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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Carolina Guerra Libério As mudanças no ato fotográfico com o advento da fotografia digital: um estudo da experiência do dispositivo MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Carolina Guerra Libério

As mudanças no ato fotográfico com o advento da fotografia digital: um estudo da experiência do dispositivo

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO 2011

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Carolina Guerra Libério

As mudanças no ato fotográfico com o advento da fotografia digital: um estudo da experiência do dispositivo.

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof. Dr. Arlindo Machado.

SÃO PAULO 2011

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BANCA EXAMINADORA

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Às minhas avós,

À minha mãe, ao meu pai e meu irmão.

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AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Maranhão (FAPEMA) pela bolsa concedida no edital para bolsas de mestrado fora do estado (nº02/2008). Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, por ter me dado a oportunidade de conhecer alguns dos melhores intelectuais da área de comunicação em atuação no Brasil. Ao prof. Dr. Arlindo Machado pela orientação e pelas ótimas sugestões feitas ao longo da pesquisa. Aos professores Rubens Fernandes Junior e Christine Greiner pelas preciosas recomendações durante a banca de qualificação. À toda minha família, meu pai, minha mãe, meu irmão, minhas tias, tios, primas e primos, que sempre me apoiaram e sempre acreditaram na importância e no valor que os estudos e a educação têm na vida. Ao meu pai, pelo apoio incondicional, mesmo nas horas mais difíceis. À minha mãe, pelos sempre sábios conselhos e por ter ajudado nas revisões do texto. Ao meu irmão, pelo carinho de sempre. À minha avó Vitória, que sempre acreditou e teve fé no meu potencial. À minha tia Madalena, pelo apoio e o abrigo sempre dado. Ao Ramúsyo pelas revisões e pelo apoio nos momentos finais de elaboração da dissertação. À Jane, por partilhar comigo o interesse e ser sempre uma ótima interlocutora às questões que se apresentaram ao longo da pesquisa. Aos amigos que fiz em São Paulo, em especial à Marcy, por sua ajuda sempre tão preciosa e pela companhia sempre presente. Aos meus amigos de São Luís, por acreditarem no meu caminho e me receberem sempre nas minhas idas e vindas com tanto carinho. Aos meus colegas de mestrado, por partilharem comigo o caminho da formação acadêmica. A Deus, por tornar tudo isto possível.

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“A poesia vê melhor”

Roberto Piva

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RESUMO

O presente texto aborda, a partir de um estudo do dispositivo fotográfico, as mudanças no ato fotográfico a partir do surgimento e popularização da fotografia digital. A pesquisa partiu de um resgate histórico do desenvolvimento da fotografia ao longo do século XX, como forma de compreender as mudanças na práxis fotográfica. Discutiu-se que convenções e prefigurações estiveram presentes no ato de fotografar ao longo do século XX, e que relação elas tem com as atuais praticas da fotografia digital. A metodologia da pesquisa foi da ordem da genealogia, conforme definida por Michel Foucault (2002), em que se afirma a necessidade de pesquisar historicamente as linhas de força que compõe o campo dos dispositivos. O conceito de dispositivo é utilizado para discutir as características do equipamento fotográfico, com base não somente na obra de Foucault, mas também na de Agamben (2008). Como base técnica de diversos processos de produção de imagens, a fotografia ocupa um lugar fundamental dentro dos meios de comunicação. A mudança do processo analógico para o digital traz implicações que afetam não somente usuários amadores, mas também os grandes veículos de mídia. Um dos exemplos é a perda da tão alegada objetividade ou verdade fotográfica, especialmente no contexto do fotojornalismo, que tem modificado de forma geral a percepção da fotografia em sociedade: cada vez mais, trata-se a foto como um discurso, e não como índice ou testemunho. O estudo parte da hipótese de que a tecnologia digital em conexão com o dispositivo fotográfico altera o estatuto da imagem fotográfica em sociedade e se insere em um contexto sócio-cultural mais amplo de mudanças nas formas de produção e distribuição de mensagens, a partir das recentes tecnologias binárias. Palavras-Chave: Fotografia digital; Tecnologia digital; Novas mídias

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ABSTRACT

The present study discusses, from the perspective of the photographic dispositif, the changes in the photographic act since the development and popularization of digital photography. The research rescues the historical development of photography during the 20th century as a way to understand the changes in the photographic praxis until nowadays. The conventions and prefigurations of the photographic act were discussed, as also were the relations between those conventions and the actual practice of digital photography. The method utilized in this study was based in the concept of geneology as used by Michel Foucault (2002), in which it is affirmed the need to historically research the fields of force that compose the dispositif. The concept of dispositif is utilized to discuss the characteristics of the photographic equipment, based not only on the works of Foucault, but also on Agamben’s (2008). As a technological basis for many processes of image production, photography has a fundamental role in midst the means of social communication. The changes from the analogical to the digital process in photography bring implications that affect not only amateur day-to-day uses, but also the role of photography in the means of mass communication. A example of this is the loss of trust in the longly self alleged objectivity claim of the photographic image, specially present in the context of photojournalism, that has changed the way society perceives the photographic image: more and more, photography is treated as a discourse, and less as a testemony. The hypothesis of this study is that the digital technology in connection to the photographic dispositif alters the role of the photographic image in society and that this change is inserted in a wider social-cultral context of modifications in the ways messages are produced and distributed in the digital age. Key-words: Photography; Digital photography; New Media

