as potências da arte contemporânea e a educação

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO As potências da arte contemporânea e a Educação Maria Cristina Ferrony São Leopoldo 2009

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Artigo importante sobre as relações possíveis entre a prática artística e educação no mundo atual.

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    As potncias da arte contempornea e a Educao

    Maria Cristina Ferrony

    So Leopoldo 2009

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    Maria Cristina Ferrony

    As potncias da arte contempornea e a Educao

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS.

    Orientadora: Profa. Dra. El T. Henn Fabris

    So Leopoldo 2009

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    Uma criana no escuro, tomada de medo, tranqiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pra, ao sabor de sua cano. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua canozinha. Esta como o esboo de um centro estvel e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criana salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a prpria cano j um salto: a cano salta do caos a um comeo de ordem no caos, ela arrisca tambm deslocar-se a cada instante. H sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu (DELEUZE e GUATTARI, 2008, p. 116).

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    AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao produto do apoio, confiana e amizade de vrias pessoas, entre amigos e familiares, a quem sou muito grata.

    Agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Educao da UNISINOS pela oportunidade que me foi dada e aos professores e professoras do PPGEDU que tive a satisfao de conhecer.

    Agradeo professora Dr. El Terezinha Henn Fabris pela orientao prestimosa e incansvel que me foi dedicada.

    Fao uma meno especial s professoras Dr. Gelsa Knijnik e Dr. Maura Corcini Lopes, do PPGEDU desta Universidade, e professora Dr. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan, do PPGEDU da UFRGS, pelos radiosos momentos de engrandecimento intelectual.

    Agradeo ainda s professoras Dr. Gelsa Knijnik e Dr. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan pelas sugestes pontuais que foram feitas minha pesquisa por ocasio da defesa da proposta desta dissertao.

    Agradeo aos colegas do grupo de orientao pelas contribuies importantes que

    trouxeram e pela camaradagem que a todo momento tornou esta caminhada mais agradvel. Agradeo ao meu companheiro, Felix Bressan, por sua crena inabalvel em minhas

    capacidades e por haver me impulsionado a realizar este trabalho. Agradeo ao meu filho, Giuliano Ferrony Bressan, por estar sempre ao meu lado. Agradeo minha me querida, Maria Cabral da Silva Ferrony, de quem herdei a

    paixo pela escrita, e a ela eu dedico este texto. Agradeo vida, arte, arte-vida, que tantas preciosidades colocou ao meu

    alcance, entre seres, vultos e obras.

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    RESUMO

    A arte contempornea apresentada neste texto como um meio potente na construo de singulares sentidos para o aprendizado que se efetua na vida. O foco da

    pesquisa est na anlise de algumas obras de arte que, a partir de seus efeitos de superfcie, promovem essas perspectivas diferenciadas que se do a ver em alguns elementos

    especficos da arte contempornea. As anlises das obras O Grande Vidro ou A noiva despida por seus celibatrios, mesmo, de Marcel Duchamp (1887 1968), Corpo de Passagem, de Vnia Mombach, O Nascimento de Afrodite sobre a origem e criao de Dione Veiga Vieira, e Carrinho de Boneca, de Lia Menna Barreto, foram realizadas buscando-se uma aproximao com as filosofias da diferena, utilizando-se como aportes

    tericos alguns conceitos filosficos de Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze, Felix Guattari e Maurice Blanchot e teorias de arte de autores diversos desse campo. Com as anlises, realizadas sem um traado uniforme relativamente ao mtodo, reconhecida uma srie de sentidos da esfera do sensvel que atuam na aprendizagem ampliando as perspectivas diante das verdades propaladas pela Educao moderna ainda em vigor no ensino contemporneo e nos mais variados setores da vida. A presente dissertao, portanto, fala de possibilidades outras no aprendizado que no prescrevem condutas, frmulas ou modelos, mas que promovem saltos para alm do estabelecido.

    PALAVRAS-CHAVE: arte contempornea, educao, arte-vida, transvalorao, fora, rizoma, sem-sentido.

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    RSUM

    Ce texte prsente lart contemporaine comme un moyen puissant a la construction

    de singulires sens pour lapprentissage qui si effectue dans la vie. Le point de la present recherche est pose sur des analyses de quelques oeuvres dart qui, partir de ss effets de

    surface, tablissent ces perspectives distincts qui sont perues dans quelques elements spcifiques de lart contemporaine. Les analyses de loeuvres Le Grand Verre ou La marie mise nu par ses clibataires, mme, par Marcel Duchamp (1887 1968), Corps du passage, de Vnia Mombach, La naissance d'Aphrodite - sur l'origine et creacin de Dione Veiga Vieira e Poussette de poupe de Lia Menna Barreto taient ralises en cherchant une approximation avec les philosofies de diffrence, a laide des concepts philosophiques de Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze, Felix Guattari et Maurice Blanchot, et aussi bien du theories dart de plusieurs auteurs de ce champ. Avec les analyses, ralizes

    sans un mthode uniforme, sont reconnues plusieurs sens a la sphre du sensible qui actuaient dans lapprentissage amplifiant les perspectives devant les vrits promulgues

    par lducation moderne encore en vigueur dans lenseignement contemporaine e dans les plusieurs secteurs de la vie. La prsente dissertation, alors, parle de possibilits autres dans lapprentissage qui ne prescrit pas de comportements, ou formules, ou modles, mais qui promouvent du salts par-del de ltabli.

    MOTS CLS: art contemporain, ducation, art-vie, transvaluation, dehors, rhizome, non-sens.

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    SUMRIO

    IN PROSSES ......................................................................................................................... 7 1 NA CONDIO DA CONDIO DO MTODO .................................................... 21 2 ENCONTROS NA ARTE CONTEMPORNEA ...................................................... 29

    OS PRIMRDIOS DUCHAMP.................................................................................... 42 ARTE-VIDA .................................................................................................................... 49 TRANSVALORAO.................................................................................................... 53 O FORA (INTRADUZVEL)........................................................................................... 57 RIZOMA .......................................................................................................................... 60

    3 AS POTNCIAS DA ARTE CONTEMPORNEA .................................................. 64 DO ACASO, DA IRONIA, DO SEM-SENTIDO, DO EXTEMPORNEO, PERMANENTE CRIAO INACABADA.................................................................... 67 DO PERSPECTIVISMO, DO DESCONHECIDO, DO INACABADO, DA AFIRMAO DA NEGAO, DA MORTE................................................................. 75 DOS PERCEPTOS, DOS AFECTOS, DO MITO, DAS SENSAES, DOS OBJETOS84 DA TRANSVALORAO, DAS HECCEIDADES, DO SIMULACRO, DO HUMOR, DO DEVIR-CRIANA .................................................................................................... 92

    4 O INACABADO .......................................................................................................... 100 REFERNCIAS ............................................................................................................... 104

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    IN PROSSES

    Se houvesse um axioma para ser grudado pele de todo aquele que vive a arte este poderia ser: A vida pura

    aparncia e dela s justo distinguir as coisas que falam a lngua estranha.

    Buscar outra frmula de trnsito pela vida, por suas misrias e dores, suas cores inefveis, suas violncias e paixes. Permitir que se rompam definitivamente as distines entre a vida e a arte. Perceber a arte como uma possibilidade, um estado de esprito, um modo de portar-se diante da vida, de criar encontros com o outro, com todo o entorno e,

    naturalmente, com as camadas interiores. Expandir o campo das percepes e das afeces e da extrair seus devires. Devorar a vida e os acontecimentos com os olhos da arte e

    promover um posicionamento distinto e renovado, no necessariamente melhor, nem mais certo, nem mais nobre, apenas um outro olhar, que se desloca de uma posio contemplativa para incidir sobre coisas que antes no eram percebidas e que passam a ser consideradas importantes.

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    Sob a gerncia desse novo olhar, muitas coisas acontecem e contribuem para que se mantenha ao abrigo das foras letrgicas, nicas capazes de desviar a ateno do admirvel mundo novo, puro movimento que se descortina diante dos olhos sedentos. A ele agregam-se outras foras de famlias prximas como a literatura, a poesia, as lnguas estrangeiras, a msica, as artes da representao e da quimera elementos que outrora faziam parte do que unicamente se compreendia por cultura e que hoje, no contexto de algumas sociedades, esto associados a hbitos cultivados apenas por uma elite intelectualizada, sendo admitidos no contexto geral da cultura, mas como signos prprios de um campo isolado, sem uma

    definio precisa, envolto em mistificaes ao seu respeito.

    nesse contexto que a arte, como principal objeto de estudo e ateno, pode ocupar um posto determinante no tocante s escolhas feitas ao longo dos anos. O olhar, as atitudes pretendendo sempre lhe ser fiis, a despeito de todas as distraes do mundo que parecem se lhe opor na inteno de amortec-la, desacredit-la, desprestigi-la. Num pas que

    promove poucas polticas e programas significativos no sentido de afirmar as artes consideradas de elite1, que mesmo revelia continuam sendo desenvolvidas, no de se estranhar que seus contumazes proslitos, na posio de marginalizados, percebam na arte muito mais que uma rea do conhecimento2, mas a prpria condio de vida. Uma postura salvacionista? Uma resistncia? Entendo como uma possibilidade. Uma esttica, mas que no mede foras com a tica, nem com a lgica, nem com a metafsica e que desde sempre as convida a que participem desse percurso leve e denso, todavia. Intenso e extenso. Apaixonante.

    Essa elite a que me refiro, no mais do que uma elite inventada, no por esses apontados como elite, nem por uma designao legitimada que os coloca acima nesse

    patamar de distanciamento perante os da no-elite, tambm inventada. uma inveno

    1 importante que nesse argumento se reconhea que as artes eruditas compem um repertrio que, ao

    longo da histria, tem-se mesclado com repertrios populares e que continua sendo uma fonte fecunda de hibridaes. Ou seja, no apresenta incompatibilidade nenhuma diante de manifestaes artsticas de outras matrizes. Neste sentido, seu carter "elitista" precisa ser tratado como algo que perdura, antes por falta de uma ao mais enrgica em tornar esse repertrio acessvel a segmentos sociais mais amplos, do que por uma definitiva incompatibilidade de padres de gosto e de recepo esttica. Neste argumento, aceita-se que as artes eruditas tenham no Brasil um alcance social muito inferior ao norte-americano ou europeu, e h um dficit ainda a ser superado (DURAND, 2000, p.96). 2 Sobre essa noo de arte-conhecimento sero feitas algumas consideraes neste trabalho.

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    engendrada por aqueles que no se apartam da concepo de que tudo que pertena ao campo da arte incompatvel com uma vida responsvel, com o trabalho duro. A concepo de arte, portanto, como alienao, como aquilo que desvirtua da retido programada para atender aos fins desenvolvimentistas e empreendedorsticos da contemporaneidade e cumprir com os planos governamentais empenhados em neutralizar e homogeneizar as mentes.

