as paixões na escola: o medo em gêneros escolares · como me senti humilhada, triste e indignada,...
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AIOLANDA PEREIRA FARIA
As paixões na escola:
o medo em gêneros escolares
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
Agosto de 2006
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AIOLANDA PEREIRA FARIA
As paixões na escola:
o medo em gêneros escolares
Dissertação de mestrado apresentada
à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para a obten-
ção do grau de Mestre em Língua
Portuguesa, sob orientação do Prof.
Dr. Luiz Antonio Ferreira.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
Agosto de 2006
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I
BANCA EXAMINADORA
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II
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é observar, do ponto de vista da retórica,
como se manifesta o medo, gerado por manifestações de violência, nas rela-
ções escolares, num estabelecimento da rede pública de ensino do estado de
São Paulo. O material que integra o corpus da pesquisa foi coletado em 2005,
no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, e consta dos textos
produzidos na escola e pela escola. O referencial teórico inclui estudiosos da
retórica e do discurso, com enfoque na argumentação.
Palavras-chave: escola; medo; violência; retórica
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III
ABSTRACT
The goal of this research is to analyze, from the point of view of rhetoric,
manifestations of fear generated by violence manifestations in school relations,
in an unity of the public net of teaching of São Paulo state. The corpus was
collected in 2005, in Franco da Rocha municipality, in Greater São Paulo. The
theoretical references includes scholars and experts in rhetoric and discourse,
with focus on argumentation.
Keywords: school; fear; violence; rhetoric
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IV
A minha mãe,
a minha filha,
a meus irmãos
e a Frank
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V
AGRADECIMENTOS
Para que um trabalho de pesquisa se realize, o pesquisador precisa da
colaboração, do acompanhamento, do apoio, da atenção e do incentivo de
pessoas que, de uma forma ou de outra, apontam-lhe caminhos. Por essa ra-
zão, quero apresentar meus sinceros agradecimentos.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela humana acolhida
desde 1986, início de minha graduação.
Ao meu orientador, professor doutor Luiz Antonio Ferreira, pela compre-
ensão, pela paciência e pela dedicação.
Aos docentes do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa,
especialmente os professores doutores Neusa Barbosa Bastos, João Hilton
Sayeg de Siqueira (também integrante da banca do exame de qualificação) e
Mercedes Crescitelli.
Ao professor doutor José Everaldo Nogueira Júnior, da banca do exame
de qualificação, pelas excelentes sugestões.
À equipe da E.E. "Azevedo Soares", especialmente à diretora Eliana
Govões e à vice-diretora Isabel Pimenta, pela compreensão e pela ajuda em
hora tão oportuna, aos professores Alberto Fernando Donato, Joanilce Fonse-
ca, Josele Francisco, Leila Moret, Rodrigo Fornazari, Suly Guzzi e Therezinha
Prado e aos alunos da 2ª série B e das 3as séries B e C de 2005. Aos funcioná-
rios da escola, pela gentil colaboração.
Aos amigos Algenir Menezes, Izabel Menezes, Grasiela Ribeiro, Lidiane
Lacerda, Rosana Nunes, Samantha Meconi e Ana Maria, pelo apoio e incenti-
vo.
Minha gratidão especial a Frank Roy Cintra Ferreira, pela tarefa de revi-
sar este trabalho.
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VI
À Secretaria de Estado da Educação do estado de São Paulo, pelo Pro-
grama Bolsa Mestrado.
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VI
SUMÁRIO
Introdução 1Capítulo I Considerações em torno das noções de ethos, logos e pa-thos: constituição argumentativa de um auditório transformado em"retor" 12Capítulo II História/retórica e paixões 212.1. Retórica: ontem e hoje 21
2.2. Gêneros textuais 34
a) Gêneros textuais como práticas sócio-discursivas 34
b) Uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais, na perspectiva do
estudo dos gêneros 35
2.3. O medo como paixão 37
Capítulo III Uma breve história dos nossos medos: o passado vivo nopresente 423. 1. Já tivemos medo dos mortos? Medo da escuridão? 46
3.2. O discurso dirigente e o medo 49
Capítulo IV Exame do corpus 534.1. O medo no discurso constituído 53
a) Normas de convivência 53
b) Ocorrência de alunos 60
4.2. O medo no discurso docente 62
4.3. O medo no discurso do aluno 68
a) Redações do Ensino Médio 68
b) Letra de rap 74
c) Os fanzines 76
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VII
d) Respostas de alunos às questões resultantes da discussão sobre o
filme Meu mestre, minha vida 81
e) Análise retórico-argumentativa de duas amostras selecionadas entre
as 29 respostas dos alunos sobre as questões do filme 84
f) Respostas dos funcionários às questões sobre o filme Meu mestre, mi-
nha vida 88
Considerações finais 93Bibliografia 100Anexos 104
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1
Introdução
Nossa experiência de quase vinte anos no magistério público paulista,
em escolas de periferia, permite afirmar que não é possível falar do medo
como categoria passional nos gêneros escolares ("Normas de convivência",
texto do Caderno de Ocorrências, textos de opinião, textos retirados de
fanzines, questionários, letra de rap produzidos por estudantes e
questionários, depoimentos produzidos por professores e funcionários) sem
abordar temáticas como violência e insegurança, geradas no âmbito das
relações escolares, ou advindas do contexto externo. Além disso, hoje,
nosso imaginário do medo está constantemente alimentado pela onda de
insegurança e desequilíbrio que atinge a maioria das relações entre as
pessoas aqui ou em qualquer outro lugar.
Um mundo violento
Além do que se ouve e vê quase todos os dias, nos meios de
comunicação de massa, em matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo,
a respeito de pesquisa realizada pela Unesco e pelo Ministério da Educação,
a socióloga Miriam Abramovay afirma: "Essa violência no cotidiano da
escola — que acontece por meio de agressões, xingamentos e das próprias
relações sociais — tem graves conseqüências. Como o aluno vai aprender
num clima escolar como esse, em que existe uma banalização completa da
incivilidade?" (Gois & Takahashi, 2006:C1).
É pensando nessa realidade que pretendemos, nesta dissertação,
tratar do medo e da insegurança gerados em professores, alunos e outros
agentes pela violência na escola — entendida como agressão verbal e física
a qualquer pessoa e até mesmo ao patrimônio (pichação, quebrar cadeiras,
carteiras, destruir ventiladores, quebrar portas janelas, jogar bombas no
pátio, no banheiro, etc.).
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Abramovay & Rua (2004) enfatizam que vários ramos das ciências
humanas como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia chamam a
atenção para a violência escolar que envolve a agressividade entre alunos, a
depredação do patrimônio e, em menor proporção, a agressividade dos
alunos para com o professor. Para as autoras, o foco dos estudos sobre
esse tema já não diz respeito somente à maneira como a escola trata o
aluno, mas também à maneira como o aluno trata a escola.
Pesquisa realizada por Guimarães (2005) em escolas públicas na cidade
de Campinas (SP) revela que a violência ocorre tanto em escolas mais
permissivas, quanto naquelas em que as normas são mais rígidas.
Presumimos, então, que não é a rigidez de normas ou a permissividade que
causam violência na escola. Nesse aspecto, acreditamos que a violência em
âmbito escolar ou não, ocorre quando um indivíduo não é considerado,
respeitado e valorizado. Entretanto, o que podemos afirmar, considerando a
opinião de Abramovay & Rua (2004), é que aumentou o índice de
criminalidade, o sentimento de medo e de insegurança nas escolas brasileiras,
sobretudo naquelas situadas em zonas de extrema pobreza em que a miséria é
constante em todos os sentidos. Em tal contexto, a manifestação de atos
agressivos ou verbais na escola pode gerar insegurança e medo.
O depoimento de uma professora do município de Franco da Rocha,
na Grande São Paulo, nos parece bastante significativo:
— Durante a aula em que ministrava, em outra sala houve uma
briga. Para evitar maiores transtornos e amenizar o ambiente, pedi a
todos que, por favor, não se retirassem da sala, pois uma grande
maioria assistia a tal briga. Alertei-os de que se insistissem não
poderiam retornar à aula e comunicaria o fato a seus respectivos
responsáveis. No entanto, três alunos da oitava série do Ensino
Fundamental saíram sem autorização para ver a mesma briga. Pedi a
uma aluna que chamasse alguém da direção para registrar a
ocorrência. Tive como apoio pedagógico a seguinte frase da senhora
Jandira, vice-diretora da Unidade Escolar: "Mande-a se virar ou vir
resolver meus problemas." Ao receber o recado, nem acreditei.
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3
Quando os alunos retornaram, avisei que, conforme alertados, não
poderiam entrar, pois uma ordem fora dada e eles a desrespeitaram.
Queriam pegar os cadernos que estavam na sala. Respondi que os
pegariam após o término da aula. Um deles insistiu violentamente em
retirar o caderno, usando palavrões e forçando a porta e gritando
comigo: "Eu vou pegar esse caralho, sim, porra!" Empurrou
brutalmente a porta e meu braço esquerdo também. Acreditei que
fosse apanhar mais do aluno, mas sala interveio e o retirou [...].
Atitude nenhuma foi tomada em relação ao aluno e retornei para a
sala de aula, com o agressor e seus amigos rindo de mim e gritando:
"E aí? Vai bater mais na professora?" Como me senti humilhada, triste
e indignada, questionei-me se merecia aquilo tudo, pois sempre me
dediquei e realizei o melhor trabalho possível. Entrei na sala e
continuei o meu trabalho, não tocando mais no assunto. Continuei
firme em minha decisão de não entregar o caderno. Nesse momento,
meu braço encontrava-se muito inchado e dolorido, mas agüentei
como pude até o fim do período.
