as primeiras operações de uma pesquisa - anpuh...leopold von ranke (mata, 2010: 188-201), ou o...

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Minhas Memórias dos Outros: “O Imperador!” de Rodrigo Octávio ALINE MICHELINI MENONCELLO * As primeiras operações de uma pesquisa Os verbetes, ao informarem sobre uma vida, oferecem ao leitor dados sucintos: os eventos importantes são acompanhados por datas podendo estar entre parênteses elencam os nomes de instituições, assim como, os cargos ocupados pelos sujeitos, e quando é o caso, arrolam os títulos das condecorações e das publicações. Diante dos olhos do leitor, podem fazer figurar a imagem de um imortal, um “grande homem”, uma vida de trabalho, de prestígio e de glória, mas não há espaço para os sentimentos, para os prazeres, para as dores ou para as incoerências. Compreendo, afinal é apenas um verbete. E se o leitor dos verbetes for uma historiadora ou um historiador, poderá extrair deles informações importantes para serem investigadas e, assim, compor a sua escrita, mas será que em seu texto haverá espaço para os sentimentos, prazeres, dores e incoerências? Após ler o provocante ensaio do professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2019: 39-56), aceito o convite. Logo, nesta apresentação buscarei dar espaço a sensibilidade e não sacralizar o autor. A operação de consultar o verbete, a mim tão necessária, ajuda-me a conhecer Rodrigo Octávio de Langgaard Menezes (1866-1944). Percorro sites: do Wikipedia 1 avanço para o Supremo Tribunal Federal (STF) 2 e para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) 3 , e claro, dou uma passada no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) 4 . Após percorrer tanto e sem me deslocar fisicamente, encontro informações que precisam ser anotadas, abro e fecho janelas, até me irrito por não encontrar imediatamente o “word”. Pronto, uma folha virtual em branco está aberta, registro as informações. * Mestre em História e Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Assis; A pesquisa de doutoramento recebe o financiamento da FAPESP (2017/09287-1) 1 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Rodrigo_Ot%C3%A1vio>, acesso em 31 ago. 2020. 2 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=127>, acesso em 31 ago. 2020. 3 Disponível em: <https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/ROLMenezes.html>, acesso em 31 ago. 2020. 4 Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/rodrigo-otavio-landgaard- meneses>, acesso em 31 ago. 2020.

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Minhas Memórias dos Outros: “O Imperador!” de Rodrigo Octávio

ALINE MICHELINI MENONCELLO*

As primeiras operações de uma pesquisa

Os verbetes, ao informarem sobre uma vida, oferecem ao leitor dados sucintos: os

eventos importantes são acompanhados por datas – podendo estar entre parênteses – elencam

os nomes de instituições, assim como, os cargos ocupados pelos sujeitos, e quando é o caso,

arrolam os títulos das condecorações e das publicações. Diante dos olhos do leitor, podem fazer

figurar a imagem de um imortal, um “grande homem”, uma vida de trabalho, de prestígio e de

glória, mas não há espaço para os sentimentos, para os prazeres, para as dores ou para as

incoerências. Compreendo, afinal é apenas um verbete. E se o leitor dos verbetes for uma

historiadora ou um historiador, poderá extrair deles informações importantes para serem

investigadas e, assim, compor a sua escrita, mas será que em seu texto haverá espaço para os

sentimentos, prazeres, dores e incoerências? Após ler o provocante ensaio do professor Durval

Muniz Albuquerque Júnior (2019: 39-56), aceito o convite. Logo, nesta apresentação buscarei

dar espaço a sensibilidade e não sacralizar o autor.

A operação de consultar o verbete, a mim tão necessária, ajuda-me a conhecer Rodrigo

Octávio de Langgaard Menezes (1866-1944). Percorro sites: do Wikipedia1 avanço para o

Supremo Tribunal Federal (STF)2 e para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)3,

e claro, dou uma passada no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea

do Brasil (CPDOC)4. Após percorrer tanto e sem me deslocar fisicamente, encontro

informações que precisam ser anotadas, abro e fecho janelas, até me irrito por não encontrar

imediatamente o “word”. Pronto, uma folha virtual em branco está aberta, registro as

informações.

* Mestre em História e Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Assis;

A pesquisa de doutoramento recebe o financiamento da FAPESP (2017/09287-1) 1 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Rodrigo_Ot%C3%A1vio>, acesso em 31 ago. 2020. 2 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=127>, acesso em 31 ago.