    A vivncia no meio artstico universitrio pode promover grandes distenses no campo da moral. Nesse ambiente, no h motivos para ser to crtico, tudo aprovao,

    festa, risos, excessos, o despertar de sensibilidades ocultas, ressonncia das conversas e dos interesses. A aproximao com as artes reafirma o significado de transgresso, admitido com naturalidade nesse campo. A transgresso latente, um olhar distinto ou romntico dirigido vida. Vida que, para viver intensamente, est condicionada ao ato de forar o limite das escolhas. O significado de transgresso assume diversas formas no campo da

    literatura e da filosofia e comumente vem carregado de atributos pesados, condicionado idia de condutas rebeldes e desmesuradas. a violao das leis. Mas o texto que aqui se apresenta como dissertao de mestrado vai aludir transgresso que se insere no campo da esttica3, na superfcie das coisas; a transgresso que ocorre na soma com a arte, como atributo indispensvel para a potencializao de seus efeitos4 na Educao.

    A paixo pela vida leva transgresso transgredir a no-vida fundamental para poder viver. preciso estar apaixonado para transgredir; por algo, por algum. Nesse sentido, as escolhas no existem de fato, somos escolhidos. E a arte no foi uma escolha, foi um caminho possvel na transgresso da no-vida, uma potncia na qual h a ao de

    3 [...] traduo da palavra grega aesthesis, que significa conhecimento sensorial, experincia, sensibilidade.

    Foi empregada para referir-se s artes, pela primeira vez, pelo alemo Baumgarten, por volta de 1750. Em seu uso inicial, referia-se ao estudo das obras de arte enquanto criaes da sensibilidade, tendo como finalidade o belo. Pouco a pouco, substituiu a noo de arte potica e passou a designar toda investigao filosfica que tenha por objeto as artes ou uma arte. Do lado do artista e da obra, busca-se a realizao da beleza; do lado do espectador e receptor, busca-se a reao sob a forma do juzo de gosto, do bom-gosto. A noo de esttica, quando formulada e desenvolvida nos sculos XVIII e XIX, pressupunha: 1. que a arte produto da sensibilidade, da imaginao e da inspirao do artista e que sua finalidade a contemplao; 2. que a contemplao, do lado do artista, a busca do belo (e no do til, nem do agradvel ou prazeroso) e, do lado do pblico, a avaliao ou o julgamento do valor de beleza atingido pela obra; 3. que o belo diferente do verdadeiro (CHAUI, 2000, p. 411). 4 Efeitos de superfcie a partir de concepo deleuzeana sobre a compreenso dos esticos.

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    singulares sentidos que do sentido vida. Na vida-arte h uma movimentao para todos os lados, sem juzo de valores ao que se refira qualidade disso ou confirmao, validade.

    Atravessada por essa perspectiva de vida como arte, trabalho desde 1986 em diversas atividades artsticas e relacionadas arte. Meus trabalhos, enquanto prtica, vo desde a confeco de pinturas e esculturas at a atuao como disciplinada restauradora de pinturas murais e tambm como auxiliar em execuo de cenrios e figurinos para teatro. As atividades que ocorrem em atelier envolvem uma vasta gama de ofcios, desde a elaborao de projetos, passando pelo desenvolvimento de prottipos at a execuo das obras propriamente ditas. No campo da documentao, no ano de 1997, juntamente com o escultor Felix Bressan, desenvolvi um CD-ROM sobre artes visuais no Rio Grande do Sul

    que apresenta a produo artstica dos anos 90 com textos, imagens e vdeos de diversos artistas, tericos e espaos de arte, alm de obras contemporneas de msica erudita produzida neste Estado.

    No desenvolvimento deste trabalho, apresento elementos da arte contempornea que atuam como potncias na construo de saberes mltiplos, atravs da ampliao da percepo. Entendo que esses saberes gerados no obedecem a determinaes prvias relativas a qualquer campo moral, pois que derivam de acontecimentos que se do no incorpreo, nas sensaes, no indeterminado. O que no significa que sejam desprovidos de potncia afirmativa e que no carreguem, em seu largo processo, uma quantidade ampla de

    recursos aos mais variados setores da vida, essa vida que nos afeta. Sobre esses saberes, que tambm defino como no-saberes, sabe-se, no mbito da arte, que so potncias imperiosas, que esto presentes mesmo e at mais, s vezes, na sua ausncia, na sua

    negao. E a Educao? No que isso afeta a Educao? Primeiro: a que Educao me refiro?

    Valho-me da compreenso de Educao como acontecimento que se d na experincia, aquilo que nos passa, como na definio de Larrosa Bonda (2004, p. 21). [...] a experincia o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. No o que se passa,

    no o que acontece, ou o que toca. Um acmulo de potncias que promove construes afirmativas na esfera cultural. Que sentidos (saberes/no-saberes) poderiam ser gerados a partir do estreitamento entre a sociedade e a arte contempornea? Estariam na ordem da

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    classificao? O que no est na ordem da classificao perpassa as atribuies da Educao no sentido formal, a Educao institucional, que tem definidas as matrias clssicas de estudo, em que a prpria disciplina de artes se inscreve numa grade curricular. Esta pesquisa atenta, portanto, para os sentidos do mbito do no-classificvel, do sem-sentido, que so possveis na vivncia com a arte contempornea, que no seriam os mesmos antes dela e nem para alm dela. o que advm da arte do agora e que nos atravessa. Podemos perceber como essas potncias atuam sobre ns, como nos fazem danar, rir, chorar, desdenhar da razo suprema e at mesmo da desrazo, ou como

    simplesmente repercutem na vida de forma afirmativa na esteira do pensamento contemporneo.

    A arte contempornea entra no currculo da Educao formal, mas uma abordagem sua mais concisa raramente oportunizada nesse ambiente, por suas caractersticas, que ultrapassam as convenes disciplinares, embora no seja impraticvel. A Educao formal ainda reproduz os moldes da Educao moderna, que estabeleceu o currculo da atualidade focado nas cincias exatas. As artes, que em outras culturas e perodos da histria j foram consideradas fundamentais, cederam lugar a outros saberes compreendidos como superiores na efetivao da supremacia dos discursos tericos, que obedecem a outras lgicas: de

    mercado, polticas, cientificistas. E, portanto, disciplinas como a matemtica, a fsica, a qumica e a informtica passam a ser necessariamente concebidas como de primeira excelncia.

    Na civilizao grega, a arte pela primeira vez compreendida pelo seu valor esttico desvinculado de sua funo religiosa ou poltica. As escolas de arte proliferaram, e, em determinados perodos, alguns artistas gozaram de ampla reputao, pois atingiram em sua obra graus de perfeio nunca antes observados na histria. Os artistas gregos experimentavam continuamente, evitando as formas convencionais. Os gregos que recebiam educao discutiam pintura e escultura como discutiam teatro e poesia, elogiavam sua beleza ou criticavam sua forma e concepo (GOMBRICH, 1985, p. 66). Podemos atribuir a esse perodo as primeiras noes de arte sem finalidades puramente exgenas, quais sejam de ordem religiosa, moral ou poltica.

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    Aps alguns sculos de neutralizao das artes, transcorridos durante o perodo medieval, em que o clero, aliado monarquia, estabelecia uma abordagem esttica sujeita aos cnones admitidos, chegamos Renascena, quando, em um resgate da cultura clssica greco-romana, novamente passam a compor o imaginrio potico as motivaes pulsantes

    da arte compreendida como uma potncia vital. nesse perodo que suas caractersticas mximas de arte como vida se instauram novamente como uma possibilidade, como uma

    perspectiva diante das frmulas de vida restritivas.

    Nesses dois momentos percebe-se um fator distintivo na Educao. As artes perfaziam, juntamente com as outras reas do saber, um campo importante que, no conjunto, visava a promover a formao integral dos aprendizes, naturalmente salvaguardadas as diferenas de classes, de culturas e de regimes polticos. Mas o que importante de se atentar para a importncia que tinham as artes no desenvolvimento dessas culturas. O movimento de sua despotencializao se d na mesma razo de um aumento do racionalismo cartesiano, instaurado a partir do sculo XVII, que ainda respinga no atual sistema de ensino.

    As instituies de ensino da atualidade seguem, na maior parte dos casos, a mesma estrutura inflexvel e homogeneizante definida desde sua constituio, a partir do sculo XVII, com a formao de escolas pblicas no eruditas, voltadas domesticao dos corpos, tomando por fundamento primeiro os textos bblicos difundidos (aps a traduo para o alemo da bblia) nas escolas dominicais luteranas. O peso dessas definies de carter tradicional, que ainda bafejam nos currculos duros da atualidade, gera estados de desconforto e mesmo de sofrimento por parte de muitos que freqentam o ambiente escolar. A nusea resultante, portanto, um forte indicativo de que desalojar algumas certezas nesse campo importante. Hoje, em muitas escolas, os moldes do ensino procuram estar atentos lgica do empreendedorismo, que entende o aluno como um cliente em potencial. uma relao entre o princpios que atuam na contemporaneidade e que necessariamente ultrapassam os muros da escola, tornando-a parte desse plasma contingente onde tudo ou nada mais pode ser apreendido sem uma profunda reflexo.

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    [...] tornar a escola eficiente e produtiva. Ao mesmo tempo, mostra suas relaes com o estado que, desde sua gnese, tem apontado para uma crescente governamentalizao, isto , a escola servindo como lcus privilegiado na constituio de sujeitos modernos, vai exercendo o governo dos sujeitos e adequando-os s funes do Estado (FABRIS, 1999, p. 36).

    Fabris atenta para a forma como o Estado vem promovendo melhoramentos

    estruturais no sistema educacional, o que facilita o controle dos corpos e mentes do sujeito moderno. Sem deliberar sobre as questes essencialistas com relao ao que se tornou institucionalizado na conformao dos currculos, devemos ao menos nos deter sobre as questes histricas e sociais que foram determinantes na consolidao desse quadro que hoje se apresenta como uma verdade inquestionvel. Devemos nos perguntar, do ponto de vista de uma arqueologia do saber e do poder, no rastro de Foucault, sobre os discursos que construram as nossas noes sobre moral e tica, sobre cultura e sobre o que considerado fundamental para a construo do conhecimento. Por que esse conhecimento e no outro? Por que essa concepo de verdade e no outra? Por que queremos que algum se transforme em uma coisa e no em outra? (CORAZZA e TADEU, 2003, p. 38 - 39). Ou talvez devamos nos perguntar do ponto de vista de uma genealogia da moral no sentido nietzscheano sobre o incerto, sobre a contingncia histrica que, a despeito de toda sua fragmentalidade, definiu o paradigma moderno da moral, hoje incorporado pelo sistema educacional.