Nossa intenção, ao transcrever tal depoimento, não é apontar vítimas
ou culpados, mas contextualizar as condições da realidade em que atuam
educadores e educandos. Observamos, neste caso, que a agressão verbal e
física, além de permear as relações escolares, deixam professores e outros
agentes da instituição perplexos, fragilizados e sem iniciativa.
Em Candau (org., 2000) salienta-se que uma educação voltada para os
direitos humanos deveria, além de trabalhar permanentemente o ver, a
sensibilização e a conscientização sobre a realidade, articular o local, o contexto
latino-americano e a realidade mundial, sem deixar de integrar a dimensão
afetiva (prazer, alegria, emoção). Na opinião da autora, junto ao ver estaria o
saber socialmente construído sobre os direitos humanos, isto é, saberes que
emergem das práticas cotidianas, além dos saberes sociais de referência.
A escola que sonhamos ainda está por ser criada, mas não podemos
fazer de conta que está tudo bem no espaço de sala de aula e na escola em
geral. É extremamente angustiante para um profissional da educação básica da
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rede pública admitir a descrença do aluno e da sociedade em seu papel como
professor e naquilo que essa instituição pode fazer por ele e pela sociedade.
A imagem, entre nós, já quase idílica, da escola, como locus de fomentação do
pensamento humano — por meio da recriação do legado cultural — parece ter
sido substituída, grande parte das vezes, pela visão difusa de um campo de
pequenas batalhas civis; pequenas mas visíveis o suficiente para causar uma
espécie de mal-estar coletivo nos educadores brasileiros (Aquino, 1998:7).
Como se pode notar, a crise da educação — e aqui nos referimos
especificamente aos atos violentos que causam insegurança e medo na
escola — parece não estar desvinculada de outros constituintes sociais, da
crise de valores. Perguntamos, então: em que lugar escondeu-se a
responsabilidade de pais, professores e da sociedade em geral para com a
educação de nossas crianças? Seria possível pensar na autoridade de pais e
professores em situações nas quais, não raras vezes, ouve-se em reuniões
de pais na escola: "Professora, eu não sei mais o que fazer com meu filho, ele
não me escuta em nada, se eu falar muito apanho" (depoimento de mãe de
aluno da E.E. "Azevedo Soares", em 2005). Todos concordamos que escola e
família não sejam as únicas microssociedades responsáveis pela educação
de nossas crianças; no entanto, cabe-lhes quase toda essa responsabilidade.
Daí a importância de escola e família estarem juntas.
Morin, em Os sete saberes necessários à educação do futuro, convida
a refletir sobre a questão da afetividade, sua relação com a aprendizagem e
a manifestação de atitudes agressivas. Opinião relevante, pois ampara e
enriquece a discussão sobre a idéia de que a afetividade é componente
basilar para a construção de relações efetivamente menos agressivas.
O sentimento, a raiva, o amor e a amizade podem-nos cegar. Mas é preciso
dizer que já no mundo mamífero e, sobretudo, no mundo humano, o
desenvolvimento da inteligência é indispensável do mundo da afetividade, isto
é, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa
filosófica ou científica. A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode
também fortalecê-lo. Há estreita relação entre inteligência e afetividade: a
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faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de
emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode
estar na raiz de comportamentos irracionais (Morin, 2004:20).
Um mundo de medo
Corroborando o que vimos discutindo até aqui, Teixeira & Porto
(1998) apontam como fatores que contribuem para aumentar os níveis de
violência na escola — que, segundo as autoras, geram insegurança e medo
— as condições socioeconômicas, os níveis absurdos de miséria e pobreza,
a falta de áreas de lazer e esporte na maior parte das cidades em que vivem
crianças e adolescentes pobres, a disseminação do uso de drogas entre os
jovens e a psicologização da educação, que gerou permissividade. O
sentimento de insegurança na escola estaria diretamente ligado ao aumento
dos índices de violência externos, o que contribuiria para o fortalecimento do
nosso imaginário do medo dentro e fora da instituição escolar. Podemos,
então, traduzir como o medo se insere na escola da seguinte forma:
Violência do contexto externo↓
Escola↓
Insegurança↓
Medo
Abramovay & Rua, em pesquisa escolar realizada em 2004,
constataram, de acordo com a opinião de alunos e do corpo técnico-
pedagógico, que a escola não é mais um ambiente seguro e apontaram
como o maior problema no ambiente escolar a presença de gangues e o
tráfico de drogas, que geram medo e insegurança opinião compartilhada por
outras pesquisadoras:
A intervenção por parte do narcotráfico nessas escolas se faz [...] de forma
sutil, com pouca visibilidade, através de diferentes mediadores,
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representativos de posições diversas em relação às quadrilhas, tendo como
propósito ampliar a área física e os grupos sociais sob seu controle. Esta
operação resulta em sistemas de proteção/subordinação das instituições, a
exemplo do que obtém por parte dos moradores das áreas ocupadas
(Candau, Nascimento & Lucinda, 1999:7).
Teixeira & Porto (1998) asseguram que violência, medo e insegurança
adquiriram, nas sociedades modernas, dimensões que parecem
incontroláveis; por isso, deveriam ocupar cada vez mais espaço nas
discussões em diversos setores sociais, inclusive na escola e na família,
microssociedades em que as relações são mais intensas e o espaço para a
aprendizagem é mais apropriado. Amparadas nas idéias de Balandier, as
autoras apontam ainda como causa para o desenvolvimento do imaginário e
concretização do medo o fato de a violência ser
como uma resposta a uma sociedade geradora de rejeições, exclusões,
expressão de xenofobia e de recusa do outro — o que se explicaria por
infinita crença na razão que elimina as formas simbólicas de tratar o medo e
também pelo individualismo característico do liberalismo moderno (Teixeira
& Porto, 1998:52).
Contextualização da escola
A escola onde coletamos nosso material de pesquisa está localizada
numa via sem acostamento, com tráfego intenso de veículos. O único
dispositivo de segurança viária no local é uma faixa de pedestres, nem
sempre respeitada pelos motoristas; não raras vezes, acontecem acidentes
que envolvem estudantes da escola. Os professores já encaminharam à
Prefeitura da cidade um projeto e solicitaram a instalação de acostamento e
de ciclovia, mas a situação continua igual. Além disso, ao lado da escola há
um córrego que exala intenso mau cheiro; na época do verão, as salas de
aula ficam infestadas de pernilongos. Profissionais da saúde pública já
visitaram o local; no entanto, nenhuma providência foi tomada. No fundo da
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escola, há um presídio que funciona em regime semi-aberto; não muito
longe, existe uma unidade da Febem.
Alguns elementos opressivos presentes no discurso autoritário, das
instituições são conhecidos, mas cremos valer a pena pesquisar, em especial,
como os mecanismos autoritários refletem-se discursivamente no
comportamento de alunos, professores e funcionários da escola. Nosso
objetivo, dentro dos limites desta pesquisa, é verificar, por meio da análise
retórica do discurso, como o medo, na situação de categoria passional, se
traduz lingüisticamente na escola e como, transformado em discurso, se reflete
nos textos produzidos na e pela escola. Interessa-nos o discurso traduzido em
atos retóricos sobre como o "falar" da escola se inscreve nessa instância
passional e, por conseqüência, como se reflete na comunidade escolar.
Procedimentos metodológicos
Para estudar a paixão do medo nos gêneros escolares, por meio da
verificação da língua em uso, pretendemos obter alguma forma possível de
configuração do fenômeno, objeto dessa dissertação, considerando:
a) o campo semântico do medo na escola;
b) os artifícios retóricos que infundem o medo na escola;
c) os artifícios retóricos para defender-se do medo na escola.
Para atingir nosso objetivo, constituímos um corpus com variados
gêneros1 — normas de convivência, texto denominado registro de ocorrência
de aluno, textos de opinião, poemas e uma letra de rap,2 depoimentos,
1 "Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser [...] São
ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído" (Bazerman,
2006:23).2 O termo "rap" significa ritmo e poesia. É um gênero musical que surgiu na década de 70,
nos bairros pobres de Nova York. No Brasil, aparece nos anos 80, na cidade de São Paulo.
Apresenta uma batida rápida e acelerada. As letras, em geral longas, incorporam as gírias
das regiões de origem. É mais falado que cantado e aborda, quase sempre, a vida dos
habitantes de bairros pobres das grandes cidades.
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questionários) —, coletados em 2005, na Escola Estadual "Azevedo
Soares", localizada no município de Franco da Rocha. Quanto à
representatividade desta escola no conjunto da rede estadual paulista, é
evidente que, dentro dos limites de nosso trabalho, a preocupação central
não é chegar a conclusões de natureza genérica, mas refletir, a partir do
ponto de vista dos estudos retóricos, sobre a categoria passional do medo
no ambiente escolar.
As normas de convivência e o texto sobre ocorrência que envolve
alunos foram produzidos pela escola. Os outros foram produzidos por
alunos, professores e funcionários — por isso, os denominamos de textos
produzidos na escola.
Os poemas integram a produção de dois fanzines,3 elaborados por
estudantes da 2ª segunda série, turma B, do período matutino. Foi a primeira
proposta de trabalho sobre o medo que fizemos aos alunos. Isso se deveu a
duas razões: parte desses jovens já tivera aula comigo na 8ª série, em 2004,
ano em que produzimos alguns fanzines com temas bem variados; e essa
atividade é bem aceita pelos alunos, porque permite explorar a criatividade,
por meio da linguagem escrita e ilustrada.
