as paixões na escola: o medo em gêneros escolares · como me senti humilhada, triste e indignada,...

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AIOLANDA PEREIRA FARIA As paixões na escola: o medo em gêneros escolares MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo Agosto de 2006

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  • AIOLANDA PEREIRA FARIA

    As paixões na escola:

    o medo em gêneros escolares

    MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    São Paulo

    Agosto de 2006

  • AIOLANDA PEREIRA FARIA

    As paixões na escola:

    o medo em gêneros escolares

    Dissertação de mestrado apresentada

    à Banca Examinadora da Pontifícia

    Universidade Católica de São Paulo

    como exigência parcial para a obten-

    ção do grau de Mestre em Língua

    Portuguesa, sob orientação do Prof.

    Dr. Luiz Antonio Ferreira.

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    São Paulo

    Agosto de 2006

  • I

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________

    ____________________________________________________

    ____________________________________________________

  • II

    RESUMO

    O objetivo desta pesquisa é observar, do ponto de vista da retórica,

    como se manifesta o medo, gerado por manifestações de violência, nas rela-

    ções escolares, num estabelecimento da rede pública de ensino do estado de

    São Paulo. O material que integra o corpus da pesquisa foi coletado em 2005,

    no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, e consta dos textos

    produzidos na escola e pela escola. O referencial teórico inclui estudiosos da

    retórica e do discurso, com enfoque na argumentação.

    Palavras-chave: escola; medo; violência; retórica

  • III

    ABSTRACT

    The goal of this research is to analyze, from the point of view of rhetoric,

    manifestations of fear generated by violence manifestations in school relations,

    in an unity of the public net of teaching of São Paulo state. The corpus was

    collected in 2005, in Franco da Rocha municipality, in Greater São Paulo. The

    theoretical references includes scholars and experts in rhetoric and discourse,

    with focus on argumentation.

    Keywords: school; fear; violence; rhetoric

  • IV

    A minha mãe,

    a minha filha,

    a meus irmãos

    e a Frank

  • V

    AGRADECIMENTOS

    Para que um trabalho de pesquisa se realize, o pesquisador precisa da

    colaboração, do acompanhamento, do apoio, da atenção e do incentivo de

    pessoas que, de uma forma ou de outra, apontam-lhe caminhos. Por essa ra-

    zão, quero apresentar meus sinceros agradecimentos.

    À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela humana acolhida

    desde 1986, início de minha graduação.

    Ao meu orientador, professor doutor Luiz Antonio Ferreira, pela compre-

    ensão, pela paciência e pela dedicação.

    Aos docentes do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa,

    especialmente os professores doutores Neusa Barbosa Bastos, João Hilton

    Sayeg de Siqueira (também integrante da banca do exame de qualificação) e

    Mercedes Crescitelli.

    Ao professor doutor José Everaldo Nogueira Júnior, da banca do exame

    de qualificação, pelas excelentes sugestões.

    À equipe da E.E. "Azevedo Soares", especialmente à diretora Eliana

    Govões e à vice-diretora Isabel Pimenta, pela compreensão e pela ajuda em

    hora tão oportuna, aos professores Alberto Fernando Donato, Joanilce Fonse-

    ca, Josele Francisco, Leila Moret, Rodrigo Fornazari, Suly Guzzi e Therezinha

    Prado e aos alunos da 2ª série B e das 3as séries B e C de 2005. Aos funcioná-

    rios da escola, pela gentil colaboração.

    Aos amigos Algenir Menezes, Izabel Menezes, Grasiela Ribeiro, Lidiane

    Lacerda, Rosana Nunes, Samantha Meconi e Ana Maria, pelo apoio e incenti-

    vo.

    Minha gratidão especial a Frank Roy Cintra Ferreira, pela tarefa de revi-

    sar este trabalho.

  • VI

    À Secretaria de Estado da Educação do estado de São Paulo, pelo Pro-

    grama Bolsa Mestrado.

  • VI

    SUMÁRIO

    Introdução 1Capítulo I Considerações em torno das noções de ethos, logos e pa-thos: constituição argumentativa de um auditório transformado em"retor" 12Capítulo II História/retórica e paixões 212.1. Retórica: ontem e hoje 21

    2.2. Gêneros textuais 34

    a) Gêneros textuais como práticas sócio-discursivas 34

    b) Uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais, na perspectiva do

    estudo dos gêneros 35

    2.3. O medo como paixão 37

    Capítulo III Uma breve história dos nossos medos: o passado vivo nopresente 423. 1. Já tivemos medo dos mortos? Medo da escuridão? 46

    3.2. O discurso dirigente e o medo 49

    Capítulo IV Exame do corpus 534.1. O medo no discurso constituído 53

    a) Normas de convivência 53

    b) Ocorrência de alunos 60

    4.2. O medo no discurso docente 62

    4.3. O medo no discurso do aluno 68

    a) Redações do Ensino Médio 68

    b) Letra de rap 74

    c) Os fanzines 76

  • VII

    d) Respostas de alunos às questões resultantes da discussão sobre o

    filme Meu mestre, minha vida 81

    e) Análise retórico-argumentativa de duas amostras selecionadas entre

    as 29 respostas dos alunos sobre as questões do filme 84

    f) Respostas dos funcionários às questões sobre o filme Meu mestre, mi-

    nha vida 88

    Considerações finais 93Bibliografia 100Anexos 104

  • 1

    Introdução

    Nossa experiência de quase vinte anos no magistério público paulista,

    em escolas de periferia, permite afirmar que não é possível falar do medo

    como categoria passional nos gêneros escolares ("Normas de convivência",

    texto do Caderno de Ocorrências, textos de opinião, textos retirados de

    fanzines, questionários, letra de rap produzidos por estudantes e

    questionários, depoimentos produzidos por professores e funcionários) sem

    abordar temáticas como violência e insegurança, geradas no âmbito das

    relações escolares, ou advindas do contexto externo. Além disso, hoje,

    nosso imaginário do medo está constantemente alimentado pela onda de

    insegurança e desequilíbrio que atinge a maioria das relações entre as

    pessoas aqui ou em qualquer outro lugar.

    Um mundo violento

    Além do que se ouve e vê quase todos os dias, nos meios de

    comunicação de massa, em matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo,

    a respeito de pesquisa realizada pela Unesco e pelo Ministério da Educação,

    a socióloga Miriam Abramovay afirma: "Essa violência no cotidiano da

    escola — que acontece por meio de agressões, xingamentos e das próprias

    relações sociais — tem graves conseqüências. Como o aluno vai aprender

    num clima escolar como esse, em que existe uma banalização completa da

    incivilidade?" (Gois & Takahashi, 2006:C1).

    É pensando nessa realidade que pretendemos, nesta dissertação,

    tratar do medo e da insegurança gerados em professores, alunos e outros

    agentes pela violência na escola — entendida como agressão verbal e física

    a qualquer pessoa e até mesmo ao patrimônio (pichação, quebrar cadeiras,

    carteiras, destruir ventiladores, quebrar portas janelas, jogar bombas no

    pátio, no banheiro, etc.).

  • 2

    Abramovay & Rua (2004) enfatizam que vários ramos das ciências

    humanas como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia chamam a

    atenção para a violência escolar que envolve a agressividade entre alunos, a

    depredação do patrimônio e, em menor proporção, a agressividade dos

    alunos para com o professor. Para as autoras, o foco dos estudos sobre

    esse tema já não diz respeito somente à maneira como a escola trata o

    aluno, mas também à maneira como o aluno trata a escola.

    Pesquisa realizada por Guimarães (2005) em escolas públicas na cidade

    de Campinas (SP) revela que a violência ocorre tanto em escolas mais

    permissivas, quanto naquelas em que as normas são mais rígidas.

    Presumimos, então, que não é a rigidez de normas ou a permissividade que

    causam violência na escola. Nesse aspecto, acreditamos que a violência em

    âmbito escolar ou não, ocorre quando um indivíduo não é considerado,

    respeitado e valorizado. Entretanto, o que podemos afirmar, considerando a

    opinião de Abramovay & Rua (2004), é que aumentou o índice de

    criminalidade, o sentimento de medo e de insegurança nas escolas brasileiras,

    sobretudo naquelas situadas em zonas de extrema pobreza em que a miséria é

    constante em todos os sentidos. Em tal contexto, a manifestação de atos

    agressivos ou verbais na escola pode gerar insegurança e medo.

    O depoimento de uma professora do município de Franco da Rocha,

    na Grande São Paulo, nos parece bastante significativo:

    — Durante a aula em que ministrava, em outra sala houve uma

    briga. Para evitar maiores transtornos e amenizar o ambiente, pedi a

    todos que, por favor, não se retirassem da sala, pois uma grande

    maioria assistia a tal briga. Alertei-os de que se insistissem não

    poderiam retornar à aula e comunicaria o fato a seus respectivos

    responsáveis. No entanto, três alunos da oitava série do Ensino

    Fundamental saíram sem autorização para ver a mesma briga. Pedi a

    uma aluna que chamasse alguém da direção para registrar a

    ocorrência. Tive como apoio pedagógico a seguinte frase da senhora

    Jandira, vice-diretora da Unidade Escolar: "Mande-a se virar ou vir

    resolver meus problemas." Ao receber o recado, nem acreditei.

  • 3

    Quando os alunos retornaram, avisei que, conforme alertados, não

    poderiam entrar, pois uma ordem fora dada e eles a desrespeitaram.

    Queriam pegar os cadernos que estavam na sala. Respondi que os

    pegariam após o término da aula. Um deles insistiu violentamente em

    retirar o caderno, usando palavrões e forçando a porta e gritando

    comigo: "Eu vou pegar esse caralho, sim, porra!" Empurrou

    brutalmente a porta e meu braço esquerdo também. Acreditei que

    fosse apanhar mais do aluno, mas sala interveio e o retirou [...].

    Atitude nenhuma foi tomada em relação ao aluno e retornei para a

    sala de aula, com o agressor e seus amigos rindo de mim e gritando:

    "E aí? Vai bater mais na professora?" Como me senti humilhada, triste

    e indignada, questionei-me se merecia aquilo tudo, pois sempre me

    dediquei e realizei o melhor trabalho possível. Entrei na sala e

    continuei o meu trabalho, não tocando mais no assunto. Continuei

    firme em minha decisão de não entregar o caderno. Nesse momento,

    meu braço encontrava-se muito inchado e dolorido, mas agüentei

    como pude até o fim do período.

