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AS NOTÍCIAS DE FEMINICÍDIO NO JORNAL CORREIO DO ESTADO: UM
DEBATE TEÓRICO
Tainá Mendes Jara1
Katarini Giroldo Miguel2
RESUMO:
A Lei número 13.104, de 9 março de 2015, conhecida como Lei do Feminicídio, é o
avanço constitucional mais recente para coibir os casos de violência contra a mulher no
Brasil; e emprega punições mais severas para assassinatos em que há evidente menosprezo
ou discriminação à condição de mulher. Tal medida, aliada a vigência de uma sociedade
patriarcal de gênero, traz um contexto favorável para analisar quais contribuições as
coberturas jornalísticas podem apresentar para redução das desigualdades de gênero e
opressão feminina. Além disso, conforme o Mapa da Violência 2015, Mato Grosso do Sul
está entre os estados mais violentos para as mulheres, aspecto que exige mais qualidade
nas notícias publicadas em veículos regionais. Para análise da incidência dos casos de
feminicídio no jornalismo diário, será feito um debate teórico e levantamento quantitativo
das notícias de homicídio de mulheres nas versões impressa e online do jornal Correio do
Estado, no período de 1º de março a 1º junho de 2015 e 1º de março a 1º de junho de 2016.
A coleta de notícias de períodos diferentes permitirá analisar a cobertura logo que a lei
entrou em vigor e um ano depois, em cenário de pretensa consolidação da medida.
Palavras-chave: Jornalismo; Notícia; Feminicídio; Gênero; Correio do Estado
1 INTRODUÇÃO
A promulgação da Lei 13.104, de 9 de março de 2015, popularmente conhecida
como Lei do Feminicídio, é uma medida essencial no combate a violência contra a mulher
no Brasil. Se trata do desdobramento jurídico mais recente de um cenário que passou a se
intensificar depois da sanção da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei
Maria da Penha, criada para aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos. O
hiato de quase dez anos entre uma sanção e outra demonstra a dificuldade da sociedade em
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS). 2 Docente do Curso de Jornalismo e do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul.
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entender qual a importância de criar mecanismos para combater este tipo de crime. Tais
medidas, não são relevantes apenas por compor um conjunto de leis destinado a inibir atos
de violência, mas por deixarem explícitas que há uma distinção entre o tratamento dado às
mulheres e o delegado aos homens na sociedade.
Os avanços constitucionais não foram, contudo, suficientes para tirar o país da lista
dos que mais registram episódios de violência contra a mulher. Considerando apenas casos
de feminicídio, o Brasil ocupa a quinta posição em um ranking de 83 nações, conforme o
Mapa da Violência 2015. No levantamento anterior, realizado em 2010, ocupava a sétima
posição, portanto, aumento foi registrado mesmo após a promulgação da Lei Maria da
Penha.
Diante deste contexto - em que a efetivação de leis ainda não é suficiente para
conscientizar a sociedade da existência de desigualdades entre homens e mulheres e da
situação de opressão a qual elas são submetidas -, o jornalismo acaba desempenhando um
papel fundamental na disseminação de informações sobre o assunto. Entretanto, tal papel
não se resume a mera publicação de notícias, pois o conteúdo abordado impacta de forma
mais complexa sob o espectador. Por exemplo: as notícias envolvendo casos de violência
contra mulher contribuem para um melhor entendimento do assunto ou ajudam a
intensificar preconceitos já existentes na sociedade?
Em triste consonância com o contexto nacional, Mato Grosso do Sul apresenta
índices significativos em casos de violência contra a mulher. Conforme o Mapa da
Violência 2015, o estado apresenta a nona maior taxa de homicídio de mulheres. Este fator,
aliado às publicações de notícias sobre estes casos nos veículos de comunicação regionais,
traz uma terreno rico para análise sobre diversos aspectos.
Apesar das inúmeras possibilidades proporcionadas por estes levantamentos, este
artigo apresenta apenas um debate inicial quanto ao material pesquisado, atendo-se a trazer
conceitos preliminares indispensáveis para se aprofundar no assunto, além de levantamento
prévio de notícias de feminicídio, que integram a dissertação de mestrado em
desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), sobre o discurso jornalístico nas notícias de
feminicídio publicadas no suporte impresso e digital do jornal Correio do Estado.
