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AS POLÍTICAS EXTERNAS DOS GOVERNOS FHC E LULA E
O REGIME INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL:
DA SUBORDINAÇÃO AO TRIPS À “AGENDA DO DESENVOLVIMENTO”
Carlos Maurício Ardissone1
Resumo: O trabalho se propõe a analisar a trajetória do padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual desde o Governo Fernando Henrique Cardoso - FHC (1995-2002) até o Governo Lula (2003-2008). Pretende-se demonstrar que de um padrão essencialmente subordinado, característico da política externa do primeiro mandato do Governo FHC, em que o mais importante era apenas aderir aos regimes internacionais, a inserção brasileira assumiu, no Governo Lula, um perfil mais engajado em face de determinadas características excludentes dos princípios, regras, normas e procedimentos de tomada de decisão que regem o atual regime internacional de propriedade intelectual. A proposta de uma “Agenda do Desenvolvimento” no âmbito da OMPI representa a face mais acabada desta postura na política externa do atual governo. Palavras-chave: Regimes Internacionais – Propriedade Intelectual – Política Externa – Inserção.
A regulação internacional da propriedade intelectual2 representa área de
interesse estratégico nas diversas negociações multilaterais que envolvem atores estatais e
não-estatais. Desde a finalização da Rodada Uruguai do GATT, a criação da Organização
Mundial de Comércio (OMC) e o advento do Acordo TRIPS3, em 1995, analistas
internacionais têm procurado desvelar as conseqüências da vinculação do tema “propriedade
intelectual” ao “comércio internacional” para a inserção dos países em desenvolvimento na
economia internacional. De acordo com a abordagem de alguns analistas em propriedade
intelectual e economia política internacional como Susan Sell, Carlos Correa, Ha-Joon Chang
e Marisa Gandelman, o advento do Acordo TRIPS contribuiu para diminuir de forma
representativa as margens de manobra dos países em desenvolvimento no acesso ao
conhecimento e às novas tecnologias no plano internacional. A rigidez do novo regime impõe,
assim, barreiras políticas e técnicas para que países em desenvolvimento possam investir em
1 Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-RJ. Professor de Relações Internacionais da Universidade Estácio de Sá-RJ. Professor do Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Inovação do INPI. Tecnologista em Propriedade Industrial do INPI, lotado na Diretoria de Marcas na função de Examinador de Marcas. 2 Os direitos de propriedade intelectual decorrem do exercício da criação intelectual humana e são formados pelos direitos da propriedade industrial (marcas, patentes, indicações geográficas, contratos de transferência de tecnologia, registro de softwares), juntamente com os direitos advindos da propriedade literária, científica e artística (os direitos de autor). Discute-se hoje em dia novas formas de proteção como a da biotecnologia e de conhecimentos tradicionais, como os das comunidades ribeirinhas da Amazônia. 3 Acordo TRIPS – Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, também conhecido pela sigla ADPIC – Acordo sobre Comércio Referente aos Direitos de Propriedade Intelectual.
2
novas tecnologias, em inovação e em políticas públicas desenvolvimentistas de proteção dos
seus ativos intangíveis nacionais, sem serem acusados de pirataria e de outros delitos
internacionais contra o patrimônio intelectual dos países mais desenvolvidos. Diante de tal
quadro, cabe refletir sobre as reais possibilidades de uma inserção positiva de países em
desenvolvimento como o Brasil neste cenário, de forma a permitir, especialmente aos
empresários nacionais, acesso ao conhecimento e maior proteção de seu patrimônio imaterial,
especialmente marcas e patentes, dois dos principais indicadores de desenvolvimento e
competitividade das economias nacionais na ordem mundial.
Assim, a proposta da pesquisa contida neste artigo é analisar a o padrão de
inserção do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual durante o Governo Lula.
Como tem se verificado esta trajetória? É possível identificar diferenças no padrão de inserção
do atual governo no regime internacional de propriedade intelectual, comparado ao governo
anterior? Quais diferenças seriam essas?
Pretendemos demonstrar que a trajetória do padrão de inserção do Brasil no
regime internacional de propriedade intelectual sofreu modificações do Governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC) para o Governo Lula. De um padrão de inserção subordinado,
característico do primeiro mandato de FHC (1995-1998), em que o mais importante era
apenas aderir aos regimes internacionais existentes e aos novos regimes propostos (como o de
propriedade intelectual), a inserção brasileira gradualmente assumiu um perfil mais crítico e
descontente com os rumos da globalização econômica até se revestir de uma postura engajada
no Governo Lula. Atitudes de descontentamento e inconformidade com os contornos do
regime internacional de propriedade intelectual começaram a se delinear no segundo mandato
de FHC (1999-2002), durante a Gestão do Ministro José Serra no Ministério da Saúde,
ocasião em que se deu o embate diplomático do governo brasileiro e de governos de outros
países em desenvolvimento, como o da África do Sul, com as indústrias farmacêuticas
transnacionais, apoiadas pelo Governo dos Estados Unidos, no intuito de garantir acesso
gratuito de populações carentes ao coquetel de medicamentos contra a AIDS, o que, a
princípio, violaria os direitos de propriedade daquelas empresas sobre suas patentes.
Contudo, a política externa brasileira de propriedade intelectual só ganhou
contornos mais definitivos de afirmação e engajamento durante o Governo Lula. Sob uma
ótica retrospectiva, pode-se afirmar que, no primeiro mandato do Governo FHC, o que mais
importava era a mera adesão aos regimes como forma de garantir credibilidade para a política
externa e para a inserção internacional do Brasil. Trata-se do que se convencionou chamar na
literatura especializada de princípio de “autonomia pela participação”. A partir do segundo
3
mandato de FHC, o otimismo generalizado em torno da construção de uma ordem econômica
mundial neoliberal foi sendo substancialmente minado, dando lugar, no Governo Lula, a uma
nova vertente na condução da política externa, mais afirmativa e autônoma e com estratégias
mais engajadas e diversificadas de inserção internacional, como a “Agenda do
Desenvolvimento” proposta por Brasil e Argentina no âmbito da OMPI, em 2004.
O artigo está divido em mais quatro partes, além desta Introdução. Em
primeiro lugar, apresentamos breves considerações sobre a literatura de regimes
internacionais. Sem ignorar o mérito e as possibilidades de abordagens mais contemporâneas
e alternativas, concentramo-nos nas duas maiores tradições teóricas das Relações
Internacionais: o institucionalismo neoliberal e o (neo)realismo. Os limites de espaço e os
propósitos do artigo não nos permitiram uma prospecção teórica mais profunda, embora
reconheçamos que abordagens alternativas como o construtivismo, o pós-modernismo, o pós-
colonialismo e o feminismo podem trazer contribuições analíticas valiosas ao estudo dos
regimes internacionais.Em seguida, examinamos o regime internacional de propriedade
intelectual surgido após o Acordo TRIPS e seus contornos excludentes para os países em
desenvolvimento. Sublinhamos as razões pelas quais o conflito diplomático entre o Brasil e os
Estados Unidos em torno do programa brasileiro de distribuição dos medicamentos contra o
HIV/AIDS, ocorrido entre 1997 e 2001, pode ser considerado um momento importante na
forma como o Brasil passou a conduzir sua inserção no regime internacional de propriedade
intelectual. Após, apresentamos as diretrizes básicas da política externa brasileira do Governo
Lula, com ênfase na área temática da propriedade intelectual e no lançamento da “Agenda do
Desenvolvimento”. Ao final, apresentamos considerações que podem auxiliar novas pesquisas
sobre a inserção brasileira no regime internacional de propriedade intelectual.