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS 8

INTRODUÇÃO 10

1. A FOTOGRAFIA COMO CAMPO

14

1.1 O ato fotográfico 16

1.2 Da fotografia como símbolo 18

1.3 O fotógrafo como observador 19

1.4 Nos limites do método 22

1.5 Panoramas da visualidade 23

1.6 Traços do digital 24

1.7 O papel das interfaces 26

1.8 O papel da cultura 28

1.9 Paradigmas da imagem 29

1.10 A fotografia digital como um híbrido entre os paradigmas 31

2. MOMENTO DO VISOR

34

2.1 O visor 35

2.2 Na lógica do digital 42

2.3 Estrutura da imagem digital 43

2.4 Breve história do pixel 44

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2.5 Entre o analógico e o digital 49

2.6 O visor de transparência 52

2.7 O observador frente ao visor 53

2.8 A visão isolada do corpo 55

2.9 A cor verde 57

2.10 Algumas (outras) considerações sobre o visor projetivo 61

3. MOMENTO DO OBTURADOR

63

3.1 Fotografia e automação 66

3.2 Fotografia e mascaramento 67

3.3 Indústria fotográfica e fotografia no século XX 69

3.4 O papel da eletrônica no campo da fotografia 72

3.5 O papel do homem por trás da câmera 75

3.6 Modos de aquisição automática da fotografia analógica à digital 77

3.7 Considerações sobre o momento do obturador 78

4. MOMENTO DA PÓS-PRODUÇÃO

81

4.1 Fotojornalismo e manipulação da imagem fotográfica 82

4.2 Pós-produção na fotografia pessoal 86

4.3 “Revelação em uma hora” 87

4.4 Não armazene suas fotos no facebook 91

4.5 O que será de nossa memória? 93

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4.6 Do momento decisivo à decisão por momentos disponíveis 94

4.7 Armazenamento da imagem do analógico ao digital 96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

98

A fotografia em outros tempos 101

A vida em aceleração 103

Mitos do digital 105

Entre o código e a imagem 106

REFERÊNCIAS

109

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Imagem vista através de visor da câmera Rolleiflex 38

Figura 2 - Câmera Olympus Stylus 700 (2006) 39

Figura 3 - Câmera fotográfica embutida em aparelho celular Samsung (2010) 39

Figura 4 - Câmera Ermanox (1924) e o primeiro protótipo da câmera Leica (1923)..

40

Figura 5 - Página inicial do manual de instruções do kit Photosniper oferecido pela empresa russa Zenith

41

Figura 6 - Primeira imagem digitalizada - Fotografia do filho de Russell Kirsch, escaneada em 1957

47

Figura 7 - Câmera Contessa Nettel (1919) 50

Figura 8 - Imagens explicativas do funcionamento de visualização de focagem por meio de telêmetro. Retirada de manual de instruções da câmera Contax IIIa de 1951

53

Figura 9 - Simulação do padrão de filtro Bayer sobre sensor fotográfico 60

Figura 10 - GRICE, Francis. Daguerreótipo de homem e mulher não identificados, [1855]

65

Figura 11 - KENZER, Josh. 365 is Done (2010). Fotografia publicada no site de compartilhamento Flickr

65

Figura 12 - Propaganda francesa da câmera Kodak Brownie (1905) 71

Figura 13 - Câmera Kodak Super Six de 1938 72

Figura 14 - As duas imagens enviadas pelo fotógrafo Marc Feldman à agência Getty Images.

82

Figura 15 - Fotografia tirada por John Filo (1970). À esquerda, imagem tal como publicada na revista LIFE, edição de maio de 1995

83

Figura 16 - Aviso da agência de imagens Gettyimages para eliminação da fotografia de Marc Feldman do banco de imagens

85

Figura 17 - Untitled film still #21 de Cindy Sherman (1978) 88

Figura 18 - La neige qui brule (1981) de Bernard Faucon. 88

Figura 19 - Barrufeta godafreda (da série Herbarium) de Joan Fontcuberta (1983)..

89

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Figura 20 - Ticul ice house de Eric Renner (1968).. 90

Figura 21 - Candy Shop de William Klein, Nova york, (1954-55).. 100

Figura 22 - Leite Zulú para Harmonia Química Nacional, de Arthur Omar, parte da série Série Antropologia da Face Gloriosa, (1973-1997)

100

Figura 23 - Albuquerque, de Lee Friedlander (1972).. 100

Figura 24 - RC-701 Still video camera acompanhada por seus acessórios que incluiam, máquina para envio, receptor decodificador e máquina de impressão

105

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INTRODUÇÃO

A ideia para elaboração do presente estudo foi gestada com o tempo. Como uma

pessoa interessada de forma geral nas artes visuais, foi apenas a partir da aquisição de uma

câmera fotográfica digital que tornou-se possível iniciar explorações no campo da fotografia.

