncio, e sem outra expressão

que a das lágrimas que corriam abundantemente. Por fim, juntando

as mãos e elevando-as ao céu: "Deus Todo-Poderoso",

disse ela com voz fraca mas fervorosa, "submeto-me à Tua justiça;

mas perdoa a Valmont. Que as minhas desgraças, que reconheço

merecidas, não lhe sejam motivo de censura, e bendirei

a Tua misericórdia!". Permiti-me, minha querida e digna amiga,

entrar em pormenores sobre um tal assunto que bem vejo deve

renovar e agravar as vossas dores, apenas porque penso que este

rogo de Madame de Tourvel será de grande consolo para a vossa

alma.

Depois de ter proferido estas poucas palavras a nossa amiga

deixou-se cair nos meus braços; e mal voltara a deitá-la, veio-lhe

uma prolongada fraqueza, que no entanto cedeu aos tratamentos

habituais. Assim que voltou a si, pediu-me que mandasse

chamar o padre Anselmo, e acrescentou: "Neste momento é

o único médico de que preciso; sinto que os meus males vão em

breve terminar." Dizia sentir uma opressão e falava com dificuldade.

Pouco depois mandou-me entregar, pela criada de quarto, o

cofrezinho que vos envio; disse-me que continha papéis pessoais,

e encarregou-me de vo-lo enviar logo após a sua morte.

284

Em seguida falou-me de vós, e da vossa amizade por ela, tanto

quanto o seu estado lho permitia, e com muita ternura.

O padre Anselmo chegou por volta das quatro horas, e ficou

perto de uma hora sozinho com ela. Quando entrámos de

novo, o rosto da doente estava calmo e sereno; mas era fácil

perceber que o padre Anselmo tinha chorado muito. Ficou para

assistir às últimas cerimónias da igreja. Este espectáculo, sempre

tão imponente e doloroso, foi-o ainda mais pelo contraste que

formava a tranquila resignação da doente com a dor profunda

do seu venerável confessor, que se desfazia em lágrimas ao lado

dela. A comoção tornou-se geral; e aquela que todos choravam

foi a única a não chorar.

O resto do dia passou-se nas habituais rezas, que só foram

interrompidas pelos frequentes desmaios da doente. Finalmente,

por volta das onze da noite, pareceu mais oprimida e aflita.

Avancei a mão para procurar o braço dela; ainda teve forças

para a agarrar, e colocou-a sobre o coração. Já não o senti bater;

e, com efeito, a nossa infeliz amiga expirou nesse mesmo

momento.

Recordais-vos, minha querida amiga, que quando da vossa

última viagem aqui, há menos de um ano, ao falarmos de algumas

pessoas cuja felicidade nos parecia mais ou menos assegurada,

nos detivemos com prazer sobre o destino desta mesma

mulher, de quem hoje choramos simultaneamente as desventuras

e a morte? Virtudes, qualidades louváveis, graças; um carácter

tão doce e fácil; um marido que ela amava, e por quem era

adorada, um círculo de amigos onde ela se sentia bem, e de que

fazia as delícias; beleza, juventude, fortuna; tantos dons reunidos

e perdidos por uma só imprudência! Oh, Providência! Sem

dúvida que devemos adorar os teus decretos; mas como são

incompreensíveis! Fico-me por aqui; receio aumentar a vossa

tristeza, ao entregar-me à minha.

Deixo-vos e vou ver a minha filha que está um pouco indisposta.

Ao informá-la esta manhã da morte tão rápida de duas

1 Este cofrezinho continha todas as cartas relativas à sua aventura com o

senhor de Valmont.

pessoas suas conhecidas, sentiu-se mal e mandei-a deitar-se.

Espero no entanto que este ligeiro incómodo não terá consequências.

Naquela idade ainda não se está habituado aos desgostos,

e a impressão que causam é por isso mais viva e forte.

Esta sensibilidade tão à flor da pele é sem dúvida uma qualidade

louvável; mas como aquilo que vemos todos os dias nos ensina

a temê-la! Adeus, querida e digna amiga.

285

Paris, 9 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXVI

O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

Em consequência das ordens que me haveis feito a honra de

dar, encontrei-me com o senhor Presidente de..., comuniquei-lhe

a vossa carta, prevenindo-o de que, segundo os vossos desejos,

eu nada faria a não ser pelos seus conselhos. O respeitável

magistrado encarregou-me de vos observar que a queixa que

tendes a intenção de fazer contra o senhor Cavaleiro Danceny

comprometeria igualmente a memória do senhor vosso sobrinho,

cuja honra ficaria inevitavelmente manchada pela sentença

da corte, o que seria sem dúvida uma grande infelicidade. A sua

opinião é, pois, que se deve evitar semelhante diligência; e que,

se houvesse alguma coisa a fazer, seria pelo contrário tratar de

evitar que o Ministério Público tomasse conhecimento desta

infeliz aventura, que já fez demasiado ruído.

Estas observações pareceram-me cheias de sabedoria, e

tomo a decisão de esperar novas da vossa parte.