A LITERATURA DE REGIMES INTERNACIONAIS
A partir dos trabalhos de Robert Keohane e Joseph Nye sobre interdependência
complexa na década de 704 e a publicação do volume International Regimes, de 1983,
organizado por Stephen Krasner, “[...] as formas institucionais de cooperação internacional e
os processos políticos, sociais e econômicos que lhes são vinculados se estabeleceram como
objeto central de pesquisa no estudo das Relações Internacionais” (CASTRO, 2001, p. 25). O
debate entre institucionalistas neoliberais e neorealistas nas décadas de 80 e 90 estimulou
4 Publicado em 1977, Power and Interdependence foi sem dúvida o livro mais importante do período.
4
adeptos de ambas correntes a se engajar numa discussão sobre o papel desempenhado pelos
regimes internacionais no sistema internacional (LITTLE, 2005, p. 369).
Durante a década de 80 e início dos anos 90, os regimes internacionais
tornaram-se objeto constante de análise das abordagens teóricas mais tradicionais das
Relações Internacionais – o (neo)realismo e o institucionalismo (neo)liberal, Ambas
compartilharam algumas presunções mas, ao mesmo tempo, sustentaram postulados
concorrentes sobre os regimes internacionais. Assim, muito mais acertado admitir a existência
dos regimes enquanto um conjunto de categorias ou percepções válidas, passíveis de
utilização como ferramentas analíticas por diferentes teorias, do que como “uma teoria” em si.
Tomando como referência o comentário de Chris Brown de que “[...] As Relações
Internacionais não é o tipo de disciplina acadêmica onde devemos esperar ou acolher
consenso e a ausência de abordagens concorrentes sobre o mundo” (BROWN, 1997, p. 14),
injusto seria esperar mais da literatura de regimes.
Mas, afinal, os regimes internacionais existem de fato? E se existem, como
conceituá-los? O conceito mais celebrado, sem dúvida, é o de KRASNER (1983. p. 2)5:
Os regimes são definidos como um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou explícitos, ao redor dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais. Os princípios são crenças sobre fatos, causalidades e retitude. As normas são padrões de comportamento definidos em termos de direitos e obrigações. As regras são prescrições ou proscrições específicas para a ação. Os procedimentos de tomada de decisão são práticas para formular e implementar a ação coletiva.
Pairam muitas dúvidas na literatura sobre o conceito mais preciso de regime
internacional. KEOHANE (1989) sugeriu superar a definição de Krasner a fim de substituí-la
por uma formulação de mais fácil apreensão e que fosse menos propensa a interpretações
divergentes.6 Desta forma, sua proposta é a de definir regimes como “[...] instituições com
regras explícitas, acordadas pelos governos, que pertencem a um conjunto particular de
questões nas relações internacionais” (1989, p. 4). Keohane procura desmontar o complexo
aparato de Krasner formado por princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de
decisão, reduzindo-o à condição de “regras”. Apesar do ganho pragmático do movimento de
KEOHANE por eximir os estudiosos da necessidade de justificar porque se referir a uma ou
outra injunção como “norma” ou “regra”, o fato é sua definição desencorajou esforços para
5 Apesar do conceito de “regime internacional” de Krasner ser o mais reconhecido, Gilpin (2001) afirma que John Ruggie foi o primeiro autor a utilizar o termo “regime” na literatura de economia política interacional. 6 Cf. Hasenclever et al (1997, p. 12).
5
compreender as relações mútuas entre os quatro elementos da definição.7 Além disso, a
hierarquia estabelecida por Krasner (princípios acima de normas, regras e procedimentos;
normas acima de regras e procedimentos e regras acima de procedimentos) permitiu, entre
outras coisas, que KRASNER conseguisse diferenciar dois tipos de mudança nos regimes
internacionais: as mudanças de regimes (nos princípios e/ou nas normas) e as mudanças
dentro dos regimes (nas regras e/ou nos procedimentos de tomada de decisão).
Sobre o diálogo entre as duas abordagens teóricas mais tradicionais no estudo
dos regimes internacionais, o (neo) realismo e o institucionalismo (neo)liberal, é praticamente
impossível não fazer uma remissão ao papel desempenhado por Robert Keohane em meios
aos estudos que marcaram o debate neorealismo x neoliberalismo nas décadas de 80 e 90.
Depois do forte contra-ataque do neorealismo ao pluralismo no final da década, por meio das
formulações de Kenneth Waltz, Keohane procurou assumir algumas de suas premissas8, sem
se descuidar de seu componente liberal, ou seja, mantendo intacto o interesse na análise das
instituições internacionais (modalidades de cooperação internacional formais e informais) e
sustentando-se na premissa de que a cooperação é possível e que as instituições “[...]
modificam a percepção que os Estados têm de seus próprios interesses, possibilitando assim a
cooperação (que os realistas/neoealistas vêem só como um fenômeno conjuntural)”
(SALOMÓN, 2002, p. 13).
O tema principal que demarcou o diálogo entre o neorealismo e o
neoliberalismo, sem dúvida, girou em torno dos efeitos que as instituições internacionais
podem exercer sobre o comportamento dos Estados em uma situação de anarquia
internacional (SMITH, 1997. p. 170, apud SALOMÓN, 2002. p.15). Procurava-se refletir
sobre as possibilidades das instituições internacionais compensarem ou não os efeitos da
anarquia. Os neoliberais sustentaram que sim, ao passo que os neorealistas responderam
negativamente (SALOMÓN, 2002, p. 15).
A importância dos embates e discussões travados entre neorealistas e
neoliberais a partir dos anos 80 reside na constatação de que, devido ao processo dialético que
caracterizou o rico programa de investigação desenvolvido, cada uma das partes pôde refinar
progressivamente suas posições iniciais. Mônica Salomón afirma que o conceito de regime
7 Ver a crítica de Hasenclever et al (1997, p. 12). 8 Segundo Salomón (2002: 13), as premissas assumidas foram as seguintes: I) a de que os Estados são os principais atores internacionais, ainda que não os únicos; II) a de que os Estados atuam racionalmente, ainda que não a partir de uma informação completa, nem com preferências imutáveis; e, III) a de que os Estados buscam poder e influência, ainda que nem sempre nos mesmos termos (em diferentes condições sistêmicas, os Estados definem seus interesses de maneira diferente). Sobre as presunções comuns e concorrentes entre o realismo e institucionalismo neoliberal, ver também Little (2005, p. 371).