Utilizando a própria da Lei 13.104 como fator de delimitação de conteúdo, serão
analisadas nesse trabalho justamente notícias envolvendo casos de feminicídio, ou seja,
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fatos em que são narradas as ocorrências dos assassinatos de mulheres, bem como seus
desdobramentos, como a prisão dos autores do crime.
As notícias selecionadas foram publicadas na versão impressa e digital do jornal
Correio do Estado, no período de 1º de março a 1º junho de 2015 e 1º de março a 1º de
junho de 2016. A coleta de notícias de períodos diferentes permite analisar a cobertura
logo que a lei entrou em vigor e um ano depois, em cenário de pretensa consolidação da
medida. Ao todo foram levantados 50 publicações, 29 no período de 2015, sendo 23 no
portal e seis na versão impressa do jornal. Nos três meses de 2016, foram 21 notícias,
sendo 15 na versão online e seis na impressa.
A escolha do jornal Correio do Estado ocorreu devido a relevância deste veículo. É
um jornal diário cuja versão impressa é uma das mais antigas de Mato Grosso do Sul, com
mais de 60 anos de circulação ininterrupta. Além disso, o jornal circula por todo o estado,
abrangendo a Capital, Campo Grande, e os municípios do interior. Foi um dos primeiros
veículos de comunicação do estado a manter simultaneamente a versão impressa e digital.
A análise em diferentes suportes é mais um elemento que enriquece a pesquisa, pois
permite verificar as especificidades de abordagens feitas para públicos distintos.
2 O FEMINICÍDIO E A MULHER NA SOCIEDADE
A Lei do Feminicídio trata-se da mais recente medida instituída para tornar mais
severa as punições para casos de violência contra a mulher cuja alteração no Código Penal
Brasileiro ocorre pela Lei número 13.104, de 9 de março de 2015. A medida foi sancionada
pela então presidente Dilma Roussef, um dia após as celebrações do Dia Internacional da
Mulher, realizadas no dia 8 de março.
A criminalização da violência contra a mulher é recente no Brasil. Entre as medidas
mais representativas para sua superação está a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da
Penha, de agosto de 2006. Instituída quase dez anos depois, a Lei do Feminicídio,
classifica o homicídio de mulheres como crime hediondo e com agravantes quando
acontece em situações específicas de vulnerabilidade (gravidez, menor de idade, na
presença de filhos etc.). “Entende a lei que existe feminicídio quando a agressão envolve
violência doméstica e familiar, ou quando evidencia menosprezo ou discriminação à
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condição de mulher, caracterizando-se crime por razões de condição do sexo feminino”
(WAISELFISZ, 2015, p. 7).
Apesar de todo crime carecer de investigações, é comum em casos envolvendo a
morte de mulheres por seus parceiros ataques que acarretam, por exemplo, na desfiguração
de seus rostos ou até mesmo agressões diretas a órgãos naturalmente característicos do
corpo feminino, como aos seios e a partes que compõem o aparelho reprodutor, como a
vagina. A identificação deste tipo de característica pode ajudar na definição do qualificante
penal e a ser aplicado.
Situações menos palpáveis também podem ajudar no enquadramento de um
assassinato como crime de feminicídio, como, por exemplo, a traição ou rompimento do
relacionamento por parte da companheira.
Apesar da reflexão ser anterior a sanção da Lei do Feminicídio, a socióloga Heleith
Saffioti já alertava para existência de indícios claros de ódio a condição de mulher pelos
agressores e assassinos. Tais características ocorrem em situações envolvendo mulheres
das mais diversas camadas sociais. A autora utiliza como exemplo, caso ocorrido ainda nos
anos 80, quando “um nordestino marcou, com ferro em brasa utilizado para marcar gado,
sua companheira com as letras MGSM, iniciais da expressão mulher galheira só morta,
meramente porque suspeita estar sua esposa cometendo infidelidade conjugal” (SAFFIOTI,
2005, p. 53).