    Nossa intenção, ao transcrever tal depoimento, não é apontar vítimas

    ou culpados, mas contextualizar as condições da realidade em que atuam

    educadores e educandos. Observamos, neste caso, que a agressão verbal e

    física, além de permear as relações escolares, deixam professores e outros

    agentes da instituição perplexos, fragilizados e sem iniciativa.

    Em Candau (org., 2000) salienta-se que uma educação voltada para os

    direitos humanos deveria, além de trabalhar permanentemente o ver, a

    sensibilização e a conscientização sobre a realidade, articular o local, o contexto

    latino-americano e a realidade mundial, sem deixar de integrar a dimensão

    afetiva (prazer, alegria, emoção). Na opinião da autora, junto ao ver estaria o

    saber socialmente construído sobre os direitos humanos, isto é, saberes que

    emergem das práticas cotidianas, além dos saberes sociais de referência.

    A escola que sonhamos ainda está por ser criada, mas não podemos

    fazer de conta que está tudo bem no espaço de sala de aula e na escola em

    geral. É extremamente angustiante para um profissional da educação básica da

  • 4

    rede pública admitir a descrença do aluno e da sociedade em seu papel como

    professor e naquilo que essa instituição pode fazer por ele e pela sociedade.

    A imagem, entre nós, já quase idílica, da escola, como locus de fomentação do

    pensamento humano — por meio da recriação do legado cultural — parece ter

    sido substituída, grande parte das vezes, pela visão difusa de um campo de

    pequenas batalhas civis; pequenas mas visíveis o suficiente para causar uma

    espécie de mal-estar coletivo nos educadores brasileiros (Aquino, 1998:7).

    Como se pode notar, a crise da educação — e aqui nos referimos

    especificamente aos atos violentos que causam insegurança e medo na

    escola — parece não estar desvinculada de outros constituintes sociais, da

    crise de valores. Perguntamos, então: em que lugar escondeu-se a

    responsabilidade de pais, professores e da sociedade em geral para com a

    educação de nossas crianças? Seria possível pensar na autoridade de pais e

    professores em situações nas quais, não raras vezes, ouve-se em reuniões

    de pais na escola: "Professora, eu não sei mais o que fazer com meu filho, ele

    não me escuta em nada, se eu falar muito apanho" (depoimento de mãe de

    aluno da E.E. "Azevedo Soares", em 2005). Todos concordamos que escola e

    família não sejam as únicas microssociedades responsáveis pela educação

    de nossas crianças; no entanto, cabe-lhes quase toda essa responsabilidade.

    Daí a importância de escola e família estarem juntas.

    Morin, em Os sete saberes necessários à educação do futuro, convida

    a refletir sobre a questão da afetividade, sua relação com a aprendizagem e

    a manifestação de atitudes agressivas. Opinião relevante, pois ampara e

    enriquece a discussão sobre a idéia de que a afetividade é componente

    basilar para a construção de relações efetivamente menos agressivas.

    O sentimento, a raiva, o amor e a amizade podem-nos cegar. Mas é preciso

    dizer que já no mundo mamífero e, sobretudo, no mundo humano, o

    desenvolvimento da inteligência é indispensável do mundo da afetividade, isto

    é, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez, são a mola da pesquisa

    filosófica ou científica. A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode

    também fortalecê-lo. Há estreita relação entre inteligência e afetividade: a

  • 5

    faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de

    emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode

    estar na raiz de comportamentos irracionais (Morin, 2004:20).

    Um mundo de medo

    Corroborando o que vimos discutindo até aqui, Teixeira & Porto

    (1998) apontam como fatores que contribuem para aumentar os níveis de

    violência na escola — que, segundo as autoras, geram insegurança e medo

    — as condições socioeconômicas, os níveis absurdos de miséria e pobreza,

    a falta de áreas de lazer e esporte na maior parte das cidades em que vivem

    crianças e adolescentes pobres, a disseminação do uso de drogas entre os

    jovens e a psicologização da educação, que gerou permissividade. O

    sentimento de insegurança na escola estaria diretamente ligado ao aumento

    dos índices de violência externos, o que contribuiria para o fortalecimento do

    nosso imaginário do medo dentro e fora da instituição escolar. Podemos,

    então, traduzir como o medo se insere na escola da seguinte forma:

    Violência do contexto externo↓

    Escola↓

    Insegurança↓

    Medo

    Abramovay & Rua, em pesquisa escolar realizada em 2004,

    constataram, de acordo com a opinião de alunos e do corpo técnico-

    pedagógico, que a escola não é mais um ambiente seguro e apontaram

    como o maior problema no ambiente escolar a presença de gangues e o

    tráfico de drogas, que geram medo e insegurança opinião compartilhada por

    outras pesquisadoras:

    A intervenção por parte do narcotráfico nessas escolas se faz [...] de forma

    sutil, com pouca visibilidade, através de diferentes mediadores,

  • 6

    representativos de posições diversas em relação às quadrilhas, tendo como

    propósito ampliar a área física e os grupos sociais sob seu controle. Esta

    operação resulta em sistemas de proteção/subordinação das instituições, a

    exemplo do que obtém por parte dos moradores das áreas ocupadas

    (Candau, Nascimento & Lucinda, 1999:7).

    Teixeira & Porto (1998) asseguram que violência, medo e insegurança

    adquiriram, nas sociedades modernas, dimensões que parecem

    incontroláveis; por isso, deveriam ocupar cada vez mais espaço nas

    discussões em diversos setores sociais, inclusive na escola e na família,

    microssociedades em que as relações são mais intensas e o espaço para a

    aprendizagem é mais apropriado. Amparadas nas idéias de Balandier, as

    autoras apontam ainda como causa para o desenvolvimento do imaginário e

    concretização do medo o fato de a violência ser

    como uma resposta a uma sociedade geradora de rejeições, exclusões,

    expressão de xenofobia e de recusa do outro — o que se explicaria por

    infinita crença na razão que elimina as formas simbólicas de tratar o medo e

    também pelo individualismo característico do liberalismo moderno (Teixeira

    & Porto, 1998:52).

    Contextualização da escola

    A escola onde coletamos nosso material de pesquisa está localizada

    numa via sem acostamento, com tráfego intenso de veículos. O único

    dispositivo de segurança viária no local é uma faixa de pedestres, nem

    sempre respeitada pelos motoristas; não raras vezes, acontecem acidentes

    que envolvem estudantes da escola. Os professores já encaminharam à

    Prefeitura da cidade um projeto e solicitaram a instalação de acostamento e

    de ciclovia, mas a situação continua igual. Além disso, ao lado da escola há

    um córrego que exala intenso mau cheiro; na época do verão, as salas de

    aula ficam infestadas de pernilongos. Profissionais da saúde pública já

    visitaram o local; no entanto, nenhuma providência foi tomada. No fundo da

  • 7

    escola, há um presídio que funciona em regime semi-aberto; não muito

    longe, existe uma unidade da Febem.

    Alguns elementos opressivos presentes no discurso autoritário, das

    instituições são conhecidos, mas cremos valer a pena pesquisar, em especial,

    como os mecanismos autoritários refletem-se discursivamente no

    comportamento de alunos, professores e funcionários da escola. Nosso

    objetivo, dentro dos limites desta pesquisa, é verificar, por meio da análise

    retórica do discurso, como o medo, na situação de categoria passional, se

    traduz lingüisticamente na escola e como, transformado em discurso, se reflete

    nos textos produzidos na e pela escola. Interessa-nos o discurso traduzido em

    atos retóricos sobre como o "falar" da escola se inscreve nessa instância

    passional e, por conseqüência, como se reflete na comunidade escolar.

    Procedimentos metodológicos

    Para estudar a paixão do medo nos gêneros escolares, por meio da

    verificação da língua em uso, pretendemos obter alguma forma possível de

    configuração do fenômeno, objeto dessa dissertação, considerando:

    a) o campo semântico do medo na escola;

    b) os artifícios retóricos que infundem o medo na escola;

    c) os artifícios retóricos para defender-se do medo na escola.

    Para atingir nosso objetivo, constituímos um corpus com variados

    gêneros1 — normas de convivência, texto denominado registro de ocorrência

    de aluno, textos de opinião, poemas e uma letra de rap,2 depoimentos,

    1 "Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser [...] São

    ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído" (Bazerman,

    2006:23).2 O termo "rap" significa ritmo e poesia. É um gênero musical que surgiu na década de 70,

    nos bairros pobres de Nova York. No Brasil, aparece nos anos 80, na cidade de São Paulo.

    Apresenta uma batida rápida e acelerada. As letras, em geral longas, incorporam as gírias

    das regiões de origem. É mais falado que cantado e aborda, quase sempre, a vida dos

    habitantes de bairros pobres das grandes cidades.

  • 8

    questionários) —, coletados em 2005, na Escola Estadual "Azevedo

    Soares", localizada no município de Franco da Rocha. Quanto à

    representatividade desta escola no conjunto da rede estadual paulista, é

    evidente que, dentro dos limites de nosso trabalho, a preocupação central

    não é chegar a conclusões de natureza genérica, mas refletir, a partir do

    ponto de vista dos estudos retóricos, sobre a categoria passional do medo

    no ambiente escolar.

    As normas de convivência e o texto sobre ocorrência que envolve

    alunos foram produzidos pela escola. Os outros foram produzidos por

    alunos, professores e funcionários — por isso, os denominamos de textos

    produzidos na escola.

    Os poemas integram a produção de dois fanzines,3 elaborados por

    estudantes da 2ª segunda série, turma B, do período matutino. Foi a primeira

    proposta de trabalho sobre o medo que fizemos aos alunos. Isso se deveu a

    duas razões: parte desses jovens já tivera aula comigo na 8ª série, em 2004,

    ano em que produzimos alguns fanzines com temas bem variados; e essa

    atividade é bem aceita pelos alunos, porque permite explorar a criatividade,

    por meio da linguagem escrita e ilustrada.