6
internacional poderia ser considerado, sem exagero, quase que exclusivamente um produto do
diálogo entre neorealismo e neoliberalismo. Neoliberais e neorealistas passaram a debater
casos concretos de criação e manutenção de regimes internacionais, os primeiros concebendo
os regimes como produto da maximização de interesses de seus participantes, os últimos
como produto das relações de poder e explicados ou pela presença de uma potência
hegemônica ou de determinadas configurações de poder (SALOMÓN, 2002. pp. 18-19).
Com o aprofundamento do dialogo neorealismo x neoliberalismo e a
progressão e o desenvolvimento da literatura e dos programas de estudo sobre regimes já era
possível identificar, no início da década de 80, pelo menos três tipos de visões ou de escolas
de pensamento sobre os regimes internacionais. De acordo com KRASNER (1983)9, seriam
três as escolas de pensamento que estudam os regimes internacionais: os estruturalistas
“convencionais”, os estruturalistas “modificados” e os “grocianos”.
Os estruturalistas “convencionais” seriam aqueles que negam qualquer papel
relevante aos regimes internacionais. Não acreditam que as instituições sejam importantes e
relegam a um segundo plano (ou rejeitam) os aspectos normativos do sistema internacional.
Entre seus principais adeptos, podemos mencionar Susan Strange. Para a autora, os regimes
distorceriam a realidade por dar ênfase demasiada ao “estático” e “sub-dimensionar” os
elementos dinâmicos da mudança na política mundial.10 Eles ignorariam uma vasta área de
“não-regimes”, ou seja, os regimes valorizariam excessivamente os aspectos positivos da
cooperação internacional e subestimariam os negativos. Desta forma, os regimes
obscureceriam os aspectos da economia internacional nos quais os regimes não existem. Na
realidade, haveria mais questões de discórdia e controvérsia do que áreas de consenso
(STRANGE,1983. pp. 337-350).
Robert Gilpin é outro autor que critica radicalmente os adeptos da perspectiva
dos regimes internacionais, especialmente os integrantes da tradição do institucionalismo
neoliberal. Para o autor, existem obstáculos formidáveis para alcançar a noção de uma
economia internacional baseada em regimes. Além disso, crê que existiriam poucos princípios
gerais ou prescrições políticas sobre os quais eles poderiam ser construídos (GILPIN 2003, p.
241). O autor não descarta a necessidade de regime com a participação de atores
9 Uma excelente síntese das categorizações ou tipologias presentes nos estudos de Krasner (1983) e de Hasenclever et al (1997) se encontra em Cepaluni (2005, p. 60-65). 10 Um dos exemplos que a autora utiliza para fundamentar a crítica dos regimes como tendo uma “visão estática” é a da área de segurança. Tomando como referência os trinta cinco anos anteriores ao do artigo (1983), Strange afirma que o regime internacional de segurança (questionando, inclusive, a possibilidade de chamá-lo assim) não foi derivado de nenhum arranjo multilateral. Ele teria se sustentado no balanço de poder entre as superpotências. (Strange, 1983, pp. 346-347).
7
transnacionais, mas defende que é basicamente a partir das relações de cooperação entre os
Estados mais fortes que se pode constituir uma base política para uma economia estável e
unificada (GILPIN, 2004, p. 26).
Os estruturalistas “modificados” são os que sustentam que os regimes podem
ter um impacto significativo, mesmo numa ordem anárquica. Aceitam inicialmente a
perspectiva neorealista de um mundo de Estados soberanos insertos num ambiente anárquico
e que buscam maximizar seus interesses e poder. Contudo, crêem que os regimes exercem um
papel importante no cenário internacional. Acreditam que os Estados são atores racionais e
que a cooperação internacional não só é possível, como necessária em determinados
momentos, para mediar conflitos (CEPALUNI, 2005. p. 61). Entres seus representantes mais
importantes estaria KEOHANE (1983, 1989) que frisa que os regimes podem ter impacto
quando resultados ótimo-paretais11 não puderem ser alcançados através de cálculos
individuais não coordenados de auto-interesse (KRASNER, 1983, p. 7).
Já os “grocianos” são descritos por Krasner como os que enxergam os regimes
como um fenômeno recorrente de todos os sistemas políticos. Os grocianos entendem que os
homens de Estado sempre perceberam a si mesmos como que constrangidos por princípios,
normas e regras que prescrevem e proscrevem diferentes comportamentos. Para os adeptos
desta corrente, o conceito de regime vai muito além da visão realista que seria muito limitada
na sua capacidade de explicar um mundo crescentemente complexo (1983, p. 8). PUCHALA
& HOPKINS (1983) e YOUNG (1983) seriam adeptos da perspectiva grociana.
Tendo em vista esta tradicional tipologia estabelecida por Krasner, articulamos
agora tal aparato teórico com o atual regime internacional de propriedade intelectual. Qual a
abordagem teórica mais adequada para analisar este regime na atualidade? Em outras
palavras, qual a leitura mais adequada a se realizar do regime internacional de propriedade
intelectual, dentro do campo teórico das relações internacionais?
O REGIME DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DO ACORDO TRIPS
Marisa Gandelman é uma autora nacional que apresenta avanços consideráveis
no estudo dos princípios, normas, regras e procedimentos que formam o regime internacional
da propriedade intelectual. Sua perspectiva se aproxima da perspectiva realista por estar
baseada no poder, mas o poder compreendido não só dentro do marco clássico de emprego da
11 Segundo Cepaluni (2005, p. 88), o ótimo de Pareto é qualquer situação em que o bem-estar de pelo menos um dos participantes pode aumentar sem trazer prejuízo aos demais.
8
força material, mas também como poder sobre o conhecimento. A autora utiliza-se do papel
desempenhado pelas idéias como variáveis causais e normativas. Igualmente, utiliza-se da
abordagem das dinâmicas econômicas estruturais da teoria crítica de Robert Cox para
contextualizar as mudanças que teriam ocorrido no regime internacional da propriedade
intelectual (GANDELMAN, 2004).
De forma geral, o que a autora faz é relacionar o debate sobre a produção e o
acesso ao conhecimento com a disciplina das Relações Internacionais através do estudo da
teoria de regimes e, particularmente, do regime internacional da propriedade intelectual.