    As verdades a priori que gozam da melhor crena so, para mim suposies at segunda ordem; por exemplo, a lei da causalidade e outros hbitos muito exercitados da crena esto to incorporados, que no acreditar neles seria fazer sucumbir o gnero. Por isso so verdades? Que concluso! Como se a verdade fosse provada com o fato de que o homem permanece na existncia! (...) O mundo verdadeiro e o aparente essa oposio reconduzida por mim a relaes de valor. Projetamos as nossas condies de conservao como predicados do ser em geral. Que, para prosperar, tenhamos que ter crenas estveis, disso fizemos o fato de que o mundo verdadeiro no nenhum mundo mutvel e submetido ao devir, mas, antes, um mundo que (NIETZSCHE, 2008, p. 265 e 268).

    A teoria educacional e, em particular, a teoria curricular, conforme Sandra Corazza e Tomaz Tadeu, so a morada da verdade, do sujeito e da moral (CORAZZA e TADEU, 2003, p. 49). Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) renuncia noo de Verdade quando

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    afirma no existir seno a aparncia. A verdade uma interpretao. Vivemos essa interpretao, que, longe de estar certa ou errada, uma fico que asseveramos. Qual o momento exato em que nasceram as bases estruturais definidoras de quais os tempos e recuos e pausas e etapas que compem um currculo institucionalizado como tal? Sabe-se que essa conformao foi se fazendo em alicerces transcendentalistas, sob os olhos atentos do eu cogito cartesiano. Sabe-se que essa conformao curricular uma fico na qual

    milhares de estudantes e professores aliceram suas vidas.

    Na escola, definimos muitas coisas, delineamos caminhos, confirmamos algumas escolhas e descartamos outras. Permitimos que nos sejam sufocados desejos e todas as nossas aes e pensamentos considerados desapropriados. Nossos conceitos recebem

    nomes prprios ou so renomeados. Somos construdos em parte, podendo resultar em um corpo denso, localizado, circunscrito em um espao e tempo definidos. Tornamo-nos. Sem a escola, impossvel imaginar uma outra forma to poderosa de produzir o sujeito, com todas as caractersticas que o definem como um ser em harmonia ou em desarmonia com o ambiente em que vive. inevitvel sua passagem pela instituio para que seja definido o rosto que ir apresentar como sendo seu. Quantas outras possibilidades ceifadas... Quantos rostos que se perdem, desmancham ou desaparecem pelos imensos e cinzentos corredores

    da escola. H que se perguntar se aquele que absorve apenas o bsico do ensino (acmulo de saber institucionalizado) realmente mais feliz ou apenas permanece em estado de espera at que seja atravessado pela dor da existncia sem criao. Pois na dor da ausncia de arte, de poesia, que o homem, em sua maturidade emocional, compreende o real sentido de felicidade, naquilo que lhe falta, o vazio a preencher. Aquilo que est sempre a buscar. Essa movimentao em si j pressupe rasgos de felicidade somente possveis nesses lampejos estsicos.

    Criar essa a grande redeno do sofrimento, o que torna a vida mais leve. Mas, para que o criador exista, so deveras necessrios o sofrimento e muitas transformaes. Sim, muitas mortes amargas dever haver em vossa vida, criadores! Assim, sereis intercessores e justificadores de toda transitoriedade. Assim falou Zaratustra (NIETZSCHE, s/d, p. 101).

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    E criar ao... E o que mais aflige como o criar constrangido no meio educacional, que impe a supremacia da palavra perante o gesto. O gesto, expresso atvica da arte, nos domnios das instituies de ensino, permanece contido, dirigido, mapeado. No me refiro ao gesto como a prtica j incorporada dentro da lgica disciplinar (saberes do campo da motricidade, desenho geomtrico etc), mas como figura de linguagem que diz dos delrios da arte, das promoes estsicas e convulsivas geradas a partir da arte e que

    no so admitidas no campo educacional, pela forma como se estabeleceu o controle das manifestaes fsicas consideradas desmedidas.

    As aes que se criam na escola no admitem, portanto, a livre manifestao do gesto; existem regras e sistemas ordenados que naturalmente limitam o campo da criao artstica na sua complexidade. A disciplina dos corpos, expresso atvica desses domnios,

    se exerce em conformidade com outros domnios igualmente reguladores e ordenadores, como as prises e os hospitais.

    A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dceis. A disciplina aumenta as foras do corpo (em termos econmicos de utilidade) e diminui essas mesmas foras (em termos polticos de obedincia). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo (FOUCAULT, 1999, p. 119).

    O ensino de arte na escola situa-se forosamente numa perspectiva segmentada e alia-se a outros setores na Educao que travam os mesmos embates em busca de novas paisagens menos opressoras em plena era da ps-modernidade. Os estudos contemporneos em ensino de arte desenvolvem-se, na sua maioria, a partir de preceitos da arte entendida como um campo de conhecimento complexo. Esses estudos tiveram incio nos anos 60 no mbito internacional, quando foram colocados em questo os mtodos educacionais da disciplina de artes, que oscilavam entre o livre fazer, por um lado, e a reproduo de

    tcnicas e estilos, por outro. Para fins de tentar re-elaborar esse contexto instvel, alguns professores norte-americanos e ingleses criam a DBAE (Discipline Based Art Education), que visa incorporar, junto ao ensino de artes, quatro disciplinas fundamentais na sua aplicao para fins didticos: a crtica, a esttica, a produo e a histria da arte. No Brasil, a Proposta Triangular, um sistema epistemolgico de ensino de artes conduzido e

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    sistematizado inicialmente pela arte-educadora Ana Mae Barbosa5, opera, desde os anos 90, com trs conceitos bsicos, aps inmeros debates e adequaes realidade brasileira: o fazer artstico, a leitura da imagem (fruio) e a contextualizao, que partem da proposta internacional, compreendida na DBAE, mas difere desta por realizar uma abordagem mais popular que visa alcanar os mais distintos campos da cultura.

    Mas, na grande maioria das escolas brasileiras pblicas e privadas, o currculo desenvolvido na disciplina de Artes Plsticas ainda redunda na transmisso do conhecimento de algumas poucas tcnicas e de um pequeno aparato terico, geralmente relacionado s datas folclricas, fato que no preenche as expectativas mnimas do ideal estabelecido pelo atual programa do ensino de artes. O currculo de Educao Artstica, segundo os Parmetros Curriculares Nacionais (1997), deveria contemplar esse largo espectro de atribuies. Alm do estudo prtico e do conhecimento das tcnicas, estabelece como fundamental a compreenso dos seus conceitos, da sua abrangncia e inter-relao

    com a sociedade e com o mundo, sua contextualizao histrica e sociolgica, a necessria familiarizao com a arte antiga e moderna, e, evidentemente, com a arte contempornea. Apesar da importncia dessa disciplina ser asseverada pelos Padres Curriculares Nacionais (PCNs), a realidade demonstra que, mesmo com a obrigatoriedade de sua instituio nas escolas brasileiras desde o ano de 1971, o ensino das artes alvo de forte preconceito e descaso, sendo geralmente absorvido pelas demais disciplinas a ttulo de complementao ilustrativa ou recreativa, no sendo possvel, portanto, o desenvolvimento de seus pressupostos bsicos. Apesar dos muitos esforos na tentativa de superar essa situao

    problemtica e das elogiveis contribuies de autores/pesquisadores no desenvolvimento de programas sociais de formao de professores de arte, na fomentao de debates, na organizao de vivncias junto a espaos de arte, na produo de livros e textos relacionados ao tema, bem como de livros didticos altamente elaborados sobre arte, a disciplina ainda assim se manifesta de forma praticamente invisvel na maioria das escolas.

    5 Educadora brasileira, pioneira em arte-educao com ampla atuao nacional e internacional. Nos anos 90

    exerceu importante papel na conduo e sistematizao do primeiro programa educativo em arte com a aplicao da Proposta Triangular, que ainda hoje utilizado pela maioria dos programas de Ensino de Arte no Brasil.

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    Como possvel que no se possa ver ou sentir aquilo que existe apenas na

    condio de ser visto ou sentido, no havendo outra razo de a estar? Como se d que a noo de arte, tendo sido constrangida de tal maneira nos saberes escolares, a ponto de no mais representar uma ameaa ao seu carter disciplinatrio, possa ainda justificar a luta por sua permanncia nesse meio, cada vez mais conformada a essa lgica regimentar? Enquanto disciplina, a arte vira estrato. Estratificada, deixa de ser arte e vira outra coisa.

    ento uma atividade, um enunciado de signos reconhecveis e passveis de serem codificados, um saber institudo. Podemos compreend-la e at mesmo atribuir-lhe um

    valor real. Seu gesto selvagem, seu andar vagabundo interrompido. Essa arte outra coisa, pode muito bem compor um currculo estabelecido da escola contempornea.

    O presente trabalho parte da premissa que a arte em si como experincia de vida

    pode inserir-se no campo da Educao como uma possibilidade outra a operar com outros atravessamentos tambm alheios a esse campo. Atentando para a produo de

    sentidos a partir de leitura de obras de arte contempornea, quer mostrar que a Educao se faz por mltiplos processos e, portanto, tambm a partir das potncias percebidas na experincia por meio dessa forma de expresso. Acontece na relao direta com as emergncias do agora-agora.

    No primeiro captulo, descrevo a maneira como realizei a pesquisa, desde o princpio advertindo o leitor de que se trata de um exerccio que no tem por inteno percorrer um caminho normativo. Apresento o campo de ao da pesquisa, que inicia com uma contextualizao da arte contempornea, concentrando-se ao final nas anlises de obras de arte. Fao uma descrio dos procedimentos que foram adotados nas anlises.

    Em um aprofundamento no sistema da arte contempornea, objetivando com isso aproximar o leitor do tema, o segundo captulo adentra em seus elementos mais caractersticos que so fundamentais para a sua compreenso. A arte contempornea comentada a partir do atravessamento com alguns conceitos filosficos e com algumas teorias e fundamentos de arte de autores diversos, crticos e artistas.

    No terceiro captulo, so apresentadas as anlises de obras de arte propriamente ditas, iniciando-se com uma obra de Marcel Duchamp. Logo aps, so analisadas obras de

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    trs artistas plsticas que atuam e vivem no Rio Grande do Sul, como campo de investigao de elementos caractersticos da arte contempornea que atuam como potncias na formao de sentidos.

    O ltimo captulo encerra esta pesquisa, que procurou, desde sua concepo, malgrado os desvios equivocados de percurso e largos intervalos de improdutividade ocorridos, percorrer os fluxos descontnuos prprios ao campo da arte. Trata-se de consideraes finais inacabadas ou, mais precisamente, sem a inteno de fechar conceitos, a ttulo de manter o livre curso de conversas, proposies e aspiraes que podem ser disparadas a partir da aproximao com essa espcie de problemtica que pertence esfera do sensvel.