Saffioti também relembra o emblemático assassinato de Ângela de Diniz ocorrido
nos anos 1970, morta durante uma tentativa do ex-companheiro de reatar o relacionamento
com a socialite. Doca Street descarregou o revólver no rosto e crânio de Ângela,
impedindo-a de conservar sua beleza, pelo menos, até seu enterro. “Atirar num lindo rosto
deve ter tido um significado, talvez o fato de aquela grande beleza tê-lo fascinado,
aprisionando-o a ela, impotente para abandoná-la” (SAFFIOTI, 2005, p. 54). O caso é
utilizado até hoje como um dos maiores exemplos de abrandamento de penas em casos
deste tipo, comprovando a condescendência da própria sociedade, incluindo o judiciário,
com o crime. Sob a tese de legítima defesa, os advogados do assassino conseguiram
reduzir drasticamente a pena. O autor ficou apenas três anos e seis meses na prisão.
Para se analisar os casos de feminicídio é indispensável considerarmos estudos
feitos anteriormente sobre a condição das mulheres na sociedade. Saffioti (2005) procura
compreender este papel por um panorama histórico; ou seja, em uma sociedade de classes,
capitalista. A pesquisadora defende que para ter uma noção precisa do contexto em que a
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violência contra mulher ocorre, em todos os âmbitos, sejam físicos ou psicológicos, é
necessário pensar a sociedade sob uma perspectiva patriarcal de gênero.
Para ela, a caracterização “violência de gênero” para se designar a estes casos não é
capaz de abarcar toda a carga histórica que perpassa as agressões de toda a espécie contra a
mulher, especialmente, a praticada por seus companheiros e ex-companheiros. O conceito
de gênero não explicita, necessariamente, desigualdade entre homens e mulheres, portanto,
é necessário complementá-lo e reconhecer a necessidade de resgatar o conceito de
patriarcado, que para alguns teóricos caiu em desuso, para uma definição mais precisa.
Em geral, pensa-se ter havido primazia masculina no passado remoto, o que
significa, e isto é verbalizado oralmente e por escrito, que as desigualdades
atuais entre homens e mulheres são resquícios de um patriarcado não mais
existente ou em seus últimos estertores. De fato, como os demais fenômenos
sociais, também o patriarcado está em permanente transformação. Se, na Roma
antiga, o patriarca detinha poder de vida e morte sobre a sua esposa e seus filhos,
hoje tal poder não mais existe, no plano de jure. Entretanto, homens continuam
matando suas parceiras, às vezes com requintes de crueldade, esquartejando-as,
ateando-lhes fogo, nelas atirando e as deixando tetraplégicas etc. O julgamento
destes criminosos sofre, é óbvio, a influência do sexismo reinante na sociedade, que determina o levantamento de falsas acusações - devassa é a mais comum -
contra assassinada. A vítima é transformada rapidamente em ré, procedimento
este que consegue, muitas vezes, absorver o verdadeiro réu. Durante longo
período, usava-se, com êxito, o argumento de legítima defesa da honra, como se
esta não fosse algo pessoal e, dessa forma, pudesse ser manchado por outrem.
Graças a muitos protestos feministas, tal tese, sem fundamento jurídico ou de
qualquer outra espécie, deixou de ser utilizada. O percentual de condenações,
contudo, situa-se a aquém do desejável (SAFFIOTI, 2005, p. 48).
Considerando esse contexto, Saffioti (2005, p. 56) ainda lembra que na sociedade
patriarcal em que vivemos existe uma forte banalização da violência, acarretando uma
tolerância e até certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua
virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. A
mulher acaba sendo a principal vítima desta condescendência.
Diante desse cenário, leis como a Maria da Penha e a do Feminicídio tem papel
relevante não só na inibição de agressões e até assassinatos, mas são fundamentais na
conscientização da sociedade sobre a existência de uma relação letal de dominação do
homem sobre a mulher.