GANDELMAN demonstra que a propriedade intelectual tem como base um amplo sistema de
proteção jurídica, adotado de forma quase homogênea por um grande número de países –
atualmente todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) -, e que tem por
objeto a propriedade de bens imateriais, mais especificamente o conhecimento produzido e
acumulado pelo homem, bem como a tecnologia desenvolvida como resultado do
conhecimento acumulado. As idéias e as crenças dos atores que formam o sistema
internacional a respeito de como tratar o conhecimento e os avanços tecnológicos – e sua
importância nas relações econômicas e políticas internacionais – é que teriam dado origem a
um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos que constituiriam o regime
internacional da propriedade intelectual (GANDELMAN, 2004, p. 19). O regime
internacional da propriedade intelectual é definido assim como o regime:
[...] constituído por princípios, normas, regras e procedimentos que têm por objeto um direito de propriedade sobre bens imateriais, mais especificamente sobre o conhecimento produzido e acumulado pelo homem, bem como a tecnologia resultado do conhecimento acumulado.(GANDELMAN, 2004, p. 55).
A autora demonstra que os princípios em torno dos quais os interesses
convergiram no momento da formação do regime, no final do século XIX, fundamentam-se
numa idéia central: a de que a proteção ao fruto do trabalho intelectual estimula a criatividade
e os investimentos em produção de conhecimento, além de possibilitar um maior intercâmbio
entre as partes envolvidas. Desta forma, o modo encontrado para proteger efetivamente os
bens intelectuais intangíveis foi transformá-los em bens apropriáveis, isto é, em mercadorias
que podem ser comercializadas no contexto internacional. Toda a trajetória histórica do
regime internacional de propriedade intelectual teve como traço característico o de que os
seus elementos (princípios, normas, regras e procedimentos) foram estruturados a partir do
conceito político e jurídico de propriedade. O regime teria sofrido algumas mudanças desde a
9
sua formação no final do século XIX12, mas todas elas sempre pautadas no conceito, na
instituição e – o mais importante – na ampliação da propriedade privada sobre os bens
imateriais gerados pela invenção intelectual. (GANDELMAN, 2004, pp. 18-19).
Em resumo, todas as mudanças no regime internacional de propriedade
intelectual - especialmente a que ocorreu após a Rodada Uruguai, assinatura do Acordo
TRIPS e criação da OMC -, teriam sido operadas pelos Estados com mais recursos de poder
(em particular os Estados Unidos) – sendo o poder entendido pela autora como monopólio
sobre o conhecimento e a tecnologia - aliados a outros atores (poderosas corporações
multinacionais no setor farmacêutico, de informática, etc), no sentido de ampliar o escopo de
aplicação do conceito de propriedade. A distribuição de poder que modelaria a dinâmica dos
relacionamentos em torno da produção e do acesso ao conhecimento não teria se alterado
profundamente: aos Estados em desenvolvimento lhes continuaria sendo dificultado ao
máximo tal acesso.
A análise desenvolvida por Marisa Gandelman é crível e persuasiva. A autora
apresenta uma “radiografia” profunda do atual regime internacional de propriedade intelectual
como fator que nega acesso dos países em desenvolvimento ao poder do conhecimento.
Outros estudos parecem corroborar sua visão.
É o caso de CHANG (2002) que oferece uma rigorosa investigação de história
econômica que demonstra, entre outras coisas, o quanto o regime internacional de propriedade
intelectual surgido a partir do TRIPS representa um obstáculo ao desenvolvimento econômico
de países em desenvolvimento. O autor demonstra claramente que os países hoje
desenvolvidos utilizaram-se no passado de um conjunto de políticas e instituições, hoje tidas
como não recomendáveis (entre elas, a prática de pirataria e outras de desrespeito à
propriedade intelectual) para alcançar seu atual estágio de desenvolvimento. Assim, as nações
desenvolvidas estariam se valendo hoje do pretexto de recomendar políticas e instituições que
deveriam ser seguidas por todos unicamente para dificultar o acesso dos países em
desenvolvimento às políticas e instituições que elas implementaram no passado para poder
alcançar o seu atual estágio de desenvolvimento econômico.13 Trata-se do célebre argumento
12 Devemos destacar as negociações que resultaram, à época, na celebração de dois dos principais tratados internacionais na área da propriedade intelectual: a CUP - Convenção Única de Paris (sobre propriedade industrial) e a Convenção de Berna (sobre Direitos de Autor). 13 Chang (2002) demonstra que obstáculos ao reconhecimento dos direitos de patente, a espionagem industrial e o uso indevido de marcas foram práticas corrente que auxiliaram a transferir capital e tecnologia e a promover o desenvolvimento econômico entre muitos países da Europa e os Estados Unidos durante os séculos XVIII e XIX e, também nos países do Sudeste Asiático, no pós-Segunda Guerra Mundial.
10
de que os países desenvolvidos estariam “chutando a escada” dos países em desenvolvimento
para que eles não cheguem ao topo.14
CORREA (2003, pp. 83-94) é outro autor igualmente crítico da natureza
excludente que caracterizaria o atual regime internacional de propriedade intelectual. O autor
alega que, antes do TRIPS, o chamado “sistema de propriedade intelectual” era flexível e
permitia a transferência de tecnologia e investimentos diretos para os países em
desenvolvimento. Após o TRIPS, o vínculo que se estabeleceu entre propriedade intelectual e
comércio foi fundamental para que se elevassem bastante os níveis de proteção e para que se
passasse a condenar práticas, antes toleradas, caracterizadas como pirataria e contrafação e
que, em épocas passadas, foram fundamentais para que países outrora em desenvolvimento
atingissem o patamar de desenvolvidos.
SELL (2003) concorda com o diagnóstico de que com a finalização da Rodada
Uruguai do GATT e da assinatura do TRIPS, em 199415, ficou clara a natureza excludente do
novo regime. Segundo a autora, o Acordo TRIPS teria introduzido uma “nova era” de
ampliação global da regulação da propriedade intelectual baseada em conceitos de exclusão e
proteção mais do que em disseminação e competição. A dramática expansão dos direitos de
propriedade intelectual incorporada no Acordo TRIPS teria reduzido as opções disponíveis
aos futuros industriais por meio do bloqueio da rota que os primeiros industriais seguiram. Ela
teria aumentado o preço da informação e da tecnologia pela extensão dos privilégios
monopolistas dos detentores de direitos e exigido dos Estados desempenhar um papel maior
na sua defesa. Os países industrializados teriam construído muito do seu progresso econômico
pela apropriação da propriedade intelectual de outrem; mas com o Acordo TRIPS esta opção
teria sido bloqueada para os países de industrialização tardia. (2003, pp. 171-173).
As discussões dos autores acima expostos denotam o caráter claramente
excludente do regime internacional de propriedade intelectual no que se refere à possibilidade
de se ter acesso ao conhecimento e novas tecnologias sem contraprestações excessivamente
onerosas aos seus titulares, majoritariamente localizados nos países mais desenvolvidos. A
visão dos regimes internacionais como “jogos de coordenação”, resultado na aplicação dos
postulados realistas aos estudos de regimes internacionais, nos auxilia a compreender do
ponto de vista teórico as leituras até aqui apresentadas.
14 A expressão “chutar a escada”, na realidade, foi cunhada pelo economista alemão Frierich List, autor da obra The National System of Political Economy, escrita no século XIX. 15 O TRIPS é apresentado sob perspectiva histórica por Gandelman (2004, pp. 55-110).