Na época, toda experiência anterior se resumia a tentar tirar fotografias em câmeras

automáticas, pequenas caixas-pretas em que nada era controlável, apenas o botão disparador.

Com a aquisição da primeira câmera digital, parecia haver nascido todo um outro

campo de possibilidades. Mas logo aquela pequena caixa iluminada provaria ser também um

mistério, a partir de seus modos específicos de funcionamento, de suas programações pré-

configuradas de fábrica, de suas teimosias distintas. Perante estas duas realidades, nos

voltamos ao questionamento do universo fotográfico. A leitura de livros como Sobre a

fotografia (Sontag, 2004) e Filosofia da caixa-preta (Flusser, 2002) foram essenciais neste

caminho de descoberta.

Desde esta época, há oito anos, buscamos pouco a pouco tentar desvendar os modos de

funcionamento do aparelho fotográfico. As explorações se iniciaram com o aparelho que

considerávamos ter menos intimidade: a câmera fotográfica analógica. Pouco sabíamos,

então, que mais difícil seria tentar compreender os modos de configuração do aparelho

fotográfico digital, aparentemente tão mais simples de dominar, mas ao mesmo tempo, tão

mais complexo de compreender.

Este conflito entre os modos da fotografia analógica e os modos de operação da

fotografia digital direcionaram o caminho até a presente pesquisa. Nela, talvez o mais

interessante tenha sempre sido a contribuição de todos, de parentes e amigos, até mesmo de

ilustres desconhecidos, em reconhecer que havia, de fato, uma mudança.

No meio do caminho, em todas as oportunidades em que foi perguntado o tema da

presente pesquisa, a resposta sempre foi recebida com observações próprias de cada

interlocutor, percepções que adicionaram-se umas as outras e que fazem todas parte do

presente estudo. Se não é possível apontar a fonte de cada estranhamento na mudança, é

porque nunca o questionamento proveio de um só lugar, mas resultou do cruzamento de

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tantos e tantos comentários e contribuições, recebidas por vezes nos lugares mais estranhos e

nas situações mais inusitadas.

O presente estudo parte da hipótese de que a câmera fotográfica digital promove

relações de mediação diferentes daquelas pressupostas na câmera fotográfica de tecnologia

analógica, supondo, portanto, outras relações entre o homem, o mundo sensível e suas

representações.

Ao longo do caminho de elaboração do presente estudo, uma das grandes questões

colocadas foi a de como abordar um momento de mudança, sem cair em falsas previsões.

Neste sentido, o objetivo da pesquisa foi investigar as relações de mediação conforme estas se

configuram no ato fotográfico digital enquanto ato discursivo e comparar estas mediações às

que se configuravam na fotografia analógica – ou seja, propor uma análise pragmática em que

fossem dispensados os exercícios de futurologia acerca das mudanças.

Mais do que um atestado final do resultado das mudanças, o presente estudo é apenas

um mapa inicial das transições da fotografia analógica para a digital, em que se tenta apontar

os caminhos a que estas nos levam, sem contudo esquecer a direção de onde viemos.

Neste ponto, buscamos evitar aquilo que Philippe Dubois (2004, p.35) identifica como

uma tendência geral à “teleologia do novo”. Segundo Dubois, há, em torno dos novos meios

de representação, uma forte tendência à amnésia, em que as novas tecnologias de

representação são encaradas como meios completamente novos de lidar com a imagem.

Adicionamos a esta preocupação, a necessidade de compreender o contexto sócio-cultural em

que se coloca a transição da fotografia do analógico para o digital.

Diante dos desafios de analisar um processo de mudança que ainda desenha suas

últimas conseqüências, e diante da compreensão que esta mudança se desenha em meio a um

contexto específico, buscamos realizar um resgate histórico das configurações do ato

fotográfico.

Metodologicamente, escolhemos categorizar o ato fotográfico em três momentos: o

momento do visor, o momento do obturador e o momento da pós-produção. Estes momentos

remetem de modo geral a etapas importantes da produção fotográfica, polo central de nossa

análise. Os capítulos do presente estudo foram divididos com base nesta categorização dos

momentos do ato fotográfico, tendo sido mantido, todavia, um primeiro capítulo destinado a

alguns esclarecimentos sobre as bases teóricas de construção de nossa pesquisa.

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No primeiro capítulo, “A fotografia como campo”, apresenta-se o conceito de

dispositivo, segundo Michel Foucault (2002), como ferramenta teórica para investigação das

mudanças no campo da fotografia. Define-se o significado da expressão ato fotográfico, a

partir dos estudos de Philippe Dubois (1994) e aponta-se a importância da noção de

observador, desenvolvida por Jonathan Crary (1992), como forma de compreender o papel do

fotógrafo ao colocar-se como operador do aparelho fotográfico.

Ainda no primeiro capítulo, esclarece-se o recorte da pesquisa, centrada no polo da

produção de fotografias. Destaca-se a importância dos modos de configuração do

equipamento fotográfico como lugar fundamental de mediação e conflito entre fotógrafo e

aparelho. Reforça-se, neste contexto, a necessidade de condução de um resgate histórico que

possa facilitar a análise do atual momento transicional. Propõe-se uma relação inicial entre a

mudança no campo da fotografia e os modos de representação na sociedade, o que nos leva a

discutir o papel da fotografia digital frente os paradigmas da imagem, conforme estes são

categorizados por Lucia Santaella e Winfried Nöth (2008).