Neste sentido, até mesmo a incorporação de certas palavras ao vocabulário são
essenciais para o reconhecimento da condição opressora vivida pela mulher. Por exemplo,
o uso de palavra feminicídio não deveria soar estranho aos ouvidos. "Dada a força das
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palavras, é interessante disseminar o uso de feminicídio, já que homicídio carrega o prefixo
de homem” (SAFFIOTI, 2005, p. 50, grifo do autor).
Saffioti completa que transformações deste tipo são comuns em vários idiomas.
"Como a língua é um fenômeno social e, portanto, sujeito permanentemente a mudanças, é
interessante criar novas palavras a expurguem o sexismo” (SAFFIOTI, 2005, p. 51).
Apesar da delimitação desta pesquisa considerar apenas os casos em que ocorrem o
feminicídio, dados relativos a outras formas de violências comprovam que uma sociedade
patriarcal de gênero a mulher está mais suscetível a sofrer agressões de toda a ordem. Estes
levantamentos também permitem traçar todo o caminho que algumas vítimas percorrem até
encontrar a morte nas mãos de maridos, ex-maridos, namorados, ex-namorados, parceiros
sexuais e companheiros.
Conforme dados da Central de Atendimento à Mulher, levantados pela Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), em 2015, Campo Grande foi a capital
brasileira com a maior taxa de relatos de violência. Foram 227,53 relatos por cada 100 mil
mulheres, seguida por Rio de Janeiro, de 119,09, e Natal, de 113,43. A maioria dos relatos
recebidos pela Central de Atendimento é de violência física, com 50,15% dos casos, e
violência psicológica, 30,33%.
O estupro é outro crime em que a maioria das vítimas são mulheres. Em 2014, 47,6
mil pessoas foram vítimas de violência sexual no Brasil. Ou seja, a cada 11 minutos, uma
mulher foi violentada no país. Os dados, que são do 9º Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, consideram somente os casos que foram registrados em boletins de ocorrência.
Contudo, segundo a publicação, apenas 10% das vítimas desse tipo de crime costumam
prestar queixas à polícia, de acordo com estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea). Entre os estados, Roraima é quem lidera o ranking com a maior taxa de
estupros do país – são 55,5 casos a cada grupo de 100 mil habitantes. Em seguida vêm o
Mato Grosso do Sul, com 51,3, e o Amapá, com 45.
Dados da SEPM (2015) apontam que nos últimos dez anos houve um aumento de
40% das denúncias. Os serviços especializados à mulher no Mato Grosso do Sul
aumentaram de 300 para 1.600. Este índice também é reflexo de toda uma estrutura criada
nos últimos anos afim de acolher e conscientizar as mulheres vítimas de violência, além de
buscar a punição dos responsáveis. Entre os mecanismos mais emblemáticos neste sentido
está a criação da primeira Casa da Mulher Brasileira, inaugurada no estado em 2015.
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Apesar de todos os dispositivos criados para coibir a violência contra a mulher, o
número de casos que atingem situação extrema, o assassinato, ainda são alarmantes. No
ano em que a lei foi instituída, a segunda edição especial do Mapa da Violência sobre
homicídios de mulheres apresentou o quantitativo dessas mortes no intervalo de 1980-
2013. Pelos registros do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), neste período, num
ritmo crescente ao longo do tempo, tanto em número quanto em taxas, morreu um total de
106.093 mulheres, vítimas de homicídio. Efetivamente, o número de vítimas passou de
1.353 mulheres, em 1980, para 4.762, em 2013, um aumento de 252%. A taxa, que em
1980 era de 2,3 vítimas por 100 mil, passou para 4,8 em 2013, um aumento de 111,1%
(WAISELFISZ, 2015, p. 11).
No mesmo relatório, Mato Grosso do Sul apresentou a nona maior taxa de
homicídio de mulheres, enquanto, a capital, Campo Grande, ficou na 23ª posição. No
ranking dos 100 municípios com mais de 10.000 habitantes do sexo feminino, com as
maiores taxas, figuram as cidades do interior do estado Caarapó (32º), Amambai (34º),
Jardim (77º) e Aparecida do Taboado (94º).