2020. 3 Disponível em: <https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/ROLMenezes.html>, acesso em 31 ago. 2020. 4Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/rodrigo-otavio-landgaard-

meneses>, acesso em 31 ago. 2020.

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Ali, eu, como consulente, descubro que Rodrigo Octávio5 – assim reconhecido, não

apenas pelos íntimos – foi bacharel em direito, autor, juiz, secretário da Presidência da

República, consultor-geral, professor, conferencista, sócio do IHGB, imortal da Academia

Brasileira de Letras (ABL) e ministro do Supremo, além de ser, pai, esposo, filho e neto de um

dinamarquês. Neto de um dinamarquês! Como não achar graça desta informação? Noto,

também, as diferentes grafias para o sobrenome Langgaard – ora com um único “g” (Langaard),

ora com um “a” a mais ou a menos (Langgard ou Langgaaard), e ainda com um “d” inexistente

antes do “g” (Landgaard). Pois é, essas pequenas mudanças tornarão mais trabalhosa a próxima

etapa que se aproxima, o levantamento dos títulos de livros em bibliotecas, em acervos e em

livrarias.

Distanciada desta primeira etapa, inicio essa segunda. Consulto, ainda virtualmente, os

títulos; um deles é um tanto curioso “Minhas memórias dos outros”. Um novo sorriso, e logo

em seguida a dúvida, esse texto cabe em minha pesquisa? Contribuirá para minha reflexão

acerca dos juízos históricos produzidos pelos juízes do Supremo que atuaram como

historiadores no IHGB entre 1870 e 1949?6 Eu que tinha aprendido no mestrado ao ler Foucault

(2013: 28) que deveria desconfiar e a suspender os enunciados, e que “as margens do livro

jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas”; e ele, o livro “está preso em um sistema

de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede”... Será isso um abuso

teórico? Ah! Querem mesmo saber? É, sim, o espírito historicista que grita mais alto em mim!

É necessário coletar todas as fontes, tenho que revelar o que realmente aconteceu! Resolvido,

vou levar esse também! 7

5 Rodrigo Octávio de Langgaard Menezes não é referenciado pelo seu sobrenome nas fontes que leio, e mesmo

em suas publicações, é somente Rodrigo Octávio. Por esse motivo todas as vezes que me referir ao autor, tanto no

corpo do texto quanto em citações “(autor, data)”, será pelo nome, e não pelo sobrenome. 6 Desde o mestrado tenho me interessado a estudar sobre atuação dos juristas no IHGB, ideia inspirada a partir do

texto da professora Angela de Castro Gomes (2009: 21-52), e agora no doutorado continuo a investigação. Dentre

os juristas, selecionei apenas os que foram ministros das supremas cortes (Supremo Tribunal da Justiça durante o

Império e o Supremo Tribunal Federal criado na República), destes, recortei aqueles que mais trabalharam no

IHGB, isto é, foram membros de comissões, publicaram textos na revista e realizaram conferências. Dos trinta e

três sócios que foram ministros das supremas cortes, seis deles tiveram maior atuação no Instituto, a saber: Tristão

de Alencar Araripe (1821-1908), Olegário Herculano de Aquino e Castro (1828-1906), Rodrigo Octávio de

Langgaard Menezes (1866-1944); Pedro Augusto Carneiro Lessa (1859-1921), Augusto Olympio Viveiros de

Castro (1867-1927) e João Martins Carvalho Mourão (1872-1951). 7 As frases acima destacadas em itálico é apenas uma brincadeira com o “mito historiográfico” em relação a

Leopold Von Ranke (MATA, 2010: 188-201), ou o lugar comum atribuído ao historicismo, ou seja, a objetividade

seria alcançada por meio da rigorosa crítica das fontes. Porém, assim como o historiador é anterior ao historicismo,

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Uma vez que já tive que me levantar de minha cadeira, descolar-me fisicamente para as

bibliotecas, digitalizar obra por obra dos seis juízes que selecionei, retornar para meu escritório

torcendo para que todo material coletado estivesse são e salvo no pendrive, transportá-lo para

meu computador e torcer mais uma vez para que nenhuma mensagem de erro aparecesse em

minha tela e organizá-lo em pastas nomeadas... enfim, volto a Rodrigo Octávio. Dúvida: por

qual texto começar: Confronto das Constituições Federais?, Congresso Jurídico?, Direito do

estrangeiro no Brazil?, Direito marítimo? Quanta preguiça! Mas a pesquisa não pode parar,

escolho começar pelo curioso título “Minhas memórias dos outros”. O historiador que não me

escute, pois não há nenhuma virtude epistêmica8 na curiosidade! Ou haverá?