Peço-vos, minha senhora, que tenhais a amabilidade de, ao

enviar-mas, acrescentar algumas linhas sobre o vosso estado de

saúde, de que receio extremamente a reacção a tantas desgraças.

Espero que perdoareis esta liberdade à minha dedicação e zelo.

Sou com respeito, minha senhora, vosso, etc.

Paris, 10 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXVII

ANÓNIMA AO SENHOR CAVALEIRO DANCENY

Senhor,

Tenho a honra de vos prevenir de que se falou, esta manhã,

no tribunal da corte, entre os funcionários de el-rei, do duelo

que travastes nestes últimos dias com o senhor Visconde de

Valmont, e é de recear que o Ministério Público apresente queixa.

Pensei que este aviso vos podia ser útil, quer para que façais

286

agir os vossos protectores a fim de evitar consequências desagradáveis;

quer, no caso de isso não ser possível, para estardes em

posição de vos defenderdes.

Se me permitis um conselho, creio que faríeis bem, durante

algum tempo, em aparecerdes menos vezes em público do que o

tendes feito ultimamente. Se bem que geralmente se seja indulgente

para com casos destes, deve-se ao menos esse respeito

para com a lei.

Esta precaução torna-se tanto mais necessária quanto me

chegou aos ouvidos que uma certa Madame de Rosemonde, que

me afirmam ser tia o senhor de Valmont, queria apresentar

queixa contra vós, e então o Ministério Público não poderia

deixar de tomar o assunto em mãos. Talvez fosse conveniente

que conseguísseis intervir junto dessa dama.

Motivos particulares impedem-me de assinar esta carta.

Mas espero que, ignorando embora donde ela vos vem, não

deixareis ao menos de prestar justiça ao sentimento que a ditou.

Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 10 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXVIII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Espalham-se por aqui, minha querida e digna amiga, acerca

de Madame de Merteuil, boatos bastante estranhos e muito lastimáveis.

Evidentemente estou bem longe de os crer, e apostaria

até que não passam de horríveis calúnias; mas sei demasiado

bem como este género de maldades, mesmo as menos verosímeis,

adquirem facilmente consistência, e como a impressão que

deixam se apaga dificilmente, para não estar alarmada com estas,

embora eu julgue fácil destruí-las. Desejaria, sobretudo, que

fosse possível sustê-las desde já, e antes que se tivessem espalhado

mais. Só ontem soube, demasiado tarde, os horrores que se

começam por aí a dizer; e quando mandei esta manhã um criado

a casa de Madame de Merteuil, acabara ela de partir para o

campo, onde deve passar dois dias. Não me souberam dizer

para casa de quem tinha ido. A criada, com quem falei, disse-me

que a sua ama lhe ordenara que só a esperasse na próxima quinta-feira;

e nenhum dos criados que ela aqui deixou sabia mais

qualquer coisa. Eu própria não sou capaz de adivinhar onde

possa estar; não me recordo de nenhum dos seus conhecimentos

287

que esteja no campo até tão tarde.

Como quer que seja, podereis, assim o espero, conseguir-me,

daqui até ao seu regresso, os esclarecimentos que lhe podem

ser úteis: porque fundamentam estas odiosas histórias sobre

as circunstâncias da morte do senhor de Valmont, das quais

suponho deverei ter sido informada se são verdadeiras, ou que

pelo menos vos será fácil esclarecer, favor que muito vos peço.

Eis o que espalham; ou, pelo menos, o que por enquanto se

murmura apenas, mas que não tardará certamente a dar mais

brado.

Diz-se que a querela surgida entre o senhor de Valmont e o

Cavaleiro Danceny é obra de Madame de Merteuil, que os enganava

igualmente a ambos; que, como quase sempre acontece,

os dois rivais começaram por se bater, e só depois é que, entre

si, descobriram a verdade: daqui resultou uma reconciliação

sincera; e que para acabar de revelar a verdadeira Madame de

Merteuil ao Cavaleiro Danceny, e também para se justificar inteiramente,

o senhor de Valmont juntou às suas palavras um

grande maço de cartas, constituindo a correspondência que

mantinha regularmente com ela, e em que esta conta sobre si

própria, e no mais audacioso dos estilos, as anedotas mais escandalosas

que se possam imaginar.

Acrescenta-se que Danceny, na sua primeira indignação,

entregou as cartas a quem as quis ver, e que circulam agora por

Paris. Citam-se particularmente duas: uma onde ela narra a

inteira história da sua vida e dos seus princípios, e que dizem ser

o cúmulo do horror; a outra, que iliba totalmente o senhor de

Prévan, de cuja história certamente vos recordais, pela prova

que contém de que ele apenas cedeu a nítidas provocações de

Madame de Merteuil, e que o encontro estava combinado com

ela.