No segundo capítulo, “Momento do visor”, demarcamos alguns dos pontos

característicos da visualização fotográfica, ou seja, abordamos os modos de observação

prescritos no ato fotográfico, e como estes se alteraram com a inserção da fotografia no

campo das tecnologias digitais. São discutidos alguns dos princípios centrais da linguagem

digital, e é esboçada uma breve história do pixel, elemento mínimo que constitui toda imagem

computadorizada. Distinguem-se as características do visor de transparência, típico da

fotografia analógica, e do visor de projeção, já pertencente ao campo da fotografia digital.

No terceiro capítulo, “Momento do obturador”, discutem-se os caminhos de

industrialização da fotografia, com especial ênfase aos processos de automação que passam a

fazer parte do campo a partir da segunda metade do século XX. Em face da automação

generalizada e progressiva dos processos de produção, coloca-se o digital como uma

tecnologia tecnicamente avançada de controle. São debatidos os recursos automáticos de

aquisição fotográfica, tornados comuns nos dias de hoje, o que acaba por levar à discussão do

papel de decisão do fotógrafo em relação com a câmera e com as imagens que esta se prova

capaz de automaticamente produzir.

No quarto capítulo, “Momento da pós-produção”, são discutidos os novos modos de

lidar com a imagem fotográfica após a sua produção. Debate-se o papel de credibilidade da

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imagem fotográfica enquanto documento, a partir do momento que as técnicas digitais de pós-

produção passam a tornar mais simples os processos de tratamento da imagem fotográfica.

Também no quarto capítulo, indica-se a existência de novos lugares de guarda das

imagens digitais. Frente ao surgimento destes novos lugares, reflete-se sobre as mudanças nas

formas de lidar com as imagens pessoais produzidas – enquanto antes estas eram guardadas

em álbuns pessoais ou porta retratos, a partir do digital, elas se tornam ferramentas de diálogo,

sendo transmitidas a amigos e familiares, a partir de álbuns digitais colocados em redes.

As possibilidades de conservação da imagem fotográfica digital são questionadas.

Problematiza-se a potencial durabilidade de uma imagem digitalmente gerada, tanto do ponto

de vista pragmático, das tecnologias, quanto do ponto de vista afetivo, de valorização pessoal

de uma determinada fotografia como um item representativo de um momento memorável.

Assinala-se que as imagens digitais estão em constante fluxo e que isto tem implicações

diretas sobre seus usos e sua conservação.

Na atualidade, ao nos darmos conta do papel que a digitalização passou a assumir em

nosso cotidiano, podemos perceber o quanto esta modificou os processos de comunicação

social. Destaca-se, nesse cenário, a estabilização da internet como esfera de publicação, ou

seja, como terreno onde um determinado conteúdo pode se tornar público.

Se há uma mudança no campo da fotografia é porque fundamentalmente há também

uma mudança nos modos sociais de produção e circulação dos conteúdos, colocados em um

fluxo cada vez mais acelerado. Dentro desta transição, a fotografia não é um elemento

isolado, mas insere-se no processo de digitalização que apresenta-se como uma tendência

geral no início do século XXI.

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1. A FOTOGRAFIA COMO CAMPO

O presente estudo parte da perspectiva da fotografia enquanto dispositivo. Aqui, a

palavra dispositivo não representa mero sinônimo de equipamento, mas atua como um

denominador do campo fotográfico, entendido como campo tanto de produção, quanto de

consumo midiático. Como campo, a fotografia não se resume a uma só prática, mas permitiu

ao longo de sua história as mais variadas aplicações. Do mesmo modo, a fotografia não se

resume a uma só tecnologia, mas estabelece uma mediação cujas bases de saber são

constantemente retrabalhadas, em que são instituídas novas tecnologias e ao mesmo tempo

resgatadas técnicas antigas.

A fotografia não é um campo isolado, mas antes um modo de agir constantemente

reformulado por suas formas de uso e pelo contato com outros campos do saber. Por não se

restringir a uma prática ou a uma técnica apenas é que podemos considerá-la um campo. Por

ser um campo em que os saberes e as relações de poder estão sempre em renegociação é que a

abordamos como um dispositivo.

O conceito de dispositivo que aqui utilizamos se baseia na perspectiva construída

pelos estudos de Michel Foucault. A abordagem de Foucault é essencialmente historiográfica

e o conceito de dispositivo pode ser encarado como um pano de fundo às pesquisas

desenvolvidas pelo autor. Segundo Giorgio Agamben, é apenas em entrevistas que Foucault

chega a fornecer definições mais precisas sobre a natureza dos dispositivos, todavia, a noção é

central para a compreensão da obra de Foucault.