Uma fonte leva à outra: de “Minhas Memórias dos Outros” ao “Coração Aberto”

Abro os PDFs dos três volumes de “Minhas memórias dos outros”, cada um têm um

subtítulo – primeira série, nova série e última série – publicados em 1934, 1935, 1936,

respectivamente. O ano da publicação de “Minhas memórias dos outros – primeira série” é o

mesmo da republicação de “Coração Aberto: livro de saudades”. Interrogo-me: teria alguma

relação entre eles? Como saber sem abri-lo. Então, abro o quarto PDF. Noto que a estrutura é

parecida, trata-se também de um texto de memórias, além disso, tem um pré-texto de duas

páginas, uma parte dedicada “Ao leitor”. Nele, Rodrigo Octávio narra anedoticamente como se

inspirou para escrever seu livro “Coração Aberto”.

Teria passado ele por uma rua estreita e nela haveria anúncios de um leilão de livros,

então, teria entrado na loja e encontrado um exemplar do Código Criminal do Império. Ao

a relação deste com os documentos também é. No início do século XV, os historiadores tinham a necessidade de

comprovar a veracidade dos documentos (ASSMANN, 2018), mas foi apenas em meados do século XVIII que o

historicismo alemão aparece contrapondo o pensamento racional e construtivista do Iluminismo, elevando a

História ao lugar de ciência com uma metodologia mais rigorosa, fortalecendo as histórias nacionais (estado ou

nação). Se ele foi útil à História, também foi desagradável chegando à questão nodal do relativismo histórico.

Deste modo, compreendo que o próprio conceito historicismo, além de complexo, tem uma historicidade

(MARTINS, 2008; SCHOLTZ, 2011). 8 Buscando encontrar uma solução para a questão nodal do historicismo, o relativismo histórico, Herman Paul

analisa a obra histórica por meio da ferramenta Virtudes Epistêmicas, compreendendo o trabalho histórico como

um produto cognitivo e epistêmico. O produto final do historiador é o texto, e para realizar este produto uma série

de operações precisam ser mobilizadas a depender do objeto e da abordagem historiográfica, e ainda são marcados

pelos contextos históricos. Assim, um trabalho histórico acadêmico deve compreender o passado e não julgá-lo ou

avalia-lo (PAUL, 2016; OHARA, 2016).

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folheá-lo, perceberia que “o tomo era alentado” e veria “com surpresa, que era uma simples

edição oficial de textos, tendo, porém, folhas intercaladas entre as páginas impressas; e essas

folhas estavam literalmente cheias de uma escrita regular” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934a: 9).

Imaginaria que aquelas anotações fossem comentários sobre a obra jurídica, e por isso desejaria

tanto. Após a compra, perceberia que “não eram de observações jurídicas as notas que enchiam

as folhas intercaladas no livro, tratavam de coisas diversas, continham assuntos diferentes,

variadas narrativas [...]” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934a: 10). E foi assim, nas memórias do

antigo dono de um Código Criminal, que Rodrigo Octavio encontrou inspiração para escrever

suas alegrias e tristezas “de coração aberto” entre os meses de abril e maio de 1919 quando

esteve em Paris. Memórias que somente seriam publicadas anos mais tarde, apenas em 1928, e

reeditadas em 1934, com novos capítulos9. Um curioso dado cruza-se com os anos das

publicações, nesse mesmo intervalo Rodrigo atuou como ministro do Supremo Tribunal

Federal. Suspeito que tenha podido retomar seu antigo projeto de escrita de suas memórias após

se aposentar.

“Coração Aberto” é um livro de lembranças, uma autobiografia sem precisão de datas,

dividido em 92 breves capítulos. Rodrigo Octávio, em “História Antiga”, seu primeiro capítulo,

título que me remete ao período historiográfico conhecido como o nascimento das primeiras

civilizações, trata não da História, mas de seu nascimento. Nesse capítulo, ele conta que todos

notavam seus “lindos cabelos de ouro, sobrando em cachos da touca rendada”; dos cuidados a

ele dedicados, a ponto de ordenarem que o trem que o levava com sua família de Jundiaí à São

Paulo “não apitasse mais e silencioso seguisse até à estação” de destino para não assusta-lo;– e

ainda de seu desenvolvimento, cujo retratos atestam, o “galante pimpolho, rosado e loquaz” que

fora. (RODRIGO OCTÁVIO, 1934a: 13-14).