Tenho felizmente fortes razões para crer que estas acusações

são tão falsas como odiosas. Primeiro, sabemos ambas que o

senhor de Valmont não se ocupava com certeza de Madame de

Merteuil, e tenho todo o motivo para crer que Danceny não lhe

dava mais atenção: parece-me assim demonstrado que ela não

podia ser nem o motivo, nem a autora da desavença. Não compreendo

igualmente que interesse teria tido Madame de Merteuil,

que supõem de acordo com Prévan, em fazer uma cena

que só poderia ser desagradável pelo seu escândalo, e que poderia

vir a ser muito perigosa para ela, visto que arranjava assim

um inimigo irreconciliável que ficava senhor de uma parte do

seu segredo, e que possuía então muitos partidários. No entanto,

é caso para pensar que, depois desta aventura, não se tenha

levantado uma única voz a favor de Prévan, e que, mesmo da

sua parte, não tenha havido qualquer reacção.

288

Estas reflexões levar-me-iam a suspeitá-lo de ser o autor dos

boatos que correm, e a considerar estas infâmias como obra do

ódio e da vingança dum homem que, vendo-se perdido, esperava

por este meio espalhar pelo menos dúvidas, e desviar as atenções,

o que talvez lhe convenha. Mas qualquer que seja a origem

destas maldades, o mais urgente é destruí-las. Cairiam por si

próprias se se descobrisse, como é verosímil, que os senhores de

Valmont e Danceny não se falaram após o infeliz duelo, e que

não houve nenhuma entrega de papéis.

Na minha impaciência de verificar os factos, enviei esta

manhã um criado a casa do senhor Danceny; mas também não

se encontra em Paris. Os seus criados disseram ao meu que ele

partira nessa noite, por causa dum aviso que recebera ontem, e

que se encontrava em lugar secreto. Aparentemente receia as

consequências da questão. É pois só por vós, minha querida e

* Cartas LXXXI e LXXXV desta colecção.

digna amiga, que posso obter os pormenores que me interessam,

e que tão necessários podem vir a ser a Madame de Merteuil.

Renovo os meus pedidos para que mos façais chegar às

mãos o mais cedo possível.

P. S. - A indisposição de minha filha não teve consequências;

ela apresenta-vos os seus respeitos.

Paris, 11 de Dezembro de 17*

CARTA CLXIX

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

Talvez acheis a decisão que hoje tomo um pouco estranha;

mas, suplico-vos, escutai-me antes de me julgar, e não vejais audácia

e temeridade onde só existem respeito e confiança. Não

ignoro a culpa de que sou réu a vossos olhos; e nunca ma perdoaria

a mim próprio, se pudesse pensar por um momento que

me teria sido possível evitá-la. Podeis mesmo ter a certeza, minha

senhora, de que o facto de me considerar isento de censura

não me inibe de desgostos; e posso ainda acrescentar com sinceridade

289

que aqueles que vos causo contam muito entre os que

sinto. Para que acrediteis nestes sentimentos que ouso expor

diante de vós, deve bastar-vos que vos preste justiça, e que saibais

que, sem ter a honra de ser por vós conhecido, tenho no

entanto a de vos conhecer.

Contudo, quando gemo sob a fatalidade que causou simultaneamente

os vossos desgostos e a minha infelicidade, querem

fazer-me recear que, inteiramente entregue à vingança, vós procurareis

os meios de a satisfazer, recorrendo até à severidade da

lei.

Permiti que vos observe que a este respeito a vossa dor vos

engana, visto que neste ponto o meu interesse está essencialmente

ligado ao do senhor de Valmont, que se encontraria envolvido

ele próprio na condenação que teríeis provocado contra

mim. Julgaria eu, minha senhora, poder pelo contrário contar

mais com o vosso auxílio do que com a vossa oposição, nos cuidados

que eu poderia vir a ser obrigado a tomar para que este

infeliz acontecimento permanecesse envolto em silêncio.

Mas este recurso de cumplicidade, que convém igualmente

ao culpado e ao inocente, não satisfaz a minha delicadeza; e

desejando afastar-vos como parte, reclamo-vos como juiz. A

estima das pessoas que respeitamos é demasiado preciosa para

que eu me deixe expoliar da vossa sem a defender, e creio que

possuo os meios para tal.

De facto, se concordais que a vingança nos é permitida, digamos

melhor, que temos a obrigação de a exercer, quando se

foi traído no seu amor, na sua amizade, e, sobretudo, na sua

confiança; se concordais com isto, os meus erros vão desaparecer

a vossos olhos. Não acrediteis nas minhas palavras; mas

lede, se para tanto tiverdes coragem, a correspondência que

deposito em vossas mãos. A quantidade de cartas aí incluídas

em original parece dar o direito de supor como autênticas as de

que só existem cópias. De resto, recebi estes papéis, tais como

tenho a honra de vo-los enviar, do próprio senhor de Valmont.

Nada acrescentei, e tirei apenas duas cartas que me autorizei a

publicar.

Uma era necessária à comum vingança do senhor de Valmont

e minha, à qual ambos tínhamos direito, e de que ele me

encarregara expressamente. Achei, de resto, que era prestar um

verdadeiro serviço à sociedade desmascarar uma mulher tão

realmente perigosa como é Madame de Merteuil, e que, como

podereis ver, é a única, a verdadeira causadora de tudo o que se

passou entre mim e o senhor de Valmont.