11
De acordo com LITTLE (2005), os institucionalistas liberais trabalham com a
premissa de que os regimes são necessários para superar os problemas gerados pela estrutura
anárquica do sistema internacional. Utilizando-se de analogias com a teoria microeconômica,
segundo a qual falhas de mercado que levam a não provisão de bens públicos são resultado da
necessidade de colaboração, os institucionalistas liberais entendem que os regimes são o
instrumento recomendável para que esta atitude de colaboração se dê no ambiente
internacional. Vale dizer: para os institucionalistas liberais, a anarquia não elimina a
colaboração, só a torna mais difícil (LITTLE, 2005, p. 377-378).
Os institucionalistas liberais utilizam-se do dilema do prisioneiro para explicar
porque é importante identificar e aprimorar algum mecanismo capaz de inibir a defecção entre
atores que fazem parte de uma mesma interação estratégica e a estimulá-los a colaborar uns
com os outros. Segundo os institucionalistas liberais, os atores muitas vezes se negam a adotar
estratégias colaborativas porque esperam que os outros membros do sistema anárquico
busquem estratégias competitivas (LITTLE, 2005, p. 378).
Já os realistas têm uma forma diferente de lidar com o que os liberais chamam
de “falhas de mercado”. Para os realistas, o problema maior para os participantes de um
regime não está associado com o problema da defecção de uma estratégia competitiva e sim
com a possibilidade de falha na coordenação de estratégias. Segundo KRASNER (1993), os
Estados que pretendem formar um regime enfrentam um problema de “coordenação” e não de
colaboração. Ao invés do dilema do prisioneiro, KRASNER recorre a um outro jogo para
explicar porque os regimes se formam: a “Batalha dos Sexos”.16
A ilustração da “Batalha dos Sexos” é a seguinte: um homem e uma mulher
que acabam de se apaixonar resolvem viajar juntos nas férias. Ocorre que um pretende viajar
para as montanhas enquanto o outro prefere ficar na cidade para visitar museus e galerias. Os
dois preferem estar com o parceiro a viajar sozinhos nas férias. Assim, para alcançarem um
compromisso, os casal deverá decidir por dividir sua semana de férias, passando um tempo na
cidade e outro nas montanhas. O equilíbrio mais perfeito seria o de três dias e meio em cada
local. Todas as combinações possíveis de divisão dos dias pelo casal representariam a
fronteira de Pareto (numa extremidade estaria ficar todos os dias na montanha, e na outra
todos os dias na cidade). Assim, o ótimo de Pareto não representa só um, mas vários
resultados possíveis. Cabe aos envolvidos um trabalho de coordenação das diversas
estratégias possíveis nesta fronteira.
16 Ver Krasner (1993) e Little (2005).
12
Enfim, para KRASNER (1993) os regimes envolvem um problema de
coordenação que pode ter conseqüências distributivas. Os Estados podem concordar quanto
aos resultados mutuamente indesejados, mas discordam sobre o seu resultado favorito. Assim,
“[...] os atores podem reconhecer que todos eles estariam em pior situação sem algum acordo,
mas podem discordar sobre quais devem ser precisamente os termos do acordo” (KRASNER,
1993, p. 237).
A conclusão a que KRASNER chega é a de que a distribuição de capacidades é
fundamental para determinar quem melhor trafega pela fronteira de Pareto. O autor acredita
que, em muitos casos, uma abordagem orientada pelo poder pode dar conta melhor da
formação e da existência de um regime do que uma abordagem que privilegia uma visão
liberal segundo a qual a função dos regimes é apenas corrigir falhas de mercado e propiciar
ganhos absolutos. As opções dentro de um regime por muitas vezes podem ser constrangidas
pela distribuição de capacidades em termos de poder entre os participantes. KRASNER
afirma, inclusive, que o poder “[..] pode ser usado para determinar quem joga o jogo em
primeiro lugar. [...] O poder também pode ser usado para ditar as regras do jogo, a propósito,
o jogador que se move primeiro pode ditar o resultado, provando que o outro jogador está
convencido de que a estratégia do primeiro jogador é irrevocável” (1993, p. 238).17
LITTLE afirma que a leitura de KRASNER nos ajuda a compreender porque
Estados podem se conformar a um regime enquanto desejam mudar seus princípios
subjacentes (2005, p. 382), tal como ocorreu ao final da Rodada Uruguai do GATT, quando
países em desenvolvimento como o Brasil aceitaram as disposições do TRIPS. Segundo o
autor, os países em desenvolvimento pretendiam comercializar mais com os mais
desenvolvidos, embora preferindo termos mais vantajosos. Mas exatamente em função do
equilíbrio de poder continuar a favorecer estes últimos, haveria poucos sinais de novos
princípios econômicos emergindo de forma mais favorável àqueles (LITTLE, 2005, p. 382).
Por isto, os países em desenvolvimento acabaram por aceitar os termos finais da Rodada
Uruguai.
Enfim, o mérito da abordagem de Krasner, segundo LIMA (1996, p. 407), é
demonstrar que os regimes estão relacionados também aos conflitos distributivos que
emergem quando um regime relativamente assimétrico opera. As instituições internacionais
quase sempre são criadas dentro de um contexto determinado pelo poder, compreendido não
17 A atitude agressiva da diplomacia norte-americana durante a Rodada Uruguai sobre os temas de propriedade intelectual representou forte poder intimidador sobre missões dos países em desenvolvimento, certamente não tão preparadas, do ponto de vista técnico, não obstante a qualificação de alguns negociadores, como a dos diplomatas brasileiros.
13
só do ponto de vista do controle sobre recursos materiais e militares, mas como controle ou
monopólio sobre o conhecimento intelectual e a alta tecnologia. Em face dos conflitos
distributivos que emergiram durante a Rodada Uruguai do GATT, a diplomacia de FHC
conformou-se em aceitar e aderir ao regime internacional de propriedade intelectual na
esperança de que conseguiria conferir credibilidade e legitimidade aos interesses brasileiros
em outras áreas de negociação, como na do acesso dos produtos agrícolas brasileiros aos
mercados europeu e norte-americano.18 As esperanças, como sabemos, não se materializaram,
visto que até hoje o Brasil vê-se na necessidade de recorrer com habitualidade ao órgão de
solução de controvérsias da OMC para questionar os subsídios agrícolas norte-americanos e
da União Européia. A partir do momento que foi ficando cada vez mais claro para o governo
brasileiro que o retorno esperado não havia se concretizado, a política externa brasileira de
propriedade intelectual ingressou num processo gradual de mudança, tornando-se cada vez
mais crítica e engajada.