Nos capítulos subsequentes, enquanto narra sobre sua infância descubro do medo que

Rodrigo Octávio tinha de ser assombrado por uma coruja, das angústias de estudar no Colégio

da Soledade, um colégio de meninas, cujas “criaturinhas irrequietas [...] não respeitavam a

superioridade” de seu “sexo”; dos rigores de seu pai para educa-lo; da sua rápida passagem pelo

Colégio Pedro II, antes de ter que acompanhar a mudança de sua família para Curitiba, uma vez

que seu pai tornara-se presidente da província do Paraná; de seu pouco talento para tocar piano

9 Em meu acervo, tenho a segunda edição 1934. Essa informação encontro na nota 1, página 10.

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e violino, para dançar, para mecânica e ainda para cuidar de pássaros, porém era amante da arte

e das letras; recorda, ainda, das traquinagens que ele sofrera resignadamente de seus colegas no

Colégio; e de seu sofrimento ao perder o pai, um pouco antes de iniciar seus estudos na

faculdade de Direito em São Paulo.

Na juventude, período de novas experiências, Rodrigo Octávio iniciara uma nova etapa

de sua formação. Morando em São Paulo e com mais liberdade, aproveitara no seu primeiro

ano de faculdade uma vida boêmia, só lhe “faltava a tuberculose” (RODRIGO OCTÁVIO,

1934a: 108), e como não frequentara tanto a faculdade, descobrira, faltando 32 dias, que os

exames finais se aproximaram... foram noites de muitos estudos. No dia de seu exame, outra

fatalidade, seu avô dinamarquês falecera. Para velá-lo, Rodrigo convidou os amigos de seu avô,

inclusive o diretor da faculdade, para a missa. Foram todos, mas para seu constrangimento,

descobrira na hora da cerimônia que seu avô era protestante e a missa não poderia ocorrer em

nome de seu avô. A solução encontrada por ele fora entrar atrás do padre na hora da missa, o

gesto fora imitado pelos seus amigos de faculdade. Assim, a homenagem, de algum modo,

acontecera, pois ao fim da missa ele recebera as condolências dos colegas de seu avô.

Cursar a faculdade de Direito tinha seu prestígio e no período de férias Rodrigo soube

aproveitar do status com seus antigos colegas que o olhavam “com olhos de inveja” e com a

“vizinha, rica e bela”, porém casada (RODRIGO OCTÁVIO, 1934a: 119). Nessa sua história,

ele narra-se como um jovem inocente e que fora seduzido pela bela amiga da família. Nada

acontecera entre eles, além de uma noite que ficaram à sós conversando sobre arte. E para

convencer o leitor de sua inocência emenda outra experiência que ocorreu em Nova Iorque.

Recorda-se que estava em seu apartamento quando uma dama, aparentemente bêbada, entrou

subitamente em seu aposento. Ao se aproximar da dama ficou desagradado pela aparência – a

descreveu como “feia, dentuça, grosseira” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934a: 124) – e buscando

afastá-la de si a levou para o apartamento dela. Despediu-se e sentiu-se aliviado, mas quando

colocou a mão no bolso de sua calça deu por falta da carteira. Fora roubado.

A vida não é feita apenas de férias e de boemias, por isso Rodrigo Octávio narrou que

iniciara o segundo ano mais responsável com os estudos. No terceiro ou quarto ano, Rodrigo e

outros colegas foram estudar na faculdade de Direito de Recife. De lá, guardara boas histórias

e trocas poéticas com Raul Pompeia. Por fim, seu quinto ano do curso em Direito, terminara

em São Paulo.

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Já formado, Rodrigo Octávio (1934a: 141) entrou na “fase das responsabilidades e dos

trabalhos”. Embora tentasse iniciar sua carreira na área jurídica na promotoria, não teve sucesso,

foi então trabalhar no periódico a “Semana” como literato. No entanto, almejava mais, foi então

que ele e dois amigos montaram um escritório. Sem sucesso, dois meses depois tiveram que

fechar as portas por falta de cliente.

Seu “Primeiro sucesso profissional”, título do sexagésimo capítulo, guarda uma ironia.

Rodrigo Octávio trabalhava no escritório de Carlos Carvalho quando uma cliente apareceu e

pediu despejo de um inquilino que não pagava o aluguel por mais de um ano. Então o jovem

advogado requereu o despejo. Dias mais tarde, viu uma aglomeração no bondinho, pessoas se

manifestavam contra o despejo de uma família que se via na rua com um amontoado de móveis.