Um sentimento de justiça levou-me também a publicar a

segunda, para justificação do senhor de Prévan, que mal conheço,

mas que não merecia de forma alguma o tratamento rigoroso

que acaba de sofrer, nem a severidade dos juízos do público,

mais temível ainda e sob a qual geme desde então, sem nada ter

290

com que se defenda.

1 Foi com esta correspondência, com a entregue igualmente por ocasião

da morte de Madame de Tourvel, e com as cartas confiadas também a Madame

de Rosemonde por Madame de Volanges, que se formou a presente recolha,

cujos originais subsistem nas mãos dos herdeiros de Madame de Rosemonde.

Encontrareis pois apenas as cópias destas duas cartas, de

que me vejo forçado a guardar os originais. Quanto ao resto,

não creio poder colocar em mãos mais seguras um depósito que

me interessa não seja destruído, mas de que me envergonharia

de abusar. Creio, minha senhora, ao confiar-vos estes papéis,

servir tão bem as pessoas a quem dizem respeito, como se os tivesse

enviado a elas próprias; e poupo-lhes o embaraço de os

receberem de mim, e de me saberem informado de aventuras

que, sem dúvida, desejam que todos ignorem.

parte duma colecção bem mais volumosa, donde o senhor

de Valmont a tirou na minha presença, e que encontrareis quando

os selos forem tirados, sob o título, que eu vi, de Conta aberta

entre a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont.

Tomareis, a este respeito, a decisão que a prudência vos sugerir.

Sou com respeito, minha senhora, o vosso, etc.

P. S. - Alguns avisos que recebi e os conselhos dos amigos

decidiram-me a ausentar-me de Paris por algum tempo: mas o

meu esconderijo, secreto para toda a gente, não o será para vós.

Se me honrardes com uma resposta, peço-vos que a envieis para

a Comendadoria de..., por intermédio de P..., e ao cuidado do

senhor Comendador de... É de casa dele que tenho a honra de

vos escrever.

Paris, 12 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Caminho, cara amiga, de surpresa em surpresa, e de desgosto

em desgosto. Só uma mãe pode imaginar o que ontem sofri

durante toda a manhã; e embora as mais cruéis inquietações se

tenham acalmado depois, resta-me ainda uma grande aflição a

que não vejo o fim.

Ontem, pelas dez da manhã, admirada por a minha filha

não ter ainda aparecido, mandei a minha criada de quarto descobrir

qual seria a causa do atraso. Veio um momento depois

291

muito assustada, e assustou-me ainda mais, comunicando-me

que a minha filha não estava nos seus aposentos; e que desde

manhã que a criada dela a não encontrava. Imagine a minha

situação! Mandei reunir todos os criados e o porteiro, e todos

me juraram não saber nada e nada poder dizer-me sobre o acontecimento.

Passei pelo quarto da minha filha. A desordem que aí

reinava mostrou-me claramente que só saíra de manhã: mas

não encontrei mais nenhum esclarecimento. Examinei os armários

e a secretária; encontrei tudo no lugar e todos os trajos,

com excepção do vestido com que saíra. Nem sequer levara o

pouco dinheiro que tinha com ela.

Como só ontem ela tivera conhecimento do que se diz acerca

de Madame de Merteuil, e lhe era dedicada, a ponto de ter

chorado durante todo o serão, lembrei-me que ela ignorava que

Madame de Merteuil estava no campo, e a minha primeira ideia

foi que tivesse querido ir ver a amiga, e cometido a loucura de ir

sozinha. Mas o tempo, que corria sem que ela voltasse, mergulhou-me

de novo em terríveis inquietações. Cada instante aumentava

a minha aflição; e, ardendo por saber a verdade, não

ousava tentar informar-me, com terror de dar a conhecer uma

diligência que, talvez, depois preferisse ter escondido de todos.

Não, nunca sofri tanto na minha vida.

Enfim, já passava das duas, quando recebi ao mesmo tempo

uma carta da minha filha e outra da Superiora do convento

de... A carta de Cecília dizia apenas que temia que eu me opusesse

à sua vocação religiosa, e que não ousara falar-me em tal;

o resto eram só desculpas por ter tomado, sem minha licença,

aquela decisão, que eu não desaprovaria decerto, acrescentava,

se lhe conhecesse os motivos, que no entanto me pedia que não

tentasse descobrir.

A Superiora contava-me que, tendo visto chegar uma jovem

só, se recusara primeiro a recebê-la; mas que, depois de a interrogar

e saber quem ela era, julgara prestar-me um serviço, começando

por dar asilo à minha filha, para a não obrigar a novas

diligências, a que parecia estar resolvida. A Superiora, oferecendo-se

como era razoável para me entregar a minha filha, se eu a

reclamar, exorta-me, como convém à sua posição, a não me

opor a uma vocação que considera tão decidida; dizia-me ainda

que não me pudera informar mais cedo do sucedido, devido à

dificuldade que tivera em conseguir que a minha filha me escrevesse,

porque o projecto dela era, segundo me informa, que

todos ignorassem para onde se retirara. É bem cruel a obstinação

dos jovens!