    Apresentamos aos estudantes a história desse tipo de publicação e

    levamos para a sala alguns exemplares feitos pelos alunos da E. E. "Padre

    Luiz Sérgio", do município de Francisco Morato, também na Grande São

    Paulo. Como era uma turma numerosa, os alunos tomaram a iniciativa de se

    dividir em dois grandes grupos e propuseram que cada um dos grupos

    trabalhasse, respectivamente, com os medos denominados por eles de

    "medos de ontem" e de "medos de hoje". O grupo dos "medos de ontem"

    elegeu como título para seu fanzine "Medos.Com"; o grupo dos "medos de

    hoje" decidiu-se pelo título "Fobia".

    3 Fanzine: neologismo formado pela junção de "fã" (entusiasta, apaixonado) com "zine", de

    magazine (publicação ilustrada). Os primeiros fanzines surgiram nos Estados Unidos, na

    década de 30. No Brasil, o primeiro foi editado por Edson Rontani, nos anos 60, em

    Sorocaba (SP). É um tipo de publicação independente, sem padrão formal quanto a número

    de páginas, formato, tema, diagramação, periodicidade e ilustração.

  • 9

    A decisão de pedir aos alunos que produzissem a letra de rap para

    integrar nosso trabalho justifica-se por ser esse o estilo de música que mais

    bem retrata a realidade vivida pela maioria dos estudantes de nossa escola,

    além de ser o estilo de música que eles mais ouvem. A letra de rap foi

    escrita por um aluno, mas aceita pela turma e tem como título "Receio". Os

    alunos levaram para a sala de aula alguns cds de rap. Ouvimos as músicas

    e, em seguida, organizamos um debate. Todos tiveram oportunidade de

    expor suas opiniões sobre essa modalidade musical e de apresentar

    sugestões de estilos de música para se ouvir em outras aulas.

    Assim como consideramos o rap um estilo de música que retrata bem

    a realidade da população pobre de periferia e, por isso, permite refletir sobre

    as circunstâncias em que vivemos, escolhemos também como recurso para

    enriquecer nossas reflexões sobre a questão do medo na escola e como

    essa paixão se manifesta nas relações humanas o filme Meu mestre, minha

    vida, do diretor John Avilsen. No filme, narra-se a história do retorno do

    professor Joe Clark (interpretado por Morgan Freeman) à escola em que já

    havia lecionado; ele volta como diretor, com a responsabilidade de acabar

    com a indisciplina dos estudantes da escola e, desse modo, livrar a

    comunidade escolar das drogas e gangues que a invadiram. A escolha

    decorreu do fato de se perceber no desempenho do professor Joe Clark a

    configuração de um ethos ditatorial, antecipadamente constituído, posto que

    já fora professor da escola e, agora, volta na função de diretor, com prazo de

    um ano para resgatar a disciplina e melhorar o nível de rendimento dos

    alunos. Imbuído dessa responsabilidade, ele está autorizado a desempenhar

    sua função conforme lhe convém: demite professores, grita com alunos,

    professores e funcionários, culpa os docentes pelo fracasso da

    aprendizagem dos estudantes e manifesta, durante o desenrolar da história,

    um comportamento frio — que, por um lado, pode-se justificar pelo choque

    entre a realidade anterior em que ele vivia e a atual, mas, por outro, lhe

    confere um ethos de ditador a provocar, quase todo o tempo, na comunidade

    escolar e em outras pessoas, paixões como raiva, ódio, medo, indignação,

    inveja e até a calma, importante paixão humana na concepção aristotélica.

  • 10

    Optamos por esse filme, objetivando também — além de desenvolver

    nos alunos a habilidade de comparação entre realidades distintas —

    provocar neles a concepção de argumento, bem como ressaltar o ethos do

    orador frente a uma situação retórica efetiva, a fim de que eles

    fundamentassem com mais segurança suas opiniões acerca do que lhes

    pode ser proposto e, porque

    o objetivo de toda argumentação [...] é provocar ou aumentar a adesão dos

    espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: Uma

    argumentação eficaz é a que consegue aumentar a intensidade dessa

    adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida [...]

    ou,pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará

    no momento oportuno (Perelman & Olbrechst-Tyteca,1996:50).

    Julgamos pertinente, como exercício pedagógico, em particular para os

    alunos do Ensino Médio, já maduros para a constituição de argumentos sólidos

    e verossímeis, mostrar a importância dos recursos argumentativos, posto que o

    equilíbrio entre os agentes numa situação de comunicação depende do bom

    uso e da variedade dos recursos argumentativos usados em seu discurso. Para

    tanto, amparamo-nos nos estudos sobre os vários tipos de argumentos de que

    falam Perelman & Olbrechst-Tyteca (1996).

    Depois da projeção do filme, promovemos uma discussão e

    propusemos algumas questões, tendo como objetivo ampliar a habilidade de

    comparação de realidades distintas, a capacidade opinativa, favorecer a

    criação de argumentos plausíveis, relevantes e contextualizados, e ressaltar

    o ethos do orador frente a uma situação retórica efetiva (ver Capítulo 4).

    Pensamos na atividade de produção de texto escrito com o tema

    medo para os alunos da 3ª série do Ensino Médio com os objetivos de

    despertar a capacidade argumentativa dos alunos, proporcionar

    familiarização com o tema, pouco pensado na instituição escolar, e ressaltar,

    pelo discurso, a importância argumentativa do ethos e as conseqüências dos

    seus efeitos, no sentido de mobilizar as paixões (no caso, o medo) do

    auditório. Antes da escrita do texto, apresentamos aos estudantes o conceito

  • 11

    de medo segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa e, depois, a

    concepção aristotélica de paixão, inclusive a do medo, e contamos

    brevemente a história deste sentimento com base no livro História do medo

    no mundo ocidental, de Jean Delumeau.

    Como era fundamental para nosso trabalho conhecer a opinião dos

    funcionários da escola sobre a questão, propusemos a eles que também

    assistissem ao filme e nos respondessem a certas questões (ver Capítulo 4)

    que tinham como finalidade saber desses agentes o conceito de medo, os

    seus efeitos no ambiente de trabalho, os meios de difusão do medo na

    instituição escola e as características do ethos dos oradores no papel social

    de funcionário de uma instituição.

    Esta dissertação está estruturada em quatro capítulos, além desta

    Introdução. No primeiro capítulo, a partir do ponto de vista de estudiosos da

    linguagem, procuramos mostrar a importância do logos, do ethos e do

    pathos na argumentação, além do conceito de gêneros textuais. No

    segundo, situamos historicamente os estudos retóricos, incluindo as paixões,

    com enfoque para a categoria passional do medo. No Capítulo III, o leitor

    encontrará pequena história dos medos de nossos antepassados e os

    reflexos destes na atualidade. No quarto capítulo, analisamos, sob o ponto

    de vista da retórica, o material que coletamos.

    Nos Anexos, o leitor encontrará cópias do material que coletamos

    junto a alunos, professores e funcionários da E. E. "Azevedo Soares". Este

    material consiste em uma letra de rap, dois fanzines, produzidos pelos

    alunos da 2ª série do Ensino Médio, turma B, período matutino, respostas

    dos alunos e funcionários da escola a questões sugeridas a partir do filme

    Meu mestre, minha vida, textos de opinião da 3ª série do Ensino Médio,

    período noturno, e textos produzidos pela escola: "Normas de Convivência"

    e registro do "Livro de Ocorrência de Alunos".

  • 12

    Capítulo I

    Considerações em torno das noções de ethos, logos

    e pathos:

    constituição argumentativa de um auditório

    transformado em "retor"

    Este texto tem o intuito de fornecer conceitos sobre o ethos e sua

    relação com o logos e o pathos, classificados como argumentos segundo a

    opinião de Aristóteles, cujas idéias ancoram os atuais conceitos de

    organização argumentativa. Importa-nos, além das diversas visões dos

    autores sobre os conceitos de ethos, logos, pathos e seus efeitos

    argumentativos, verificar, no contexto de nossa pesquisa, como — por meio

    dos depoimentos colhidos com os sujeitos de nosso trabalho — as

    manifestações idiossincráticas e coletivas desses sujeitos constituem um

    amálgama, traduzido em argumentos que evidenciam ethos e pathos,

    traduzidos em língua e, sobretudo, traduzidos em argumentos.

    Optamos por fazer um percurso dos conceitos de ethos, pathos e

    logos, com base nos estudos retóricos de autores que se amparam nas

    idéias da retórica clássica, tendo em vista a importância desses conceitos

    para o contexto de nossa pesquisa, por duas razões fundamentais: conhecer

    como os sujeitos que contribuíram conosco constroem a imagem de si nos

    seus discursos e porque pretendemos verificar como esses oradores

    fundamentam suas opiniões sobre a categoria passional do medo.

    Se entendermos que "a argumentação faz parte de todos os atos

    comunicativos da vida diária de qualquer cidadão [...] e que todo ato

    comunicativo pressupõe, entre outros elementos, um emissor e receptor"

    (Mosca, 2004:132), temos já aí delineada a ação comunicativa como ato de

    interação que exige, de quem pretende elaborar um discurso, reflexões em

  • 13

    torno de questões que se antecipam ao "dizer" — o quê? Para quem?

    Como? Quando?

    Pensamos que a resposta a essas questões requer, entre outras

    condições, entender a situação de comunicação como atividade dinâmica, que

    implica um acordo entre orador e auditório. Este acordo, segundo Mosca

    (2004), efetiva-se pela forma como o orador se organiza nas estratégias

    argumentativas e organiza essas estratégias, sempre tendo em vista que

    argumentar envolve discussão e controvérsia e que o que se busca com a

    argumentação é o assentimento do ouvinte às teses apresentadas pelo orador.

    Com esses pressupostos, afirmamos: para transformar em retor o

    auditório, os sujeitos de nossa pesquisa, foi necessário ouvi-los com o

    distanciamento próprio do analista, que se transformou, por sua vez, em

    auditório e que não pretende, efetivamente, o assentimento, mas a

    discussão e a controvérsia — o que, em outro plano, nos permitirá, no

    momento em que reassumirmos nossa fala como retor, discutir os

    depoimentos e verificar a direção argumentativa tomada por nossos

    interlocutores. Acrescentamos ainda que, nesse jogo dialógico, importa,

    sempre e mais, a voz do auditório como retor, como produtor de

    argumentos. Dessa forma, as conclusões a que chegarmos serão o

    exercício da soma de opiniões sobre um problema real que se verifica na

    troca constante de função entre retor e auditório no cotidiano escolar.