Reconheceu naquela cena o seu erro. Depois dessa experiência no escritório de Carlos

Carvalho, vieram outras tantas como Promotor Público em Santa Bárbara, e como Juiz em

Iguaçu e em Paraíba do Sul, e depois como Procurador da República.

Nesta autobiografia, Rodrigo Octávio, nada conta dos cargos de consultor-geral da

República e de ministro do Supremo Tribunal. Sua memória profissional encerra-se na posse

dos ministros da nova Suprema Corte, o Supremo Tribunal Federal em 1891. Mas essa memória

já tem um tom diferente, não trata mais de si, e sim do que ele testemunhou dos outros. Os

últimos capítulos foram reservados a falar da tristeza de perder três filhos muito jovens, Sylvia

com 4 anos, Vera com alguns meses e Hugo com 3 anos. Noto que um filho não foi citado,

aquele que sempre aparece em minhas buscas quando procuro pelo pai, o Rodrigo Octávio de

Langgaard Menezes Filho, esse teve uma vida mais longa, seguiu, inclusive, a carreira jurídica.

Talvez a sua ausência se explique pelo subtítulo, pois se trata de um “livro de saudades”.

O Rodrigo Octávio descrito por si é diferente do Rodrigo Octávio dos verbetes. Em

“Coração Aberto” ele rememora a infância, a juventude, o período que foi discente da faculdade

de Direito, o início da carreira jurídica e as perdas de seus entes queridos. Conheço um outro

Rodrigo, um homem de alegrias e tristezas, de certezas e incoerências, apenas mais um mortal...

Assim, fecho o quarto PDF.

Minhas memórias [eletivas] dos outros: ao caminho de um recorte

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Agora que tenho em minha tela os três PDFs de “Minhas memórias dos outros” –

primeira série, nova série e última série –, inicio a leitura pelos pré-textos. Esses são bem mais

curtos que aquele de “Coração Aberto”, parecem mais uma breve nota do autor. O pré-texto de

1934, chama-me a atenção pelo pedido de indulgência que se justificaria por dois atenuantes: o

primeiro seria a “conturbação que trazem ao espírito os trabalhos” e o segundo “as vicissitudes

de uma larga vida e a da neblina que sobre as cousas passadas estendem os anos” (RODRIGO

OCTÁVIO, 1934b: 9). No pré-texto escrito no ano seguinte, Rodrigo Octávio não pede

desculpas dos “rápidos” e “diluídos esboços”, pois “a saudade que é poesia” e ela “saberá neles

deixar o que lhes falte em precisão e beleza” (RODRIGO OCTÁVIO, 1935: 7). E por fim, no

último pré-texto, Rodrigo, primeiramente, felicita-se por estar vivo e poder contar suas

memórias, porém pressente da parte do leitor “uma curiosidade maliciosa” que o inquire com a

pergunta: “E donas?” E a essa pergunta ele responderia, a meu ver com a mesma malícia que o

suposto leitor, “[...] a rapsódia feminina ficou no tinteiro. Estas páginas são de memória dos

outros e não minhas, e memória de donas a discrição só permite escritas por elas mesmas.”

(RODRIGO OCTÁVIO, 1936: 9). Quanta estupidez!

Mas deixo essa questão de gênero para outro momento, é melhor me concentrar na

indulgência. Afinal, por que solicitá-la? Então, avanço para as páginas finais dos livros e

consulto os sumários, noto que quase todos os títulos de capítulos são nomes de pessoas, figuras

públicas do Império e da República e algumas outras personalidades que desconheço. A

organização de seus “outros” não me parece lógica: Doutor Langgaard vem antes de Pedro II,

Visconde de Barbacena veio depois de Prudente de Morais, personalidades como Machado de

Assis, Rio Branco e Ruy Barbosa estão no segundo volume, e outras personalidades como –

Pedro Lessa, Euclides da Cunha e Oliveira Lima – não tem um capítulo a eles dedicados, seus

espaços foram reduzidos a subtítulos. E ainda tem uma personagem inusitada, o Brasil,

personificado em um homem imaginário. Suspeito que Rodrigo Octávio, o homem entre tantas

funções, sendo juiz e historiador, acostumou-se com os rigores deontológicos de suas práticas,

ou seja, a coleta de provas, as investigações e a produção de um julgamento ou de um discurso

verdadeiro10, mas em “Minhas memórias dos outros”, ele não produziu nem um julgamento

10 Os historiadores, por conta de sua expertise de compreender o passado, foram chamados a compor os tribunais

jurídicos e as comissões da verdade, após o reestabelecimento democrático interrompido por guerras e ditaduras

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jurídico, nem tão pouco um julgamento histórico, pois nesse processo seu lugar mudou, tornou-

se uma testemunha, logo, não pôde oferecer mais que “diluídos esboços”.