Dirigi-me imediatamente a esse convento; e depois de ter

visto a superiora, pedi-lhe que me deixasse ver a minha filha;

esta consentiu em vir a muito custo, e toda trémula. Falei-lhe

diante das religiosas, e só: tudo o que consegui arrancar-lhe,

entre muitas lágrimas, é que nunca poderia ser feliz senão no

convento; tomei a decisão de a deixar ficar, mas ainda sem fazer

292

parte das noviças como me pedia. Receio que a morte de Madame

de Tourvel e a do senhor de Valmont tenham afectado de

algum modo esta cabeça tão jovem. Por muito respeito que tenha

pela vocação religiosa, não veria sem pena, e até sem temor,

a minha filha tomar um tal caminho. Parece-me que temos já

bastantes deveres a cumprir, mesmo sem procurarmos mais; e

ainda que não é naquela idade que sabemos o que nos convém.

O que aumenta o meu embaraço é o próximo regresso do

senhor de Gercourt; será preciso romper este casamento tão

vantajoso? Como dar a felicidade aos filhos, se não basta desejá-la

e dispensar-lhe todos os cuidados? Ficar-vos-ia muito agradecida

se me dissésseis como precederíeis no meu lugar; não

posso tomar nenhuma decisão. Nada me aterroriza tanto como

ter de decidir do destino dos outros, e temo igualmente empregar

nesta ocasião a severidade do juiz e a fraqueza da mãe.

Acuso-me de aumentar os vossos desgostos falando-vos dos

meus; mas conheço o vosso coração: a consolação que dais aos

outros torna-se para vós na maior que poderíeis receber.

Adeus, querida e digna amiga; espero as duas respostas com

grande impaciência.

Paris, 13 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXI

MADAME DE ROSEMONDE AO CAVALEIRO DANCENY

Depois do que me deu a conhecer, senhor, resta-me chorar

em silêncio. Lamentamos vivermos ainda, quando sabemos

semelhantes horrores; coro de ser mulher quando vejo uma

capaz de semelhantes excessos.

Concordo, senhor, em pelo meu lado deixar no silêncio e

esquecimento tudo o que possa referir-se ou dar seguimento a

estes tristes acontecimentos. Desejo até que eles vos não causem

mais nenhuns desgostos além dos resultantes da infeliz vitória

que tivestes sobre meu sobrinho. Apesar dos erros que sou forçada

a reconhecer nele, sinto que nunca me consolarei da sua

perda: mas a minha eterna mágoa será a única vingança que me

permitirei sobre vós; cabe ao vosso coração apreciar-lhe a grandeza.

Se permitis à minha idade uma reflexão que se não faz na

vossa, é que, se estivéssemos esclarecidos quanto à nossa verdadeira

felicidade, não a procuraríamos fora dos limites prescritos

pelas leis e pela religião.

Podeis estar certo de que guardarei fielmente o depósito que

me confiastes, mas peço-vos que me autorizeis a não o dar a

ninguém, nem a vós, senhor, a não ser que seja necessário para

293

vossa justificação. Ouso crer que vos não recusareis a esta súplica,

e que sentis que muitas vezes se sofre por nos termos deixado

arrastar, mesmo pela mais justa vingança.

Não me atardo mais em pedidos, de tão persuadida que estou

da vossa generosidade e delicadeza; seria digno de ambos

depositar também nas minhas mãos as cartas de Mademoiselle

de Volanges, que parece que conservais e que certamente vos

não interessam já. Sei que esta menina cometeu muitas faltas

para convosco; mas não julgo que penseis em a castigar: e, pelo

menos por respeito por vós próprio, não aviltareis um objecto

que tanto amastes. Nem preciso acrescentar que a consideração

que a filha não merece é devida à mãe, essa respeitável dama,

em relação à qual algo tendes a reparar: porque, enfim, mesmo

que procuremos justificar-nos por uma pretensa delicadeza de

sentimentos, aquele que primeiro tenta seduzir um coração ainda

honesto e simples torna-se o primeiro incitador à sua corrupção,

e para sempre responsável dos desvarios e excessos que se

lhe seguem.

Não vos admireis, senhor, de encontrar tanta severidade do

meu lado; é a maior prova que vos posso dar da minha inteira

estima. Esta aumentará ainda se aceitardes, como desejo, guardar

um segredo, cuja repercussão vos prejudicaria e traria a

morte a um coração maternal, que já feristes. Enfim, senhor,

desejo prestar este serviço à minha amiga; e se receasse que me

recusásseis esta consolação, pedir-vos-ia que meditásseis primeiro

que é a única que me deixastes.

Tenho a honra de ser. etc.

Do castelo de..., 15 de Dezembro de 17".