    Esta dissertao opera com formas especficas no emprego de alguns conceitos filosficos. Na seqncia, portanto, esto relacionados os termos que se definem por essa distino, a saber: sentido, efeitos de superfcie por Gilles Deleuze em A Lgica do Sentido, sensao, por Deleuze em Francis Bacon: lgica das sensaes, e perceptos e afectos, por Deleuze e Felix Guattari em O Que a Filosofia.

    Dos sentidos: No h sentido que no se apie no no-senso (WAHL, apud ALLIEZ, 2000, p.132).

    Em Lgica do Sentido, Deleuze distingue o sentido de significado6. O sentido incorporal, inexpresso e apreendido no corpo como sensao sem-sentido. O no-sentido no de forma alguma o absurdo ou o contrrio do sentido, mas aquilo que o faz valer e o

    produz circulando na estrutura (DELEUZE, 2006, p. 226). O no-sentido, portanto, como a condio do sentido. O sentido enquanto entidade no existe e escapa representao,

    interpretao e significao. prprio de um saber que no-saber.

    6 curioso constatar que toda obra lgica concerne diretamente significao, s implicaes e concluses e

    no diz respeito, a no ser indiretamente, ao sentido (DELEUZE, 1968, p. 34 - traduo nossa). Il est frappant de constater que toute loeuvre logique concerne directement la signification, les implications et conclusions, et ne concerne quinderectement le sens.

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    Digamos que o sentido ele prprio a maquinaria que Deleuze emprega para fundar como produo contnua, jamais preposta e jamais imobilizada, tudo o que se d como pensamento Ou, para dar a definio de Deleuze, que no a anuncia: o sentido eqipotente ao originrio do pensamento para aqum de sua articulao em conceitos (WAHL, apud ALLIEZ, 2000, p. 119).

    Das sensaes:

    A obra de arte um ser de sensao, e nada mais: ela existe em si (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 213).

    Na anlise da obra de Bacon, em Francis Bacon: lgica da sensao (2007), Deleuze mostra que a obra de arte escapa representao e se afirma como pura sensao. Sensao vibrao. Embora no seja qualitativa nem qualificada, possui uma realidade intensiva, sem dados representativos, mas variadas formas (DELEUZE, 2007). Excitao, vibrao contrada, tornada qualidade (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 271). A sensao capta as foras sonoras das foras no-sonoras e torna visveis as foras invisveis. A sensao s se realiza no material se este entrar totalmente na sensao.

    A sensao que se produz est alm do ver e do sentir, ela um algo mais que captamos para alm da percepo (pois essa s alcana o visvel) e o captamos porque somos por ele tocados, um algo mais que nos afeta para alm dos sentimentos (pois esses s dizem respeito ao eu). Sensao precisamente isso que se engendra em nossa relao com o mundo para alm da percepo e do sentimento (ROLNIK, 2002, p. 2 e 3).

    Dos perceptos:

    Segundo a definio de Deleuze e Guattari, os perceptos so as sensaes mesmas, independentes do estado daqueles que os experimentam; no so mais, portanto, as percepes do vivido (DELEUZE e GUATTARI, 2007). A arte extrai os perceptos das percepes. O percepto paisagem no-humana da natureza. Pode ser microscpico e, todavia, saturao.

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    Dos Afectos:

    Na acepo deleuzeana: Para mim, os afectos so os devires. So devires que

    transbordam daquele que passa por eles, que excedem as foras daquele que passa por eles. (DELEUZE, 1988a). No so mais afeces, no so sentimentos, so esses devires que desbordam o que passa por eles (ele torna-se outro). (DELEUZE, 1991). Os afectos distinguem-se dos afetos por sua natureza de reciprocidade que se d necessariamente.

    Afecto em Deleuze, ao contrrio do afeto, uma potncia totalmente afirmativa. O afecto no faz referncia ao trauma ou a uma experincia originria de perda, segundo a interpretao psicanaltica. O afecto, ao qual nada falta, exprime uma potncia de vida, de afirmao, o que aproxima Deleuze de Spinoza: na origem de toda existncia, h uma afirmao da potncia de ser. Afecto experimentao e no objeto de interpretao. Neste sentido, afecto no a mesma coisa que afeto: o afecto no-pessoal (LINS, 2005, p. 1254).

    Dos efeitos de superfcie:

    Deleuze demonstra a reverso do platonismo operada na filosofia a partir dos esticos, que compreendiam os efeitos como sendo idealidades exprimveis no as coisas, nem os corpos, mas o que se pensa das coisas e o que se diz delas, o incorpreo. Os esticos afirmavam que apenas os corpos existiam e que somente eles poderiam ser causas de alguma coisa. Os corpos so causas uns em relao aos outros de certos efeitos de superfcie. No h causas e efeitos entre os corpos7 (DELEUZE, 1968, p. 13 traduo nossa). As idias, para os esticos, so sempre um efeito das relaes entre os corpos, um efeito incorpreo. Os efeitos de superfcie so os simulacros mesmos, transvalorados.

    7 Il ny a pas de causes et deffets parmi les corps.

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    1 NA CONDIO DA CONDIO DO MTODO

    Minha inteno, como pesquisadora, foi demonstrar a possibilidade de formao de sentidos (saberes/no saberes) atravs do estreitamento com a arte contempornea a partir de suas potncias. Foi atentar, atravs de anlises de algumas obras de arte contempornea, para esse potencial que se engendra num intraduzvel fluxo de intensidades e velocidades,

    transformando os ambientes em que opera saberes, ainda no mbito do percebido, que desarticulam necessariamente outros saberes, desestabilizando as estruturas disciplinares. A partir de anlises de obras selecionadas, investiguei elementos pontuais que demonstram explicitamente como caracterstica esse carter desestabilizador.

    Por que pensar a arte contempornea? Pelo simples fato de ver a uma possibilidade de produzir acontecimentos que movimentam e modificam a atmosfera do meio em que admitida a arte contempornea como possibilidade de desterritorializar a grade linear, a matria formal de qualquer contexto, e, em ltima anlise, a escola, justificando-a para alm de seus pressupostos bsicos de ensino, de disciplinaridade, de sujeio. As aes da

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    arte contempornea colocam em circulao um arsenal de potncias que costumam ficar inertes na Educao formal a ttulo de uma pretensa manuteno da ordem disciplinar.

    Entendo que, para a realizao desta pesquisa, foi fundamental no delimitar rigidamente um campo de atuao como uma prtica que pouca ou nenhuma importncia atribui aos fatos dispersos que, isolados, em conjunto, incontingentes ou aleatrios, se manifestam e proliferam independentemente e que do sentido idia de arte como vida,

    que tentarei capturar a partir dos aportes tericos que pretendo utilizar. Destarte, no houve preocupao em trabalhar com meus intercessores8 de maneira circunscrita e setorizada,

    compondo blocos de significao organizados. No foram negligenciados quaisquer conhecimentos transversais j incorporados ou que surgiram ao longo da pesquisa sob o pretexto de no estarem alinhados ou em cadeia hierrquica temporal ou espacial. Por outro lado, a no-utilizao de outros referenciais anlogos, igualmente significativos, que no foram referendados, se deu pura e simplesmente (nunca nica e exclusivamente) por razes da brevidade de tempo e tambm por minha escolha dessa forma de pesquisar, que uma perspectiva.

    Na esteira desta pesquisa, houve a inteno de tecer algumas consideraes sobre o sistema da arte contempornea, utilizando como ferramentas conceitos de Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Felix Guattari e Maurice Blanchot, alm de escritos de artistas, tericos e crticos de arte. No houve uma pretenso purista de utilizar esses conceitos complexos de forma propositiva ou expositiva; foram suas provocaes geradas, seus desdobramentos e fundamentalmente suas aspiraes positivas que interessaram a esta

    pesquisa. A escolha por esse referencial terico corresponde s peculiaridades deste tipo de pesquisa que opera com artefatos culturais especficos do campo da esttica e foi

    fundamental para o desenvolvimento da problemtica e, na seqncia, da construo da dissertao.

    8 Sobre os intercessores, utilizo o termo na acepo deleuzeana para me referir s referncias estticas e

    tericas que utilizo na pesquisa. O essencial so os intercessores. A criao so os intercessores. Sem eles no h obra. Podem ser pessoas para um filsofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filsofos ou artistas mas tambm coisas, plantas, at animais, como em Castaeda. Fictcios ou reais, animados ou inanimados, preciso fabricar seus prprios intercessores (DELEUZE, 1992. p. 156).

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    As imagens do pensamento9 que sustentaram esse trabalho pretenderam acercar-se da concepo deleuzeana de um pensamento que sai da imobilidade na sua relao entre signos e criao. Ao recusar as imagens dogmticas ou morais do pensamento fundado na representao, Deleuze (2006a) prope uma nova imagem do pensamento, um pensar com a possibilidade de criar conceitos. As imagens de pensamento, portanto, nesta pesquisa, foram criadas a partir de documentos literrios, filosficos, plsticos e de expresso

    sensvel, que promovem essa possibilidade junto anlise de obras de arte contempornea.

    Procurando demonstrar algumas possibilidades de articulao da arte contempornea num mbito que transpassa as limitaes da Educao no plano institucional, identifico elementos pontuais que operam em tais articulaes utilizando

    como campo de movimentao para essa empresa conceitos como: a transvalorao, de Nietszche, o fora, de Blanchot, que, transposto do campo da literatura para a arte contempornea, faz a sua relao com o mais alm da arte; e rizoma de Deleuze. Ao operar com esses conceitos procurei estabelecer as relaes que se criaram na conformao do pensamento que permeia a arte contempornea.

    Na impossibilidade de realizar a pesquisa adensando as caractersticas de outros tantos referenciais citados ao longo dela, fiz um recorte dentro dessa condio, tomando como objeto de anlise a obra A Noiva despida por seus celibatrios, mesmo ou Le Grand Verre de Marcel Duchamp, um marco referencial na histria da arte que, embora no pertena ao perodo em que se inscreve a arte contempornea, considerada, no campo da arte, como o maior referencial esttico e filosfico para a apreenso das suas principais caractersticas, e obras de trs artistas contemporneas locais atuantes: Lia Menna Barreto, Dione Veiga Vieira e Vania Mombach, pretendendo com isso demonstrar de que maneira essas obras convergem nas linhas de pensamento filosfico contemporneo e como, no contexto em que operam, colocam suas idias em circulao, atuando como

    9 Como se constri a imagem de um pensamento algo relacional, sempre se parte de um pressuposto

    implcito fundamentado em uma base preestabelecida. Na filosofia ortodoxa, por exemplo, o pensamento est em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro (DELEUZE, 2006a, p. 192) Como no caso prprio da filosofia a que se refere Deleuze, o valor da imagem determinante na constituio do pensamento. Segundo Deleuze, Nietzsche, em sua filosofia, reverte a imagem moral do pensamento ao propor um outro exerccio do pensar.