De fato, em 1997 o governo brasileiro lançou um programa de combate ao
HIV/AIDS, que tornava obrigatória a distribuição de medicamentos anti-retrovirais aos
portadores da doença. Para escapar dos monopólios das patentes das grandes corporações
transnacionais farmacêuticas e diminuir os custos do programa, a Rede de Laboratórios
Farmacêuticos Oficiais do Ministério da Saúde passou a produzir genéricos destes
medicamentos, amparada pela Lei dos Genéricos (Lei n° 9.787, de 10 de fevereiro de 1997).
O governo norte-americano, temendo que o Brasil fosse utilizar licenças compulsórias para os
medicamentos contra o HIV/AIDS, passou a exercer forte pressão diplomática para que tal
fato não ocorresse.19 Fundamental, à época, foi a iniciativa do então Ministro da Saúde José
Serra, de explicar que os medicamentos genéricos anti-retrovirais que eram produzidos
localmente não afrontavam o estipulado no TRIPS, uma vez que haviam sido todos
produzidos sob o advento do antigo Código de Propriedade Industrial (Lei n° 5.772/71) que
não permitia o patenteamento de medicamentos (CEPALUNI, 2005, p. 79).
Em 09 de janeiro de 2001, o Brasil viu-se obrigado a enfrentar um pedido de
abertura de painel no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC apresentado pelos Estados
Unidos, que acusava o artigo 68 da Lei da Propriedade Industrial brasileira de violar as regras
18 A este respeito, ver Lima (2001) e Santos (2004). 19 A Lei de Propriedade Industrial brasileira permite o fornecimento de licenças compulsórias para a produção local de medicamentos (artigos 68 e 71). Com efeito, o artigo 68 determina que “o titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico”. Já o artigo 71 determina que “nos casos de emergência nacional ou interesse público [..] poderá ser concedida [..] licença compulsória temporária e não exclusiva, para patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular. Cf. CEPALUNI (2005, p. 78).
14
do Acordo TRIPS. Em 18 de maio, o Governo Brasileiro, agindo de forma destemida, levou
proposta à Organização Mundial de Saúde – OMS para que o acesso a medicamentos para
pacientes com AIDS fosse reconhecido como direito humano fundamental. Apesar das
resistências da delegação dos Estados Unidos, que contestava a política brasileira na OMC, a
proposta brasileira foi aprovada por unanimidade pelos 188 membros da Assembléia Geral da
organização. Contribuiu bastante para o resultado as pressões da maioria dos países
signatários da instituição, de organizações não-governamentais e de grupos de defesa dos
direitos humanos e de portadores do vírus HIV/AIDS. Assim, um mês depois, em acordo
celebrado em junho de 2001, o Governo dos Estados Unidos decidiu retirar a queixa que
apresentara na OMC, ao passo que o Brasil se comprometeu a avisar caso resolvesse fornecer
licenças compulsórias de patentes de medicamentos fabricados por empresas norte-
americanas.20 Finalmente, em novembro do mesmo ano, a “Declaração sobre o Acordo TRIPS
e Saúde Pública” da IV Conferência de Doha reconheceu o direito de cada membro da OMC
de conceder licenças compulsórias e de estabelecer parâmetros para a concessão das mesmas
(CEPALUNI, 2005, pp. 81-82).
Apesar de ser necessário reconhecer o valor emblemático do embate
diplomático travado pelo Brasil a partir de 1997 com os países desenvolvidos em torno da
questão do acesso aos medicamentos anti-retrovirais de combate ao HIV/AIDS -
especialmente se compararmos este momento com a postura de alinhamento quase acrítico ao
regime, que se dera dois anos antes -, o fato é que a diplomacia do Governo FHC não logrou
sistematizar um novo padrão de inserção do Brasil no regime internacional de propriedade
intelectual. O episódio dos medicamentos contra a AIDS, apesar de relevante, representou um
fato tópico, isolado, que pouco auxiliou o Brasil a buscar uma inserção geral mais positiva em
todas as subáreas do regime. A tentativa desta inserção mais sistematizada só se tornou mais
visível no governo seguinte, devido às reorientações de política externa que o caracterizaram
e que repercutiram, na área temática da propriedade intelectual, na proposta de uma “Agenda
para o Desenvolvimento” na OMPI. Significa dizer que a política externa do Governo Lula
representa provavelmente o principal momento de inflexão em relação à opção de adesão ao
regime internacional do Acordo TRIPS, no início do Governo FHC.
20 Para CEPALUNI (2005, p. 81), a vitória brasileira não foi incondicional, uma vez que o Brasil abriu mão de sua soberania interna ao estabelecer um acordo em que se comprometeu a avisar aos Estados Unidos todas as vezes que fosse utilizar o artigo 68 com o objetivo de fornecer licenças compulsórias para patentes pertencentes a companhias norte-americanas. O acordo bilateral foi celebrado out-of-court, ou seja, fora do manto institucional da OMC.
15
A POLÍTICA EXTERNA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DO GOVERNO
LULA E A AGENDA DO DESENVOLVIMENTO
Autores como FERNANDES (2004), ALMEIDA (2004) e VIZENTINI (2005)
nos auxiliam a identificar elementos de ruptura e de continuidade entre as estratégias e
iniciativas de política externa dos Governos FHC e Lula. Analisar estes elementos nos auxilia
a compreender como eles podem ter interferido nas mudanças no padrão de inserção do Brasil
no regime internacional de propriedade intelectual.
O movimento inicial de Luis Fernandes é distinguir as duas dimensões do
planejamento da política externa brasileira: a política de Estado e a política de Governo.
Concebida como política de Estado, a política externa “reflete os interesses mais permanentes
e consolidados do Estado brasileiro”, ao passo que a política externa como política de governo
“reflete as prioridades, o estilo, a ênfase e o tom definidos por forças responsáveis pela
direção do poder executivo nacional durante diferentes períodos” (FERNANDES, 2004, p.
88).
No que se refere à política externa como política de Estado, o autor afirma que
existem diretrizes claras de continuidade que estão materializadas na consolidação do
Itamaraty como um dos corpos diplomáticos mais profissionais e bem preparados do mundo.
Princípios basilares inscritos na própria Carta Constitucional como os direitos humanos, a
autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados, a resolução
pacífica dos conflitos e a regulação da ordem mundial pela via multilateral constituem,
segundo o autor, a espinha dorsal de nossa agenda externa, projetando uma visão de mundo
que delimita a própria atuação governamental (FERNANDES, 2004, pp. 88-89).
Não obstante, no que se refere à política externa como política de governo,
Fernandes aponta duas diferenças básicas na atuação internacional do Governo Lula em
relação ao período FHC. A primeira delas seria a decisão de situar a defesa de nossa
autonomia e de nossa liderança regional no marco dos processos de multipolarização em
curso no mundo. Ao contrário do Governo FHC, que se orientou pela busca da “autonomia
pela participação”, ou seja, pela compreensão de que as vias de ampliação das margens de
autonomia do Brasil num “mundo globalizado” deveriam passar por uma maior aproximação
com os pólos centrais de poder do sistema internacional21, o Governo Lula se concentrou na
21 FERNANDES afirma, inclusive, que nos anos 90, a diplomacia de FHC implicou no retrocesso do Brasil numa série de contenciosos que se opunham aos Estados Unidos e diferentes foros multilaterais (FERNANDES, 2004, p. 89). A decisão de adesão ao TRIPS ocorreu neste contexto.