CARTA CLXXII

MADAME DE ROSEMONDE A MADAME DE VOLANGES

Se tivesse sido obrigada, minha querida amiga, a mandar vir

e a esperar de Paris os esclarecimentos que me pedis a respeito

de Madame de Merteuil, ainda não me seria possível dar-vos-los;

e sem dúvida só teria recebido informações vagas e incertas:

mas vieram-me donde as não esperava, donde menos as

poderia esperar; e estas são absolutamente certas. Oh, minha

amiga! Como essa mulher vos enganou!

Repugna-me entrar em pormenores sobre este amontoado

de horrores; mas, seja o que for que se diga, podeis ter a certeza

que ainda se está longe da verdade. Espero, minha querida amiga,

que me conheçais o suficiente para acreditar na minha palavra;

que não exigireis de mim nenhuma prova; que vos bastará

294

saber que existem em abundância, e que as tenho neste momento

entre mãos.

É com uma imensa dor que vos peço que não me obrigueis a

justificar o conselho que me pedis, relativamente a Mademoiselle

de Volanges. Rogo-vos que não vos opunhais à vocação que

ela mostra. Certamente nenhum motivo vos pode autorizar a

forçar alguém a tomar semelhante decisão, quando o interessado

não se sente chamado: mas às vezes é uma grande felicidade

que ele sinta o apelo divino; e bem vedes que a vossa própria

filha vos diz que não a desaprovaríeis, se soubésseis os motivos

dela. Aquele que inspira os nossos sentimentos sabe melhor que

a nossa vã sabedoria o que convém a cada ¨um, e muitas vezes o

que parece um acto da sua severidade, é, pelo contrário, uma

manifestação de clemência.

Enfim, a minha opinião, que bem sei que vos afligirá, e por

isso mesmo deveis crer que não vo-la dou sem ter reflectido, é de

que deixeis Mademoiselle de Volanges ficar no convento, visto

ser essa a sua escolha; que encorajeis, em vez de contrariar, o

projecto que ela parece ter formado; e que, enquanto se espera

pela execução do mesmo, não deveis hesitar em romper o casamento

que tínheis combinado.

Depois de ter preenchido estes penosos deveres da amizade

e na impossibilidade em que me encontro de acrescentar qualquer

consolação, resta-me, querida amiga, pedir-vos a graça de

nunca mais me interrogardes sobre nada que esteja relacionado

com estes tristes acontecimentos: deixemo-los esquecer, como

merecem; e sem procurar inúteis e terríveis esclarecimentos

" submetamo-nos aos decretos da Providência, confiemos na sabedoria

das suas decisões, mesmo quando ela não permite que

as compreendamos. Adeus, minha querida amiga.

Castelo de, 15 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXIII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Oh, minha amiga! Com que véu assustador envolveis o destino

da minha filha! E pareceis temer que eu tente levantá-lo!

, Que me esconde ele pois, que possa afligir ainda mais o coração

de uma mãe do que as horríveis suspeitas a que me abandonais?

Quanto mais conheço a vossa amizade, a vossa indulgência,

mais os tormentos redobram: vinte vezes, desde ontem, quis sair

desta cruel incerteza e pedir-vos que me informásseis sem considerações

nem desvios; e de cada vez tremi de medo, pensando

no pedido que me haveis feito de não vos interrogar. Enfim,

tomo uma decisão que me deixa ainda alguma esperança; e espero

295

que a vossa amizade não se recusará ao meu pedido: é que

me informeis se compreendi aproximadamente o que me queríeis

dizer; que não receeis revelar-me tudo o que a indulgência

materna pode cobrir, e que não seja impossível de emendar: Se

as minhas desgraças excedem esta medida então consinto com

até onde os meus receios podem ir.

Minha filha mostrou ter certa simpatia pelo Cavaleiro Danceny,

e fui informada de que chegou a receber cartas dele, e até a

responder-lhe; mas supunha ter conseguido impedir que este

erro de criança tivesse consequências perigosas; hoje, que tudo

receio, concebo que teria sido possível enganar a minha vigilância,

e temo que a minha filha, seduzida, tenha levado os seus

desvairos ao cúmulo.

Recordo-me ainda de certas circunstâncias que parecem fortificar

este receio. Informei-vos de que minha filha se sentiu mal

ao receber a notícia da desgraça acontecida ao senhor de Valmont;

talvez esta reacção tivesse apenas por causa a ideia dos

riscos que o senhor Danceny tinha corrido no combate. Depois,

quando ela chorou tanto ao saber o que se dizia a respeito de

Madame de Merteuil, talvez o que interpretei como sendo a dor

da amizade fosse apenas o efeito do ciúme ou da pena de descobrir

que o seu amado lhe era infiel. A sua última decisão pode

também, parece-me, explicar-se pelo mesmo motivo. Muitas

vezes supomo-nos chamadas para Deus, apenas porque nos sentimos

revoltadas contra os homens. Enfim, supondo que estes

factos sejam verdadeiros, e que os conheci, será possível, sem

dúvida, que os acheis suficientes para justificar o conselho rigoroso

que me haveis dado.