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    potencializadores na criao de sentidos singulares que ainda hoje so assimilados com resistncia pelas instituies e diferentes sistemas de ensino.

    A forma como atuei sobre os materiais escolhidos para as anlises foi definida durante a aproximao com eles, procurando auscultar suas particularidades, sem com isso fechar-me a cada desvio de trajeto que se apresentasse. A escolha das obras foi feita durante o perodo em que estabeleci alguns encontros com as artistas plsticas. Entendo que, no atravessamento com as obras de arte contempornea, a produo de saberes se d invariavelmente, mas houve uma preocupao em escolher obras que melhor pudessem promover o desenvolvimento das anlises, nas quais procuraria dar nfase aos elementos potencializadores da produo de sentidos no percebidos de maneira bvia.

    A opo em realizar as anlises sem a definio prvia de um mtodo uniforme e movida pelas indeterminaes das circunstncias se deu em funo das distintas peculiaridades de cada uma das obras. E uma compreenso foi mantida como uma constante na presente pesquisa, no que respeita s anlises: por se tratar de anlises de fenmenos sensveis inscritos num campo que no obedece a postulaes fundadas na racionalidade, a identificao das potencialidades ocorreu devido ao amplo espectro de leituras possveis. O perspectivismo nietzscheano assumiu uma medida fundamental para a exposio dos sentidos.

    A partir de uma abordagem descontnua, em que procuro estabelecer uma conversa com as obras, a presente pesquisa procura apresentar, nas anlises descritas, algumas dentre outras tantas possibilidades de leitura em que as potencialidades da arte contempornea se fazem presentes de forma clara e inconteste. Na definio de Maria Helena Martins, terica literria brasileira, o conceito de leitura pode ser sintetizado de duas formas: leitura como decodificao mecnica e leitura como um processo de compreenso Essas duas caracterizaes so complementares, pois ao lermos precisamos necessariamente de ambas.

    Para compreender precisamos decodificar e se apenas decodificamos sem compreender, a leitura no acontece (PILLAR, 1999, p.11). Mas a autora assevera que, no mbito da arte, a leitura de uma obra opera por outras vias...

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    [...] a marca maior das obras de artes plsticas querer dizer o indizvel, ou seja, no um discurso verbal, um dilogo entre formas, cores, espaos. Desse modo, quando fazemos uma leitura, estamos explicitando verbalmente relaes de outra natureza, da natureza do sensvel (MARTINS apud PILLAR, 1999, p. 15 e 16).

    As obras analisadas compreendidas como potncias que operam pelos regimes do assignificante, e no como formaes discursivas que, como nos mostra Foucault em A

    Ordem do Discurso, sempre se produzem em razo de relaes de poder. [...] o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por

    que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 2005, p. 10). A arte utiliza-se da linguagem como forma de tentar se traduzir num regime de signos legveis, mas, conforme Deleuze e Guattari (1995), apoiados nos estudos do lingista Hjelmslev, a linguagem sempre formada por signos sem significado, de onde se deduz que nada a traduzir pra efeitos de um reconhecimento legitimado.

    As anlises no esto comprometidas em ratificar os conceitos filosficos dos autores utilizados na conformao do pensamento que permeia esta pesquisa. A proposta foi utilizar a potncia desses conceitos objetivando engendrar outras possibilidades de experienciao da arte contempornea, apresentada neste estudo como potncia que produz sentidos efeitos de superfcie que incorrem necessariamente na experincia esttica particular de cada um que se permitir penetrar na corrente de fluxos possveis de serem articulados nos mltiplos atravessamentos que acontecem nessa disposio. A anlise de obras de arte uma prtica realizada em pesquisas de variados campos do conhecimento e se configura como uma rica possibilidade de ampliar as perspectivas cognitivas.

    No decurso de minhas investigaes acerca de outras pesquisas sobre aes educativas junto arte contempornea, conclu que essa abordagem a que me propus em realizar no fora adotada ainda no ncleo da Educao. Existem algumas pesquisas com anlises de obras de arte, mas objetivando atender a outros fins didticos, desde as diversas possibilidades de construo de planos de aula, planejamentos de formao de professores e mesmo a proposio de metodologias que prefiguram tempos futuros. No texto que segue apresento duas pesquisas na Educao que considerei importante destacar.

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    No Departament de Teoria i Histria de lEducaci da Universitat de Barcelona, Cynthia Farina apresentou sua tese de doutorado intitulada Arte, cuerpo y subjetividad. Esttica de la formacin y pedagogia de las afecciones (2005), sob a orientao de Jorge Larrosa. Nessa pesquisa, a autora faz uma reflexo sobre a esttica contempornea e sobre a maneira como a formao opera no campo da arte. Em sua investigao, ao problematizar a formao institucional, Farina prope uma pedagogia das afeces onde repensa a

    formao nas dimenses do corpo atravs da abertura proposta por discursos filosficos contemporneos. Sua anlise sobre a produo artstica de Lygia Clark10, realizada no

    segundo captulo da tese, fundamental na construo desse estudo em que Farina demonstra de que forma a obra de Clark coloca em questo o regime esttico a partir de uma investigao das percepes e do corpo do sujeito, bem como atravs da experimentao artstica nos seus processos de formao (FARINA, 2005).

    A anlise de obras de arte que proponho se distingue da anlise realizada por Farina sobre a obra de Lygia Clark no que tange ao foco e tambm aos objetivos. Em minhas anlises, procuro destacar elementos geradores de sentidos existentes nas mltiplas formas

    da arte contempornea atravs de relaes possveis de serem perpetradas entre fruidor e obra, sem uma necessria apropriao ou reconhecimento prvio das obras e das

    motivaes assumidas pelo autor na criao das mesmas. A anlise da obra de Lygia Clark realizada por Cynthia Farina de ordem filosfico/esttica e tem como objetivo expor o carter revolucionrio da obra dessa artista, que rompe h um s tempo com diversas formas clssicas de representao da arte e traa um corpus esttico que est para alm do institudo. A importante anlise de Farina parte dos conceitos legitimados propostos por Clark em sua produo, examinados sob as lentes da perspectiva filosfica contempornea.

    Outra pesquisa que considero importante citar neste estudo, foi a realizada por Igor Moraes Simes na sua dissertao de mestrado pela Faculdade de Educao da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em 2008, intitulada Mulheres em imagens sob os olhares de meninos e meninas: Uma trama formada por artes visuais, educao e gnero, com orientao de Marcia Ondina Vieira Ferreira. Simes prope-se a analisar a leitura de

    10 Lygia Clark (1920 1988), pintora e escultora mineira. Artista revolucionria, abriu grandes perspectivas

    para a arte contempornea brasileira. Fundadora do movimento neo-concreto, juntamente com Amlcar de Castro (1920), Franz Weissmann (1911 2005), Lgia Pape (1927 2004) e Helio Oiticica (1937 1980).

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    imagens realizada por um grupo de alunos adolescentes. Algumas imagens, sugeridas pelo autor, so de obras artsticas figurativas, representando a mulher em diferentes perodos da histria da arte. Outras, por escolha dos alunos, so imagens de mulheres coletadas da mdia. O mtodo adotado por Simes foi o de grupo de discusso. Compreendendo as imagens como textos discursivos que produzem saberes, Simes buscou, atravs das discusses promovidas em aula, dar a ver as pretensas verdades acerca das representaes

    da mulher produzidas mediante a anlise daquelas imagens e trazer, para aquele grupo, questes de gnero e de constituio de novas identidades.

    Tambm essas anlises de imagens distinguem-se das que so apresentadas na presente pesquisa, no apenas pelo mtodo adotado, mas, principalmente, porque, como nas

    palavras de Simes, esto a servio da significao do que representa a mulher nas dimenses do que retratado e tambm pelo fato de tratar-se de anlises utilizando apenas imagens figurativas cujo tema central a mulher em diferentes situaes, tanto formais quanto de contedo. Embora sejam analisadas algumas obras de artistas contemporneos, o direcionamento dado s discusses foi objetivando perceber no discurso dos alunos a reelaborao de seus conhecimentos com relao s questes prementes nos estudos de gnero e identidades forjadas. O desconforto causado por essas imagens contemporneas ficou registrado, mas no foram analisadas as razes disso, a no ser no que se relacionava conduo do estudo. Vale atentar para a questo trazida junto a essa pesquisa quanto compreenso das obras como algo a ser lido em sua superfcie, no importando, portanto, buscar entendimentos ocultos que, se sabe, perpassam outros fenmenos, de cunho abstrato, que no eram o foco da pesquisa de Simes.

    As anlises discorridas na presente pesquisa podem-se dizer como pertencentes ao campo da hipottica. Disparadas a partir de um olhar que no se pretende unvoco, intencionam alcanar um corpo coletivo, criativo e distributivo, pela forma como dispe as possveis leituras, descoladas de qualquer prescrio.

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    Com essas intenes anunciadas, apresento as perguntas que balizaram a pesquisa:

    Que potncias de arte-vida essas obras de arte contempornea visibilizam?

    Como a arte contempornea pode promover sentidos (saberes/no saberes) para a Educao?

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    2 ENCONTROS NA ARTE CONTEMPORNEA

    A compreenso da arte contempornea , na atualidade, uma prerrogativa invlida.

    Esse estado de coisas apresenta-se em decorrncia das dedues e postulaes arregimentadas atravs dos mais variados estudos de teorias de arte de carter filosfico, crtico e propositivo. Ao longo da histria, as teorias da arte sempre exerceram um papel determinante nas prticas artsticas. A esttica, compreendida como a rea de significao que ocorre nos domnios da arte, admite vrias teorias conforme as estticas prprias de seus postuladores. A partir dessas teorias, tem-se uma e outras tantas definies do que seja arte que ficaram registradas nas diferentes pocas, culturas e tendncias. Com a arte contempornea, acontece o rompimento definitivo entre a atividade artstica e a esttica

    tradicional com seus valores de gosto, belo, gnio, nico.

    Mas o que, afinal, ela compreende, de que se trata? So trs os fatores que aferem,

    para efeitos de legitimao perante o simblico, o valor do que se entende por arte na atualidade e, mais especificamente, o que seja arte contempornea: supostamente o que um museu ou instituio de arte diz que arte; o que um crtico de arte diz que arte; o que um

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    artista diz que arte. Ou, como na definio de Donald Judd, artista minimalista e crtico de arte norte-americano, se algum chama algo de arte, isso arte (ARCHER, 2001, p. 82).