Apresentamos aos estudantes a história desse tipo de publicação e
levamos para a sala alguns exemplares feitos pelos alunos da E. E. "Padre
Luiz Sérgio", do município de Francisco Morato, também na Grande São
Paulo. Como era uma turma numerosa, os alunos tomaram a iniciativa de se
dividir em dois grandes grupos e propuseram que cada um dos grupos
trabalhasse, respectivamente, com os medos denominados por eles de
"medos de ontem" e de "medos de hoje". O grupo dos "medos de ontem"
elegeu como título para seu fanzine "Medos.Com"; o grupo dos "medos de
hoje" decidiu-se pelo título "Fobia".
3 Fanzine: neologismo formado pela junção de "fã" (entusiasta, apaixonado) com "zine", de
magazine (publicação ilustrada). Os primeiros fanzines surgiram nos Estados Unidos, na
década de 30. No Brasil, o primeiro foi editado por Edson Rontani, nos anos 60, em
Sorocaba (SP). É um tipo de publicação independente, sem padrão formal quanto a número
de páginas, formato, tema, diagramação, periodicidade e ilustração.
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A decisão de pedir aos alunos que produzissem a letra de rap para
integrar nosso trabalho justifica-se por ser esse o estilo de música que mais
bem retrata a realidade vivida pela maioria dos estudantes de nossa escola,
além de ser o estilo de música que eles mais ouvem. A letra de rap foi
escrita por um aluno, mas aceita pela turma e tem como título "Receio". Os
alunos levaram para a sala de aula alguns cds de rap. Ouvimos as músicas
e, em seguida, organizamos um debate. Todos tiveram oportunidade de
expor suas opiniões sobre essa modalidade musical e de apresentar
sugestões de estilos de música para se ouvir em outras aulas.
Assim como consideramos o rap um estilo de música que retrata bem
a realidade da população pobre de periferia e, por isso, permite refletir sobre
as circunstâncias em que vivemos, escolhemos também como recurso para
enriquecer nossas reflexões sobre a questão do medo na escola e como
essa paixão se manifesta nas relações humanas o filme Meu mestre, minha
vida, do diretor John Avilsen. No filme, narra-se a história do retorno do
professor Joe Clark (interpretado por Morgan Freeman) à escola em que já
havia lecionado; ele volta como diretor, com a responsabilidade de acabar
com a indisciplina dos estudantes da escola e, desse modo, livrar a
comunidade escolar das drogas e gangues que a invadiram. A escolha
decorreu do fato de se perceber no desempenho do professor Joe Clark a
configuração de um ethos ditatorial, antecipadamente constituído, posto que
já fora professor da escola e, agora, volta na função de diretor, com prazo de
um ano para resgatar a disciplina e melhorar o nível de rendimento dos
alunos. Imbuído dessa responsabilidade, ele está autorizado a desempenhar
sua função conforme lhe convém: demite professores, grita com alunos,
professores e funcionários, culpa os docentes pelo fracasso da
aprendizagem dos estudantes e manifesta, durante o desenrolar da história,
um comportamento frio — que, por um lado, pode-se justificar pelo choque
entre a realidade anterior em que ele vivia e a atual, mas, por outro, lhe
confere um ethos de ditador a provocar, quase todo o tempo, na comunidade
escolar e em outras pessoas, paixões como raiva, ódio, medo, indignação,
inveja e até a calma, importante paixão humana na concepção aristotélica.
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Optamos por esse filme, objetivando também — além de desenvolver
nos alunos a habilidade de comparação entre realidades distintas —
provocar neles a concepção de argumento, bem como ressaltar o ethos do
orador frente a uma situação retórica efetiva, a fim de que eles
fundamentassem com mais segurança suas opiniões acerca do que lhes
pode ser proposto e, porque
o objetivo de toda argumentação [...] é provocar ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: Uma
argumentação eficaz é a que consegue aumentar a intensidade dessa
adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida [...]
ou,pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará
no momento oportuno (Perelman & Olbrechst-Tyteca,1996:50).
Julgamos pertinente, como exercício pedagógico, em particular para os
alunos do Ensino Médio, já maduros para a constituição de argumentos sólidos
e verossímeis, mostrar a importância dos recursos argumentativos, posto que o
equilíbrio entre os agentes numa situação de comunicação depende do bom
uso e da variedade dos recursos argumentativos usados em seu discurso. Para
tanto, amparamo-nos nos estudos sobre os vários tipos de argumentos de que
falam Perelman & Olbrechst-Tyteca (1996).
Depois da projeção do filme, promovemos uma discussão e
propusemos algumas questões, tendo como objetivo ampliar a habilidade de
comparação de realidades distintas, a capacidade opinativa, favorecer a
criação de argumentos plausíveis, relevantes e contextualizados, e ressaltar
o ethos do orador frente a uma situação retórica efetiva (ver Capítulo 4).
Pensamos na atividade de produção de texto escrito com o tema
medo para os alunos da 3ª série do Ensino Médio com os objetivos de
despertar a capacidade argumentativa dos alunos, proporcionar
familiarização com o tema, pouco pensado na instituição escolar, e ressaltar,
pelo discurso, a importância argumentativa do ethos e as conseqüências dos
seus efeitos, no sentido de mobilizar as paixões (no caso, o medo) do
auditório. Antes da escrita do texto, apresentamos aos estudantes o conceito
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de medo segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa e, depois, a
concepção aristotélica de paixão, inclusive a do medo, e contamos
brevemente a história deste sentimento com base no livro História do medo
no mundo ocidental, de Jean Delumeau.
Como era fundamental para nosso trabalho conhecer a opinião dos
funcionários da escola sobre a questão, propusemos a eles que também
assistissem ao filme e nos respondessem a certas questões (ver Capítulo 4)
que tinham como finalidade saber desses agentes o conceito de medo, os
seus efeitos no ambiente de trabalho, os meios de difusão do medo na
instituição escola e as características do ethos dos oradores no papel social
de funcionário de uma instituição.
Esta dissertação está estruturada em quatro capítulos, além desta
Introdução. No primeiro capítulo, a partir do ponto de vista de estudiosos da
linguagem, procuramos mostrar a importância do logos, do ethos e do
pathos na argumentação, além do conceito de gêneros textuais. No
segundo, situamos historicamente os estudos retóricos, incluindo as paixões,
com enfoque para a categoria passional do medo. No Capítulo III, o leitor
encontrará pequena história dos medos de nossos antepassados e os
reflexos destes na atualidade. No quarto capítulo, analisamos, sob o ponto
de vista da retórica, o material que coletamos.
Nos Anexos, o leitor encontrará cópias do material que coletamos
junto a alunos, professores e funcionários da E. E. "Azevedo Soares". Este
material consiste em uma letra de rap, dois fanzines, produzidos pelos
alunos da 2ª série do Ensino Médio, turma B, período matutino, respostas
dos alunos e funcionários da escola a questões sugeridas a partir do filme
Meu mestre, minha vida, textos de opinião da 3ª série do Ensino Médio,
período noturno, e textos produzidos pela escola: "Normas de Convivência"
e registro do "Livro de Ocorrência de Alunos".
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Capítulo I
Considerações em torno das noções de ethos, logos
e pathos:
constituição argumentativa de um auditório
transformado em "retor"
Este texto tem o intuito de fornecer conceitos sobre o ethos e sua
relação com o logos e o pathos, classificados como argumentos segundo a
opinião de Aristóteles, cujas idéias ancoram os atuais conceitos de
organização argumentativa. Importa-nos, além das diversas visões dos
autores sobre os conceitos de ethos, logos, pathos e seus efeitos
argumentativos, verificar, no contexto de nossa pesquisa, como — por meio
dos depoimentos colhidos com os sujeitos de nosso trabalho — as
manifestações idiossincráticas e coletivas desses sujeitos constituem um
amálgama, traduzido em argumentos que evidenciam ethos e pathos,
traduzidos em língua e, sobretudo, traduzidos em argumentos.
Optamos por fazer um percurso dos conceitos de ethos, pathos e
logos, com base nos estudos retóricos de autores que se amparam nas
idéias da retórica clássica, tendo em vista a importância desses conceitos
para o contexto de nossa pesquisa, por duas razões fundamentais: conhecer
como os sujeitos que contribuíram conosco constroem a imagem de si nos
seus discursos e porque pretendemos verificar como esses oradores
fundamentam suas opiniões sobre a categoria passional do medo.
Se entendermos que "a argumentação faz parte de todos os atos
comunicativos da vida diária de qualquer cidadão [...] e que todo ato
comunicativo pressupõe, entre outros elementos, um emissor e receptor"
(Mosca, 2004:132), temos já aí delineada a ação comunicativa como ato de
interação que exige, de quem pretende elaborar um discurso, reflexões em
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torno de questões que se antecipam ao "dizer" — o quê? Para quem?
Como? Quando?
Pensamos que a resposta a essas questões requer, entre outras
condições, entender a situação de comunicação como atividade dinâmica, que
implica um acordo entre orador e auditório. Este acordo, segundo Mosca
(2004), efetiva-se pela forma como o orador se organiza nas estratégias
argumentativas e organiza essas estratégias, sempre tendo em vista que
argumentar envolve discussão e controvérsia e que o que se busca com a
argumentação é o assentimento do ouvinte às teses apresentadas pelo orador.
Com esses pressupostos, afirmamos: para transformar em retor o
auditório, os sujeitos de nossa pesquisa, foi necessário ouvi-los com o
distanciamento próprio do analista, que se transformou, por sua vez, em
auditório e que não pretende, efetivamente, o assentimento, mas a
discussão e a controvérsia — o que, em outro plano, nos permitirá, no
momento em que reassumirmos nossa fala como retor, discutir os
depoimentos e verificar a direção argumentativa tomada por nossos
interlocutores. Acrescentamos ainda que, nesse jogo dialógico, importa,
sempre e mais, a voz do auditório como retor, como produtor de
argumentos. Dessa forma, as conclusões a que chegarmos serão o
exercício da soma de opiniões sobre um problema real que se verifica na
troca constante de função entre retor e auditório no cotidiano escolar.