16
consolidação de diversos pólos de poder capazes de compensar a política externa dos Estados
Unidos, unilateral e intervencionista e de resgatar o multilateralismo como princípio
ordenador do âmbito internacional. Portanto, o Governo Lula se caracteriza pelo esforço em
vincular seu papel de liderança a movimentos que tendem a descentralizar e a regular
simultaneamente o poder no sistema internacional. (FERNANDES. 2004, p. 89).
A segunda mudança significativa, realizada pela política externa do Governo
Lula, em comparação com a de seu antecessor, representa a disposição, no âmbito dos
diferentes processos de multipolarização em curso no mundo, de assumir os ônus do exercício
de sua liderança na América do Sul, assentindo, inclusive, em discutir a consolidação
institucional do Mercosul, ao contrário da posição até então da diplomacia brasileira de
resistência à institucionalização (FERNANDES, 2004, pp. 89-90). O autor cunha o termo
“autonomia pela liderança” para se referir à atividade diplomática do Governo Lula, em
contraste com a “autonomia pela participação” que caracterizou o Governo FHC e com a
“autonomia pela distância” que foi traço característico da política externa brasileira durante
boa parte do século XX (FERNANDES, 2004). 22
Em linhas gerais, a abordagem de Paulo Roberto de Almeida se aproxima
bastante da de Luis Fernandes. ALMEIDA (2004) afirma que o Governo Lula se caracteriza
por um ativismo diplomático cujas iniciativas, embora possam ser consideradas, em grande
parte, desdobramentos de ações iniciadas na administração anterior, se revestiram de novas
roupagens e ênfases conceituais (ALMEIDA, 2004, p. 163).
O autor entende que, do ponto de vista da forma, a diplomacia do Governo
Lula ostenta um ativismo exemplar, com um caráter dinâmico e “multipresencial”
(ALMEIDA, 2004, p. 164). Apesar da centralidade da figura do Presidente na condução da
política externa, ela não se equipara à concentração de poder decisório observada durante o
Governo FHC, quando de fato foi exercida uma diplomacia presidencial e o Itamaraty foi
esvaziado enquanto instância de tomada de decisões (VIZENTINI, 2005, p. 382). Com Lula,
observa-se a importância assumida por outros interlocutores, como Samuel Pinheiro
Guimarães, Secretário-Geral de Relações Exteriores do Itamaraty, o Chanceler Celso
Amorim, e o Assessor Especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República,
22 Em direção oposta, SUANO e ARAGÃO (2006), ao analisar histórica e politicamente a política externa do Brasil para a América do Sul, afirmam que a inserção brasileira no cenário político continental representa apenas um comportamento reativo, associado a um discurso que não condiz com o seu comportamento, significando apenas um exercício de liderança virtual. Os autores não enxergam pontos de inflexão do Governo Lula em relação ao FHC no que se refere à política externa para a América do Sul. Ao contrário, afiram que o Governo Lula “manteve continuidade com o governo anterior, repetindo grande parte dos mesmos anseios e objetivos de curto prazo” (SUANO e ARAGÃO, 2006, p. 151).
17
Marco Aurélio Garcia, todos com autonomia decisória, em diversos temas. Sobre o último,
VIGEVANI e CEPALUNI (2007, p. 1316) atentam para inovação que representou a
nomeação de um não-diplomata para um cargo de tal importância. Pode-se dizer que, se em
FHC, era exercida uma diplomacia presidencial, no Governo Lula temos uma diplomacia
mais compartilhada.
Do ponto de vista do conteúdo, a diplomacia do Governo Lula apresenta,
segundo ALMEIDA (2004, p. 165), uma postura mais afirmativa e enfática em torno da
defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de buscas de alianças
privilegiadas na dimensão sul-sul, o que não foi, em absoluto, uma estratégia de inserção
internacional para o governo anterior.23 Invariavelmente, a maioria dos analistas de política
externa critica certa inibição e acanhamento da diplomacia de FHC, que teria impedido uma
inserção mais ousada do Brasil nos regimes internacionais. O Governo FHC teria se
“caracterizado por um multilateralismo moderado [...] que evidenciou uma aceitação tácita do
princípio dos “mais iguais”, isto é, a existência de grandes potências e de seu papel no sistema
internacional”(ALMEIDA, 2004, p. 166).
É possível notar que a maior parte dos autores converge no sentido de apontar
diferenças significativas entre as políticas externas dos Governos FHC e Lula. Contudo, não
são poucos os que consideram o Governo Lula nada mais do que a continuidade do Governo
FHC, principalmente em termos de condução da política macroeconômica.24 Ainda que se
admita uma certa procedência nestas críticas, no que tange especificamente ao plano
multilateral da propriedade intelectual, a agenda de política externa brasileira aprofundou-se
substancialmente a partir de 2004, com o lançamento da “Agenda do Desenvolvimento”, no
âmbito da Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI.
Os objetivos da agenda apresentam coerência e harmonia totais com o perfil
afirmativo e de engajamento crítico da diplomacia do Governo Lula. Apresentada
originalmente à Assembléia Geral da OMPI, em 2004, por iniciativa de Brasil e Argentina,
recebeu logo em seguida o apoio de um grupo de mais dez países que, somados aos dois
23 Paulo Nogueira Batista Jr., por exemplo, enxerga no espírito renovado do nacionalismo do Governo Lula uma força positiva para que o Brasil se torne um país que concilie um regime político aberto com interesse sistemático e até agressivo dos interesses nacionais (BATISTA JR, 2005, p. XVII). 24 Visões críticas à política econômica do Governo Lula se encontram presentes na coletânea “Adeus ao Desenvolvimento: a opção do Governo Lula”, publicada em 2005 e organizada por João Antonio de Paula. A coletânea conta com os artigos “Governo Lula: uma opção neoliberal”, de autoria de João Machado Borges Neto, e “FHC, Lula e a Desconstrução da Esquerda”, de Fernando J. Cardim de Carvalho. Para FILGUEIRA & GONÇALVES, por exemplo, “não houve transformações qualitativas no padrão de inserção da economia brasileira” (FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007, pp. 83-88) inclusive no que concerne a condução da sua política industrial. CARNEIRO (2006, p. 30) também afirma que o Governo Lula não conseguiu estabelecer um novo modelo de crescimento, nem concretizar uma política industrial.