Contudo, se assim fosse, e embora censurando minha filha,

pensaria no entanto dever tentar ainda todos os meios para a

salvar dos tormentos e dos perigos inseparáveis duma vocação

ilusória e passageira. Se o senhor Danceny não perdeu por completo

a noção da honestidade, não se recusará a reparar um erro

de que só ele é autor; e creio enfim que o casamento com minha

filha seja suficientemente vantajoso para que ele e a família se

sintam lisonjeados.

Eis, querida e digna amiga, a única esperança que me resta;

apressai-vos a confirmá-la, se tal é possível. Adivinhais como

anseio pela vossa resposta, e golpe terrível significaria o vosso

silêncio.

Ia fechar a carta, quando um cavalheiro meu conhecido me

veio visitar e me contou a cena cruel por que Madame de Merteuil

passou anteontem. Como não recebi ninguém nestes últimos

dias, de nada sabia até este momento; eis a história, tal

como ma narrou uma testemunha ocular.

Madame de Merteuil, ao chegar do campo, antes de ontem,

quinta-feira, dirigiu-se à "Comédia Italiana", onde tinha o seu

camarote; estava sozinha, e, o que lhe deve ter parecido estranho,

nenhum homem a foi cumprimentar durante todo o espectáculo.

296

À saída, entrou, como era seu costume, no pequeno salão

que já estava cheio de gente; imediatamente se levantou um

rumor, de que aparentemente não se supôs objecto. Avistou um

lugar vago num dos bancos, e sentou-se; mas logo todas as

mulheres que aí se encontravam se levantaram como de acordo

e deixaram-na absolutamente só. Este nítido movimento de indignação

geral foi aplaudido por todos os homens e fez aumentar

os murmúrios, que, dizem, foram até às vaias.

Para que nada faltasse à sua humilhação, teve o azar de o

senhor Prévan, que ainda não tinha aparecido em parte alguma

depois da sua aventura, entrar nesse momento no pequeno salão.

Assim que o viram, toda a gente, homens e mulheres, o cercou

e aplaudiu; achou-se, por assim dizer, transportado para

diante de Madame Merteuil, pelo público que fazia círculo em

volta deles. Afirmam que Madame de Merteuil conservou o ar

de quem não vê nem ouve coisa alguma, e que nem sequer o rosto

se lhe alterou, mas creio que é exagero. De qualquer forma,

esta situação, verdadeiramente ignominiosa para ela, durou até

ao momento em que anunciaram a sua carruagem; à partida, os

apupos escandalosos redobraram. É horrível ser-se ainda parente

desta mulher. O senhor de Prévan foi, nessa mesma noite,

muito bem acolhido por todos os oficiais do seu regimento que

aí se encontravam, e ninguém duvida que em breve lhe restituirão

o cargo e o posto.

A mesma pessoa que me contou tudo isto disse-me que

Madame de Merteuil teve, na noite seguinte, um forte ataque de

febre, que se supôs a princípio ser o efeito da situação violenta

em que se encontrava; mas já se sabe, desde ontem à noite, que

se declarou um ataque de varíola, confluente e com grande virulência.

Na verdade creio que morrer seria para ela uma felicidade.

Diz-se ainda que toda esta aventura a prejudicará muito

no seu processo, que está prestes a ser julgado e no qual se pretende

que ela tinha necessidade que a favorecessem.

Adeus, minha querida e digna amiga. Vejo que os maus foram

castigados, mas não encontro nisso nenhum consolo para

as infelizes vítimas.

Paris, 18 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXXIV

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE

Tendes razão, minha senhora, e certamente não vos recusarei

nada que dependa de mim e a que parecerdes atribuir qualquer

valor. O maço que tenho a honra de vos enviar contém

297

todas as cartas de Mademoiselle de Volanges. Se as lerdes, vereis

com espanto como se pode reunir tanta ingenuidade e tanta

perfídia. É, pelo menos, o que mais me impressionou na última

leitura que acabo de fazer.

Mas, podemos sobretudo deixar de sentir a mais viva indignação

contra Madame de Merteuil, quando nos recordarmos

do horroroso prazer com que aplicou todos os cuidados em

abusar de tanta inocência e candura?

Não, já não amo. Nada conservo dum sentimento tão indignamente

traído; e não é ele que me leva a procurar justificar

Mademoiselle de Volanges. No entanto, esse coração tão simples,

esse carácter tão doce e fácil, não se deixariam levar para o

bem, mais facilmente ainda do que o foram para o mal? Que

outra jovem, saindo do mesmo convento, sem experiência e

quase sem ideias, e trazendo para o mundo, como quase sempre

acontece, uma igual ignorância do bem e do mal; que outra, dizia

eu, teria podido resistir melhor a tão condenáveis artifícios?

Ah, para ser indulgente, basta reflectir a quantas circunstâncias

independentes de nós se encontra ligada a alternativa assustadora

da delicadeza ou da depravação dos nossos sentimentos.