Nessas circunstâncias, no primeiro momento, ao transformar nosso
auditório em retor, com um ethos constituído, portador de opiniões e de
certezas, de certa forma não o influenciamos, pois nos importa ficar
desvinculados desse orador, visto que o que se busca é constituir um ethos
coletivo dos atores escolares a partir dos ethos individuais.
Na intenção de melhor esclarecer como essa troca de funções no
cotidiano escolar é intermediada pelo jogo entre razão e emoção, lembramos
que "os meios de competência da razão e da emoção ficam ambos
evidentes no processo de argumentação" (Mosca, 2004:130). Isso nos
permite inferir que logos, ethos e pathos não são elementos desvinculados
da argumentatividade, como bem evidencia a retórica aristotélica.
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Aristóteles, no texto "Do caráter do orador e das paixões do ouvinte",
ressalta que a retórica tem como fim um julgamento e que é necessário ao
orador, além de atentar para que o discurso seja suficientemente
convincente, mostrar-se sob certa aparência e fazer supor que se acha em
determinadas disposições a respeito dos ouvintes. O filósofo enfatiza as
características que tornam um orador digno de fé e confiança: a prudência, a
virtude e a benevolência.
Meyer (1993:28-33) reitera essas características, ao ressaltar que "o
orador é simbolizado pelo ethos e sua credibilidade assenta no seu caráter,
na sua virtude, e na confiança que o auditório lhe outorga", e põe em relevo
que as noções de logos, ethos e pathos são interligadas e intrínsecas ao
processo argumentativo: "Pathos, logos e ethos coincidem [...] e nem sempre
conseguimos deslindá-los com precisão", pois justificar implica argumentos
(logos), mas também levar o outro em conta (pathos), "para lhe agradarmos,
para nos fazermos aceitar ou porque o queremos manipular" (ethos).
Dessa forma, é possível se obter determinado tipo de retórica,
conforme se realça no discurso um desses aspectos:
Se colocarmos a tônica no pathos, obteremos a retórica-manipulação. Se
colocarmos no logos, obteremos uma visão lógica e argumentativa, até
mesmo lingüística, independente dos efeitos de adesão do auditório e dos
valores veiculados pelo orador. Finalmente, se a retórica é analisada a partir
do ethos, teremos uma retórica em que se torna determinante o papel dos
sujeitos e da sua moral, o mesmo acontecendo de maneira geral às suas
intenções, quer sejam manipuladoras ou não (Meyer, 1993:33).
Como está entre os objetivos deste trabalho verificar como se
constitui o ethos dos sujeitos, autores do nosso material de análise, o que
nos interessa em particular nesses três tipos de retórica enumerados por
Meyer é o enfoque na retórica do ethos. Entretanto, como bem demonstram
as opiniões apresentadas até aqui, não só o ethos, mas também o logos e o
pathos integram o discurso.
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Egss (2005) aponta o ethos como a mais importante prova
engendrada pelo discurso e argumenta que Aristóteles distanciava-se dos
retóricos de seu tempo, porque estes não entendiam o ethos como
contribuinte da persuasão. Comenta ainda que o ethos, na retórica
aristotélica, apresenta dois campos semânticos opostos, porém
complementares e necessários a toda atividade argumentativa. O primeiro
estaria ligado à moral e englobaria atitudes como honestidade, benevolência
e equidade. O segundo, com sentido neutro, abrangeria hábitos, costumes,
modos ou caráter.
Além de fundamentar suas idéias sobre o ethos na teoria aristotélica,
Egss (2005) também busca respaldo na teoria de Perelman, principalmente nas
referências sobre a adaptação do orador ao auditório, sobre as pessoas e seus
atos e sobre o discurso como ato do orador. Para Egss (2005), está implícita
nas idéias de Perelman a noção de que o ethos é inerente à realidade de todo
discurso humano, revelando-se nas escolhas que o orador faz no sistema da
língua, na maneira como organiza essas escolhas no discurso e no modo como
se expressa por meio dessas escolhas. Eis por que, tanto para Egss, como
para Perelman, o ethos é parte constituinte do discurso.
Para Egss (2005), Aristóteles teria se preocupado com a arte de dizer
e com a estruturação desse dizer, ou seja, com a forma como se organiza o
discurso. Já a nossa preocupação, neste trabalho, é com a arte de ouvir o
outro, ou seja, como esse outro diz o que diz e porque o diz.
Amossy (org., 2005), cuja discussão em torno do assunto em pauta é
sobremodo interessante para nós, ressalta que a noção de ethos é estudada
pelas várias correntes da análise do discurso e da pragmática, as quais
também fundamentam suas idéias nas bases aristotélicas para compreender
e explicar a eficácia do discurso. Além disso, para a autora, foi Oswald
Ducrot quem primeiro introduziu a noção de ethos nas ciências da
linguagem, noção que este autor fundamentaria na origem da enunciação
(ou, melhor, para Ducrot, o ethos se revestiria, pela enunciação, de certos
caracteres que, em contrapartida, poderiam tornar a enunciação aceitável ou
não). Assim, é se perguntando se o ethos seria pura construção da
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linguagem ou uma posição institucional que Amossy (2005) discute suas
idéias em torno dessa questão. Para a autora, os questionamentos seriam
respondidos pela intersecção entre a sociologia e a pragmática. Sobre como
se constitui essa noção para pragmáticos e sociólogos, ela assim
argumenta:
[...] o ethos para os pragmáticos, na linha de Aristóteles, constrói-se na
interação verbal e é puramente interno ao discurso, enquanto o dos
sociólogos se inscreve em uma troca simbólica regrada por mecanismos
sociais e por posições institucionais exteriores (Amossy, 1995:122).
Ressaltamos ainda que, se entendermos que o discurso se
materializa no texto, que todo discurso pertence a uma cadeia composta por
discursos vários e que, portanto, nenhum discurso é novo (no sentido de que
sua constituição primeira advém de uma série de outros), podemos afirmar
que a polifonia estará presente em nossa análise na intersecção entre o
discurso dominante — que leva em conta e assimila o discurso autoritário
das instituições — e um outro, aparentemente individual, mas, em menor ou
maior proporção, contaminado pelo discurso dominante que é o da
instituição escolar. Esperamos, então, encontrar no percurso da análise de
nosso material um discurso constituinte, que, contrariando os ditames
institucionais, aponte caminhos para a conscientização do medo gerado pela
própria instituição escolar ou por características ontogenéticas do homem
diante do estabelecido institucionalmente.
Eis como Perelman vê a importância do ethos na argumentação:
De posse de uma linguagem compreendida por seu auditório, um orador só
poderá desenvolver sua argumentação se se ativer às teses admitidas por
seus ouvintes, caso contrário corre o risco de cometer petição de princípios.
Resulta desse fato que toda argumentação depende, tanto para suas
premissas quanto para seu desenvolvimento principalmente, do que é
aceito, do que é reconhecido como verdadeiro, como normal e verossímil,
como válido: desse modo, ela se ancora no social, cuja caracterização
dependerá da natureza do auditório (Perelman, apud Amossy, 2005:123).
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Observamos, nestas palavras de Perelman, princípios fundamentais
da natureza da comunicação, entendida aqui como ação interativa e,
portanto, social, que exige dos parceiros envolvidos certa cumplicidade e,
sobretudo, responsabilidade, principalmente por parte de quem está de
posse da palavra, no sentido de atentar, não para a verdade absoluta e
indiscutível, mas para o que é verossímil, o que pode ser aceito por seu
interlocutor. Assim, se o orador não consegue o afiançamento social que lhe
garante credibilidade, o discurso pode cair no descrédito e não atingir o
objetivo esperado.
Acreditamos ainda que estejam contidas nesses argumentos de
Perelman algumas das razões que levam Amossy a dizer que "o orador
constrói sua imagem em função da imagem que ele faz do seu auditório, isto
é, das representações do orador confiável e competente que ele crê ser as
do público" (Amossy, 2005:124), e a definição o ethos como o "conjunto de
características que se relacionam á pessoa do orador e à situação na qual
esses traços se manifestam que permitem construir sua imagem" (Amossy,
2005:127).
Em Maingueneau (2005b) recorre-se não só aos postulados da
retórica clássica, mas também à teoria da enunciação. O autor desenvolve
uma noção do ethos em textos de caráter não predominantemente
argumentativo diferente da noção apresentada pela análise do discurso.
Além de ter função persuasiva na argumentação, essa abordagem sobre o
ethos, permitiria refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a
certa posição discursiva. O ethos constituiria, no discurso, elemento mais
mostrado do que dito. Não se pode ignorar que o público constrói uma
representação do ethos do enunciador antes mesmo que ele enuncie,
embora tal ethos esteja ligado ao ato de enunciação: é a isso que
Maingueneau (2005b:70-71) chama de ethos pré-discursivo.
A noção de ethos pré-discursivo parece relevante, pois o eixo de
nosso trabalho é a retórica do medo nas relações escolares. Presumimos
que esse ethos revela-se através do discurso dos sujeitos de nossa
pesquisa pela presença do medo, entendido aqui como categoria passional
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derivada de uma sanção negativa que, no âmbito escolar, seria imposta pelo
discurso autorizado das instituições.
Nessa perspectiva, o pathos que empiricamente pressentimos é o
medo gerado pelo discurso autoritário sobre os indivíduos no ambiente
escolar. Salientamos, porém, que essas ponderações poderão ou não se
confirmar nos depoimentos colhidos por nós, mas sempre serão objetos de
análise para refutar ou provar a equidade de nossa premissa.