    Nessas circunstâncias, no primeiro momento, ao transformar nosso

    auditório em retor, com um ethos constituído, portador de opiniões e de

    certezas, de certa forma não o influenciamos, pois nos importa ficar

    desvinculados desse orador, visto que o que se busca é constituir um ethos

    coletivo dos atores escolares a partir dos ethos individuais.

    Na intenção de melhor esclarecer como essa troca de funções no

    cotidiano escolar é intermediada pelo jogo entre razão e emoção, lembramos

    que "os meios de competência da razão e da emoção ficam ambos

    evidentes no processo de argumentação" (Mosca, 2004:130). Isso nos

    permite inferir que logos, ethos e pathos não são elementos desvinculados

    da argumentatividade, como bem evidencia a retórica aristotélica.

  • 14

    Aristóteles, no texto "Do caráter do orador e das paixões do ouvinte",

    ressalta que a retórica tem como fim um julgamento e que é necessário ao

    orador, além de atentar para que o discurso seja suficientemente

    convincente, mostrar-se sob certa aparência e fazer supor que se acha em

    determinadas disposições a respeito dos ouvintes. O filósofo enfatiza as

    características que tornam um orador digno de fé e confiança: a prudência, a

    virtude e a benevolência.

    Meyer (1993:28-33) reitera essas características, ao ressaltar que "o

    orador é simbolizado pelo ethos e sua credibilidade assenta no seu caráter,

    na sua virtude, e na confiança que o auditório lhe outorga", e põe em relevo

    que as noções de logos, ethos e pathos são interligadas e intrínsecas ao

    processo argumentativo: "Pathos, logos e ethos coincidem [...] e nem sempre

    conseguimos deslindá-los com precisão", pois justificar implica argumentos

    (logos), mas também levar o outro em conta (pathos), "para lhe agradarmos,

    para nos fazermos aceitar ou porque o queremos manipular" (ethos).

    Dessa forma, é possível se obter determinado tipo de retórica,

    conforme se realça no discurso um desses aspectos:

    Se colocarmos a tônica no pathos, obteremos a retórica-manipulação. Se

    colocarmos no logos, obteremos uma visão lógica e argumentativa, até

    mesmo lingüística, independente dos efeitos de adesão do auditório e dos

    valores veiculados pelo orador. Finalmente, se a retórica é analisada a partir

    do ethos, teremos uma retórica em que se torna determinante o papel dos

    sujeitos e da sua moral, o mesmo acontecendo de maneira geral às suas

    intenções, quer sejam manipuladoras ou não (Meyer, 1993:33).

    Como está entre os objetivos deste trabalho verificar como se

    constitui o ethos dos sujeitos, autores do nosso material de análise, o que

    nos interessa em particular nesses três tipos de retórica enumerados por

    Meyer é o enfoque na retórica do ethos. Entretanto, como bem demonstram

    as opiniões apresentadas até aqui, não só o ethos, mas também o logos e o

    pathos integram o discurso.

  • 15

    Egss (2005) aponta o ethos como a mais importante prova

    engendrada pelo discurso e argumenta que Aristóteles distanciava-se dos

    retóricos de seu tempo, porque estes não entendiam o ethos como

    contribuinte da persuasão. Comenta ainda que o ethos, na retórica

    aristotélica, apresenta dois campos semânticos opostos, porém

    complementares e necessários a toda atividade argumentativa. O primeiro

    estaria ligado à moral e englobaria atitudes como honestidade, benevolência

    e equidade. O segundo, com sentido neutro, abrangeria hábitos, costumes,

    modos ou caráter.

    Além de fundamentar suas idéias sobre o ethos na teoria aristotélica,

    Egss (2005) também busca respaldo na teoria de Perelman, principalmente nas

    referências sobre a adaptação do orador ao auditório, sobre as pessoas e seus

    atos e sobre o discurso como ato do orador. Para Egss (2005), está implícita

    nas idéias de Perelman a noção de que o ethos é inerente à realidade de todo

    discurso humano, revelando-se nas escolhas que o orador faz no sistema da

    língua, na maneira como organiza essas escolhas no discurso e no modo como

    se expressa por meio dessas escolhas. Eis por que, tanto para Egss, como

    para Perelman, o ethos é parte constituinte do discurso.

    Para Egss (2005), Aristóteles teria se preocupado com a arte de dizer

    e com a estruturação desse dizer, ou seja, com a forma como se organiza o

    discurso. Já a nossa preocupação, neste trabalho, é com a arte de ouvir o

    outro, ou seja, como esse outro diz o que diz e porque o diz.

    Amossy (org., 2005), cuja discussão em torno do assunto em pauta é

    sobremodo interessante para nós, ressalta que a noção de ethos é estudada

    pelas várias correntes da análise do discurso e da pragmática, as quais

    também fundamentam suas idéias nas bases aristotélicas para compreender

    e explicar a eficácia do discurso. Além disso, para a autora, foi Oswald

    Ducrot quem primeiro introduziu a noção de ethos nas ciências da

    linguagem, noção que este autor fundamentaria na origem da enunciação

    (ou, melhor, para Ducrot, o ethos se revestiria, pela enunciação, de certos

    caracteres que, em contrapartida, poderiam tornar a enunciação aceitável ou

    não). Assim, é se perguntando se o ethos seria pura construção da

  • 16

    linguagem ou uma posição institucional que Amossy (2005) discute suas

    idéias em torno dessa questão. Para a autora, os questionamentos seriam

    respondidos pela intersecção entre a sociologia e a pragmática. Sobre como

    se constitui essa noção para pragmáticos e sociólogos, ela assim

    argumenta:

    [...] o ethos para os pragmáticos, na linha de Aristóteles, constrói-se na

    interação verbal e é puramente interno ao discurso, enquanto o dos

    sociólogos se inscreve em uma troca simbólica regrada por mecanismos

    sociais e por posições institucionais exteriores (Amossy, 1995:122).

    Ressaltamos ainda que, se entendermos que o discurso se

    materializa no texto, que todo discurso pertence a uma cadeia composta por

    discursos vários e que, portanto, nenhum discurso é novo (no sentido de que

    sua constituição primeira advém de uma série de outros), podemos afirmar

    que a polifonia estará presente em nossa análise na intersecção entre o

    discurso dominante — que leva em conta e assimila o discurso autoritário

    das instituições — e um outro, aparentemente individual, mas, em menor ou

    maior proporção, contaminado pelo discurso dominante que é o da

    instituição escolar. Esperamos, então, encontrar no percurso da análise de

    nosso material um discurso constituinte, que, contrariando os ditames

    institucionais, aponte caminhos para a conscientização do medo gerado pela

    própria instituição escolar ou por características ontogenéticas do homem

    diante do estabelecido institucionalmente.

    Eis como Perelman vê a importância do ethos na argumentação:

    De posse de uma linguagem compreendida por seu auditório, um orador só

    poderá desenvolver sua argumentação se se ativer às teses admitidas por

    seus ouvintes, caso contrário corre o risco de cometer petição de princípios.

    Resulta desse fato que toda argumentação depende, tanto para suas

    premissas quanto para seu desenvolvimento principalmente, do que é

    aceito, do que é reconhecido como verdadeiro, como normal e verossímil,

    como válido: desse modo, ela se ancora no social, cuja caracterização

    dependerá da natureza do auditório (Perelman, apud Amossy, 2005:123).

  • 17

    Observamos, nestas palavras de Perelman, princípios fundamentais

    da natureza da comunicação, entendida aqui como ação interativa e,

    portanto, social, que exige dos parceiros envolvidos certa cumplicidade e,

    sobretudo, responsabilidade, principalmente por parte de quem está de

    posse da palavra, no sentido de atentar, não para a verdade absoluta e

    indiscutível, mas para o que é verossímil, o que pode ser aceito por seu

    interlocutor. Assim, se o orador não consegue o afiançamento social que lhe

    garante credibilidade, o discurso pode cair no descrédito e não atingir o

    objetivo esperado.

    Acreditamos ainda que estejam contidas nesses argumentos de

    Perelman algumas das razões que levam Amossy a dizer que "o orador

    constrói sua imagem em função da imagem que ele faz do seu auditório, isto

    é, das representações do orador confiável e competente que ele crê ser as

    do público" (Amossy, 2005:124), e a definição o ethos como o "conjunto de

    características que se relacionam á pessoa do orador e à situação na qual

    esses traços se manifestam que permitem construir sua imagem" (Amossy,

    2005:127).

    Em Maingueneau (2005b) recorre-se não só aos postulados da

    retórica clássica, mas também à teoria da enunciação. O autor desenvolve

    uma noção do ethos em textos de caráter não predominantemente

    argumentativo diferente da noção apresentada pela análise do discurso.

    Além de ter função persuasiva na argumentação, essa abordagem sobre o

    ethos, permitiria refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a

    certa posição discursiva. O ethos constituiria, no discurso, elemento mais

    mostrado do que dito. Não se pode ignorar que o público constrói uma

    representação do ethos do enunciador antes mesmo que ele enuncie,

    embora tal ethos esteja ligado ao ato de enunciação: é a isso que

    Maingueneau (2005b:70-71) chama de ethos pré-discursivo.

    A noção de ethos pré-discursivo parece relevante, pois o eixo de

    nosso trabalho é a retórica do medo nas relações escolares. Presumimos

    que esse ethos revela-se através do discurso dos sujeitos de nossa

    pesquisa pela presença do medo, entendido aqui como categoria passional

  • 18

    derivada de uma sanção negativa que, no âmbito escolar, seria imposta pelo

    discurso autorizado das instituições.

    Nessa perspectiva, o pathos que empiricamente pressentimos é o

    medo gerado pelo discurso autoritário sobre os indivíduos no ambiente

    escolar. Salientamos, porém, que essas ponderações poderão ou não se

    confirmar nos depoimentos colhidos por nós, mas sempre serão objetos de

    análise para refutar ou provar a equidade de nossa premissa.