Contexto pouco otimista é verificado quando analisamos a aplicação de punições
para este crime. A sanção da Lei do Feminídio ajudou a dar mais precisão aos
levantamentos de dados envolvendo o assassinato pela condição de mulher e indicam a
tentativa de dar visibilidade a estes casos. Entretanto, também apresentou cenário ainda
carente de efetividade no que tange a aplicação de penas, em relação ao número de
ocorrências registradas.
Dados do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPE/MS) divulgados em
julho de 2017 indicam que, após pouco mais de dois anos da promulgação da lei do
feminicídio, os casos violência doméstica que antes eram registrados como homicídios
simples, passaram a receber a terminologia correta. De março de 2015 a julho de 2017,
segundo os registros do MPE/MS, foram registrados 148 casos tipificados como
feminicídios ou tentativas de feminicídios. Sendo 44 consumados e 67 tentados. Desses,
até julho, 67 já foram julgados, 59 casos tiveram a condenação dos acusados e em 8 casos
houve absolvição dos acusados.
Diante destes dados, a pesquisa em desenvolvimento pretende verificar como
alguns destes casos foram abordados pelos veículos de comunicação. Se o discurso de fato
contribui para conscientização do expectador sobre a gravidade dos casos de violência
contra a mulher ou ajuda a reforçar estereótipos considerados machistas.
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2.1 VALORAÇÃO JORNALÍSTICA
Diante dos dados e teorias que comprovam que o assassinato de mulheres é um
problema social complexo e com características específicas, o jornalismo se torna um dos
meios mais acessíveis para levar tais informações à sociedade em geral, e permite que o
debate não fique restrito apenas ao âmbito acadêmico. Entretanto, a publicação de notícias
pode desempenhar uma função dúbia, funcionando ao mesmo tempo como instrumento de
conscientização e superação da condição de opressão da mulher na sociedade, ou
acentuando ainda mais os estigmas relacionados a este tipo de crime, como a
culpabilização da vítima e a romantização de casos de agressão.
Baseando-se na existência de parâmetros que levam determinados fatos a receber
uma valoração jornalística diferenciada no amplo conjunto de acontecimentos cotidianos,
notamos que a produção e divulgação de notícias relacionadas a casos de feminicídio
atende a diversos critérios de noticiabilidade.
Isto pode ser comprovado a partir de uma breve análise de aplicação de alguns dos
chamados por Nelson Traquina (2005b) de valores-notícia de seleção para explicar a
presumível publicação dos casos de feminicídio nas páginas dos jornais diários. O autor
põe a morte como um critério de noticiabilidade praticamente óbvio. “Onde há morte, há
jornalistas” (2005b, p.79).
Outro critério citado por Traquina (2005b, p.80) é o da proximidade como “valor-
notícia fundamental da cultura jornalística”. Considerando os dados que colocam o Brasil
como um dos países com maiores índices de feminicídio, além da significativa posição de
Mato Grosso do Sul no ranking nacional, a abordagem destes fatos pelos veículos de
comunicação nacionais e locais se torna quase regra.
O tempo também é um fator colocado por Traquina (2005b, p.81) que ajuda a
justificar a importância de noticiar os casos de homicídios de mulheres. Ele explica que
esse critério pode ser usado em âmbitos distintos. A primeira possibilidade é quando uma
notícia é abordada pela sua atualidade. A segunda é quando o fato já teve lugar no passado
e está sendo relembrado pela sua relevância. O terceiro fator diz respeito à longevidade da
notícia quanto à repercussão, estendendo os limites da sua noticiabilidade.
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O conflito é outro valor-notícia importante para justificar a abordagem de
homicídios de mulheres. “A presença da violência física fornece mais noticiabilidade e
ilustra de novo como os critérios [...] muitas vezes exemplificam a quebra do normal.”
(TRAQUINA, 2005b, p.84). Conforme o autor, o conflito ou a controvérsia também pode
ser física ou apenas simbólica, e que a violência é notícia por que representa uma ruptura
social. Na mesma direção, a infração também é considerada um critério substantivo de
seleção de notícia que tem ligação com a violência.