Interessa-nos ainda, nas colocações de Maingueneau (2005b), a idéia
de que todo discurso possui uma "vocalidade" específica que permite
associar a noção do ethos a uma fonte enunciativa por meio de um tom que
indica quem o disse, pois, segundo o autor, da leitura emergiria uma
instância subjetiva a exercer o papel de fiador, figura construída pelo leitor a
partir das marcas textuais deixadas no discurso pelo orador. Ademais, "a
qualidade do ethos remete, com efeito, à figura desse 'fiador', que, mediante
sua fala, se dá uma identidade compatível com o mundo que supõe que ele
faz surgir em seu enunciado" (Maingueneau, 2005b:73).
Em Análise de textos de comunicação e O contexto da obra literária,
Maingueneau retoma e complementa suas idéias sobre o ethos. No primeiro
trabalho, para discutir o ethos, retoma os pressupostos da retórica clássica.
A retórica antiga compreendia por "ethé" as propriedades que os oradores
se conferem implicitamente através de sua maneira de dizer não o que
dizem explicitamente sobre si próprios, mas a personalidade que mostram
através de sua maneira de se exprimir. Aristóteles esboçou uma tipologia
que distingue a "phonesis" (parecer ponderado), a "eunoia" (dar uma
imagem agradável de si) e o "areté" (apresentar-se como homem simples e
sincero) (Maingueneau, 2005a:173).
A eficácia do ethos, para o autor, está vinculada à enunciação, pois é
mediante o que o orador pretende mostrar de si, na sua maneira de se
exprimir, que o ethos se molda. Dessa forma, mesmo vinculado à
enunciação, o ethos não se confunde com a pessoa que produz o
enunciado; constitui-se, antes, como representação do orador, ou seja, o
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ethos é "o sujeito da enunciação enquanto está enunciando". A instância
responsável pelo tom, na enunciação, não coincide com o autor efetivo da
obra, pois seria uma representação do enunciador, mas com um caráter e
uma corporalidade. Ao caráter corresponderiam os traços psicológicos dessa
representação; à corporalidade, a movimentação do corpo no espaço social.
O segundo trabalho (cf. Maingueneau, 1995) apresenta o ethos como
a personalidade que o enunciador revela mediante a enunciação e o
enunciado como o produto de uma enunciação que implica uma cena. E
reitera que, toda fala procede de um enunciador encarnado e, mesmo
quando um texto é escrito, é sustentado por uma voz, a de um sujeito para
além do texto (cf. Maingueneau, 1995:96).
Em se aceitando na construção discursiva a indissociação de ethos,
logos e pathos, parece não ser prudente discutir a noção de ethos, seja em
textos de predominância argumentativa, seja em outros de qualquer
natureza, em que se pretende verificar a construção dessa imagem
discursiva "não-tão-aparente", desvinculando dessa discussão as noções do
logos e do pathos. De um lado, se o objetivo do orador é apenas movimentar
as paixões (pathos) do ouvinte, para atingir esse fim ele lançará mão de
argumentos, utilizando-se da linguagem, o que já o coloca no terreno do
logos. De outro, o uso da linguagem na argumentação requer de quem a
utiliza escolhas dentro do sistema da língua, e é a partir dessas escolhas e
da forma como as utiliza e as organiza no discurso que o orador constrói sua
imagem, seu caráter — imprimindo, portanto, ao discurso, identidade, estilo,
a fim de conseguir a confiança daqueles a quem pretende influenciar: eis a
presença do ethos.
Pensemos em quão relevantes são — para a prática pedagógica,
sobretudo para o professor — o desdobramento, por Aristóteles, do ethos
em "phonesis", "eunoia" e "areté": a função de educador exige mesmo um
parecer ponderado, uma imagem agradável de si e um apresentar-se como
homem simples e sincero, posto que, negando isto, se incorre no risco de,
pela forma como se apresenta (no dizer, na forma de dizer, incluindo a
postura física), conduzir o outro à construção de ilusões que poderiam levá-
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lo a uma fuga na compreensão e na interpretação de sua própria realidade e
da realidade que o cerca.
Cabe observar que — como auditório dos retores, dos sujeitos que
produziram nosso material de análise — ouvimos "representações". No
entanto, para a tarefa de pesquisa, essas representações traduzem a
verdade que se pode aferir, numa circunstância específica e num ambiente
específico.
A partir das idéias até aqui abordadas, em torno de como se articulam
na argumentação ethos, pathos e logos, pretendemos verificar, nos vários
discursos dos sujeitos que participaram de nossa pesquisa, como se
traduzem em argumentos esses conceitos, a fim de que possamos, a partir
dos ethos individuais desses sujeitos, (re)construir ethos coletivo daqueles
que atuam na escola. Uma (re) construção, portanto, intermediada pelo
logos e pelo pathos. No capítulo a seguir, vamos examinar a retórica numa
perspectiva histórica e as paixões, como as via Aristóteles, com destaque
para medo.
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Capítulo ll
História/retórica e paixões
2.1. Retórica: ontem e hoje
Como o eixo que norteia este trabalho é a retórica do medo nos
gêneros escolares, parece relevante, de início, situar historicamente a
retórica e as paixões, para, em seguida, tratar dos estudos dos gêneros,
inclusive na perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de
Língua Portuguesa. Como referência teórica, buscaremos as idéias de
Platão, Aristóteles, Mosca, Meyer, Perelman & Olbrechst-Tyteca (sobre
retórica e argumentação), Bakhtin, Bazerman, Marcuschi, Meurer e Motta-
Roth (sobre os gêneros textuais).
Na antiga Grécia, havia duas escolas que preparavam o cidadão para
a vida pública da cidade. O que se ensinava nessas escolas oscilava entre a
geometria, a filosofia e a retórica. Na escola isocrática, predominava o
ensino da filosofia e da retórica. O falar bem pertencia ao campo retórico e o
pensar, ao da filosofia. Eram disciplinas equivalentes, que formavam um
único corpo de estudos. Na escola platônica, procurava-se mostrar a
diferença entre a filosofia e a retórica. Há em Platão conceitos e conteúdos
diferenciados para essas disciplinas: a retórica ocupava-se da arte do bem
falar; a filosofia abordava, especificamente, questões relativas à alma. Na
visão platônica, a filosofia era superior à retórica, e, como pertencia ao plano
das idéias, não fazia parte do logos, do discurso, pois o discurso carregava
as marcas do humano e de suas contingências, constituindo-se em campo
fértil para engendrar e arquitetar as proposições e os julgamentos
demonstrados por meio do caráter convincente que poderiam adquirir, por
habilidade do orador, como verdadeiros.
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Assim, há na filosofia platônica uma dicotomia entre os planos físico e
espiritual. Platão afirmava que o homem comum vivia de suas paixões e o
filósofo, de suas idéias. Neste contexto, deve-se entender "idéia" como o
espaço onde são criados os conceitos. Para melhor explicar essa distinção
entre mundo espiritual e mundo físico, o pensador comparou a alma a uma
carruagem movida por cavalos e dirigida por um cocheiro. Nessa imagem, os
cavalos simbolizariam o desejo sensível e força da resistência desse desejo
— o mundo físico, portanto, com seus apetites e paixões. O cocheiro, por sua
vez, representaria a razão, elemento harmonizador entre o apetite da carne e
a elevação do espírito. Nessa visão alegórica, a razão buscaria o Bem, a
Beleza espiritual e de sua prática, enquanto a ignorância, ou a ausência da
razão, seria mero produto da paixão cega e automática. O filósofo
considerava como sábio, portanto, o homem que buscasse o Bem e, com
isso, conseguisse superar suas paixões.
Em O banquete, Platão idealizou uma complexa situação em que
várias personagens, inclusive Sócrates, reúnem-se para discorrer sobre o
Amor, uma das paixões de que falará mais tarde Aristóteles. Platão aborda o
tema por intermédio de seus personagens e de um verdadeiro jogo dialético
em que cada orador advoga seu ponto de vista, sem excluir nenhuma das
teses apresentadas. Conteúdo e forma parecem igualmente importantes,
haja vista a quantidade de referências mitológicas, proverbiais, as imagens,
as analogias, tudo visando, entre outras questões, à qualidade da
argumentação.
Fonseca (2003) observa, na introdução de Retórica das paixões, que
Aristóteles elaborou a retórica com o intuito de mostrar o caráter deficiente e
pouco filosófico do tratamento dado a esse campo de conhecimento pela
escola de Isócrates. A concepção aristotélica do saber humano diferia muito
das exigências de Platão, já que Aristóteles preferia utilizar-se do mundo da
doxa, da opinião, e não se prendia aos questionamentos filosóficos que
tentavam levar a certezas filosóficas. Comenta ainda a autora que
Aristóteles foi quem estabeleceu leis e regras para a retórica, que, para ele,
devia ser, sobretudo, uma rigorosa técnica de argumentar.
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Se a lógica procura alcançar a demonstração irrefutável, a retórica
utiliza silogismos que, embora convincentes, são refutáveis e a que o
pensador denomina entimemas. Ainda segundo Fonseca (2003), mesmo
quando se tratava de fins políticos, o pensador não acharia aconselhável a
utilização exclusiva de verdades universais, pois seria significativo o papel
das opiniões que, de fato, constituíam as premissas do raciocínio retórico.
Assim, para sustentar ou anular uma tese, era de responsabilidade do
orador descobrir o que havia de persuasivo em cada questão.
Para esclarecer diferenças entre Platão e Aristóteles no tratamento
dado à questão retórica, vale observar que, na concepção platônica, a
retórica seria imoral; para Aristóteles, nem moral nem imoral — consistiria,
antes, em uma forma de defender idéias mediante o uso da palavra e não da
força física. Assim, para Fonseca (2003:XIII), "seria absurdo que fosse
vergonhoso não poder defender-se com seu corpo, e que não fosse
vergonhoso não poder defender-se pela palavra, pois isso é mais próprio do
homem do que servir -se do corpo".