Os dispositivos são precisamente o que na estratégia foucaultiana toma o lugar dos universais: não simplesmente esta ou aquela medida de segurança, esta ou aquela tecnologia do poder, e nem mesmo uma maioria obtida por abstração: antes, como dizia na entrevista de 1977, ‘a rede que se estabelece entre estes elementos’. (AGAMBEN, 2009, p.33)

A entrevista a que Agamben se refere foi concedida por Foucault tendo como tema o

primeiro volume de A História da Sexualidade. Na entrevista, Foucault (2002, p. 244) define

os dispositivos como um conjunto de elementos heterogêneos, discursivos e não-discursivos,

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entre os quais se estabelece um jogo contínuo de mudanças de posição e modificação de

funções.

O conceito de dispositivo define-se assim como o de um campo multifacetado, em que

elementos discursivos e não-discursivos relacionam-se em constante mutação. A noção de

dispositivo construída por Foucault interessa aos nossos estudos por ser uma ferramenta

teórica capaz de abordar mudanças e transições. O conceito de dispositivo nos permite

abarcar as diversas facetas da fotografia, seus diferentes usos históricos e o caráter

transicional de suas tecnologias sem promover definições estanques quanto ao objeto de

estudo.

É preciso que se ressalte, ainda, que os elementos componentes do dispositivo não repousam sobre uma rede equilibrada e impassível. Pelo contrário, o dispositivo foucaultiano comporta seus elementos em luta constante: ele é repleto de assimetrias, confiscos, produções de sentido e mobilidades de toda ordem. O fator temporal é intrínseco ao dispositivo: ele se atualiza no tempo, se considerarmos toda atualização como uma repetição em que se lançam germes de diferenciação. (TUCHERMAN; SAINT-CLAIR, 2008, p.2)

Ao analisarmos a história da fotografia, podemos observar a existência constante de

um contrabalanço entre tecnologias existentes e usos fotográficos desempenhados. A análise

da fotografia enquanto dispositivo nos permite conceber que tanto as técnicas desenvolvidas

influenciaram os usos, quanto os usos desenvolvidos influenciaram o surgimento de novas

tecnologias. O conceito de dispositivo nos salva de uma compreensão causal e linear,

permitindo o entendimento da fotografia como campo em constante reformulação.

O fotográfico aparece então como campo formado por elementos diversos. Estes

elementos fogem por vezes do próprio domínio da fotografia e revelam a relação do

dispositivo fotográfico com outros dispositivos, com sistemas específicos de saber e no

interior de relações de poder.

O dispositivo (...) está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações do saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (FOUCAULT, 2002, p. 246)

O dispositivo fotográfico pode ser compreendido a partir de uma análise dos vários

dispositivos com os quais se relaciona, a partir dos sistemas de saber e das relações de força

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que tanto o influenciam e condicionam, quanto podem por ele ser modificadas. Agamben

(2009), ao promover uma ampliação do conceito de Foucault, centra a definição de

dispositivo como algo capaz de conduzir, interceptar e orientar gestos, condutas, discursos e

comportamentos:

Generalizando posteriormente a já bastante ampla classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar, assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares (...). (AGAMBEN, 2009, p. 41)

Seguindo a abordagem de Foucault, a análise das relações que formam e reformulam o

dispositivo fotográfico passa necessariamente pelo resgate histórico das linhas de força que

compõem o campo. Passando pela definição de Agamben, vemos a necessidade de que este

resgate seja feito a partir de uma análise da condição do gesto. Por isto, no caso de nossa

pesquisa, a análise da mudança do analógico para o digital passa necessariamente por um

resgate das condições do gesto mediado pelo dispositivo, aqui entendido como gesto

discursivo. Por isto este trabalho tem como eixo central o ato fotográfico.

1.1 O ato fotográfico

O que seria o fotográfico enquanto ato? Não se delimitando a uma ação, ou a uma

coleção de objetos materiais definidos, o fotográfico abrange todos estes aspectos, sendo meio

de produção e de consumo midiático. O termo midiático tem aqui o seu mais amplo sentido,

já que toda foto é, em si, mensagem e meio. Partimos, portanto, da definição de ato

fotográfico segundo estabelecida por Philippe Dubois:

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A foto não é apenas uma imagem (o produto de uma técnica e de uma ação, o resultado de um fazer e de um saber-fazer, uma representação de papel que se olha simplesmente em sua clausura de objeto finito), é também, em primeiro lugar, um verdadeiro ato icônico, uma imagem, se quisermos, mas em trabalho, algo que não se pode conceber fora de suas circunstâncias, fora do jogo que a anima sem comprová-la, literalmente: algo que é, portanto, ao mesmo tempo e consubstancialmente, uma imagem-ato, estando compreendido que esse 'ato' não se limita trivialmente apenas ao gesto da produção propriamente dita da imagem (o gesto da 'tomada'), mas inclui também o ato de sua recepção e de sua contemplação. A fotografia, em suma, como inseparável de toda a sua enunciação, como experiência de imagem, como objeto totalmente pragmático. (DUBOIS, 1994, p.15)

A noção do fotográfico como um campo complexo de prática e de consumo midiático

e a ideia de ato fotográfico como imagem-ato são fundamentais à nossa pesquisa. Como

afirma o fotógrafo Denis Roche (apud Dubois, 1994, p.12) “o que se fotografa é o fato de se

estar tirando uma foto”. Neste sentido, toda fotografia é, e só pode ser considerada um

testemunho de sua própria enunciação. Em um sentido discursivo, entendemos enunciação

como um acontecimento inseparável de seu contexto que só pode ser apreendido em meio à

multiplicidade de suas dimensões sociais e psicológicas (CHARAUDEAU;

MAINGUENEAU, 2004, p.193)

O presente estudo parte, portanto, do entendimento da fotografia como objeto

totalmente pragmático, inseparável de toda a sua enunciação (DUBOIS, 1994, p.15).