    As definies, portanto, so muitas, e as caractersticas tambm. Elas escorregam e se mesclam, se contrapem e se perdem em entendimentos distintos de tempo e de espao. Na inteno de tentar situar o momento em que se deu o nascimento da arte contempornea nos moldes como a conhecemos o momento de transio com a arte moderna , podemos nos reportar aos anos 60, quando ocorre uma decomposio das certezas atreladas ao sistema de classificao das obras de arte, que at ento ainda eram compreendidas como pertencentes a duas categorias maiores: a pintura ou a escultura (ARCHER, 2001). No afrouxamento dessas categorias a arte passa a valer-se de uma srie de outros parmetros.

    A realidade da arte contempornea se constri fora das qualidades da obra, na imagem que ela suscita dentro dos circuitos de comunicao (CAUQUELLIN, 2005, p. 81).

    Toda essa obra dos anos 60 desafiou a narrativa modernista da histria da arte mais particularmente identificada com o crtico norte-americano Clement Greenberg11. Uma conseqncia desse desafio foi o reconhecimento de que o significado de uma obra de arte no estava necessariamente contido nela, mas s vezes emergia do contexto em que ela existia. (ARCHER, 2001, prefcio XI).

    At ento, apesar da multiplicidade dos movimentos de vanguarda da arte moderna (da virada do sculo XIX para a segunda metade do sculo XX), que se sucediam e se desafiavam em princpios e motivos formais diversos, ainda era possvel classificar esses movimentos de acordo com a lgica binria ocidental, que desde o passado oscilava entre uma tendncia racionalista e outra romntica (CANONGIA, 2005). As vanguardas surgiram, conforme Bauman (2005), em protesto contra o descumprimento das promessas que serviram de base para os valores propalados pela modernidade. Os artistas desses movimentos acreditavam nos valores que exaltavam o progresso, as novas tecnologias, as

    novas teorias cientficas, a psicanlise. Elegeram, em contrapartida, o passado e tudo aquilo

    11 Greenberg foi um dos mais importantes crticos de arte do sculo XX, um ativo articulista do cenrio

    artstico da era modernista. Era um formalista (termo criado por ele) e acreditava que a forma, determinada por um juzo de valor, necessariamente deveria expressar a qualidade da arte, a arte como uma entidade voltada em si mesma. Foi o maior divulgador do Expressionismo Abstrato, movimento que antecedeu os movimentos Pop e Minimalista. Conforme Canongia (2005, p. 17), Greenberg era o responsvel por excelncia pelos principais ataques aos seguidores de Duchamp e da esttica pop.

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    que se apegava s tradies como os grandes inimigos da arte. A arte moderna tinha como imperativo romper definitivamente com as representaes antiquadas e estagnadas.

    O grande paradoxo das vanguardas artsticas foi que, na nsia de promover rupturas drsticas no campo esttico, a sua aceitao no era de fato algo que fosse compreendido como uma finalidade desejvel. Ser aprovado popularmente era inaceitvel, pois significava compor os blocos massificados do senso comum. A idia, portanto, de iluminar as mentes estagnadas oscilava com a contradio de fugir da sua aprovao. Em contrapartida, os vanguardistas, imbudos em ultrapassar os limites da representao, foram fundamentais na conformao de um novo olhar tico, esttico e filosfico que iria reger o sculo XX. Influenciados por pensadores da poca, como Marx, Schopenhauer, Nietzsche e

    Freud, agregavam fundamentalmente, no mbito de sua atuao, aqueles que compartilhavam de suas idias revolucionrias, ainda que restritas ao campo da arte.

    A noo de vanguarda (do francs avant-garde) como ao que se coloca de forma bem situada num patamar frente do que vir na sua seqncia, ditando os movimentos que seguiro no seu encalo, no tem lugar de pertencimento no mundo contemporneo, onde tudo se encontra em movimento perptuo (BAUMAN, 2005). Movimentos incertos que no permitem que possamos avaliar os avanos ou as retroaes que ocorrem em

    conseqncia disso.

    No final dos anos 50, o Expressionismo Abstrato, uma das ltimas vanguardas modernas, entrava em declnio, como a demarcar o final de uma era, mas no sem deixar importantes legados para a arte contempornea, como a expanso e a intensidade do gesto,

    o uso corporal do artista como parte da obra. A arte, nesse momento, caminhava em duas direes: o Pop e o Minimalismo. A partir dessas duas tendncias artsticas, de raiz comum

    no Dadasmo12, com caractersticas distintas na concepo, mas similares no radicalismo

    12 Movimento iniciado em 1916, em um pequeno cabar chamado Cabar Voltaire, em Zurique, por um

    grupo de escritores e artistas plsticos franceses e alemes, exilados na Sua, liderado por Tristan Tzara, Hugo Ball, Jean Arp (ou Hans Arp) e Marcel Janco. Em pleno caos da Grande Guerra, em meio a recentes massacres, o movimento j de incio teve grande sucesso junto ao pblico, que comparecia ao cabar sem nada compreender. Aconteciam ali diferentes formas de expresso, artes plsticas, literatura, teatro, cinema, fotografia e msica. O movimento tinha por caractersticas o niilismo, o experimentalismo, o uso do acaso e do absurdo, negao do racionalismo, montagens, colagens e processos artsticos aparentemente destrutivos na criao espontnea e primitiva. Criavam-se fantasias, cada qual mais incrvel, na inteno de se superarem em deboches e excitao por parte do pblico. Na msica, utilizaram as dissonncias e os rudos aleatrios; na

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    das suas propostas, surgiram vrias outras formas de expresso, como a Arte Conceitual ou Conceitualismo, a Arte Povera, a Anti-forma, a Land Art, a Arte ambiental, a Body Art, a Performance, o Happening e a arte poltica. O que todas essas novas expresses artsticas traziam como diferencial da arte moderna estava vinculado no apenas decomposio e ao declnio do valor da forma, mas tambm ao contexto, que passava a ocupar uma outra dimenso, referente espacialidade da obra.

    Brillo Boxes, 1964

    Definidas como obras de arte, as Caixas Brillo, de Andy Warhol, em nada diferiam externamente das caixas de sabo vendidas nos supermercados norte-americanos. O que lhes d o estatuto de arte em contraposio humilde condio de mercadoria das outras o simples fato de Warhol as ter distinguido como objetos com um apelo esttico incomum que, deslocados de seu contexto de mercado, denotavam a profundidade

    filosfica evocada pela Arte Pop. A Arte Pop, movimento que surgiu no incio dos anos 60 nos Estados Unidos, desviava-se radicalmente dos estilos anteriores, que manifestavam

    uma atividade emocionalmente expressiva. Operava com elementos da cultura visual de massa e abolia com a postura formalista e subjetivista da arte adotada at aquele perodo.

    literatura, desenvolveram a escrita automtica, a leitura e recitao simultneas. O movimento Dad foi influenciado pelo anticonvencionalismo de Man Ray, Marcel Duchamp, Francis Picabia, Pablo Picasso e Robert Delaunay (TOMKINS, 2004).

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    Assumindo novamente a figurao, os artistas pop, entretanto, tratavam as figuras como seres annimos e frios, congelados no esvaziamento da persona e desprovidos de inquietaes existenciais. Diante da total identificao do cidado norte-americano com seus objetos, que se encarnam na prpria vida individual, a figura foi reduzida a esteretipo, com valor de produto (CANONGIA, 2005, p. 43).

    Elementos como o banal e o corriqueiro e um novo entendimento do visual, que passava a agregar elementos retirados do cotidiano, foram as caractersticas mais evidentes da Pop arte, que trazia, no entanto, apesar de uma aparente indiferena duchampiana, o problema da perda da identidade nas malhas do consumo e da produo em srie. Quando incorpora padres da publicidade e propaganda, cinema e quadrinhos, renuncia a qualquer subjetividade e assume a objetividade dos fatos, incorpora o annimo.

    Apesar de seus aspectos carnavalescos, de seu colorido orgistico e de sua escala gigantesca, a alternativa que oferecia a arte Pop aos impastos emocionais e tcnicos de seu predecessor imediato13 se baseava sem dvida alguma em uma atitude dura, realista e alheia ao preciosismo e ao refinamento que foi muito prprio dos anos 60. A opo de uma cultura juvenil (teenage culture) como tema contm um elemento muito mais de hostilidade aos valores de seu tempo do que de complacncia, e marca um novo afastamento dos canais artsticos de arte.14 (LIPPARD, 1993. p. 10 traduo nossa).

    O Minimalismo, que surge em meados dos anos 60 nos Estados Unidos, era entendido como uma continuao da pintura por outros meios (ARCHER, 2001, p. 42). O seu interesse maior concentrava-se na pureza da forma, no uso do material na sua forma crua, na impessoalidade, numa correspondncia absoluta com o real, na rejeio de qualquer elemento ilusionista, na supresso radical da idia de lirismo. O que aproximava o Pop e o Minimalismo podia ser observado na vinculao dessas duas tendncias tradio

    filosfica americana do Pragmatismo15, num desapego causalidade e ao fatalismo.

    13 O Expressionismo Abstrato.

    14 A pesar de sus aspectos carnavalescos, de su colorido orgistico y de su escala gigantesca, la alternativa

    que ofreca el pop art a los impastos emocionales y tcnicos de su predecesor inmediato se basaba sin duda alguna en una actitud dura, realista y ajena al preciosismo y al refinamiento que fue muy propio de los aos 60. La opcin de una cultura juvenil (teenage culture) como tema contiene un elemento de hostilidad a los valores de su tiempo ms bien que de complacencia para con ellos, y marca un nuevo apartamiento de los cauces artsticos del arte. 15

    Movimento filosfico que surgiu Boston Estados Unidos, entre 1872 e 1874 e que teve ampla repercusso na filosofia contempornea. As principais noes do Pragmatismo foram traadas por Charles Sanders Peirce no artigo Como tornar claras as nossas idias, de 1878. O Pragmatismo um movimento antidogmtico que postula que o critrio de verdade est nos efeitos e conseqncias de uma idia, em sua eficcia, em seu xito,

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    Sem ttulo, 1965, Donald Judd

    Os anos 60 e, na seqncia, os anos 70, palcos das grandes crises polticas, da guerra fria, do maio de 68, do colapso das utopias, no poderiam passar inclumes na arte, que culminava tambm com a crise das vanguardas. Foi um perodo fortemente marcado por uma autocrtica modernista, em que foram redefinidos novos comportamentos.