Mas as divergências entre os dois pensadores não dizem respeito só
ao mundo da opinião e ao caráter moral, imoral ou neutro da retórica. Ainda
de acordo com Fonseca (2003), se Platão restringiu a exploração das
paixões, Aristóteles deu total apoio a estas, exigindo, porém, orientação e
comedimento para não se chegar a exibições dramáticas.
As paixões na filosofia aristotélica devem ser entendidas como
emoções de caráter transitório e passageiro, provocadas pelo orador
naqueles o que o ouvem, com a intenção de atingir seu objetivo, ou seja, a
concordância com suas idéias. Logo, ao se referir às emoções e seu caráter
efêmero, melhor seria pensar em estar e não em ser: a primeira ação
reenvia ao princípio de transitoriedade característico do terreno dos
sentimentos; a segunda, ao da permanência — e, por isso, de modo algum
se integra ao caráter das emoções. Ademais, os meios de que se deve servir
o orador para acionar as paixões não são apenas os de ordem objetiva
lógica e intelectual, que permitem aproximação às verdades irrefutáveis; são
também os de caráter subjetivo: o ethos, o logos e o pathos.
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De acordo com Meyer (1993), se as paixões já estão engendradas na
filosofia platônica, Aristóteles é quem sistematiza os princípios da retórica e
da lógica utilizados para chegar à verdade dos raciocínios silogísticos e dos
entimemas. A diferença, porém, consiste no fato de que, para a lógica, o
objetivo é a verdade irrefutável e, para a retórica, embora silogismos e
entimemas sejam convincentes, a verdade daí proveniente pode ser
contestada, o que admitiria concordância entre teses aparentemente
contrárias entre si. Portanto, na concepção de Aristóteles, um orador poderia
sustentar ou refutar determinada tese, desde que, pelo exercício do
pensamento e da reflexão, descobrisse aquilo que cada questão encerrava
de persuasivo. Seria isto a busca da verdade pela dialética.
Aristóteles escreveu três compêndios sobre a retórica (cf. Aristóteles,
2003). No primeiro, demonstra que a retórica não se restringia apenas à arte
do bem falar, da eloqüência, concepção esta ainda comum sobre a retórica.
Veja-se, por exemplo, a definição de retórica no Dicionário Houaiss da língua
portuguesa: "retórica s. f. 1 Fil. Ret. a arte da eloqüência, a arte de bem
argumentar; arte da palavra 2 p. ext. Ret. conjunto de regras que constituem
a arte do bem dizer, da eloqüência; oratória." Mesmo considerando a
expressão "bem argumentar", não há referência ao aspecto persuasivo do
discurso, mas indicações claras sobre a arte da eloqüência e do bem dizer.
Idéia bem compatível com a do senso comum, que designa qualquer
discurso empolado e sem sentido como "só retórica", que sugere ser a
retórica um amontoado de palavras bonitas e vazias de significados.
Em lugar de limitar a retórica à mera palavra bonita e bem colocada,
Aristóteles referia-se ao grau de objetividade do discurso (logos), ou seja, à
palavra empregada com racionalidade, pois, para o filósofo, a argumentação
demonstrativa devia acontecer através de provas (pisteis), elemento
constituinte essencial do discurso e, portanto, da tarefa do orador para
conduzir racionalmente o que pretendia demonstrar. Incluía-se também
como elemento integrante das provas o provocar emoções no auditório.
Seriam estas as provas de caráter subjetivo, também utilizadas com a
intenção de convencer ou de persuadir.
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Aristóteles afirma, no segundo livro dedicado à retórica que apenas as
provas demonstrativas não seriam suficientes para se obter a confiança do
auditório. E, tendo a retórica como finalidade um julgamento, seria
necessário não só atentar para o discurso, a fim de que fosse demonstrativo
e digno de fé, mas também provocar paixões que, para o pensador, eram
todos os sentimentos que causavam mudanças nas pessoas e faziam diferir
seus julgamentos. Para o pensador, as paixões constituiriam um teclado no
qual o bom orador devia tocar para convencer. Nessas condições, para
despertar o pathos, seria preciso, antes, conhecer o ethos do orador.
Observa-se nessa concepção uma verdadeira dialética passional em que a
retórica sempre servia para ajuste das diferenças, das contestações. O bom
orador devia estar atento, se pretendia persuadir ou convencer. Assim, "para
quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer [...].
Em contrapartida, para quem se preocupa com o caráter racional da adesão,
convencer é mais que persuadir" (Perelman & Olbrechst-Tyteca, 1996:30).
Isto é, o orador deve buscar a interação com o outro, por meio da harmonia
discursiva em que ethos, pathos e logos são elementos indissociáveis para o
afiançamento social do discurso.
Meyer (2003), no prefácio de Retórica das paixões, enfatiza que a
questão passional já se fazia presente em Aristóteles e Platão, nos sofistas
e, talvez, em Sócrates. Sobre os sofistas, diz este autor: "utilizavam-se da
abertura do pensamento, com suas alternativas tornadas insolúveis, para
promover as mais presunçosas opiniões sem se constranger, quando de seu
interesse, ao defender depois a tese contrária" (Meyer, 2003:20).
O autor esclarece que Sócrates tinha a intenção de desmascarar os
sofistas, ao questioná-los quando tentavam justificar suas teses em função
de seus próprios interesses e, por isso, não lhe perdoariam ter provado ser
injustificável seu desejo de alcançar altos postos políticos.
Ao comentar as idéias de Platão, Meyer (2003) diz que o filósofo
pensava ter criado uma nova teoria do logos, um logos racional que
determinaria as condições para um novo responder possível e que resolveria
os questionamentos socráticos. Isso,ressalta o autor, talvez tenha levado
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Platão a rejeitar "a incerteza das alternativas, a insolubilidade dada à
multiplicidade das opiniões, o caos do sensível" (Meyer, 2003:20).
Se as idéias máximas do pensamento platônico, como Amor, Justiça,
Verdade e Beleza, fazem parte das essências e remetem ao mundo
inteligível ou espiritual e as paixões dependem do mundo sensível ou
material, cabe uma pergunta: a teoria das idéias teria nascido da restrição do
logos? Tudo faz crer que sim, e o próprio Platão, na opinião de Meyer
(2003), parece responder a tal questionamento, quando recorre, no Fedro, à
alegoria, ao mito, às imagens para falar do que escapa à razão, do que a
esta se opõe e que, apesar disso, deveria a esta voltar.
Não há como limitar o humano ao aspecto racional, pois nele um
princípio ativo e outro passivo estabelecem uma dinâmica de compensação,
em que paixão e ação entram em conflito, ainda que em convivência.
Entretanto, a paixão no pensamento platônico visa explicar que o homem
não se preocupa com a razão nele oculta. Ou seja, para Platão, a paixão é o
que retém o homem na ignorância e a razão, o que lhe permite o
conhecimento.
Aristóteles, ao retomar os questionamentos platônicos por meio da
dialética ou da retórica, restitui ao logos seu caráter opinativo, de
possibilidade, de provável, e é isso o que o aproxima do terreno das paixões
onde estão os conflitos e opiniões humanas.
A questão passional, no pensamento aristotélico, ao contrário do que
se lhe impunha a restrição platônica, ocupa o lugar em que os homens se
enfrentam, concordam ou discordam consigo mesmos e na interação com o
outro, movidos pelo temor, pela coragem, pela vergonha, pela inveja ou
outra paixão — mas, com certeza, fazendo uso da linguagem.
Meyer (1993) observa que o sujeito, para Aristóteles, é uno e múltiplo
ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista — uno como sujeito e múltiplo
no predicado —, sendo essa multiplicidade predicativa o que Aristóteles
chama de categorias do ser. A categoria predicativa seria o lugar em que se
encontram os adjetivos, os qualificadores, isto é, as características
subjetivas, tão variáveis e, por isso mesmo, dependentes do contexto
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histórico, social e cultural. Mesmo que cada ser apresente características
intrínsecas ao seu próprio eu, não se pode negar o aspecto de mutabilidade
variável de acordo com as circunstâncias. Se assim não fosse, perder-se-ia
o que é inato no humano, ou seja, a possibilidade de crescer, aprender,
sofrer, alegrar-se, indignar-se, etc.
A noção de paixão (pathos) discutida por Meyer (1993) apresenta
uma ambigüidade por ser, em princípio, a voz da contingência, da qualidade
que se vai atribuir ao sujeito e, portanto, está fora dele. O pathos seria, sob
esse ponto de vista, tudo o que não é o sujeito e, ao mesmo tempo, tudo o
que ele é. Seria, por outro lado, a afirmação da identidade. Como afirma o
autor, o homem em Aristóteles jamais está só, pois, além da companhia de
outros e de suas paixões, não haveria lugar onde se pudesse esconder as
paixões de cada um. Depreende-se assim que, se o eu não tiver a
companhia do outro com suas paixões, terá, inevitavelmente, a própria
companhia e de suas próprias paixões. Idéia que Meyer (1993) confirma, ao
dizer que a paixão não está só na relação com outro e na representação
interiorizada da diferença entre esse outro e nós, mas é o lugar onde se
negociam identidades e diferenças, sendo, então, o momento retórico por
excelência, constituindo-se, portanto, como respostas às inferioridades e às
superioridades.
Compreende-se, assim, que é no campo das paixões que se dão os
conflitos e as diferenças entre os humanos, que devem resolver tais conflitos
e diferenças pelo bom uso do discurso, sem, contudo, deixar-se levar pelo
descomedimento. O que, sem dúvida, deve acontecer pela habilidade do
argumentar na intenção de construir uma identidade onde há diferenças e
contestações.