Consideramos que toda fotografia materializa, não um simples registro do objeto, mas as

condições culturais de sua produção e circulação. Desta forma, nos afastamos das discussões

sobre a ontologia da imagem fotográfica, tão em voga no campo durante os anos de 1970, e

aproximamos nossa abordagem daquela desenvolvida pela área da análise do discurso

(FOUCAULT, 2006; MAINGUENEAU, 2004), que tem como foco o exame das condições

tanto de produção, quanto de circulação e consumo dos textos culturais. Nega-se, portanto,

qualquer caráter da fotografia enquanto testemunho ou representação do real, estando o

discurso sobre a verdade fotográfica ele mesmo sujeito ao exame histórico.

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18  

1.2 Da fotografia como símbolo

Nossas reflexões alinham-se às formulações de Vilém Flusser (2002; 2008) sobre a

fotografia como símbolo, e à noção de fotografia como expressão de conceitos, conforme

apresentada por Arlindo Machado (2005). De acordo com Machado, a atividade fotográfica é

eminentemente discursiva: “(...) a fotografia exprime seus enunciados na forma de textos

imagéticos que são sempre e necessariamente intencionais, interpretativos e subjetivos, como

ocorre, aliás, em qualquer outro tipo de texto” (2005, p. 314).

Para explicar o caráter eminentemente simbólico de toda fotografia, Flusser apresenta

um exemplo demonstrativo baseado na fotografia de uma casa - o objeto, é claro, poderia ser

qualquer outro. “A casa não é a causa da fotografia como o é a pata do cachorro para o traço

na neve: o fotógrafo a tomou como pretexto, e a casa mostrada na fotografia é o efeito desse

gesto.” (FLUSSER, 2008, p. 48). A fotografia transforma a casa, objeto sensível, em objeto

fotográfico, portanto, em representação visual e simbólica.

Como discurso, o ato fotográfico é, antes de tudo, uma “violência que fazemos às

coisas” (FOUCAULT, 2006, p. 33). Ao tomar de pretexto um objeto para dele criar um

significado que de outra forma não existiria, toda fotografia deve ser interpretada antes como

uma violação do objeto, do que como seu simples registro. A situação se estende da fotografia

mais utilitária às experiências artísticas mais engajadas.

Para Pierce “Um símbolo é um signo que remete ao objeto que ele denota em virtude

de uma lei, normalmente, uma associação de ideias gerais, que determina a interpretação do

símbolo por referência a esse objeto. É, portanto, ele próprio um tipo geral ou uma lei.”

(PIERCE apud DUBOIS, 1994, p. 64).

Vale lembrar que Flusser define o aparelho fotográfico, assim como todos os

aparelhos, como “produtos da técnica que, por sua vez, é texto científico aplicado.”

(FLUSSER, 2002, p.13). No caso da fotografia, as leis científicas que orientaram o

aparecimento do aparelho servem de ideia geral, princípio de associação que estabelece a

referência entre um objeto da realidade sensível e sua representação fotográfica.

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Ao considerarmos a fotografia como símbolo, trazemos à tona a condição do

fotográfico como campo constituído a partir de um conjunto de regras e convenções. Estas

regras são primeiramente estabelecidas a partir da construção do dispositivo fotográfico com

base em leis científicas, mas jamais foram fixas.

Apesar de o discurso científico ter sido um dos grandes eixos moduladores do

fotográfico, as convenções que orientam o campo da fotografia certamente não dizem respeito

somente às leis da ciência que lhe deram origem, mas estão, de forma profunda, imbricadas

com os sistemas de saber e poder que caracterizaram o século XX.

Ao estudar a história da fotografia é essencial considerar de que forma foram

configurados os processos de circulação de mensagens, de industrialização dos produtos e o

desenvolvimento de novas tecnologias. Isto inclui a crescente tendência, especialmente

marcante após a Segunda Guerra Mundial, à automatização generalizada dos processos de

produção (OLIVER, 1956, p.634).

O que aqui chamamos de regras ou convenções do campo fotográfico relaciona-se de

forma geral a tudo aquilo que, ao longo da história da fotografia, delimitou, orientou e

impulsionou os modos de produção, as escolhas dos conteúdos e as variadas formas de

distribuição de fotos.

De certo modo, toda história da fotografia pode ser considerada uma história do

estabelecimento e da reformulação de convenções do ato fotográfico. Estas convenções não

dizem respeito apenas à fotografia, mas fazem parte também de uma história dos modos de

representação da sociedade, de seus pactos e regimes de visibilidade (SODRÉ, 2008, p.16).