18
primeiros, logo veio a se intitular “Grupo de Amigos do Desenvolvimento”.25 A Agenda tem
como um de seus propósitos implícitos o de resgatar, ao menos parcialmente, o papel da
OMPI como lócus institucional per se das negociações internacionais de propriedade
intelectual, em detrimento da posição de prestígio de que goza a OMC. Não de trata de uma
vontade despropositada (e irreal) de esvaziar por completo este último organismo, mas
somente de revitalizar aquele que tradicionalmente foi criado exclusivamente para tratar das
questões relativas à propriedade intelectual. Pretende-se que a OMPI, coadunada com
objetivos explicitados em sua carta constitutiva, possa enfim “promover a atividade
intelectual criativa e [...] facilitar a transferência de tecnologia para os países em
desenvolvimento de forma a acelerar o desenvolvimento econômico, social e cultural”
(PARANAGUÁ, 2005, p. 9).26
Explicitamente, o que a Agenda propõe é que o regime internacional de
propriedade intelectual não pode ser um fim em si mesmo e que deve existir um equilíbrio
entre os direitos e obrigações dos que produzem e dos que usufruem bens intangíveis, para
poder aprimorar o acesso ao conhecimento e à tecnologia, de forma a trazer desenvolvimento
social, cultural, econômico e tecnológico a todos, sempre medindo os custos e benefícios da
proteção à propriedade intelectual em face do interesse público. O regime deve ser visto
“como um meio de alcançar um desenvolvimento sustentável, auxiliando as necessidades
socioeconômicas da sociedade, mais do que se usado para o enriquecimento de poucos”
(PARANAGUÁ, 2005, p. 33). Entre algumas das medidas práticas recomendadas na Agenda
está o aperfeiçoamento da assistência técnica prestada pela OMPI aos países em
desenvolvimento e menos desenvolvidos, a criação de um novo órgão encarregado de
assegurar transferência de tecnologia àqueles países e o aumento da participação de
organizações não-governamentais de interesse público no processo decisório da instituição,
para torná-lo mais democrático (PARANAGUÁ, 2005, p. 35).
Rapidamente, surgiram resistências por parte dos países mais desenvolvidos à
proposta da Agenda de flexibilização de determinadas proteções previstas no Acordo TRIPS
para garantir maior acesso ao conhecimento, de democratização do processo decisório e de
formação de uma agenda própria de desenvolvimento no marco da OMPI. Os Estados Unidos,
por exemplo, argumentou que o tema do desenvolvimento pertencia à esfera de competência
25 Os doze países são: Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, República Dominicana, Equador, Egito, Irã, Quênia, Peru, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia e Venezuela. 26 Tradução livre do autor de texto original em inglês. As demais citações diretas do texto seguem o mesmo padrão.
19
de outras agências das Nações Unidas, como a UNCTAD e que, portanto, a OMPI deveria
continuar se concentrando apenas em promover a proteção à propriedade intelectual. Já a
Suíça alegou que a sociedade civil já é suficientemente representada na organização, sendo
desnecessário ampliar sua participação na tomada de decisões (PARANAGUÁ, 2005, pp. 37-
39).
Nos últimos três anos, o impasse tem marcado os rumos da “Agenda do
Desenvolvimento” nas discussões da OMPI. Suas propostas continuam sendo objeto de
incessantes debates, sem resultar em decisão relevante. Não é exagero afirmar que a clivagem
“Norte-Sul” é hoje um traço característico da organização e a maior responsável pelas
resistências que a Agenda encontra. Prova disto foi o resultado da última eleição para Diretor
Geral da instituição, realizada em 13 de maio de 2008. Por um voto de diferença (42 x 41
votos), o advogado australiano Francis Gurry venceu o brasileiro José Graça Aranha,
Presidente do INPI durante a Gestão FHC e atual diretor de registros da organização. Apesar
do novo presidente ter declarado que reconhecia a importância de garantir que a “agenda de
desenvolvimento” da OMPI realmente impulsione a capacidade de propriedade intelectual das
nações mais pobres (EVANS & NEBEHAY, 2008), o fato é que a derrota da candidatura
Graça Aranha foi percebido como um sinal de que ainda são muitos os obstáculos políticos
que os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos deverão enfrentar até que a
implementação da Agenda possa se tornar realidade. Mesmo assim, não há como deixar de
reconhecer que, ao introduzir a “Agenda do Desenvolvimento” no ambiente de negociação da
OMPI, a diplomacia do Governo Lula conseguiu questionar de forma positiva os alicerces do
regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS, mesmo que carente de
instrumentos mais persuasivos de inclusão da mesma no processo de tomada de decisões da
organização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este estudo, foi possível demonstrar que a trajetória do padrão de inserção
do Brasil no regime internacional de propriedade intelectual sofreu modificações do Governo
Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o Governo Lula. De um padrão de inserção
subordinado, característico do primeiro mandato de FHC (1995-1998), em que o mais
importante era apenas aderir aos regimes internacionais existentes e aos novos regimes
propostos (o paradigma da “autonomia pela participação”), a inserção brasileira gradualmente
assumiu um perfil mais crítico e descontente até se revestir de uma postura engajada no
20
Governo Lula. O padrão engajado de inserção do Brasil no regime internacional de
propriedade intelectual começou a ser moldado gradativamente no segundo mandato do
Governo FHC, mas só se sistematizou no atual governo.
Do ponto de vista da agenda internacional, o perfil pró-ativo da política externa
brasileira no campo da propriedade intelectual tem, no lançamento da “Agenda do
Desenvolvimento”, seu ponto de inflexão recente mais relevante, comparativamente à posição
brasileira nas negociações da Rodada Uruguai, que resultaram na criação do Acordo TRIPS.
A proposta da Agenda consiste numa tentativa de buscar na “fronteira de Pareto” do regime
internacional de propriedade intelectual as propostas de resolução de dilemas de coordenação
mais interessantes aos países em desenvolvimento e aos menos desenvolvidos, considerando
os constrangimentos estruturais impostos pelos Estados com mais recursos de poder. Entre os
dilemas de coordenação mais relevantes estão propostas de democratização do processo
decisório da OMPI e de flexibilização de determinadas regras do TRIPS, com vistas a facilitar
para os países em desenvolvimento o acesso ao conhecimento e novas tecnologias.
A condução da área temática da propriedade intelectual na agenda de política
externa brasileira é caracterizada pelo papel protagonista de um só ator (o Itamaraty), mas
conta com a participação relevante de outras agências do Estado, como o Instituto Nacional da
Propriedade Industrial - INPI, na formulação de políticas. Futuros estudos deverão se dedicar
a esmiuçar o efetivo grau de participação de agências governamentais no processo de tomada
de decisões tradicionalmente centralizado no Ministério das Relações Exteriores. Com efeito,
o INPI desenvolve ações de cooperação internacional no âmbito do Grupo Interministerial de
Propriedade Intelectual – GIPI, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio - MDIC (cenário doméstico), e com entidades congêneres de outros países (cenário
externo) que merecem um olhar analítico detido, a fim de verificar qual é o verdadeiro grau de
interferência desta importante agência governamental no processo decisório em política
externa.
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