Às noites de distância

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Às noites de distância Por Maikel de Abreu O supervisor subiu comigo na torre da caixa d`água. Segundo ele, de lá poderia me mostrar o condomínio como um todo. O lugar era um núcleo de resistência do bucolismo, além da cerca a cidade se estendia, feia e cinzenta, até onde a vista alcançava. Três densas áreas arborizadas, um pequeno açude, um parquinho infantil, uma quadra de futebol, churrasqueiras de pedra espalhadas em pontos mais distantes das casas. O supervisor de segurança apontou para os três blocos de sobrados, mostrou as áreas de lazer, indicou locais com risco de invasão, enfatizando que eu deveria fazer rondas com mais frequência. Disse também que o condomínio foi construído na década de 70, antes da completa urbanização, do perigo iminente em cada esquina da vizinhança. Depois das explicações descemos com cuidado a escadinha de metal e fui apresentado ao meu posto. O espaço pequeno era aconchegante, tinha banheiro anexo e até um frigobar. Sobre o birô, um monitor que transmitia imagens pálidas das 10 câmeras de segurança espalhadas pelo perímetro, na minha opinião insuficientes para um condomínio tão vasto. Por fim, ele destrancou uma das gaveta e me mostrou um revólver calibre 38. - O regulamento diz que não podemos ter, mas o síndico, que é juiz, deu arrego. Nunca deixe à vista, muito menos essa gaveta destrancada. As primeiras noites foram tranquilas. Meu horário era das sete da noite às sete da manhã, dia sim dia não. Eu costumava chegar um pouco antes, às seis e meia. Salvo sábados e domingos, quase todos os dias eram a mesma coisa naquele horário: crianças barulhentas ocupavam o parquinho, moradores retornavam do trabalho com suas caras murchas, madames passeavam com seus cães que lembravam ratos e adolescentes andavam de skate no calçamento das garagens. Tudo o que eu tinha que fazer era manter postura. Algo entre a firmeza de uma autoridade e a subserviência de um mordomo. Era a tarefa mais difícil. No fim das contas, ninguém me de dedicava um olhar por muito tempo e minha postura pouco importava.

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Maikel.

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s noites de distncia

Por Maikel de Abreu

O supervisor subiu comigo na torre da caixa d`gua. Segundo ele, de l poderia me mostrar o condomnio como um todo. O lugar era um ncleo de resistncia do bucolismo, alm da cerca a cidade se estendia, feia e cinzenta, at onde a vista alcanava. Trs densas reas arborizadas, um pequeno aude, um parquinho infantil, uma quadra de futebol, churrasqueiras de pedra espalhadas em pontos mais distantes das casas. O supervisor de segurana apontou para os trs blocos de sobrados, mostrou as reas de lazer, indicou locais com risco de invaso, enfatizando que eu deveria fazer rondas com mais frequncia. Disse tambm que o condomnio foi construdo na dcada de 70, antes da completa urbanizao, do perigo iminente em cada esquina da vizinhana. Depois das explicaes descemos com cuidado a escadinha de metal e fui apresentado ao meu posto. O espao pequeno era aconchegante, tinha banheiro anexo e at um frigobar. Sobre o bir, um monitor que transmitia imagens plidas das 10 cmeras de segurana espalhadas pelo permetro, na minha opinio insuficientes para um condomnio to vasto. Por fim, ele destrancou uma das gaveta e me mostrou um revlver calibre 38.

- O regulamento diz que no podemos ter, mas o sndico, que juiz, deu arrego. Nunca deixe vista, muito menos essa gaveta destrancada.

As primeiras noites foram tranquilas. Meu horrio era das sete da noite s sete da manh, dia sim dia no. Eu costumava chegar um pouco antes, s seis e meia. Salvo sbados e domingos, quase todos os dias eram a mesma coisa naquele horrio: crianas barulhentas ocupavam o parquinho, moradores retornavam do trabalho com suas caras murchas, madames passeavam com seus ces que lembravam ratos e adolescentes andavam de skate no calamento das garagens. Tudo o que eu tinha que fazer era manter postura. Algo entre a firmeza de uma autoridade e a subservincia de um mordomo. Era a tarefa mais difcil. No fim das contas, ningum me de dedicava um olhar por muito tempo e minha postura pouco importava.