    Como a preocupao com a forma deixa definitivamente de ocupar a primazia nas representaes artsticas, o conceito passa a ser mais importante. Segundo Lucy Lippard16,

    importante terica e crtica de arte norte-americana, a acontece uma desmaterializao do objeto de arte. Os cnones formais so revistos, as artes plsticas passam a ser denominadas artes visuais, o artista repensa seu papel nas dimenses ticas, estticas e polticas. A arte se move em sentidos de entrechoque. A era Greenberg havia terminado, o apoltico deixava de ser a regra que estabelecia os limites entre arte de valor e no-arte. Em movimentos simultneos, passaram a ocupar o imaginrio dos artistas o culto ao neutralismo e uma postura anti-establishment e anticomercial.

    dependendo, portanto, da concretizao dos resultados que espera obter. A verdade no diz respeito aos objetos, mas antes s idias, ou s formas de relao concretas que os homens tm com os objetos. Deste modo, ela deve ser determinada mediante a considerao destas relaes. O Pragmatismo desconsidera as substncias primeiras, do pensamento dogmtico, e atenta para as conseqncias (RORTY, 1999). 16

    LIPPARD, Lucy. Six Years: the Dematerialization of Art Object from 1966 to 1972. Berkeley: University California Press, 2001.

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    A arte conceitual, nesse sentido, integrava amplamente esses eventos. Sua principal caracterstica era o uso da linguagem como o principal material de sua concepo, a idia importando mais que a forma, mas tambm era compreendida como qualquer conjunto de prticas artsticas contemporneas que no se ajustavam s formas convencionais de apresentao da arte (WOOD, 2002). Temas como a identidade da obra, a relao arte-linguagem, a relao arte-mercadoria e a contraposio ao valor espiritual da arte so

    prefiguradores dessa arte, que j se manifestava de diferentes formas nas primeiras vanguardas. Tambm precursores da arte conceitual, os grupos Cobra, de 1948, e a Internacional Situacionista, de 1957, no acreditavam na utilidade da arte visual para a criatividade e o pensamento. A arte, fundida com a vida social, no poderia estar separada da ao.

    Coca-cola, 1970

    Obras como Coca-cola17, da srie Inseres em Circuitos Ideolgicos, de Cildo Meirelles, remontam a esse perodo de transio entre a arte moderna e a arte contempornea. H, no gesto de Meirelles, a inteno de trabalhar um conceito de maneira crtica, no subordinado aos valores ticos propalados na poca. A crtica se faz pela porta dos fundos, serve-se do prprio sistema para penetrar em seu cerne e min-lo. uma das formas como age a arte contempornea, atravs da dessacralizao do objeto pelo gesto iconoclasta.

    17 Garrafas da bebida em que Meirelles inscreve a frase "Yankees Go Home". As garrafas com a inscrio

    eram devolvidas ao mercado e a mensagem circulava livremente entre a populao (CANONGIA, 2005).

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    A arte sempre transgressora. Pode-se dizer que a arte e a transgresso so sinnimas, ou que uma perde sua significao sem a outra, ou que uma se perde na significao da outra. No havendo transgresso, no h arte, mas repetio. No h a diferena. Nesse sentido, a arte contempornea incorpora fundamentalmente esse atributo, pois opera com a transvalorao dos valores18, com uma potncia que se estabelece no caos, no fora19. Ao permitir que sejam trabalhados quaisquer elementos constitutivos na sua elaborao, numa viso ubqua e perspectivista, inmeras possibilidades so criadas. Elementos tradicionalmente marcados de significao podem ser trazidos sem qualquer

    comprometimento valorativo que lhes agregue intenes claras. O nico comprometimento com o inacabado e com o inesgotvel gesto de criar, no infinitivo. O processo.

    A transgresso um gesto relativo ao limite; a, na tnue espessura da linha, que se manifesta o fulgor de sua passagem, mas talvez tambm sua trajetria na totalidade, sua prpria origem. A linha que ela cruza poderia tambm ser todo o seu espao. O jogo dos limites e da transgresso parece ser regido por uma obstinao simples: a transgresso transpe e no cessa de recomear a transpor uma linha que, atrs dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tnue memria, recuando ento novamente para o horizonte do intransponvel (FOUCAULT, 2006, p. 32).

    Tomemos como exemplo a literatura de alguns escritores precursores do pensamento contemporneo, como Franz Kafka, Stphane Mallarm, Georges Bataille,

    Guillaume Apollinaire, Arthur Rimbaud, Marcel Proust, Virginia Woolf e outros tantos que transitam pelo caos, pelos territrios desconhecidos e inslitos da trangresso e que, por

    razo disso promovem deslocamentos inevitveis em nossas colunas, dando outras formas existncia, uma existncia plena de intensidades. O alheamento, o descomprometimento com a lgica, com valores de ordem moral e mesmo de ordem esttica elemento fundamental que promove essas transmutaes, esses enlevos.

    importante perceber que a transgresso sempre foi um elemento implcito nas artes desde suas primeiras manifestaes e durante todo o seu percurso ao longo da histria, mesmo quando realizada a servio das religies ou dos poderes de Estado. Na arte contempornea, a transgresso se fortalece ainda pela reascenso do corpo, da pele, do

    18 Na acepo nietzscheana.

    19 Conceito desenvolvido por Maurice Blanchot em seus escritos sobre literatura, referindo-se

    impossibilidade, ao no-representativo, negao, ao neutro.

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    gesto, elementos tradicionalmente constrangidos desde o rompimento com a arte trgica, ocorrido pouco antes da era crist.

    Antropometrias do Azul, performance de 1960, Yves Klein

    No incio dos anos 70, a arte da performance consagra-se como um gnero artstico independente. Liberta do campo plstico, essa forma de arte passa a compor imagens a partir do gesto. So seus ferozes articuladores artistas que utilizam o prprio corpo como suporte de atuao. O corpo, antes ferramenta e agora tornado objeto, incorpora novas funes, como a presena mesma, a manifestao visual como representao, o discurso do

    corpo/signo. Nessa abertura das formas de expresso artstica, os artistas buscavam borrar as fronteiras entre o pblico e a arte, estabelecendo uma maior aproximao entre arte e

    vida. O corpo, nessa nova dimenso, serviu como meio de contestao, veculo de provocao a servio da liberdade de expresso. Na obra representada acima, modelos recebiam tinta azul no corpo e, sob a regncia oral de Klein, como pincis vivos iam preenchendo as telas estendidas ao cho.

    Essa manifestao artstica j havia aparecido em movimentaes anteriores no Surrealismo e no Dadasmo, deixando um rastro significativo. Na pr-histria das performances, as manifestaes apresentavam-se mais como elementos integrados que compunham sentidos prximos s caractersticas elaboradas por cada grupo. Ancoradas por um esprito niilista carregado de ironia, incorporavam prticas do teatro, da mmica, da dana, da msica e do cinema, a nova mdia da poca (GLUSBERG, 2005). Essa prospeco se faz necessria, pois talvez a partir desse momento que, de uma maneira

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    mais radical, a arte se utiliza do corpo humano deslocado da sua representao institucional, despojado de seu significado social, histrico e contextualizado.

    A imagem acima da performance artstica Impondervel (1977), de Marina Abramovic com a participao do companheiro Ulay. Para entrar na sala de exposio, o pblico era obrigado a passar entre os corpos nus dos artistas. Abramovic, nesta obra, assim como em outras em que submetia seu corpo a estados fsicos extremos, pretendia provar os seus limites, tanto fsicos como psquicos. A participao do pblico em vrios desses exerccios performticos sempre se manifestava de forma intensa, numa fuso de afectos. Tal envolvimento entre a arte e o pblico entendido como fundamental no processo.

    Incorporar o cotidiano e romper com distncia entre a arte e a vida o conceito que permeia boa parte das criaes contemporneas, quando o prprio artista e as situaes criadas por ele so compreendidos como arte. Ad Reinhardt, pintor expressionista abstrato e uma das maiores influncias no Minimalismo e na Arte Conceitual, j dissera em uma entrevista de 1967, ano de sua morte: eu nunca vou a lugar nenhum a no ser como artista (ARCHER, 2001, p. 108).

    Mas preciso que se compreenda que a conceituao de arte e, mais especificamente, o conceito de arte contempornea est profundamente atrelado ao fenmeno da globalizao, que estabelece suas bases na lgica do mercado e das condies sociopolticas. Com recorrncia, fala-se de uma crise da arte e de um consenso cultural que

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    nivela todas as criaes ao estatuto de arte. Questionar o que seja a arte, ou o que seja arte boa ou m, no tem nenhum sentido no contexto ps-vanguardista, que abdica formalmente da pretenso de responder a quaisquer impasses. Dessa forma, no podemos mais nos valer de uma crtica especializada a nortear juzos de valor.

    A neutralizao da arte no sistema globalizante contemporneo tem como conseqncia direta a neutralizao da crtica. Como emitir julgamentos crticos e avaliaes de gosto em um universo onde tudo se equivale? H, no entanto, e no somente na Europa, crticos e artistas convencidos que sua funo essencial favorecer o acesso ao mais alm. Assim, uma parte da crtica da arte contempornea julga ter o dever de manter ou de encontrar suas funes de avaliao crtica e de julgamento de gosto. E isso porque a arte contempornea continua a existir, e com toda a fora. (CATTANI, 2004, p. 50).

    Esse mais alm, que no quer dizer frente, ou ocupando uma camada acima numa sucesso hierrquica, presena insidiosa na arte, o prprio sentido de transvalorao e o que determina que a anunciada morte da arte seja apenas a resposta estril de regimes totalitrios que sempre temeram na arte sua possibilidade de romper com o institudo. A arte contempornea se apresenta como fundamental nesse processo de estabelecer uma viso crtica; poderoso motor que desestabiliza e gera questionamentos diante do caos que provoca, do nonsense. Reconcilia o ser com o seu corpo, libertando-o da

    clausura a que esteve submetido por sculos. Escapa s limitaes que se formam em relao ao no compreendido, e a que o pensamento se cria. A questo no est em

    definir o que seja ou no arte contempornea, nem o que pode ou no pode fazer essa arte; sua manifestao d-se mesmo independentemente dessas relaes econmico-scio-polticas, pois brota fundamentalmente, desconcertantemente e prodigamente margem de tudo isso como uma resposta aos imperativos da razo.

    O artista ps-moderno, conforme Zigmunt Bauman (1998), est despido das significaes do passado e desobrigado dos mpetos revolucionrios. No h mais a projeo de setas buscando um alvo definido, os estilos no se dividem mais em progressistas e retrgrados. As novas criaes no tem como objetivo substituir em estatura as antigas, nem causar espanto ou chocar a audincia. Esse o cenrio em perptuo movimento aleatrio da arte contempornea, marcado pela presena simultnea dos mais

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    variados estilos. Nesse cenrio, em que os tentculos do mercado exercem naturalmente uma demarcao ostensiva, as criaes passam a estar sujeitas a essa lgica imperialista que determina as novas noes de tempo e espao. Essa lgica prev que todas as criaes exeram um impacto instantneo logo se tornando obsoletas. Bauman acredita que o grande problema da arte contempornea, reconhecido amplamente, seja o de sua dificuldade em transmitir a mensagem necessria para que se estabelea uma linguagem entre o artista e o

    pblico.