Como observa Meyer (1993), Aristóteles apresenta uma concepção
de paixão um tanto incongruente com a concepção do senso comum — que,
provavelmente, não imagina pertencerem ao terreno das paixões
sentimentos como favor, vergonha, impudência, temor, segurança, inveja,
indignação, desprezo, amor, compaixão, emulação, ódio, indignação e
desprezo e, muito menos, que as paixões aristotélicas, na Retórica, refletem
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as representações que fazemos do outro, considerando o que esse outro é
para nós, realmente ou no domínio na nossa imaginação.
Mosca (1997) justifica a vitalidade dos estudos retóricos na
atualidade, não só pela solidez e perenidade das idéias de Aristóteles — que
admitem a aceitação da mudança, a alteridade e a consideração da língua
como lugar de confrontos e de subjetividades —, mas também porque a
retórica se insere no exercício da reflexão pessoal, no domínio dos
conhecimentos prováveis, no terreno da verdade e aparência de verdade, da
verossimilhança, logo, no espaço em que há lugar para a sensibilidade, a
sedução, o fascínio, as crenças e as paixões. Ademais, o universo retórico é
formado pelo embate de idéias e pela habilidade em manejar o discurso. E,
se argumentar é fruto de uma atividade interativa, vale considerar o outro
como capaz de reagir e de interagir ante as teses e propostas que lhes são
apresentadas.
A autora esclarece que,
[...] a partir dos anos 60, as teorias retóricas modernas representadas,
sobretudo pela teoria argumentativa de Perelman e seus continuadores e
pela Retórica Geral ou Generalizada, do Grupo U de Liége (Bélgica), vêm
retomar a velha Retórica e, ao mesmo tempo, renová-la, valendo-se dos
avanços trazidos por diversas disciplinas que se afiguraram no nosso
século: a Lingüística, a Semiologia \ Semiótica, a Teoria da Informação, a
Pragmática (Mosca, 1997:18).
Entende-se, a partir dessas observações, que o campo da retórica
está longe das restrições que lhe impuseram no decorrer da história, como,
por exemplo, o estudo das figuras retóricas, a questão da mera eloqüência.
Hoje, a retórica trabalha em outro nível de linguagem que não apenas o
verbal. Se a limitaram, no passado, à rigidez dos cânones com fórmulas que
nortearam toda a produção e a avaliação de obras concretas, houve, por
outro lado, quem lhe conferisse o estatuto de ciência:
De todas as disciplinas antigas, é a que melhor merece o nome de ciência,
pois a amplidão das observações, a sutileza da análise, a precisão das
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definições, o rigor das classificações constituem um estudo sistemático dos
recursos da linguagem, cujo equivalente não se encontra em qualquer dos
outros conhecimentos daquela época (Guiraud, apud Mosca, 1997:19).
Outro fator que, na opinião de Mosca (1997), ainda valida a retórica
são as representações, os simulacros de que todos nós fazemos uso em
nossos discursos, nas nossas relações, idéia amparada pelo pensamento
aristotélico na referência sobre verdade e aparência de verdade.
Sobre a arte de argumentar e a retórica como técnica para convencer
e persuadir, lembremos a pertinência entre os estudos modernos da
argumentação e o que preconizava a retórica aristotélica:
O objetivo de toda argumentação, já o dissemos, é procurar aumentar a
adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma
argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensividade de
adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação
positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a
ação, que se manifestará no momento oportuno (Perelman & Olbrechst-
Tyteca, 1996:50).
Observe-se que estão contidas nas idéias de Perelman & Olbrechst-
Tyteca (1996), além da noção do discurso persuasivo que atua sobre o
ouvinte pelos logos (palavra, razão), a do caráter do orador (ethos), que
deve estar em afinidade com o ouvinte, despertando-lhe confiança e
ganhando credibilidade ao que vai dizer, e o movimento das paixões
(pathos), reações que o orador desencadeia no ouvinte. Também para
Mosca (1997), as noções de logos, ethos e pathos, como elementos de
persuasão de que se utiliza o orador, constam das definições posteriores à
retórica clássica, como instruir (docere), comover (movere) e agradar
(delectare). Sendo assim, as novas retóricas mantêm forte vínculo com as
idéias do passado, visto que se apóiam no caráter interativo e dialógico da
linguagem, tanto ontem, quanto hoje.
Perelman & Olbrechst-Tyteca, em seu Tratado da argumentação,
tratam dos vários tipos de argumentos de que um orador pode dispor na
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organização de seu discurso e que os autores classificam em três
categorias: quase-lógicos, baseados na estrutura do real e os que fundam a
estrutura do real. Dentre os inumeráveis argumentos estudados pelos
autores, nessas categorias, destacamos aqueles expostos a seguir, visando
reconhecê-los em nosso material de análise.
a) Quanto aos argumentos que se fundamentam no ridículo: uma
afirmação é ridícula, na opinião dos autores, se entra em conflito, sem
justificativa, com uma opinião aceita, contraria o princípio da lógica, embora
seja um recurso que permite ao orador contrariar as manifestações opostas
às premissas de seu discurso.
b) Argumentos que recorrem à ironia: exigem de quem os utiliza
conhecimentos complementares acerca de fatos e normas, bem como um
acordo entre orador e ouvinte, pois a opinião do orador não pode gerar
dúvidas.
c) Sobre o exemplo: na argumentação, o exemplo, na opinião dos
autores, deve usufruir do estatuto de fato, por ser incontestável, pois
fundamenta uma regra e deve ser incontestável. Já a ilustração tem como
função reforçar a adesão ao auditório a uma regra já conhecida e aceita e,
por isso, pode ser duvidosa, embora deva impressionar.
d) Argumentos pragmáticos: são aceitos pelo senso comum, porque
não requerem nenhuma justificativa, posto que permitem apreciar um ato ou
acontecimento, conforme suas conseqüências sejam favoráveis ou
desfavoráveis ao que se defende ou contraria.
e) O recurso ao lugar da quantidade: na argumentação afirma ser
uma coisa melhor que outra pela quantidade, assegurando, portanto, por
razões quantitativas, a superioridade do que aparece em maior número de
vezes.
f) O argumento de autoridade: é de extrema importância, pois, mesmo
que se conteste seu valor, não se pode descartá-lo como irrelevante, já que
o orador, quando assim argumenta, utiliza-se de atos ou juízos de uma
pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de provar uma tese.
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g) Sobre as definições que servem como técnicas persuasivas:
1) as definições normativas, que indicam a forma em que se quer que uma
palavra seja utilizada [...]; 2) as definições descritivas, que indicam qual o
sentido conferido a uma palavra em certo meio, num certo momento; 3) as
definições de condensação que indicam elementos essenciais da definição
descrita; 4) as definições complexas, que combinam, de forma variável,
elementos das três espécies precedentes (Perelman & Olbrechst-Tyteca,
1986: 239).
h) Da inclusão da parte com o todo resultam dois grupos de
argumentos: os que incluem as partes no todo, sem considerar como
superior nem o todo nem a parte em que, ambos são tratados numa relação
de igualdade; e os que demonstram a divisão desse todo em suas partes e
pressupõem que a soma das partes deva reconstituir esse todo.
O universo retórico atualiza-se no campo discursivo, principalmente
quando se considera o discurso como ato interativo, produzido por alguém,
em determinado contexto sócio-histórico-cultural, que faz escolhas —
lexicais, sintáticas, estilísticas — para compor seu discurso, visando sempre
ao outro, por sua vez contextualizado, que também faz escolhas ao receber
o discurso. Essas implicações não nos permitem falar em informação sem
intencionalidade, pois todo discurso, implícita ou explicitamente, traz
elementos que visam persuadir, convencer e, portanto, formar opinião.
Além do que já foi exposto sobre a atualidade da retórica, há que se
falar sobre os componentes de seu sistema — inventio, dispositio, elocutio,
actio e memoria —, elementos ainda essenciais para se organizar e compor
um trabalho de qualidade.
Numa dissertação de mestrado, por exemplo, precisa-se de um
estoque de material (leituras, fichamentos, etc.), antes de proceder à escrita,
ou seja, de um conteúdo; é necessário pensar em como organizar e dispor
em forma escrita esse conteúdo, para se construir um discurso claro, coeso,
coerente e objetivo; há ainda as escolhas lingüísticas, na tentativa de
adequar forma e conteúdo. Tudo isso no plano do discurso. Já a ação refere-
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se ao próprio ato de escrever ou de falar: afinal, é assim que o discurso se
atualiza. Sobre a memória, seria importante lembrar que mantém importante
vínculo com as outras partes, porque depende destas para arquivar, senão
seqüencialmente, pelo menos em parte, os pontos fundamentais do que se
pretende falar, para, no momento da exposição, não se limitar à mera leitura
daquilo que foi escrito.
A memória ainda é importante, pois
os recursos modernos da eletrônica não desterraram o trabalho da
memória, como seríamos levados a pensar. Pelo contrário, voltam a
recuperá-la e a valorizá-la. O elemento oral, que havia sido marginalizado
pelo advento da era gutenberguiana, entroniza-se com toda a força através
da mídia em geral (telefone, rádio, televisão, gravação electro-magnética do
som e da imagem). A comunicação oral pode permanecer, ser conservada,
transmitida à distância, reproduzida, tal como a escrita (Mosca, 1997:30).
A partir desses pressupostos, numa análise retórica,
pode-se ir de uma tentativa de ação – proferir algumas frases – para buscar em
seguida argumentos; escrever antes de encontrar um plano, etc. Mas pouco
importa a ordem cronológica. As quatro partes na realidade são as quatro
"tarefas" (erga) que devem ser cumpridas pelo orador (Reboul, 2000: 44).