Pontual, Beatriz chegava s nove, para meu alvio. Sempre estabanada. Na imagem plida do monitor, revirava a bolsa procurando o controle remoto. Nunca abri o porto pra ela, mesmo na vez em que ela demorou cerca de vinte minutos procurando o controle por todos os cantos do carro. Senti at prazer com a sensao de estar lhe aplicando um castigo secreto. Depois, Beatriz s voltava a sair do seu sobrado somente por volta das dez, levando seu labrador senil para passear. Demorava em mdia meia hora caminhando despreocupada, entre as rvores, pelas garagens, beira do aude, nunca passando pelo meu posto.

No sentia culpa alguma em desejar que ela permanecesse s. Ela no parecia triste, sempre pareceu muito bem sozinha, aptido que eu desejava pra mim. Foi assim durante um ms. Inclusive, foi o tempo suficiente para comear a fazer do meu local de trabalho a minha casa. Nos meus plantes podia dormir umas horas sem ser incomodado, ler, fumar, e com cautela - pra diminuir a melancolia que vinha s vezes sem avisar - At beber algo mais forte do que caf.

Numa sexta, nove horas e nada dela chegar. At mesmo pensei que teria entrado sem que eu tivesse visto, o que era um tanto improvvel, eu ficava atento ao monitor por volta das nove. Mesmo com a certeza, acabei verificando 4 vezes a sua vaga da garagem. Me sentei prximo ao porto Norte, acendia um cigarro no outro e no conseguia me livrar de pensamentos desagradveis. Onze horas ela chegou, e quando abriu o porto, trs carros seguiram o dela pelas ruas do condomnio. Acompanhei a comitiva com os olhos, tentei ver quem eram, identifiquei apenas um que fazia parte dos amigos de Beatriz, e que no representava ameaa. Ao longe, observei todos sarem dos carros. Eram 2 homens e duas mulheres. Um dos homens eu no conhecia e a penumbra no me permitia ver detalhes.

O banco perto das lixeiras do bloco C era o melhor lugar para observar parte do interior do sobrado de Beatriz sem ser notado. Era longe das luzes dos postes baixos que flanqueavam as ruazinhas do condomnio. De l podia ver tambm mais do desconhecido. Era baixo, tinha cabelos longos e braos tatuados. Os outros trs amigos beberam e conversaram a maior parte do tempo de p no ptio da frente, enquanto os dois ficavam a ss na sala. Ela tocava piano e ele se inclinava sobre ela, por trs, posando de entendedor das partituras. Perto da meia-noite e meia todos saram da minha vista. Sorrateiro, me aproximei do sobrado, me agachei logo abaixo da janela da sala de jantar. Entre o tilintar de talheres e pratos se destacava uma voz grave e nasalada. S podia ser do macaco tatuado. Fiquei atento para ouvir palavras-chaves que me levariam a qualquer concluso de que era aquele sujeito, o que ele estaria fazendo ali. No consegui ficar muito tempo, temia que algum outro morador me flagrasse ali, naquela posio estranha.

No planto seguinte, vspera de natal, cheguei atrasado e de ressaca. Seu Z, do turno diurno, no pareceu irritado com meu atraso e sim ansioso para me alertar sobre arrombadores espreitando o condomnio.

Perto das oito comeou a agitao. Cansei, mesmo distancia, de abrir e fechar os portes para as visitas. Alm disso, n tive paz enquanto boa parte das crianas com seus convidados quase colocava abaixo a casinha do playground. Adultos passavam com taas de champanhe, as pessoas me desejavam feliz natal com certo pesar, talvez sensibilizadas pelo fato de eu estar longe da famlia na ocasio. Ganhei duas garrafas de vinho do sndico e uma caixa de bombons de uma das crianas. No consegui sentir nenhum tipo de gratido. Todos eles pareciam pessoas de qualquer outra espcie, menos da minha. Abandonei a amargura e me distra com os pequenos que brincavam no parquinho. A brisa trouxe algum cheiro que lembrou a infncia. Desejei de forma absurda ser alguma daquelas crianas e, dali em diante, pegar o caminho certo na vida.