1.3 O fotógrafo como observador

A noção de dispositivo que aqui utilizamos certamente não é a mesma das discussões a

respeito do dispositivo de base do cinema, tão debatida nos anos 1970, com forte referencial

em Jean-Louis Baudry. A noção aqui utilizada se distingue da noção de dispositivo da teoria

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clássica do cinema por dois princípios: o primeiro seria o da inaplicabilidade do conceito de

ideologia à nossa discussão, e o segundo tem relação com a noção de espectador, que não

convém ao campo da fotografia. Ao esclarecer sobre a não utilização da palavra ideologia em

suas formulações, Foucault afirma:

(…) queira-se ou não, ela (a ideologia) está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos. (FOUCAULT, 2002, p.7)

Segundo Ismail Xavier, a queda por terra das formulações de Baudry a respeito do

aparelho ou dispositivo de base do cinema se deve ao fato de Baudry ter visto “na ilusão e no

fetiche a vocação do dispositivo, sem nuances, nada mais restando de consolo para a

cinefilia.” (XAVIER, 2008, p.202). Para não incorrermos no mesmo erro é que nos afastamos

da noção de ideologia e nos centramos nas convenções e preformações do ato fotográfico,

levando sempre em consideração que, se as regras existem, elas estão sempre em mediação e

não são nem imutáveis, nem intransponíveis.

Não se trata, portanto, de afirmar que a fotografia é boa ou má, ilusória ou objetiva,

mentirosa ou verdadeira, nem que a fotografia digital seja melhor ou pior que a fotografia

analógica, discussão infundada. Trata-se antes de analisar as formas de existência da imagem

fotográfica em meio à sociedade, ou seja, de enxergá-la pragmaticamente. Se a fotografia é

discurso, não há verdadeiro ou falso, há apenas circunstâncias que levam à maior ou menor

credibilidade, como em qualquer outra forma de expressão.

A segunda noção que torna nossa acepção de dispositivo diferenciada das discussões

de Baudry é a de que o conceito de espectador, com todas suas implicações, não pode ser

aplicado à fotografia. Afinal, o que é um fotógrafo? Antes de tudo, é alguém que observa,

mais do que alguém que simplesmente assiste a alguma coisa. A partir da palavra observar

encontramos como referência o trabalho de Jonathan Crary, em seu livro Techniques of the

Observer: On vision and modernity in the nineteenth century (1992).

Para Crary (1992, p.6), a escolha do termo observador faz-se fundamental a partir da

diferenciação na etimologia latina entre spectare e observare. Enquanto spectare significa de

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forma resumida 'olhar para', observare implica, conforme definição, em um senso de

conformidade da ação, consenso com relação a regras, códigos, regulações e práticas.

Claramente, Crary procura fugir da conotação de passividade que a palavra espectador

passou a ter, principalmente a partir da modernidade. O autor faz questão, igualmente, de

evitar a noção de sujeito como algo a priori, recusando-a enquanto universal filosófico. Crary

concentra sua análise no papel histórico de configuração das convenções que vêm a

caracterizar um observador específico, no caso, o observador no sec. XIX:

Apesar de obviamente ser alguém que vê, um observador é de forma mais importante alguém que vê no contexto de um conjunto pré-determinado de possibilidades, alguém que está inscrito em um sistema de convenções e limitações. E aqui ‘convenções’ indica um sentido bem mais amplo do que práticas representacionais. Se é possível afirmar que há um observador específico ao século dezenove ou a qualquer período, é apenas como o efeito de um sistema irredutivelmente heterogêneo de relações discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais. Não há sujeito observador que existe a priori ou anteceda este campo de contínuas mudanças. (CRARY, 1992, p.6)1

A partir da noção elaborada por Crary, defendemos que é como observador que se

institui o papel do fotógrafo. Um observador que, dentro do ato fotográfico, conforma-se a

regras, códigos, regulações e práticas delimitadas. Defendemos que, ao longo da história da

fotografia, as práticas e regulações não foram sempre as mesmas, com especial destaque para

as mudanças ocorridas a partir dos anos 1960, com a inserção de componentes eletrônicos nos

aparelhos fotográficos.

Interessante notar que não é apenas na utilização do termo observador que nossa

pesquisa tem como apoio o trabalho de Crary, mas também toma como exemplo a abordagem

histórica desenvolvida pelo autor. Em seu livro, Crary afirma que suas metas são

genealógicas, no sentido foucaultiano do termo. Foucault insiste no caráter transitório e

relacional dos dispositivos, por isto mesmo, defende uma abordagem histórica.

É isto que eu chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história. (FOUCAULT, 2002, p.7).

                                                            1 Todos os textos originalmente em inglês estão aqui apresentados com tradução da autora.

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Neste estudo, utilizamos a ideia de genealogia, que afirma a necessidade de pesquisar

historicamente as linhas de força que compõe o campo dos dispositivos. No caso do

dispositivo fotográfico, convém considerar as relações entre indústria fotográfica, produtores

profissionais, artistas e amadores e os consumidores de fotografias. Isto inclui os processos

que fizeram da fotografia uma manifestação cultural e ao mesmo tempo, um mercado de

vendas, assim também como um campo profissional.