    Interessa-nos ainda, nas colocações de Maingueneau (2005b), a idéia

    de que todo discurso possui uma "vocalidade" específica que permite

    associar a noção do ethos a uma fonte enunciativa por meio de um tom que

    indica quem o disse, pois, segundo o autor, da leitura emergiria uma

    instância subjetiva a exercer o papel de fiador, figura construída pelo leitor a

    partir das marcas textuais deixadas no discurso pelo orador. Ademais, "a

    qualidade do ethos remete, com efeito, à figura desse 'fiador', que, mediante

    sua fala, se dá uma identidade compatível com o mundo que supõe que ele

    faz surgir em seu enunciado" (Maingueneau, 2005b:73).

    Em Análise de textos de comunicação e O contexto da obra literária,

    Maingueneau retoma e complementa suas idéias sobre o ethos. No primeiro

    trabalho, para discutir o ethos, retoma os pressupostos da retórica clássica.

    A retórica antiga compreendia por "ethé" as propriedades que os oradores

    se conferem implicitamente através de sua maneira de dizer não o que

    dizem explicitamente sobre si próprios, mas a personalidade que mostram

    através de sua maneira de se exprimir. Aristóteles esboçou uma tipologia

    que distingue a "phonesis" (parecer ponderado), a "eunoia" (dar uma

    imagem agradável de si) e o "areté" (apresentar-se como homem simples e

    sincero) (Maingueneau, 2005a:173).

    A eficácia do ethos, para o autor, está vinculada à enunciação, pois é

    mediante o que o orador pretende mostrar de si, na sua maneira de se

    exprimir, que o ethos se molda. Dessa forma, mesmo vinculado à

    enunciação, o ethos não se confunde com a pessoa que produz o

    enunciado; constitui-se, antes, como representação do orador, ou seja, o

  • 19

    ethos é "o sujeito da enunciação enquanto está enunciando". A instância

    responsável pelo tom, na enunciação, não coincide com o autor efetivo da

    obra, pois seria uma representação do enunciador, mas com um caráter e

    uma corporalidade. Ao caráter corresponderiam os traços psicológicos dessa

    representação; à corporalidade, a movimentação do corpo no espaço social.

    O segundo trabalho (cf. Maingueneau, 1995) apresenta o ethos como

    a personalidade que o enunciador revela mediante a enunciação e o

    enunciado como o produto de uma enunciação que implica uma cena. E

    reitera que, toda fala procede de um enunciador encarnado e, mesmo

    quando um texto é escrito, é sustentado por uma voz, a de um sujeito para

    além do texto (cf. Maingueneau, 1995:96).

    Em se aceitando na construção discursiva a indissociação de ethos,

    logos e pathos, parece não ser prudente discutir a noção de ethos, seja em

    textos de predominância argumentativa, seja em outros de qualquer

    natureza, em que se pretende verificar a construção dessa imagem

    discursiva "não-tão-aparente", desvinculando dessa discussão as noções do

    logos e do pathos. De um lado, se o objetivo do orador é apenas movimentar

    as paixões (pathos) do ouvinte, para atingir esse fim ele lançará mão de

    argumentos, utilizando-se da linguagem, o que já o coloca no terreno do

    logos. De outro, o uso da linguagem na argumentação requer de quem a

    utiliza escolhas dentro do sistema da língua, e é a partir dessas escolhas e

    da forma como as utiliza e as organiza no discurso que o orador constrói sua

    imagem, seu caráter — imprimindo, portanto, ao discurso, identidade, estilo,

    a fim de conseguir a confiança daqueles a quem pretende influenciar: eis a

    presença do ethos.

    Pensemos em quão relevantes são — para a prática pedagógica,

    sobretudo para o professor — o desdobramento, por Aristóteles, do ethos

    em "phonesis", "eunoia" e "areté": a função de educador exige mesmo um

    parecer ponderado, uma imagem agradável de si e um apresentar-se como

    homem simples e sincero, posto que, negando isto, se incorre no risco de,

    pela forma como se apresenta (no dizer, na forma de dizer, incluindo a

    postura física), conduzir o outro à construção de ilusões que poderiam levá-

  • 20

    lo a uma fuga na compreensão e na interpretação de sua própria realidade e

    da realidade que o cerca.

    Cabe observar que — como auditório dos retores, dos sujeitos que

    produziram nosso material de análise — ouvimos "representações". No

    entanto, para a tarefa de pesquisa, essas representações traduzem a

    verdade que se pode aferir, numa circunstância específica e num ambiente

    específico.

    A partir das idéias até aqui abordadas, em torno de como se articulam

    na argumentação ethos, pathos e logos, pretendemos verificar, nos vários

    discursos dos sujeitos que participaram de nossa pesquisa, como se

    traduzem em argumentos esses conceitos, a fim de que possamos, a partir

    dos ethos individuais desses sujeitos, (re)construir ethos coletivo daqueles

    que atuam na escola. Uma (re) construção, portanto, intermediada pelo

    logos e pelo pathos. No capítulo a seguir, vamos examinar a retórica numa

    perspectiva histórica e as paixões, como as via Aristóteles, com destaque

    para medo.

  • 21

    Capítulo ll

    História/retórica e paixões

    2.1. Retórica: ontem e hoje

    Como o eixo que norteia este trabalho é a retórica do medo nos

    gêneros escolares, parece relevante, de início, situar historicamente a

    retórica e as paixões, para, em seguida, tratar dos estudos dos gêneros,

    inclusive na perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de

    Língua Portuguesa. Como referência teórica, buscaremos as idéias de

    Platão, Aristóteles, Mosca, Meyer, Perelman & Olbrechst-Tyteca (sobre

    retórica e argumentação), Bakhtin, Bazerman, Marcuschi, Meurer e Motta-

    Roth (sobre os gêneros textuais).

    Na antiga Grécia, havia duas escolas que preparavam o cidadão para

    a vida pública da cidade. O que se ensinava nessas escolas oscilava entre a

    geometria, a filosofia e a retórica. Na escola isocrática, predominava o

    ensino da filosofia e da retórica. O falar bem pertencia ao campo retórico e o

    pensar, ao da filosofia. Eram disciplinas equivalentes, que formavam um

    único corpo de estudos. Na escola platônica, procurava-se mostrar a

    diferença entre a filosofia e a retórica. Há em Platão conceitos e conteúdos

    diferenciados para essas disciplinas: a retórica ocupava-se da arte do bem

    falar; a filosofia abordava, especificamente, questões relativas à alma. Na

    visão platônica, a filosofia era superior à retórica, e, como pertencia ao plano

    das idéias, não fazia parte do logos, do discurso, pois o discurso carregava

    as marcas do humano e de suas contingências, constituindo-se em campo

    fértil para engendrar e arquitetar as proposições e os julgamentos

    demonstrados por meio do caráter convincente que poderiam adquirir, por

    habilidade do orador, como verdadeiros.

  • 22

    Assim, há na filosofia platônica uma dicotomia entre os planos físico e

    espiritual. Platão afirmava que o homem comum vivia de suas paixões e o

    filósofo, de suas idéias. Neste contexto, deve-se entender "idéia" como o

    espaço onde são criados os conceitos. Para melhor explicar essa distinção

    entre mundo espiritual e mundo físico, o pensador comparou a alma a uma

    carruagem movida por cavalos e dirigida por um cocheiro. Nessa imagem, os

    cavalos simbolizariam o desejo sensível e força da resistência desse desejo

    — o mundo físico, portanto, com seus apetites e paixões. O cocheiro, por sua

    vez, representaria a razão, elemento harmonizador entre o apetite da carne e

    a elevação do espírito. Nessa visão alegórica, a razão buscaria o Bem, a

    Beleza espiritual e de sua prática, enquanto a ignorância, ou a ausência da

    razão, seria mero produto da paixão cega e automática. O filósofo

    considerava como sábio, portanto, o homem que buscasse o Bem e, com

    isso, conseguisse superar suas paixões.

    Em O banquete, Platão idealizou uma complexa situação em que

    várias personagens, inclusive Sócrates, reúnem-se para discorrer sobre o

    Amor, uma das paixões de que falará mais tarde Aristóteles. Platão aborda o

    tema por intermédio de seus personagens e de um verdadeiro jogo dialético

    em que cada orador advoga seu ponto de vista, sem excluir nenhuma das

    teses apresentadas. Conteúdo e forma parecem igualmente importantes,

    haja vista a quantidade de referências mitológicas, proverbiais, as imagens,

    as analogias, tudo visando, entre outras questões, à qualidade da

    argumentação.

    Fonseca (2003) observa, na introdução de Retórica das paixões, que

    Aristóteles elaborou a retórica com o intuito de mostrar o caráter deficiente e

    pouco filosófico do tratamento dado a esse campo de conhecimento pela

    escola de Isócrates. A concepção aristotélica do saber humano diferia muito

    das exigências de Platão, já que Aristóteles preferia utilizar-se do mundo da

    doxa, da opinião, e não se prendia aos questionamentos filosóficos que

    tentavam levar a certezas filosóficas. Comenta ainda a autora que

    Aristóteles foi quem estabeleceu leis e regras para a retórica, que, para ele,

    devia ser, sobretudo, uma rigorosa técnica de argumentar.

  • 23

    Se a lógica procura alcançar a demonstração irrefutável, a retórica

    utiliza silogismos que, embora convincentes, são refutáveis e a que o

    pensador denomina entimemas. Ainda segundo Fonseca (2003), mesmo

    quando se tratava de fins políticos, o pensador não acharia aconselhável a

    utilização exclusiva de verdades universais, pois seria significativo o papel

    das opiniões que, de fato, constituíam as premissas do raciocínio retórico.

    Assim, para sustentar ou anular uma tese, era de responsabilidade do

    orador descobrir o que havia de persuasivo em cada questão.