Perto das duas da manh o entra-e-sai diminuiu. Depois de ter aberto uma cerveja s escondidas, levei um susto. Algum bateu porta da guarita. Com um sorriso benevolente no rosto, Beatriz estava parada na soleira da porta, segurando uma travessa coberta por papel alumnio. Fiquei mudo. Trouxe pedaos de peru, ela disse. Agradeci, ainda meio bobo. Depois, ela me desejou Feliz natal e me deu um abrao breve e frouxo.Respirei fundo pra sentir bem o cheiro dela. Quando estava indo embora, virou pra mim e disse: uma m fase. Tudo isso vai passar. Acredite.

Pouco me importei se era iluso ou no, mas tinha a convico de que ela tentava se aproximar depois da noite de natal. Na semana seguinte, ela passou a sentar nos bancos de pedra em volta do playground, esperando o co caminhar dbil pelo gramado. Eu, em respeito a ela, ficava dentro da guarita, e a observava, ansioso por uma palavra trocada. Um dia, at cheguei a esperar por ela sentado em um dos bancos. Ela se aproximou, largou o animal que quase no se moveu, me disse oi. Depois perguntou se apareceu oportunidade melhor de emprego. Respondi que no, mas que estava confiante que algo muito bom iria aparecer, que ia dar a volta por cima, que minha busca era diria, o que era mentira. Ento me larguei a perguntar como a vida estava seguindo, como ela estava se sentindo, como estavam as aulas de piano, entre outras perguntas que no me recordo. Tudo o que ela disse que eu estava sendo invasivo. Educadamente me deu boa noite e saiu. Depois desse dia, ela voltou a garantir distncia do meu posto. Pra compensar, quase todos os dias, observava Beatriz do banco das lixeiras nos horrios que costumava praticar piano. Era o mais prximo que poderia chegar perto com alguma dignidade.

Numa quinta feira, enquanto quase dormia sentado, ouvi o farfalhar de folhas l fora. O som vinha do terreno baldio do outro lado da cerca. Apaguei as luzes da guarita de imediato. Observei pela janela, trs vultos. Ao que me pareceu estavam sondando por falhas na cerca sem muita preocupao de se esconderem. Confiantes demais ou no notaram que eu estava na guarita? Apanhei a arma da gaveta, mas meu medo era tanto que no conseguia sair. Quando eles se foram permaneci na escurido do cubculo, paralisado. No fiz nenhuma ronda naquela noite. Fiquei pensando mesmo foi na ousadia deles. Eu no representava ameaa? Ou tinha me tornado to invisvel ao ponto de os pretensos arrombadores ficarem s minhas barbas, rindo de mim? No prximo planto reportei tudinho ao seu Z. Carlos, vigia da noite B disse-lhe que muitos marginalzinhos se escondiam no matagal para usar drogas. Mesmo assim falou para que eu ficasse muito atento, houve notcias sobre arrombamento seguido de estupro na vizinhana, no muito alm dos portes do condomnio.

Janeiro foi um ms de pensamentos desordenados que me diminuam. A rotina de Beatriz era a mesma, a distncia permanecia e eu no tinha coragem de me aproximar. Talvez nem fosse questo de coragem, e sim de vontade; vera Beatriz j no fazia diferena. Que ela sumisse, se danasse. Que se fodesse meu trabalho tambm. Nem rondas eu fazia mais. Bebia cerveja e usque durante o expediente, deixei minha barba crescer, no lavava o uniforme nem passava. Nenhum cidado de bem iria reclamar para o meu supervisor? A brecha para dizer: enfie esse emprego no cu! Mas eu no via ningum a no ser quem me passava o turno, Z era to nulo quanto eu. Meu dinheiro era depositado, e me faltavam interlocutores no trabalho, na minha vida, desde sempre. Com minha aparncia deplorvel, meu uniforme amassado, tudo o que eu ganhava era o olhar curioso das crianas do condomnio, uma figura folclrica que as sequestraria se no obedecessem aos pais.

No meio de um cochilo acordei com um invasor na guarita. Um sujeito barrigudo, calvo, usava a tpica camisa polo, que parecia ser um uniforme dos moradores. Era o sndico. Me levantei encabulado, despejei um monte de desculpas desconexas. Ele disse que estava tudo bem e que gostaria de conversar comigo por um instante. Me acalmei e comecei a ouvir. Fez rodeios, usou de eufemismos para dizer que minha aparncia causava certo desconforto aos moradores. Era minha chance de mandar tudo merda bem na minha frente. Me calei e apenas ouvi as queixas como uma criana ouvindo um sermo do pai. Disse-lhe que iria me recompor. Que s precisaria de alguns dias. O sndico foi compreensvel, disse que estava tudo bem, que s precisava me dar esse toque. Depois que lhe agradeci ele disse: agradea a Beatriz.