Além disso, o discurso jornalístico utilizado para relatar estes casos pode dar pistas
sobre o contexto social vigente, além de mostrar de que forma isto interfere na produção
das notícias. Muniz Sodré (2012), ao colocar o acontecimento como uma modalidade clara
e visível do tratamento do fato, considera-o:
[...] uma construção ou uma produção de real, atravessada pelas
representações da vicissitude da vida social, o que equivale a dizer tanto pela
fragmentação às vezes paradoxal das ocorrências quantos pelos conflitos em
torno da hegemonia das representações (SODRÉ, 2012, p. 37)
Além dos cenários social e histórico em que se dá a produção deste discurso
jornalístico, Traquina (2005a) reconhece que não é possível entender por que as notícias
são como são sem compreender, também, a cultura profissional da comunidade
jornalística. Conforme o autor, o trabalho jornalístico é altamente condicionado, apesar de
o profissional ter uma “autonomia relativa” (TRAQUINA, 2005a).
2.1 FEMINICÍDIO NO CORREIO DO ESTADO: PRIMEIRAS CONSTATAÇÕES
Apesar de ainda não ser capaz de responder perguntas essencias sobre que tipo de
contribuição o jornalismo sul-mato-grossense dá para o debate sobre violência contra a
mulher, levantamento prévio permite verificar a incidência de notícias sobre feminicídio
nas versões impressa e online do jornal Correio do Estado, no período de 1º de março a 1º
junho de 2015 e 1º de março a 1º de junho de 2016. A coleta de notícias de períodos
diferentes permitiu analisar a cobertura logo que a lei entrou em vigor e um ano depois.
Ao todo foram levantados 50 publicações, 29 no período de 2015, sendo 23 no
portal e seis na versão impressa do jornal. Nos três meses de 2016, foram 21 notícias,
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sendo 15 na versão online e seis na impressa. Tais levantamentos podem ser verificados
nas tabelas 1, 2, 3 e 4.
Em linhas gerais, verificou-se que a limitação do espaço exigida na versão impressa
impacta significativamente na incidência de notícia edição de papel. Coincidentemente, o
número de publicações na versão impressa foi o mesmo nos meses analisados no ano 2015
e 2016. Foram seis publicações em cada período, incluindo notícias que vão desde o
assassinato em si a prisão de autores do crime. As notícias raramente utilizam a palavra
feminicídio ou dão explicações mais aprofundadas sobre esse tipo de crime.
O número de casos abordados no portal do Correio do Estado é muito superior aos
registrados na versão impressa, chegando a ser 75% maior nos três meses analisados no
ano de 2015. Foram 23 notícias no site, contra seis no jornal impresso. Em 2016, o
percentual reduziu, porém as publicações mantiveram frequência maior na versão online.
Foram 15 notícias no suporte digital e apenas seis no papel.
A quantidade menor na versão impressa pode, obviamente, ser explicada pela
limitação de espaço e pelo perfil editorial do jornal, mas não podemos negligenciar a
cultura machista que permeia as escolhas jornalísticas. Os casos abordados, mesmo se
tratando assassinatos, alguns com requintes de crueldade (elemento que teoricamente
interessariam ao jornal), são, na maioria, transformados em notas publicadas na parte
inferior da página destinada as ocorrência policais, inclusa na editoria de Cidades. As
mortes por feminicídio somente aparecem em notícias mais extensas, na parte superior da
página, quando compõem algum tipo de balanço de mortes ocorridas em determinado
espaço de tempo, não passando da mera citação do fato.
Apesar de apresentar maior registro de casos e, consequentemente, registros
exclusivos da versão online, este suporte, em determinados aspectos, apresenta
características semelhantes às publicações da versão impressa. Mesmo escritas por
jornalistas diferentes e as notícias sendo mais detalhadas sobre os fatos na versão online,
ambos os suportes pecam quanto ao uso do termo “feminicídio” e em dar explicações mais
informativas sobre este tipo de crime.