Assim, pretendemos direcionar a análise dos discursos de nossos
oradores — sujeitos de nossa pesquisa —, questionando suas
representações discursivas sobre a instância retórica a partir da qual esses
retores pretendem conduzir seus discursos. Como se compõe a instância,
em termos de tema, problema retórico e antecedentes que subjazem à
situação retórica? Como está colocada a questão que deve conduzir a
discussão? A que tipo de auditório se dirigem, bem como o que pretendem
modificar?
Se entendermos que o ato retórico é um ato de comunicação,
haveremos, então, de procurar nesses discursos os componentes da
dispositio, ou seja, exórdio, proposição, partição, descrição, peroração e
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argumentação e, nesta última, procurar saber das provas e seus tipos
(confirmativas, refutatórias), além de questionar o tipo de gênero do discurso
predominante na argumentação. Ao formular questões como essas, quando
nos dispusermos a escrever, teremos mais chances de sermos entendidos.
Todavia, consideramos também a possibilidade de não enxergarmos em
todos os textos selecionados, para nosso trabalho, respostas para alguns
desses questionamentos, seja porque não dispomos de conhecimento prévio
suficiente, seja porque os discursos não atendem a tanto.
Quanto aos tipos de discurso, em Aristóteles encontram-se o
deliberativo, o judiciário e o epidítico. Não cabe aqui mencionar a função de
cada um deles na Antigüidade, mas verificar onde se pode encontrá-los hoje.
O discurso judiciário está presente nos tribunais, utilizado pelo promotor e
pelos advogados de defesa e acusação em seus julgamentos. Também
ocorre nos sermões, utilizado pelos chefes religiosos, acusando ou
defendendo comportamentos ou atitudes daqueles que compartilham ou não
determinada crença, em manifestos, cartas abertas e notas oficiais,
denunciando ou inocentando pessoas e atos. (Como ilustração, lembremos
aqui o atual cenário político brasileiro, com a proliferação de comissões
parlamentares de inquérito, diante das quais, a todo o momento, surge um
culpado que tenta culpar a outro, para se inocentar diante do público.)
O gênero deliberativo pode ser encontrado em documentos técnicos,
como recomendações de consultores e seus pareceres. Faz-se notar
também nos discursos políticos de modo geral, nos encaminhamentos
contra ou a favor da provação de projetos de lei, medidas provisórias, etc., e
em pronunciamentos que aconselham ou desaconselham iniciativas diante
de posições controvertidas. (Recorde-se da propaganda sobre o referendo
de 23 de outubro de 2005, relativo à chamada Lei do Desarmamento, que
sugeria se votar a favor ou contra a comercialização de armas e apresentava
as razões por que o cidadão deveria agir de um modo ou de outro.)
Quanto ao gênero epidítico, encontramo-lo nos discursos
comemorativos, em ocasiões solenes, geralmente de caráter emotivo, como
despedidas, outorga de condecorações, cerimônias de formatura,
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encerramento de eventos e tomadas de posse para cargos, bem como nos
discursos fúnebres, principalmente de pessoas famosas, em que se exaltam
seus feitos, etc.
2.2. Gêneros textuais
a) Gêneros textuais como práticas sócio-discursivas
Desde o homem percebeu-se como criatura dotada da capacidade de
linguagem, na infância da humanidade, tem procurado criar e aperfeiçoar
formas de se comunicar. Se assim não fizesse, não conseguiria sobreviver.
Nesse sentido é que o desenvolvimento da habilidade de comunicação
sempre foi e é pré-requisito fundamental para a dinâmica da vida em
sociedade, tanto ontem, quanto hoje.
Com esses pressupostos, pode-se admitir que "é na sala de aula que
os educadores de letramento têm a oportunidade de trabalhar e de contribuir
para o crescimento e o desenvolvimento da maioria dos membros da
sociedade" (Bazerman, 2006:9).
Meurer & Motta-Roth (2002) corroboram essa idéia, quando afirmam
que cresce no mundo contemporâneo a conscientização sobre a linguagem,
o que nos leva a pensar na importância de se buscar um conhecimento
crítico sobre as práticas discursivas sociais.
Nessa perspectiva, Marchuschi (2005:19) enfatiza que os gêneros
"são entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em
qualquer situação comunicativa [que] caracterizam-se como eventos textuais
altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos". O autor distingue tipologia
textual de gênero textual. Na sua opinião,
os tipos textuais são seqüências teoricamente definidas pela natureza
lingüística de sua composição e se caracterizam por aspectos lexicais,
sintáticos, tempos verbais, relações lógicas. Já os gêneros textuais como
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formas de ação social, definidos pelo conteúdo, propriedades funcionais,
estilo e composição (Marcuschi, 2005: 22-23).
Assim, cabe à escola desenvolver tais habilidades nos educandos,
possibilitando-lhes maior contato com os mais variados gêneros textuais em
várias modalidades de linguagem, pois "é responsabilidade central do ensino
formal o desenvolvimento da consciência sobre como a linguagem se
articula em ação humana sobre o mundo através do discurso ou, como
preferimos chamar, gêneros textuais" (Meurer & Motta-Roth, 2002:12).
Considerando que o trabalho com a linguagem, na ótica do estudo dos
gêneros textuais, é uma necessidade (prevista até pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais) que, se atendida de modo efetivo pela escola, pode ampliar as
habilidades comunicativas das pessoas, procuramos constituir, juntamente com
estudantes, docentes e integrantes do corpo funcional da unidade de ensino em
que exercemos o magistério, o corpus de nossa pesquisa.
b) Uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais, na perspectiva do
estudo dos gêneros
Como nos propusemos, neste trabalho, a trabalhar com o medo nos
gêneros escolares, entendidos aqui como textos de circulação real efetiva,
julgamos pertinente fazer algumas considerações sobre como os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) enfatizam a leitura e a produção
de textos na perspectiva dos estudos dos gêneros textuais.
Como conseqüência dos processos de industrialização e urbanização,
da ampliação da necessidade do uso da escrita e do aumento da demanda
de alunos regulares na rede pública de ensino, os PCN admitem a
necessidade antiga de mudanças no ensino que se reflitam
significativamente no ensino de língua materna, colocando-a como foco das
discussões sobre a possibilidade de integrar essa nova realidade ao trabalho
pedagógico. O ensino de leitura e escrita passou a centrar-se no texto
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visto como produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um
todo significativo, qualquer que seja sua extensão, é o texto, uma seqüência
verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir
da coesão e da coerência (Brasil, 1998:21).
Embora muitas vezes a teoria esteja muito distante da prática, há que
se considerar um grande avanço a mudança do ensino concentrado na frase
para o ensino centrado no texto. A partir dessa perspectiva, pôde-se refletir
sobre práticas de linguagem que entendem o texto como produto de
atividades discursivas, definidas com objetivos, intenções e propósitos que
podem conduzir a uma ação. Os PCN consideram como relevantes para
uma prática significativa de leitura e escrita, os aspectos:
a) a razão de ser das propostas de leitura e escrita é a compreensão e não
a decodificação e o silêncio; b) a razão de ser das propostas de uso da fala
e da escrita é a interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem
objetos de correção; c) as situações didáticas têm como objetivo levar os
alunos a pensar sobre a linguagem para poder compreendê-la e utilizá-la
apropriadamente às situações e aos propósitos definidos (Brasil, 1998:19).
Como se observa, os PCN preconizam novas vias para o trabalho
pedagógico com a linguagem. Nessa mesma perspectiva, os estudos sobre
os gêneros vêm possibilitar, no trabalho com textos, formas de levar o aluno
a refletir sobre o uso da linguagem, em suas várias manifestações, seja ou
não verbal, como atividade dinâmica e interativa.
Ao introduzir a noção de gênero como elemento fundamental para o
aprimoramento das habilidades em leitura e escrita, os PCN trazem
definições para os gêneros, ao assegurar que a interlocução pressupõe o
uso de diversos textos por parte dos indivíduos, definidos historicamente
pelas condições e necessidades sociais dessa interlocução, e apresentar o
discurso como manifestação lingüística do texto, unidade global de
significação que não se constrói do nada: todo discurso nasce de uma
relação com outros discursos.
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Ressaltamos ainda que é em Bakhtin que os PCN encontraram seu
principal pressuposto para a definição de gênero:
os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza
temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a
este ou àquele gênero. Assim, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa
ser tomada como objeto de ensino (Brasil, 1998:21).
A fonte para tão determinada orientação vem de Bakhtin (1979:274)
que assim advoga: "Conteúdo temático, estilo e construção composicional
fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e ele é marcado por
uma esfera de comunicação".
Dessa forma, ao trazer mudanças metodológicas para o ensino de
língua, os PCN admitem a necessidade de se trabalhar com textos reais, ou
de circulação social efetiva, que envolvam as necessidades de comunicação
do aluno, sujeitos inseridos em situações sócio-comunicativas determinadas
por contextos históricos.
2.3. O medo como paixão
Relembrando o que já ficou dito, a idéia central deste trabalho é a
retórica do medo. Aqui não se pretende, nessas condições, mostrar ou
apresentar pontos de vistas sobre outras categorias passionais que não a do
medo. Todavia, no decorrer da análise do corpus que compõe esta
pesquisa, tocaremos no teclado das paixões aristotélicas e, inevitavelmente,
surgirão outras paixões, até mesmo com finalidade subsidiária ao medo.
Aristóteles, ao abordar o medo, o faz a partir de duas questões: o que
ou a quem se teme? E em que estado de ânimo estaria quem tem o temor?
Em reposta à primeira questão, seriam temidos aqueles que podem provocar
em outros grandes desgostos ou danos e aquelas coisas que parecem
possuir grande capaci