    Para esclarecer diferenças entre Platão e Aristóteles no tratamento

    dado à questão retórica, vale observar que, na concepção platônica, a

    retórica seria imoral; para Aristóteles, nem moral nem imoral — consistiria,

    antes, em uma forma de defender idéias mediante o uso da palavra e não da

    força física. Assim, para Fonseca (2003:XIII), "seria absurdo que fosse

    vergonhoso não poder defender-se com seu corpo, e que não fosse

    vergonhoso não poder defender-se pela palavra, pois isso é mais próprio do

    homem do que servir -se do corpo".

    Mas as divergências entre os dois pensadores não dizem respeito só

    ao mundo da opinião e ao caráter moral, imoral ou neutro da retórica. Ainda

    de acordo com Fonseca (2003), se Platão restringiu a exploração das

    paixões, Aristóteles deu total apoio a estas, exigindo, porém, orientação e

    comedimento para não se chegar a exibições dramáticas.

    As paixões na filosofia aristotélica devem ser entendidas como

    emoções de caráter transitório e passageiro, provocadas pelo orador

    naqueles o que o ouvem, com a intenção de atingir seu objetivo, ou seja, a

    concordância com suas idéias. Logo, ao se referir às emoções e seu caráter

    efêmero, melhor seria pensar em estar e não em ser: a primeira ação

    reenvia ao princípio de transitoriedade característico do terreno dos

    sentimentos; a segunda, ao da permanência — e, por isso, de modo algum

    se integra ao caráter das emoções. Ademais, os meios de que se deve servir

    o orador para acionar as paixões não são apenas os de ordem objetiva

    lógica e intelectual, que permitem aproximação às verdades irrefutáveis; são

    também os de caráter subjetivo: o ethos, o logos e o pathos.

  • 24

    De acordo com Meyer (1993), se as paixões já estão engendradas na

    filosofia platônica, Aristóteles é quem sistematiza os princípios da retórica e

    da lógica utilizados para chegar à verdade dos raciocínios silogísticos e dos

    entimemas. A diferença, porém, consiste no fato de que, para a lógica, o

    objetivo é a verdade irrefutável e, para a retórica, embora silogismos e

    entimemas sejam convincentes, a verdade daí proveniente pode ser

    contestada, o que admitiria concordância entre teses aparentemente

    contrárias entre si. Portanto, na concepção de Aristóteles, um orador poderia

    sustentar ou refutar determinada tese, desde que, pelo exercício do

    pensamento e da reflexão, descobrisse aquilo que cada questão encerrava

    de persuasivo. Seria isto a busca da verdade pela dialética.

    Aristóteles escreveu três compêndios sobre a retórica (cf. Aristóteles,

    2003). No primeiro, demonstra que a retórica não se restringia apenas à arte

    do bem falar, da eloqüência, concepção esta ainda comum sobre a retórica.

    Veja-se, por exemplo, a definição de retórica no Dicionário Houaiss da língua

    portuguesa: "retórica s. f. 1 Fil. Ret. a arte da eloqüência, a arte de bem

    argumentar; arte da palavra 2 p. ext. Ret. conjunto de regras que constituem

    a arte do bem dizer, da eloqüência; oratória." Mesmo considerando a

    expressão "bem argumentar", não há referência ao aspecto persuasivo do

    discurso, mas indicações claras sobre a arte da eloqüência e do bem dizer.

    Idéia bem compatível com a do senso comum, que designa qualquer

    discurso empolado e sem sentido como "só retórica", que sugere ser a

    retórica um amontoado de palavras bonitas e vazias de significados.

    Em lugar de limitar a retórica à mera palavra bonita e bem colocada,

    Aristóteles referia-se ao grau de objetividade do discurso (logos), ou seja, à

    palavra empregada com racionalidade, pois, para o filósofo, a argumentação

    demonstrativa devia acontecer através de provas (pisteis), elemento

    constituinte essencial do discurso e, portanto, da tarefa do orador para

    conduzir racionalmente o que pretendia demonstrar. Incluía-se também

    como elemento integrante das provas o provocar emoções no auditório.

    Seriam estas as provas de caráter subjetivo, também utilizadas com a

    intenção de convencer ou de persuadir.

  • 25

    Aristóteles afirma, no segundo livro dedicado à retórica que apenas as

    provas demonstrativas não seriam suficientes para se obter a confiança do

    auditório. E, tendo a retórica como finalidade um julgamento, seria

    necessário não só atentar para o discurso, a fim de que fosse demonstrativo

    e digno de fé, mas também provocar paixões que, para o pensador, eram

    todos os sentimentos que causavam mudanças nas pessoas e faziam diferir

    seus julgamentos. Para o pensador, as paixões constituiriam um teclado no

    qual o bom orador devia tocar para convencer. Nessas condições, para

    despertar o pathos, seria preciso, antes, conhecer o ethos do orador.

    Observa-se nessa concepção uma verdadeira dialética passional em que a

    retórica sempre servia para ajuste das diferenças, das contestações. O bom

    orador devia estar atento, se pretendia persuadir ou convencer. Assim, "para

    quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer [...].

    Em contrapartida, para quem se preocupa com o caráter racional da adesão,

    convencer é mais que persuadir" (Perelman & Olbrechst-Tyteca, 1996:30).

    Isto é, o orador deve buscar a interação com o outro, por meio da harmonia

    discursiva em que ethos, pathos e logos são elementos indissociáveis para o

    afiançamento social do discurso.

    Meyer (2003), no prefácio de Retórica das paixões, enfatiza que a

    questão passional já se fazia presente em Aristóteles e Platão, nos sofistas

    e, talvez, em Sócrates. Sobre os sofistas, diz este autor: "utilizavam-se da

    abertura do pensamento, com suas alternativas tornadas insolúveis, para

    promover as mais presunçosas opiniões sem se constranger, quando de seu

    interesse, ao defender depois a tese contrária" (Meyer, 2003:20).

    O autor esclarece que Sócrates tinha a intenção de desmascarar os

    sofistas, ao questioná-los quando tentavam justificar suas teses em função

    de seus próprios interesses e, por isso, não lhe perdoariam ter provado ser

    injustificável seu desejo de alcançar altos postos políticos.

    Ao comentar as idéias de Platão, Meyer (2003) diz que o filósofo

    pensava ter criado uma nova teoria do logos, um logos racional que

    determinaria as condições para um novo responder possível e que resolveria

    os questionamentos socráticos. Isso,ressalta o autor, talvez tenha levado

  • 26

    Platão a rejeitar "a incerteza das alternativas, a insolubilidade dada à

    multiplicidade das opiniões, o caos do sensível" (Meyer, 2003:20).

    Se as idéias máximas do pensamento platônico, como Amor, Justiça,

    Verdade e Beleza, fazem parte das essências e remetem ao mundo

    inteligível ou espiritual e as paixões dependem do mundo sensível ou

    material, cabe uma pergunta: a teoria das idéias teria nascido da restrição do

    logos? Tudo faz crer que sim, e o próprio Platão, na opinião de Meyer

    (2003), parece responder a tal questionamento, quando recorre, no Fedro, à

    alegoria, ao mito, às imagens para falar do que escapa à razão, do que a

    esta se opõe e que, apesar disso, deveria a esta voltar.

    Não há como limitar o humano ao aspecto racional, pois nele um

    princípio ativo e outro passivo estabelecem uma dinâmica de compensação,

    em que paixão e ação entram em conflito, ainda que em convivência.

    Entretanto, a paixão no pensamento platônico visa explicar que o homem

    não se preocupa com a razão nele oculta. Ou seja, para Platão, a paixão é o

    que retém o homem na ignorância e a razão, o que lhe permite o

    conhecimento.

    Aristóteles, ao retomar os questionamentos platônicos por meio da

    dialética ou da retórica, restitui ao logos seu caráter opinativo, de

    possibilidade, de provável, e é isso o que o aproxima do terreno das paixões

    onde estão os conflitos e opiniões humanas.

    A questão passional, no pensamento aristotélico, ao contrário do que

    se lhe impunha a restrição platônica, ocupa o lugar em que os homens se

    enfrentam, concordam ou discordam consigo mesmos e na interação com o

    outro, movidos pelo temor, pela coragem, pela vergonha, pela inveja ou

    outra paixão — mas, com certeza, fazendo uso da linguagem.

    Meyer (1993) observa que o sujeito, para Aristóteles, é uno e múltiplo

    ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista — uno como sujeito e múltiplo

    no predicado —, sendo essa multiplicidade predicativa o que Aristóteles

    chama de categorias do ser. A categoria predicativa seria o lugar em que se

    encontram os adjetivos, os qualificadores, isto é, as características

    subjetivas, tão variáveis e, por isso mesmo, dependentes do contexto

  • 27

    histórico, social e cultural. Mesmo que cada ser apresente características

    intrínsecas ao seu próprio eu, não se pode negar o aspecto de mutabilidade

    variável de acordo com as circunstâncias. Se assim não fosse, perder-se-ia

    o que é inato no humano, ou seja, a possibilidade de crescer, aprender,

    sofrer, alegrar-se, indignar-se, etc.

    A noção de paixão (pathos) discutida por Meyer (1993) apresenta

    uma ambigüidade por ser, em princípio, a voz da contingência, da qualidade

    que se vai atribuir ao sujeito e, portanto, está fora dele. O pathos seria, sob

    esse ponto de vista, tudo o que não é o sujeito e, ao mesmo tempo, tudo o

    que ele é. Seria, por outro lado, a afirmação da identidade. Como afirma o

    autor, o homem em Aristóteles jamais está só, pois, além da companhia de

    outros e de suas paixões, não haveria lugar onde se pudesse esconder as

    paixões de cada um. Depreende-se assim que, se o eu não tiver a

    companhia do outro com suas paixões, terá, inevitavelmente, a própria

    companhia e de suas próprias paixões. Idéia que Meyer (1993) confirma, ao

    dizer que a paixão não está só na relação com outro e na representação

    interiorizada da diferença entre esse outro e nós, mas é o lugar onde se

    negociam identidades e diferenças, sendo, então, o momento retórico por

    excelência, constituindo-se, portanto, como respostas às inferioridades e às

    superioridades.

    Compreende-se, assim, que é no campo das paixões que se dão os

    conflitos e as diferenças entre os humanos, que devem resolver tais conflitos

    e diferenças pelo bom uso do discurso, sem, contudo, deixar-se levar pelo

    descomedimento. O que, sem dúvida, deve acontecer pela habilidade do

    argumentar na intenção de construir uma identidade onde há diferenças e

    contestações.