Indulgência concedida, afinal Rodrigo Octávio não se propusera a escrever uma História

Geral do Brasil. E falando de História Geral do Brasil, aquela escrita por Francisco de Adolfo

Varnhagen, vejo um gesto semelhante, a inclusão da família em sua obra. Varnhagen rompeu

com o limite da parcialidade historiográfica ao dedicar um capítulo a seu pai, o alemão que

ajudou no desenvolvimento nacional com a fábrica Minas de Ferro (CEZAR, 2018). Rodrigo,

que não estava preso a esses rigores em suas memórias, não narrou sobre o pai, talvez porque

não fora esse grande homem ou talvez porque não bastava ser presidente da província do

Paraná. Então elegera seu avô materno, o dinamarquês João Henrique Theodoro Langgaard –

cuja primeira nota corrige a pronúncia, é Langgôor. Ele fora amigo do médico Imperial e

escrevera os famosos “Formulários de Langgaard”. Neste formulário “se encontrava a

especificação de todos os males que podem afligir o homem e a indicação do que se deve fazer

ou tomar” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 19) contribuindo, assim, com a medicina no Brasil.

Se sua família é próxima da corte, farei um recorte, estudarei as memórias de Rodrigo

sobre o Imperador. Fecho dois PDFs de “Minhas memórias dos outros” – nova série e última

série.

O recorte: Rodrigo Octávio, a testemunha ocular do Imperador!?

Agora tenho em minha tela um único PDF. Presa, ainda, ao sumário, vejo que o segundo

capítulo, Dom Pedro Segundo, tem vinte e nove páginas e oito subtítulos: “O Imperador”,

“Republicano”, “Baile da Ilha Fiscal”, “Em S. Vicente de Fora”, “Jacobino”, “A deposição de

Deodoro”, “A fé de ofício do Imperador” e “As fardas do Imperador menino”. Deixo o sumário

e retorno até a página 27, para ler o que Rodrigo Octávio testemunhara sobre o Imperador. Mas

afinal, o que ele viu? O que ele pôde saber? E como pôde assegurar como verdadeiro?

do século XX. Tal contexto, posterior aos períodos traumáticos, levou a repensar o papel social do historiador,

assim como as diferenças entre os julgamentos históricos e jurídicos. (BENSAÏD, 2001; RICOEUR, 2007;

DUMOULIN, 2017; BEVERNAGE, 2018)

Embora o período da pesquisa seja anterior ao debate, as problematizações em torno dos julgamentos históricos e

jurídicos são enriquecedoras para a pesquisa de doutoramento em desenvolvimento.

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Rodrigo Octávio (1934b: 27-28) narra suas recordações de quando era criança e morava

na capital do Brasil, Rio de Janeiro: “O cortejo passava; toda a gente instintivamente, parava,

olhava, tirava o chapéu, e, como eu sem dúvida, se inundava, com maior ou menor intensidade,

de um eflúvio, estranho e sobrenatural. O Imperador!”, sabiam que o Imperador estava dentro

do carro, mas dele só “o branco das grandes barbas” se via, mas uma vez, o jovem Rodrigo

pôde vê-lo “alto corpulento, de casaca,”, foi quando estudara no Colégio Pedro Segundo e “o

Imperador, de visita, entrou” em sua classe. Dele, os olhos não pôde tirar, pois estava diante do

Imperador! (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 28).

Um certo dia, seu pai fora nomeado para ser presidente do Paraná e antes de partir para

tal missão, tinha que se apresentar ao Imperador, e nessa ocasião levara o menino Rodrigo junto.

Ao chegarem no Paço de S. Christovão, subiram uma escadaria e ficaram aguardando, em

seguida levaram seu pai por um corredor, Rodrigo o acompanhou apenas com o olhar para ver

se avistava o Imperador. Infelizmente, o Imperador não estava. Eu imagino o quão foi frustrada

a sua expectativa. (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 29)

Mas esse tempo da admiração pueril acabara quando Rodrigo Octávio tornou-se

discente da faculdade de Direito, ele conta: “Fui depois para S. Paulo. Leituras, companhias,

entusiasmos, viraram-me o espírito. Fiquei republicano; manso, a princípio, vermelho, mais

tarde; tolerante, por fim” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b:31) (A última frase seria uma

paráfrase do lema comteano?11). Assim, ao tornar a vê-lo não elevara o mesmo sentimento de

antes e ao ouvi-lo notara que a “vozinha” do Imperador era “fraca, pouco nítida, em

desproporção com seu porte respeitável” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 31-32).