    [...] a arte contempornea parece preocupar-se, mais do que qualquer outra coisa, em desafiar, reptar e derrubar tudo o que a aceitao social, o aprendizado e a formao solidificaram em esquemas de necessria conexo; como se todo artista, e toda obra de arte, lutasse para construir uma nova obra de arte privada, esperando e desesperando convert-la numa linguagem consensual e genuna, isto , dentro de um veculo de comunicao mas retrocedesse em pnico num novo deserto, ainda no domesticado pela compreenso, no momento em que o sonho chega perto de sua realizao (BAUMAN, 1998, p. 132).

    Quaisquer que sejam as intenes ou pretenses que possam perpassar os artistas da atualidade, esse fato no afeta e no interrompe o fluxo indomvel das expresses artsticas, que ocorre independentemente desses gestos que ficam plasmados no campo da criao, na poitica20 de cada artista. A arte alienada independentiza-se e ganha vitalidade prpria, passando a compor uma outra potncia, um devir, um bloco de sensaes21. Ou seja, os sentimentos de desconforto perante o que est dado, angstia e inquietao perante a realidade maante, inconformismo diante da sensao de morte em vida, que muito freqentemente acompanharam aqueles que se dedicaram, e ainda o fazem com seriedade, a

    explorar os aflitivos caminhos da arte, no afetam os efeitos que possam se desdobrar nas e a partir das obras de arte. Como falar em problema da arte sem com isso tensionarmos o problema geral que afeta os tempos ps-modernos, em que a desconexo entre os signos se d de infinitas formas, impedindo fluxos de linguagem no apenas no mbito da arte, mas, e

    20 Cincia e filosofia da criao artstica. A poitica refere-se ao processo do trabalho do artista, a obra "en

    train de se faire", ou seja, o percurso de sua criao, o perodo em que est sendo gerada. 21

    Bloco de sensaes, na definio de Deleuze e Guattari, o que se conserva na composio de perceptos e afectos, a coisa, ou a obra de arte que existe em si mesma, independente de seu modelo, de seu processo e de seu criador (DELEUZE e GUATTARI, 2007). O artista cria blocos de sensaes, esses compostos de perceptos e afectos cuja nica lei que obedecem a de se manterem em p sozinhos... So monumentos.

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    necessariamente, no contexto existencial como um todo? Cabe-nos olhar para a arte sem o peso da razo opressiva, sem as dores da culpa, sem a presso do real.

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    OS PRIMRDIOS DUCHAMP

    Moulin Caf, 1911

    Os mais importantes sinais do que viria a se definir com o termo arte contempornea apareceram com as manifestaes artsticas de Marcel Duchamp (1887-1968) ainda nas primeiras dcadas do sculo XX. J em obras comoMoulin Caf, de 1911, esses sinais so percebidos. Solicitado pelo irmo, Raymond, a realizar uma pintura que seria colocada acima da pia na cozinha, Duchamp cria a imagem de um moedor de caf em que aparece de forma diagramtica uma descrio crua do mecanismo dessa mquina.

    [...] e executei um moinho de caf que fiz explodir; o p cai ao lado, as engrenagens esto em cima e a manivela vista simultaneamente em diversos pontos do seu circuito, com uma seta para indicar o movimento. Sem saber, tinha aberto uma janela para alguma outra coisa. Esta seta foi uma inovao que me agradou muito; o aspecto diagramtico era interessante do ponto de vista esttico (...) Era uma espcie de escape. (DUCHAMP apud CABANNE, 1990, p.48).

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    Aos 25 anos, Duchamp abandonava a pintura tradicional, e, a partir de 1913, toda sua obra seria realizada com a inteno de chegar a uma pintura-idia, numa negao da pintura. nesse ano que surge o primeiro ready-made, Roda de bicicleta. O termo ready-made foi utilizado por Duchamp pela primeira vez em 1915 para designar objetos que no eram obras de arte, no eram desenhos, e no se encaixavam em nenhum dos termos aceites no mundo da arte (DUCHAMP apud CABANNE, 1990, p. 70). Os ready-mades so objetos comuns do cotidiano convertidos em obras de arte pelo simples gesto de escolha do artista; no postulam novos valores, mas representam um dardo crtico noo de obra de

    arte e noo de gosto.

    Roue de bicyclette, 1913 La Fontaine, 1917

    A fonte, de 1917, seu ready-made mais conhecido, foi recusado pelo Comit de Seleo do Salo dos Independentes em Nova Iorque, do qual Duchamp ento fazia parte. Enviara a obra sem se identificar, a ttulo de teste para a sociedade em meio ao prestgio

    dos Sales. O acaso, como prerrogativa chave na escolha dos objetos, os ready-mades, representava um elemento vital no rompimento com as convenes essencialistas. Mas no

    era s a sua arte que contava, era a sua atitude, suas escolhas que propunham um rompimento com a esttica ou a criao de uma outra esttica e uma higiene tica que virou radicalmente pelo avesso o patrimnio cultural e plstico de quatro sculos de humanismo. [Atos e escolhas que] (d)estruram o conforto intelectual de uma poca em que os museus so sempre considerados como lugares de culto e os mestres como semi-

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    deuses (CABANNE, 1990, p. 9). De 1912 a 1923, Duchamp realiza O Grande Vidro, ou A noiva despida por seus celibatrios, mesmo, sua obra magna, segundo a designao de Octvio Paz22.

    Suas referncias, no princpio, iam desde Matisse Metzinger na pintura; na literatura, Jules Laforgue, Stphane Mallarm, Raymond Roussel e Jean Pierre Brisset, em algum momento, iriam corresponder desconstruo que buscava em sua obra. E o que buscava era a libertao do conceito do campo visual. Queria fazer arte sem dar importncia visualidade, pois acreditava que tudo estava a se tornar conceitual, ou seja, que dependia de outras coisas que no a retina (DUCHAMP apud CABANNE, 1990, p. 59).

    As influncias da literatura na obra de Duchamp foram determinantes. De Laforgue, interessavam-lhe principalmente os ttulos inslitos de suas poesias. Como Mallarm, na poesia, buscava uma expresso intelectual em sua obra que estivesse alm da forma, ambos percorriam as composies lanadas pelo acaso (PAZ, 1990). Brisset o interessava por sua subverso da anlise filolgica e genealgica da linguagem. Segundo Foucault, assim como Roussel, Brisset pratica sistematicamente o quase (...) Ele tenta restituir as palavras aos rudos que as fizeram nascer, e recolocar em cena os gestos, os assaltos, as violncias dos quais elas constituem o braso agora silencioso (FOUCAULT, 2006, p. 306, 308). Mas foi Roussel23 quem, fundamentalmente, maior influncia exerceu em Duchamp por sua

    imaginao delirante.

    [...] o disparate rousseliano no absolutamente bizarria da imaginao: o acaso da linguagem instaurado em sua onipotncia no interior do que ele diz; e o acaso apenas uma maneira de transformar em discurso o improvvel encontro das palavras. Toda a grande inquietude mallarmeana diante das relaes da linguagem com o acaso anima metade da obra de Roussel (FOUCAULT, 2006, p. 182).

    22 Escritor e ensasta mexicano que fazia parte do movimento surrealista francs.

    23 A obra do escritor francs Raymond Roussel (1877-1933) exerceu uma grande influncia no grupo dos

    surrealistas, embora ele se mantivesse avesso a qualquer espcie de movimentos. Foi objeto de estudo de vrios intelectuais e artistas considerados determinantes no deslocamento para uma esttica contempornea do pensamento, como Marcel Duchamp, Andr Breton, Guillaume Appolinaire, Francis Picabia e Alfred Jarry. Sua obra, ainda hoje muito pouco conhecida no circuito literrio brasileiro, foi fundamental para a desconstruo da semntica. Michel Foucault fez importantes estudos, alm de um livro, sobre esse autor que, com seu mtodo transgressor, conseguia desfazer a linha do fora. Reconhece-o como um precursor da literatura moderna ao gerar imagens fazendo-se chocar objetos, palavras e histrias que, sem a sua obra, permaneceriam isoladas (FOUCAULT, 1980).

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    Segundo Duchamp, Roussel foi o maior responsvel pelo desenvolvimento de seu O Grande Vidro ou A noiva despida por seus celibatrios, mesmo, sua obra mais emblemtica (PAZ, 1990). Ao assistir em 1911 a uma representao teatral do livro Impressions dAfrique, de Roussel, Duchamp pensou nas inmeras possibilidades oferecidas por aquele estranho mtodo literrio que concebia a linguagem como uma estrutura em movimento. Duchamp era fascinado pela linguagem que compreendia como o

    instrumento mais perfeito para construir e tambm para destruir os significados. Fazia jogo com as palavras nos ttulos das obras e buscava um anti-sentido24 que tambm se alinhava

    com sua tendncia para o humor.

    [...] com Duchamp e outros poetas do sculo XX, como Joyce e Kafka, a ironia se volta contra si mesma. O crculo se fecha: fim de uma poca e comeo de outra. O Grande Vidro est na fronteira de um e outro mundo, o da modernidade que agoniza e o novo que comea e ainda no tem forma (PAZ, 1990, p. 47).

    O Grande Vidro, 1912-1923

    24 Essa ausncia de significao de todo pretenso enunciado nos ttulos, [...] este anti-sentido interessava-me

    muito no plano potico, do ponto de vista da frase. Isto agradava tambm muito a Breton e, para mim, foi uma espcie de consagrao. Na verdade, quando o fiz, no tinha idia do seu valor [...] (DUCHAMP in CABANNE, 1990, P. 61).

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    A arte moderna era permeada por um sentimento de seriedade que elevava a arte condio de uma entidade superior. Junto s manifestaes plsticas dos movimentos de vanguarda que surgiam, havia sempre uma sustentao terica apresentada atravs de manifestos apaixonados em que os artistas pretendiam atentar para as suas verdades acerca de questes estticas e filosficas. Embora Duchamp, em algum momento houvesse participado de reunies em grupos de alguns desses movimentos, terminava por afastar-se

    por estar sempre a trilhar um caminho independente. O artista era afeito a todas as coisas geralmente desprezadas pelos artistas de vanguarda, tudo que, de certa forma, se opunha a

    qualquer espcie de convencionalismos na arte e mesmo na sociedade da poca.

    Duchamp acreditava que todas as artes obedeciam mesma lei, a metaironia uma

    ironia que, ao anular, sua prpria negao se torna uma afirmao (PAZ, 1990). Em sua obra, a ironia o antd