    Como observa Meyer (1993), Aristóteles apresenta uma concepção

    de paixão um tanto incongruente com a concepção do senso comum — que,

    provavelmente, não imagina pertencerem ao terreno das paixões

    sentimentos como favor, vergonha, impudência, temor, segurança, inveja,

    indignação, desprezo, amor, compaixão, emulação, ódio, indignação e

    desprezo e, muito menos, que as paixões aristotélicas, na Retórica, refletem

  • 28

    as representações que fazemos do outro, considerando o que esse outro é

    para nós, realmente ou no domínio na nossa imaginação.

    Mosca (1997) justifica a vitalidade dos estudos retóricos na

    atualidade, não só pela solidez e perenidade das idéias de Aristóteles — que

    admitem a aceitação da mudança, a alteridade e a consideração da língua

    como lugar de confrontos e de subjetividades —, mas também porque a

    retórica se insere no exercício da reflexão pessoal, no domínio dos

    conhecimentos prováveis, no terreno da verdade e aparência de verdade, da

    verossimilhança, logo, no espaço em que há lugar para a sensibilidade, a

    sedução, o fascínio, as crenças e as paixões. Ademais, o universo retórico é

    formado pelo embate de idéias e pela habilidade em manejar o discurso. E,

    se argumentar é fruto de uma atividade interativa, vale considerar o outro

    como capaz de reagir e de interagir ante as teses e propostas que lhes são

    apresentadas.

    A autora esclarece que,

    [...] a partir dos anos 60, as teorias retóricas modernas representadas,

    sobretudo pela teoria argumentativa de Perelman e seus continuadores e

    pela Retórica Geral ou Generalizada, do Grupo U de Liége (Bélgica), vêm

    retomar a velha Retórica e, ao mesmo tempo, renová-la, valendo-se dos

    avanços trazidos por diversas disciplinas que se afiguraram no nosso

    século: a Lingüística, a Semiologia \ Semiótica, a Teoria da Informação, a

    Pragmática (Mosca, 1997:18).

    Entende-se, a partir dessas observações, que o campo da retórica

    está longe das restrições que lhe impuseram no decorrer da história, como,

    por exemplo, o estudo das figuras retóricas, a questão da mera eloqüência.

    Hoje, a retórica trabalha em outro nível de linguagem que não apenas o

    verbal. Se a limitaram, no passado, à rigidez dos cânones com fórmulas que

    nortearam toda a produção e a avaliação de obras concretas, houve, por

    outro lado, quem lhe conferisse o estatuto de ciência:

    De todas as disciplinas antigas, é a que melhor merece o nome de ciência,

    pois a amplidão das observações, a sutileza da análise, a precisão das

  • 29

    definições, o rigor das classificações constituem um estudo sistemático dos

    recursos da linguagem, cujo equivalente não se encontra em qualquer dos

    outros conhecimentos daquela época (Guiraud, apud Mosca, 1997:19).

    Outro fator que, na opinião de Mosca (1997), ainda valida a retórica

    são as representações, os simulacros de que todos nós fazemos uso em

    nossos discursos, nas nossas relações, idéia amparada pelo pensamento

    aristotélico na referência sobre verdade e aparência de verdade.

    Sobre a arte de argumentar e a retórica como técnica para convencer

    e persuadir, lembremos a pertinência entre os estudos modernos da

    argumentação e o que preconizava a retórica aristotélica:

    O objetivo de toda argumentação, já o dissemos, é procurar aumentar a

    adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma

    argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensividade de

    adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação

    positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a

    ação, que se manifestará no momento oportuno (Perelman & Olbrechst-

    Tyteca, 1996:50).

    Observe-se que estão contidas nas idéias de Perelman & Olbrechst-

    Tyteca (1996), além da noção do discurso persuasivo que atua sobre o

    ouvinte pelos logos (palavra, razão), a do caráter do orador (ethos), que

    deve estar em afinidade com o ouvinte, despertando-lhe confiança e

    ganhando credibilidade ao que vai dizer, e o movimento das paixões

    (pathos), reações que o orador desencadeia no ouvinte. Também para

    Mosca (1997), as noções de logos, ethos e pathos, como elementos de

    persuasão de que se utiliza o orador, constam das definições posteriores à

    retórica clássica, como instruir (docere), comover (movere) e agradar

    (delectare). Sendo assim, as novas retóricas mantêm forte vínculo com as

    idéias do passado, visto que se apóiam no caráter interativo e dialógico da

    linguagem, tanto ontem, quanto hoje.

    Perelman & Olbrechst-Tyteca, em seu Tratado da argumentação,

    tratam dos vários tipos de argumentos de que um orador pode dispor na

  • 30

    organização de seu discurso e que os autores classificam em três

    categorias: quase-lógicos, baseados na estrutura do real e os que fundam a

    estrutura do real. Dentre os inumeráveis argumentos estudados pelos

    autores, nessas categorias, destacamos aqueles expostos a seguir, visando

    reconhecê-los em nosso material de análise.

    a) Quanto aos argumentos que se fundamentam no ridículo: uma

    afirmação é ridícula, na opinião dos autores, se entra em conflito, sem

    justificativa, com uma opinião aceita, contraria o princípio da lógica, embora

    seja um recurso que permite ao orador contrariar as manifestações opostas

    às premissas de seu discurso.

    b) Argumentos que recorrem à ironia: exigem de quem os utiliza

    conhecimentos complementares acerca de fatos e normas, bem como um

    acordo entre orador e ouvinte, pois a opinião do orador não pode gerar

    dúvidas.

    c) Sobre o exemplo: na argumentação, o exemplo, na opinião dos

    autores, deve usufruir do estatuto de fato, por ser incontestável, pois

    fundamenta uma regra e deve ser incontestável. Já a ilustração tem como

    função reforçar a adesão ao auditório a uma regra já conhecida e aceita e,

    por isso, pode ser duvidosa, embora deva impressionar.

    d) Argumentos pragmáticos: são aceitos pelo senso comum, porque

    não requerem nenhuma justificativa, posto que permitem apreciar um ato ou

    acontecimento, conforme suas conseqüências sejam favoráveis ou

    desfavoráveis ao que se defende ou contraria.

    e) O recurso ao lugar da quantidade: na argumentação afirma ser

    uma coisa melhor que outra pela quantidade, assegurando, portanto, por

    razões quantitativas, a superioridade do que aparece em maior número de

    vezes.

    f) O argumento de autoridade: é de extrema importância, pois, mesmo

    que se conteste seu valor, não se pode descartá-lo como irrelevante, já que

    o orador, quando assim argumenta, utiliza-se de atos ou juízos de uma

    pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de provar uma tese.

  • 31

    g) Sobre as definições que servem como técnicas persuasivas:

    1) as definições normativas, que indicam a forma em que se quer que uma

    palavra seja utilizada [...]; 2) as definições descritivas, que indicam qual o

    sentido conferido a uma palavra em certo meio, num certo momento; 3) as

    definições de condensação que indicam elementos essenciais da definição

    descrita; 4) as definições complexas, que combinam, de forma variável,

    elementos das três espécies precedentes (Perelman & Olbrechst-Tyteca,

    1986: 239).

    h) Da inclusão da parte com o todo resultam dois grupos de

    argumentos: os que incluem as partes no todo, sem considerar como

    superior nem o todo nem a parte em que, ambos são tratados numa relação

    de igualdade; e os que demonstram a divisão desse todo em suas partes e

    pressupõem que a soma das partes deva reconstituir esse todo.

    O universo retórico atualiza-se no campo discursivo, principalmente

    quando se considera o discurso como ato interativo, produzido por alguém,

    em determinado contexto sócio-histórico-cultural, que faz escolhas —

    lexicais, sintáticas, estilísticas — para compor seu discurso, visando sempre

    ao outro, por sua vez contextualizado, que também faz escolhas ao receber

    o discurso. Essas implicações não nos permitem falar em informação sem

    intencionalidade, pois todo discurso, implícita ou explicitamente, traz

    elementos que visam persuadir, convencer e, portanto, formar opinião.

    Além do que já foi exposto sobre a atualidade da retórica, há que se

    falar sobre os componentes de seu sistema — inventio, dispositio, elocutio,

    actio e memoria —, elementos ainda essenciais para se organizar e compor

    um trabalho de qualidade.

    Numa dissertação de mestrado, por exemplo, precisa-se de um

    estoque de material (leituras, fichamentos, etc.), antes de proceder à escrita,

    ou seja, de um conteúdo; é necessário pensar em como organizar e dispor

    em forma escrita esse conteúdo, para se construir um discurso claro, coeso,

    coerente e objetivo; há ainda as escolhas lingüísticas, na tentativa de

    adequar forma e conteúdo. Tudo isso no plano do discurso. Já a ação refere-

  • 32

    se ao próprio ato de escrever ou de falar: afinal, é assim que o discurso se

    atualiza. Sobre a memória, seria importante lembrar que mantém importante

    vínculo com as outras partes, porque depende destas para arquivar, senão

    seqüencialmente, pelo menos em parte, os pontos fundamentais do que se

    pretende falar, para, no momento da exposição, não se limitar à mera leitura

    daquilo que foi escrito.

    A memória ainda é importante, pois

    os recursos modernos da eletrônica não desterraram o trabalho da

    memória, como seríamos levados a pensar. Pelo contrário, voltam a

    recuperá-la e a valorizá-la. O elemento oral, que havia sido marginalizado

    pelo advento da era gutenberguiana, entroniza-se com toda a força através

    da mídia em geral (telefone, rádio, televisão, gravação electro-magnética do

    som e da imagem). A comunicação oral pode permanecer, ser conservada,

    transmitida à distância, reproduzida, tal como a escrita (Mosca, 1997:30).

    A partir desses pressupostos, numa análise retórica,

    pode-se ir de uma tentativa de ação – proferir algumas frases – para buscar em

    seguida argumentos; escrever antes de encontrar um plano, etc. Mas pouco

    importa a ordem cronológica. As quatro partes na realidade são as quatro

    "tarefas" (erga) que devem ser cumpridas pelo orador (Reboul, 2000: 44).