Far-me-íeis pois justiça, minha senhora, pensando que os erros

de Mademoiselle de Volanges, que sem dúvida senti vivamente,

não me inspiram contudo qualquer ideia de vingança. Já basta

ser obrigado a renunciar a amá-la! Custar-me-ia demasiado

odiá-la.

Não precisei de reflectir para desejar que tudo o que lhe diz

respeito, e que a poderia prejudicar, ficasse para todo o sempre

ignorado por toda a gente. Se na aparência adiei durante algum

tempo a realização dos vossos desejos a este respeito, creio poder

revelar-vos o motivo; quis esperar até ter a certeza de que

não seria incomodado pelas consequências deste infeliz caso.

Na altura em que pedia a vossa indulgência, a que ousava crer-me

mesmo com alguns direitos, receei ter o aspecto de a comprar

por esta condescendência da minha parte; e certo da pureza

dos meus motivos, tive, confesso-o, o orgulho de querer que

não pudésseis duvidar deles. Espero que me perdoareis este escrúpulo,

talvez demasiado susceptível, pela veneração que me

inspirais e pela importância que esta me leva a atribuir à vossa

estima.

O mesmo sentimento me faz pedir-vos, como última graça,

que me informeis se achais que preenchi todos os deveres que

me impuseram as infelizes circunstâncias em que me encontrei.

Uma vez tranquilo a este respeito, a minha decisão está tomada;

parto para Malta: irei com prazer, e aí guardarei religiosamente

os votos que me separarão dum mundo do qual, tão novo ainda,

já tenho tanto a queixar-me; irei enfim procurar esquecer,

sob um céu estrangeiro, a lembrança de tantos horrores acumulados,

e cuja recordação só poderia entristecer e torturar-me a

alma.

298

Sou com respeito, minha senhora, etc.

Paris, 26 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXXV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

O destino de Madame de Merteuil parece cumprir-se finalmente,

minha querida e digna amiga; e é de tal sorte que os seus

maiores inimigos estão divididos entre a indignação que ela

merece, e a piedade que inspira. Tinha razão ao dizer que seria

para ela uma felicidade morrer da varíola. Curou-se, é verdade,

mas ficou horrivelmente desfigurada; por cúmulo, perdeu um

olho. Não a voltei a ver; mas disseram-me que está verdadeiramente

hedionda.

O Marquês de..., que não perde ocasião para uma maldade,

dizia ontem, falando dela, que a doença a virara do avesso, e

que tinha agora a alma estampada no rosto. Infelizmente todos

acharam que a expressão era justa.

Um outro acontecimento vem acrescentar-se às desgraças e

aos erros dela. O processo foi julgado anteontem, e perdeu-o

por unanimidade. Coube-lhe o pagamento das custas, danos e

juros, e foi forçada a restituir os bens aos menores: de forma

que o pouco da fortuna dela que não estava comprometido no

processo foi absorvido, e até para mais, pelas despesas.

Assim que soube esta notícia, embora ainda doente, fez os

seus preparativos e partiu de noite, sozinha e pela mala-posta.

Os criados dizem hoje que nenhum a quis seguir. Crê-se que

tomou o caminho da Holanda.

Esta partida ainda fez mais barulho que todo o resto; visto

que levou os diamantes, coisa de muito valor, e que deviam ser

integrados na herança do marido; as pratas, as jóias; enfim,

tudo o que pôde, deixando perto de 50000 libras de dívidas.

Uma verdadeira bancarrota.

A família deve reunir-se amanhã para chegar a acordo com

os credores. Se bem que parente muito afastada, ofereci o meu

concurso; mas não estarei presente à reunião, pois devo assistir

a uma cerimónia muito mais triste. A minha filha toma amanhã

o hábito de noviça. Espero que não esquecereis, querida amiga,

que, neste grande sacrifício que faço, não tenho outro motivo

para a tal me julgar obrigada, a não ser o silêncio que guardastes

para comigo.

O senhor Danceny abandonou Paris há quinze dias. Dizem

que vai para Malta e que tem o projecto de lá se fixar. Talvez

ainda fosse a tempo de o reter... Minha amiga!... A minha filha

299

é assim tão culpada? Perdoareis sem dúvida que uma mãe só

muito dificilmente ceda a esta horrível certeza.

Que fatalidade se espalhou pois em volta de mim desde há

um tempo, que me feriu nos seres que me eram mais queridos! A

minha filha e a minha amiga!

Quem poderá deixar de tremer ao pensar nos males que

pode causar uma só ligação perigosa! E que desgostos se não

poupariam meditando mais nesta verdade! Que mulher não fugiria

à primeira proposta de um sedutor? Que mãe poderia sem

tremer ver alguém além dela falar à sua filha? Mas estas tardias

reflexões vêm só depois dos acontecimentos; e uma das mais

importantes verdades, e talvez das mais largamente reconhecidas,

permanece sufocada e sem emprego no turbilhão dos nossos

inconsequentes costumes.

Adeus, minha querida e digna amiga; sinto neste momento

que a nossa razão, já insuficiente para evitar as nossas infelicidades,

o é ainda mais para nos consolar.

Paris, Janeiro de 17* *