Durante os dois períodos analisados, apenas uma das publicações, tanto no suporte
impresso quanto no online, agregou ao fato noticiado informações mais abrangentes sobre
feminicídio. Apesar de falar da prisão de um homem que cometeu o crime, a matéria
intitulada “Em quatro meses, crimes contra a mulher renderam 208 prisões”, de autoria do
jornalista Renan Nucci, e publicada na edição do dia 29 de abril de 2016, do jornal Correio
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do Estado, traz um breve levantamento sobre a ação da polícia envolvendo estes casos e
entrevista com a então delegada titular da Delegacia Especializada de Atendimento à
Mulher (DEAM), Rosely Molina. A leitura da matéria está na Figura 1.
Figura 1 – Notícia publicada no dia 29 de abril de 2016
Apesar das informações adicionais e do uso da palavra feminicídio, o material
ainda não traz explicação direta sobre o que é este crime. No entanto, as declarações da
delegada, específica sobre a prisão realizada na véspera, dão pistas de que o crime foi
motivado pelo ódio a condição de mulher da vítima pelo ex-companheiro. Fica evidente
que a publicação ocorreu apenas devido a uma iniciativa da própria polícia Civil, que
realizou coletiva de imprensa para a apresentação do autor do crime. Fosse o contrário, não
haveria garantia de que a prisão do autor fosse acompanhada de dados mais relevantes.
Além disso, a estatística apresentada é exclusiva sobre prisões, mostrando que durante a
apuração não houve interesse em buscar dados sobre o total de ocorrências registradas pela
delegacia.
Tabela 1 –Correio do Estado Online – 01/03 a 01/06/2015
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Data Título
01/03/2015 Casal é encontrado morto com tiro na cabeça em propriedade rural de MS
10/03/2015 Corpo de aeromoça é encontrado dentro de mala em represa de SP
10/03/2015 Suspeito de matar aeromoça, marido é encontrado morto em casa
15/03/2015 Mulher é morta na frente da filha e autor do crime é preso
16/03/2015 Preso acusado de matar mulher com pauladas e facadas
19/03/2015 Ex-goleiro Bruno diz que seu erro foi ter sido "omisso" e não denunciar Macarrão
21/03/2015 Mulher é decapitada pelo namorado por causa de troca de mensagens no celular
30/03/2015 Ossada é encontrada em fossa desativada de empresa de engenharia na Capital
01/04/2015 Namorado corta cabeça de grávida e posta foto no Facebook
01/04/2015 Dentro de posto, agente de saúde é baleada na cabeça pelo ex-marido
01/04/2015 Acusado de atirar em ex-esposa dentro de posto de saúde se entrega à polícia
02/04/2015 Acusado de atirar na cabeça de ex-mulher responderá por femicídio
02/04/2015 Acusado de matar esposa na Capital é preso escondido em Pernambuco
04/04/2015 Marido que matou mulher em 2008 é morto com 4 tiros; filho confessa crime
04/04/2015 Mulher é encontrada morta em sofá de residência e polícia investiga crime
05/04/2015 Suspeita é de que mulher pode ter sido morta a facadas pela namorada
05/04/2015 Mulher é assassinada pelo marido a golpes de faca
10/04/2015 Identificada a ossada achada no Bairro Taveirópolis, na Capital
10/05/2015 Pai mata filha, esposa e irmã e posta porque fez isso no facebook
13/05/2015 Delegado procura por projétil que pode ter sido usado em assassinato
13/05/2015 Delegado encerra buscas e não encontra nada que comprove crime
23/05/2015 Jovem de 19 anos é morta a tiros durante reunião de amigos
30/05/2015 Mulher é morta a tiros pelo companheiro na frente do filho
Tabela 2 – Correio do Estado Impresso – 01/03 a 01/06/2015
Data Título
02/03/2015 Casal é encontrado morto em casa
31/03/2015 Polícia começa a investigar origem de ossada humana
02/04/2015 Mulher baleada pelo ex dentro do posto de saúde
05/04/2015 Em dia violento, cinco são mortos no Estado, três só na Capital.
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10/04/2015 Identifica a ossada achada no Taveirópolis
14/05/2015 Delegado pedirá prazo para fechar inquérito.