Os dias do Império estavam contados e a possibilidade de Rodrigo Octávio ver o

Imperador vivo também. A última vez que o vira foi no Baile da Ilha Fiscal, que ocorreu em 9

de novembro de 1889. Depois dessa noite, soube pelo seu amigo Raul Pompeia os detalhes das

tristes cenas da embarcação com a qual a corte partiu para seu exílio na Europa. Deste modo,

Rodrigo (1934b: 36) concluiu que “Dom Pedro deixou o Brasil; pouco depois, a saudade e a

mágoa o fizeram deixar este mundo”.

Alguns anos mais tarde, em 1902, Rodrigo Octávio visitara a Europa pela primeira vez

e fora até o mosteiro de S. Vicente de Fora “cuja cripta repousam os despojos dos Reis de

11 "O Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por fim"

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Portugal”. O Imperador estava lá e pôde ver o rosto “através do retângulo de cristal que

secionava a arca”, ele “tinha o queixo fincado sobre o peito e a barba lhe subia um pouco sobre

a boca”, para Rodrigo parecia “que os serviços de preservação do corpo não foram perfeitos” e

a “morte prosseguia lentamente em sua obra de destruição”. Ele não gostara do que vira, uma

vez que aquela “cripta dos despojos reais” não tinha “a solenidade e grandiosidade de outras”

que visitara (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 36-37).

Paro um pouco a leitura, é preciso entender: Rodrigo Octávio havia dedicado quatro

subtítulos para narrar que viu o Imperador vivo e morto e que seu sentimento por ele mudara

ao longo de sua vida. Tenho dois enunciados que tornam Rodrigo uma testemunha, não do

Imperador, mas de um tempo do Imperador, e ainda uma testemunha suspeita uma vez que não

há provas até o momento.

Retorno a leitura, estou agora no quinto subtítulo – “Jacobino”. Rodrigo Octávio

declarara que em sua juventude dada a influência das leituras e das amizades, ele fora um

“jacobino vermelho”. E dois atos atestaram a “exaltação” de seu “sentimento político”

(RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 40). O primeiro ato foi uma manifestação, convocada pelo

Club Republicano Rio Grandense, contra o governo francês que prestou homenagens ao Pedro

II em decorrência de sua morte no dia 5 de dezembro de 1891. A estratégia dos organizadores

fora convocar os populares, redigir e traduzir um manifesto em francês, publicá-lo e enviar para

Paris o tal descontentamento. O segundo ato foi um pedido enviado ao Congresso Nacional, no

dia 5 de maio de 1894, para que a estátua de Pedro I, exposta no Largo do Rocio, fosse

substituída por uma de Tiradentes12.

Destas memórias, leio a narrativa de suas lembranças e, também, as transcrições dos

documentos que atestam a participação dele nos tais movimentos. Com as provas, que Rodrigo

afirma ter em seu arquivo pessoal, suas narrativas podem ser comprovadas, logo são

verdadeiras, deste modo, Rodrigo Octávio tornou-se uma testemunha idônea. Nos próximos

três subtítulos, o autor assegura-se com a mesma tática, apresenta as provas ou melhor, as

transcreve. Mas o que ele pôde saber?

12 O pedido foi assinado por Rodrigo Octávio, Lúcio de Mendonça, Raul Pompêa, Manoel Timotio da Costa e João

Ribeiro.

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A sexta parte, “A deposição de Deodoro”, é um tanto curiosa, pois qual relação teria

com a memória sobre Pedro II? Seria uma fuga de tema? Sigo a leitura. O assunto é

manifestação política, o mesmo do subtítulo anterior, mas agora, contra Deodoro. Rodrigo

Octávio narrou que manifestantes, alguns armados e outros tantos desarmados, invadiram o

Paço Municipal, “onde se devia proclamar a destituição de Deodoro”. E Licínio Cardoso – cuja

credenciais Rodrigo fez questão de enfatizar – “antigo oficial, professor das Escolas Politécnica

e Militar, mais tarde médico, que se tornou famoso” propusera que redigissem uma ata de

deposição do Deodoro. No momento seguinte, entrara na sala o Coronel Carneiro da Fontoura,

teria informado que “Deodoro já se havia retirado do Palácio, onde se achava Floriano, que

assumira o Governo” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 43-44). Desse tumulto foram produzidos

dois documentos, um escrito por ele e pelo Coronel, e outro pelo Licínio deixados sobre a mesa,

mas que Rodrigo os apanhou e guardou, por esse motivo poderia apresentar ao leitor o

conteúdo.