Numa noite de sbado fiquei sentado horas perto do porto Norte, pensando na desprezvel misericrdia de Beatriz. Caridade, nunca gostei. Era uma estratgia dela, tinha certeza. Demonstrar sua superioridade a sujeitos de segunda categoria como eu. Essa espcie de gente sempre foi assim, com sua arrogncia de que podem mudar as pessoas para descargo de suas conscincias. Tudo proposital. Para que eu ficasse ali, servindo, obrigado a ver um mundo do qual talvez eu devesse fazer parte. s nove horas uma caminhonete parou em frente ao porto. Vi o tipo. Era o macaco tatuado.

- Beatriz do 101b. T tentando ligar, ela deve estar sem bateria. Pode abrir?

- Tem o interfone a. 101b, camarada. - Eu disse.

Beatriz abriu o porto e o macaco ao passar por mim, naquela nave polida e negra buzinou para me provocar, obviamente.

Quando escureceu, fiz 4 rondas seguidas. Do banco das lixeiras olhei para a porta de correr envidraada. Ela tocava piano e o cabeludo observava sentado no sof com uma lata de cerveja na mo. Nenhum toque, nenhum abrao, nenhum beijo. Depois os dois no sof,distantes, conversavam. At que ela baixou a persiana, e as luzes da sala se apagaram. Me aproximei do sobrado, agachei ao lado da janela do quarto. Por uma fresta mida da persiana podia ver a cama de casal. A luz do abajur iluminava tudo com palidez. O corpo de Beatriz caiu nu, de costas na cama. Por cima dela o corpo nu cheio de tatuagens. Ao ouvir o primeiro gemido, sa de l.

Caminhei para a guarita atordoado, errando passos. Me aninhei sobre o piso gelado e dormi. Quando acordei ainda era escuro. Enfiei a arma por dentro das calas e caminhei at o apartamento dela. Antes de chegar na porta, ouvi gemidos que vinham l de dentro. Diminu o ritmo dos passos, saquei a arma e espiei pela porta escancarada. Discos, livros, cadernos de partitura, vasos quebrados pelo cho. Os gritos vinham do quarto de Beatriz. No corredor me deparei com o corpo nu do tatuado, de bruos, com um lenol rasgado estrangulando o seu pescoo. Espiei pela porta do quarto. Estava amarrada a uma cadeira. A mordaa feita de uma tira de lenol de linho absorvia o sangue que escorria de uma das narinas. Dois homens reviravam o armrio jogando as roupas por cima da cama. Beatriz me encarou de olhos arregalados, os ladres nem perceberam que os gritos dela cessaram. Nem me viram. Apertei no gatilho cinco vezes. Dois nas costas de um, trs no peito de outro. No verifiquei se estavam mortos, corri para libertar Beatriz. Desfiz as amarras rapidamente, tirei a mordaa. Ela tomou flego e me

Acordei no cho da guarita, as dores das costas irradiavam para os meus braos. Fiquei alguns minutos ainda deitado olhando pra lmpada de 40 watts e sua luz tremeluzente, desejando um novo sono com sonhos melhores. Ouvi barulho no mato. Um sonho premonitrio? Dessa vez o medo e foi. Sa de arma em punho e contornei a cerca vagarosamente. Tinha j uma sensao estranha, a convico de quem decide matar pela primeira vez? Perto do campo de futebol flagrei trs - O ltimo saa por entre as grades alargadas por uma espcie de macaco hidrulico porttil. Ao me verem, ficaram estticos. Eu no disse uma palavra, apenas os encarei. Desencostei o dedo do gatilho. Por um segundo senti um poder que eu jamais senti na vida. Quando um deles esboou reao de levantar as mos, se rendendo, eu joguei a arma sobre o gramado. No me matem, eu disse. Seguiram calados e imveis. Suas caras no acreditaram no que eu tinha acabado de fazer. Levantei minhas mos lentamente na altura do peito, fui me afastando de costas e disse:

Alguns moradores dormem de portas abertas.