    Assim, pretendemos direcionar a análise dos discursos de nossos

    oradores — sujeitos de nossa pesquisa —, questionando suas

    representações discursivas sobre a instância retórica a partir da qual esses

    retores pretendem conduzir seus discursos. Como se compõe a instância,

    em termos de tema, problema retórico e antecedentes que subjazem à

    situação retórica? Como está colocada a questão que deve conduzir a

    discussão? A que tipo de auditório se dirigem, bem como o que pretendem

    modificar?

    Se entendermos que o ato retórico é um ato de comunicação,

    haveremos, então, de procurar nesses discursos os componentes da

    dispositio, ou seja, exórdio, proposição, partição, descrição, peroração e

  • 33

    argumentação e, nesta última, procurar saber das provas e seus tipos

    (confirmativas, refutatórias), além de questionar o tipo de gênero do discurso

    predominante na argumentação. Ao formular questões como essas, quando

    nos dispusermos a escrever, teremos mais chances de sermos entendidos.

    Todavia, consideramos também a possibilidade de não enxergarmos em

    todos os textos selecionados, para nosso trabalho, respostas para alguns

    desses questionamentos, seja porque não dispomos de conhecimento prévio

    suficiente, seja porque os discursos não atendem a tanto.

    Quanto aos tipos de discurso, em Aristóteles encontram-se o

    deliberativo, o judiciário e o epidítico. Não cabe aqui mencionar a função de

    cada um deles na Antigüidade, mas verificar onde se pode encontrá-los hoje.

    O discurso judiciário está presente nos tribunais, utilizado pelo promotor e

    pelos advogados de defesa e acusação em seus julgamentos. Também

    ocorre nos sermões, utilizado pelos chefes religiosos, acusando ou

    defendendo comportamentos ou atitudes daqueles que compartilham ou não

    determinada crença, em manifestos, cartas abertas e notas oficiais,

    denunciando ou inocentando pessoas e atos. (Como ilustração, lembremos

    aqui o atual cenário político brasileiro, com a proliferação de comissões

    parlamentares de inquérito, diante das quais, a todo o momento, surge um

    culpado que tenta culpar a outro, para se inocentar diante do público.)

    O gênero deliberativo pode ser encontrado em documentos técnicos,

    como recomendações de consultores e seus pareceres. Faz-se notar

    também nos discursos políticos de modo geral, nos encaminhamentos

    contra ou a favor da provação de projetos de lei, medidas provisórias, etc., e

    em pronunciamentos que aconselham ou desaconselham iniciativas diante

    de posições controvertidas. (Recorde-se da propaganda sobre o referendo

    de 23 de outubro de 2005, relativo à chamada Lei do Desarmamento, que

    sugeria se votar a favor ou contra a comercialização de armas e apresentava

    as razões por que o cidadão deveria agir de um modo ou de outro.)

    Quanto ao gênero epidítico, encontramo-lo nos discursos

    comemorativos, em ocasiões solenes, geralmente de caráter emotivo, como

    despedidas, outorga de condecorações, cerimônias de formatura,

  • 34

    encerramento de eventos e tomadas de posse para cargos, bem como nos

    discursos fúnebres, principalmente de pessoas famosas, em que se exaltam

    seus feitos, etc.

    2.2. Gêneros textuais

    a) Gêneros textuais como práticas sócio-discursivas

    Desde o homem percebeu-se como criatura dotada da capacidade de

    linguagem, na infância da humanidade, tem procurado criar e aperfeiçoar

    formas de se comunicar. Se assim não fizesse, não conseguiria sobreviver.

    Nesse sentido é que o desenvolvimento da habilidade de comunicação

    sempre foi e é pré-requisito fundamental para a dinâmica da vida em

    sociedade, tanto ontem, quanto hoje.

    Com esses pressupostos, pode-se admitir que "é na sala de aula que

    os educadores de letramento têm a oportunidade de trabalhar e de contribuir

    para o crescimento e o desenvolvimento da maioria dos membros da

    sociedade" (Bazerman, 2006:9).

    Meurer & Motta-Roth (2002) corroboram essa idéia, quando afirmam

    que cresce no mundo contemporâneo a conscientização sobre a linguagem,

    o que nos leva a pensar na importância de se buscar um conhecimento

    crítico sobre as práticas discursivas sociais.

    Nessa perspectiva, Marchuschi (2005:19) enfatiza que os gêneros

    "são entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em

    qualquer situação comunicativa [que] caracterizam-se como eventos textuais

    altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos". O autor distingue tipologia

    textual de gênero textual. Na sua opinião,

    os tipos textuais são seqüências teoricamente definidas pela natureza

    lingüística de sua composição e se caracterizam por aspectos lexicais,

    sintáticos, tempos verbais, relações lógicas. Já os gêneros textuais como

  • 35

    formas de ação social, definidos pelo conteúdo, propriedades funcionais,

    estilo e composição (Marcuschi, 2005: 22-23).

    Assim, cabe à escola desenvolver tais habilidades nos educandos,

    possibilitando-lhes maior contato com os mais variados gêneros textuais em

    várias modalidades de linguagem, pois "é responsabilidade central do ensino

    formal o desenvolvimento da consciência sobre como a linguagem se

    articula em ação humana sobre o mundo através do discurso ou, como

    preferimos chamar, gêneros textuais" (Meurer & Motta-Roth, 2002:12).

    Considerando que o trabalho com a linguagem, na ótica do estudo dos

    gêneros textuais, é uma necessidade (prevista até pelos Parâmetros Curriculares

    Nacionais) que, se atendida de modo efetivo pela escola, pode ampliar as

    habilidades comunicativas das pessoas, procuramos constituir, juntamente com

    estudantes, docentes e integrantes do corpo funcional da unidade de ensino em

    que exercemos o magistério, o corpus de nossa pesquisa.

    b) Uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais, na perspectiva do

    estudo dos gêneros

    Como nos propusemos, neste trabalho, a trabalhar com o medo nos

    gêneros escolares, entendidos aqui como textos de circulação real efetiva,

    julgamos pertinente fazer algumas considerações sobre como os

    Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) enfatizam a leitura e a produção

    de textos na perspectiva dos estudos dos gêneros textuais.

    Como conseqüência dos processos de industrialização e urbanização,

    da ampliação da necessidade do uso da escrita e do aumento da demanda

    de alunos regulares na rede pública de ensino, os PCN admitem a

    necessidade antiga de mudanças no ensino que se reflitam

    significativamente no ensino de língua materna, colocando-a como foco das

    discussões sobre a possibilidade de integrar essa nova realidade ao trabalho

    pedagógico. O ensino de leitura e escrita passou a centrar-se no texto

  • 36

    visto como produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um

    todo significativo, qualquer que seja sua extensão, é o texto, uma seqüência

    verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir

    da coesão e da coerência (Brasil, 1998:21).

    Embora muitas vezes a teoria esteja muito distante da prática, há que

    se considerar um grande avanço a mudança do ensino concentrado na frase

    para o ensino centrado no texto. A partir dessa perspectiva, pôde-se refletir

    sobre práticas de linguagem que entendem o texto como produto de

    atividades discursivas, definidas com objetivos, intenções e propósitos que

    podem conduzir a uma ação. Os PCN consideram como relevantes para

    uma prática significativa de leitura e escrita, os aspectos:

    a) a razão de ser das propostas de leitura e escrita é a compreensão e não

    a decodificação e o silêncio; b) a razão de ser das propostas de uso da fala

    e da escrita é a interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem

    objetos de correção; c) as situações didáticas têm como objetivo levar os

    alunos a pensar sobre a linguagem para poder compreendê-la e utilizá-la

    apropriadamente às situações e aos propósitos definidos (Brasil, 1998:19).

    Como se observa, os PCN preconizam novas vias para o trabalho

    pedagógico com a linguagem. Nessa mesma perspectiva, os estudos sobre

    os gêneros vêm possibilitar, no trabalho com textos, formas de levar o aluno

    a refletir sobre o uso da linguagem, em suas várias manifestações, seja ou

    não verbal, como atividade dinâmica e interativa.

    Ao introduzir a noção de gênero como elemento fundamental para o

    aprimoramento das habilidades em leitura e escrita, os PCN trazem

    definições para os gêneros, ao assegurar que a interlocução pressupõe o

    uso de diversos textos por parte dos indivíduos, definidos historicamente

    pelas condições e necessidades sociais dessa interlocução, e apresentar o

    discurso como manifestação lingüística do texto, unidade global de

    significação que não se constrói do nada: todo discurso nasce de uma

    relação com outros discursos.

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    Ressaltamos ainda que é em Bakhtin que os PCN encontraram seu

    principal pressuposto para a definição de gênero:

    os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza

    temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a

    este ou àquele gênero. Assim, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa

    ser tomada como objeto de ensino (Brasil, 1998:21).

    A fonte para tão determinada orientação vem de Bakhtin (1979:274)

    que assim advoga: "Conteúdo temático, estilo e construção composicional

    fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e ele é marcado por

    uma esfera de comunicação".

    Dessa forma, ao trazer mudanças metodológicas para o ensino de

    língua, os PCN admitem a necessidade de se trabalhar com textos reais, ou

    de circulação social efetiva, que envolvam as necessidades de comunicação

    do aluno, sujeitos inseridos em situações sócio-comunicativas determinadas

    por contextos históricos.

    2.3. O medo como paixão

    Relembrando o que já ficou dito, a idéia central deste trabalho é a

    retórica do medo. Aqui não se pretende, nessas condições, mostrar ou

    apresentar pontos de vistas sobre outras categorias passionais que não a do

    medo. Todavia, no decorrer da análise do corpus que compõe esta

    pesquisa, tocaremos no teclado das paixões aristotélicas e, inevitavelmente,

    surgirão outras paixões, até mesmo com finalidade subsidiária ao medo.

    Aristóteles, ao abordar o medo, o faz a partir de duas questões: o que

    ou a quem se teme? E em que estado de ânimo estaria quem tem o temor?

    Em reposta à primeira questão, seriam temidos aqueles que podem provocar

    em outros grandes desgostos ou danos e aquelas coisas que parecem

    possuir grande capaci