O desvio de assunto que parecia não fazer sentido, tinha um motivo, pois no subtítulo

seguinte Rodrigo Octávio transcreveu o último texto que o Imperador deixou antes de morrer,

“Minha Fé de Ofício”. Nele, Pedro II escreveu o que fez e o que desejou para o Brasil enquanto

reinou. Rodrigo, talvez, reconhecesse que as intenções do Imperador fossem mais nobres que

as de Deodoro, e ainda visse mais futuro com aquele passado monárquico do que com o seu

presente republicano. Mas o interessante desta história é saber como que o original Fé de Ofício

escrita em Cannes, em abril de 1891, estava sob a guarda de Rodrigo, logo ele que só vira o

Imperador passar.

Conrado Jacob de Niemeyer era o procurador de André Rebouças e quando soube de

sua morte quis fazer o inventário de seus bens. Rodrigo Octávio, que na ocasião trabalhara

como advogado de Niemeyer, ficou encarregado do trabalho forense. Rodrigo descreve que

Rebouças tinha uma “forte personalidade” era “engenheiro de renome, homem de envergadura

moral [...], porém, negro, feio e ainda em cima todo picado de bexiga”. (RODRIGO OCTÁVIO,

1934b: 46) É possível que o louro descendente de dinamarquês não reconhecesse seu racismo,

mesmo sendo revelado em seu discurso. Mas para além da personalidade, da formação e da cor

da pele, outra coisa era sabida, Rebouças era monarquista, exilou-se com a família imperial e

“acompanhou sempre o Imperador, e com ele foi para Cannes” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b:

47). Como os pertences de Rebouças estavam em Portugal, Niemeyer solicitou à Justiça da

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Madeira que os enviasse para o Brasil. Alguns meses depois chegaram duas malas, “nelas havia

alguma roupa, muito papel escrito, [...] e muitos livros”. Então Niemeyer disse que Rodrigo

poderia escolher um livro “como lembrança do caro morto” e ele escolhera o “pequeno livro de

Benjanin Mossé sobre “Dom Pedro II”, pois o “volume estava recheado de retalhos de jornal

com notícias referentes ao Imperador” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 47-48). Meses mais

tarde, ao tomar o livro na mão para mandar encadernar, notara que no meio dele tinha “[...] duas

folhas de papel quadriculado, grandes, dobradas em quatro e presas por um fio de barbante

verde” (RODRIGO OCTÁVIO, 1934b: 48). Essas tais folhas eram a “Minha Fé de Ofício” que

o Imperador ditara para o Conde Motta Maia.

No último subtítulo, Rodrigo Octávio apenas narra que uma certa vez o Dr. Antônio de

Araujo Ferreira Jacobina pediu sua ajuda para assegurar “quanto à regularidade de seu direito

sobre” as fardas do Imperador menino. E após seu criterioso exame dos documentos e das

informações que Jacobina contou, Rodrigo pôde concluir com absoluta segurança que, as fardas

eram dele. Tempos depois, as fardas foram para o Museu Mariano Procópio, fundado por

Alfredo Ferreira Lage e, em carta à Lage, Rodrigou narrou a história da posse das fardas.

Com o tempo, Rodrigo Octávio passara a admirar o Imperador, por isso quando o

despojo de Pedro II retornou para o Brasil, dia 8 de janeiro de 1921, não houve manifestações

contrárias, pois, nas palavras de Rodrigo (1934b: 42), “depois de seu longo reinado, não poderia

ele, em outro lugar, mais justamente dormir seu derradeiro sono, do que na terra em que nasceu,

que tanto amou e que tão desinteressadamente serviu”.

Fecho temporariamente o último PDF e interrogo-me novamente: “Minhas Memórias

dos Outros” cabe em minha pesquisa? Contribuirá para minha reflexão dos juízos históricos?

Depois de refletir, posso afirmar que sim. Descobri a partir deste texto que Rodrigo Octávio

não fora testemunha do Imperador, mas sim, do tempo da reconciliação com o passado

monárquico. Logo, interessa muito responder a outra pergunta que se apresenta no horizonte:

quais juízos históricos Rodrigo elaborou nesse tempo de reconciliação com o Império? Mas

essa reflexão será apresentada em outra oportunidade.

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