Tabela 3 – Correio do Estado Online – 01/03 a 01/06/2016
Data Título
10/03/2016 Acusado de matar ex-mulher a tiros é condenado a 17 anos de prisão
12/03/2016 Homem encontrado morto em carro foi condenado há dois dias por matar
mulher
03/04/2016 Jovem é preso suspeito de matar ex-namorada e a mãe dela em Tabapuã
07/04/2016 Marido mata mulher a garrafadas em reserva indígena
14/04/2016 Morre mulher espancada com chutes na cabeça
21/04/2016 Marido bate a cabeça da companheira no chão até matá-la
24/04/2016 Jovem de 24 anos morre depois de ser esfaqueada pelo ex na frente dos filhos
28/04/2016 Acusado de matar ex diz que mulher devia submissão a ele
01/05/2016 Mulher é encontrada morta com ferimento no pescoço e ex-marido é suspeito
03/05/2016 Acusado de espancar e matar ex-mulher é detido em propriedade rural
09/05/2016 Polícia encontra pertences da mulher morta em fossa na casa dos ex-marido
12/05/2016 Jovem de 19 anos é estrangulada e encontrada morta em esgoto no Paraguai
22/05/2016 Mulher descobre traição, separa e acaba morta com facada no peito
30/05/2016 Mulher encontrada morta com ferimento na cabeça em terreno baldio
31/05/2016 Preso homem que matou mulher com pauladas na cabeça
Tabela 4 – Correio do Estado Impresso – 01/03 a 01/06/2016
Data Título
13/03/2016 Condenado por matar mulher é encontrado morto no Vilas Boas
25/04/2016 Estado tem fim de semana violento, com nove mortes
29/04/2016 Em quatro meses, crimes contra a mulher renderam 208 prisões
23/05/2016 Jovem assassinada à facada pelo ex-marido em Bataguassu
31/05/2016 Mulher encontrada morta com ferimento na cabeça
01/06/2016 Preso o autor de assassinato de mulher indígena
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por ser parte de uma pesquisa mais abrangente, que vai integrar uma dissertação de
mestrado, e que está em fase inicial de desenvolvimento, as informações apresentadas
neste artigo ainda carecem de complemento. Entretanto, o material levantando e as
tentativas de interpretação feitas até o momento são suficientes para comprovar que há um
campo fértil para pesquisa ao aliarmos comunicação e estudos sociológicos de gênero.
Além das inúmeras possibilidades disponibilizadas por este casamento, há a importância e
urgência em abordar temáticas como o feminicídio, conhecendo a forma como o assunto é
tratado e recebido pela sociedade, sendo as notícias jornalísticas um dos termômetros
possíveis para fazer tal medição. Por meio do prévio levantamento, por exemplo, é possível
verificar a baixa adesão a palavra feminicídio nas notícias, mostrando assim, que o desafio
reside até mesmo na execução de atitudes simples.
Mais importante do que o desenvolvimento e a conclusão de todo o processo
proporcionado por esta pesquisa, é a possibilidade de contribuir com a criação de medidas
que viabilizem a melhor abordagem e compreensão de tais temas pela sociedade
contribuindo para a redução das desigualdades entre homens e mulheres. Como bem
pontuou Saffioti (2005, p. 36), o sexismo prejudica homens, mulheres e suas relações.
Apesar do saldo negativo maior para as mulheres, causas extremas de intolerância à
autonomia feminina, como os casos de feminicídio, impactam em todo o circulo social,
abrangendo até mesmo crianças.
4 REFERÊNCIAS
BALANÇO 180. Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres – SPM. Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres. Ministério da Justiça e Cidadania. Brasília, 2015.
Disponível em: <http://www.spm.gov.br/assuntos/violencia/ligue-180-central-de-
atendimento-a-mulher/balanco180-2015.pdf> . Acesso em: ago. 2017.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário brasileiro de
segurança pública. Edição VIII. São Paulo, 2014.
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SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
SODRÉ, Muniz. A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis:
Vozes, 2009.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: por que as notícias são como são. 2 ed.
Florianópolis: Insular, 2005a.
______. Teorias do Jornalismo: a tribo jornalística – uma comunidade interpretativa
transnacional. Florianópolis: Insular, 2005b.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil.
São Paulo, Instituto Sangari, 2015. Disponível em:
<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>
Acesso em: ago. 2017.
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