1.4 Nos limites do método

Apesar de abordar de maneira discreta a questão do consumo de fotografias, o presente

estudo centra-se antes no polo da produção fotográfica. Realizamos um resgate histórico que

toma como ponto central o momento transicional em que a prática da fotografia digital torna-

se predominante à prática da fotografia analógica. Para tanto, examinamos de forma destacada

o desenvolvimento de diferentes recursos técnicos de operação do aparelho fotográfico ao

longo do sec. XX, até a chegada do século XXI.

O resgate histórico da trajetória de desenvolvimento do equipamento fotográfico foi

utilizado como plataforma para investigação de convenções que permeiam o ato fotográfico,

uma vez que consideramos o próprio equipamento um dos principais locais de conflito e

mediação da prática da fotografia. Para produzir fotografias, todo fotógrafo precisa, já de

princípio, conformar-se ou insurgir-se contra o equipamento e suas convenções.

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1.5 Panoramas da visualidade

Susan Sontag faz referência, ao falar sobre fotografia, à constituição do que seria uma

ética do ver, considerando que “ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e

ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de

observar.” (2004, p.13). Para nós, uma ética do ver está relacionada a convenções de

visualidade, convenções que não se relacionam de forma unidirecional ao equipamento

fotográfico, mas que se configuram em meio a uma rede de elementos heterogêneos capaz de

reconfigurar os hábitos de visualização de uma sociedade.

Na realidade, toda e qualquer sociedade constrói (por pactos semânticos ou semióticos), de maneira mais ostensiva ou mais secreta, regimes auto-representativos ou de visibilidade pública de si mesma. Os processos públicos de comunicação, as instituições lúdicas, os espaços urbanos para os encontros da cidadania integram tais regimes. (SODRÉ, 2008, p.16)

Segundo Sodré, os processos públicos de comunicação, as instituições lúdicas e os

espaços urbanos são partes integrantes do regime de visibilidade pública de uma sociedade

(SODRÉ, 2008, p.16). Ao analisarmos estas três esferas podemos observar mutações trazidas

pelo atual estado de abrangência social que as mídias digitais passaram a assumir da virada do

século XX para o XXI.

Em relação ao regime de visualidade na atualidade, não enxergamos a mudança na

fotografia do analógico para o digital como algo isolado, mas a vemos inserida em um

movimento amplo de mudanças. As modificações trazidas pelo digital alteram a forma de nos

relacionarmos não apenas com as imagens, sejam elas fotográficas ou não, mas com qualquer

tipo de informação.

A fotografia não vive, portanto, uma situação especial nem particular: ela apenas corrobora um movimento maior, que se dá em todas as esferas da cultura, e que poderíamos caracterizar resumidamente como sendo um processo implacável de “pixelização” (conversão em informação eletrônica) e de informatização de todos os sistemas de expressão, de todos os meios de comunicação do homem contemporâneo. A tela mosaicada do monitor representa hoje o local de convergência de todos os novos saberes e das sensibilidades emergentes que perfazem o panorama da visualidade (e também da musicalidade, da verbalidade)... (MACHADO, 2005, p. 311)

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A fotografia digital insere-se no sistema mais amplo da computação e dos processos

de digitalização da informação, que tem permeado todas as mídias e constituído um campo de

questionamento nas mais diversas áreas de expressão. Pesquisas emergem na atualidade sobre

a televisão, o cinema, a música, a arte digital – discussões que devem manter constante

diálogo. Afinal, se há algo que o digital favorece é o senso de atravessamento entre as

diversas mídias, provocado pelo sentido de equivalência que a linguagem binária traz em seu

cerne.

1.6 Traços do digital

O principal traço de estabelecimento do digital tem sido o da sua busca generalizada

por correspondência nos mais diferentes tipos de processo. Neste sentido, é um sistema que

participa de um código-base comum que visa transformar qualquer dado existente em uma

variação quantificável de informação. A partir do digital, é o próprio conceito de informação

que passa a ser central, com importantes componentes que alteram profundamente o modo de

relação entre sujeitos e conteúdos culturais, tais como a numerização e a imaterialidade do

código.

O digital promove a numerização, ou seja, a conversão de tudo que é contínuo e

variável qualitativamente em dados numéricos, a partir da atribuição de valores em escalas

pré-definidas. A transformação de experiências sensíveis em input, ou seja, em uma

informação que o código seja capaz de interpretar, tem sido o motor de expansão das

linguagens digitais em seus mais variados usos.

Por meio da numerização, o código digital é capaz de igualar diferentes tipos de

mensagem, submetendo-as ao denominador comum da linguagem binária. Esta propriedade

remete ao intento de que a linguagem digital seja considerada um código estável, unificador,

capaz de estabelecer e controlar o trânsito de mensagens informacionais sem que haja perda

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necessária de informação. Uma das chaves de funcionamento do digital está no

estabelecimento do controle e da padronização da variação dos sinais a partir de parâmetros

numéricos.

O digital transforma a noção de reprodutibilidade: não há mais original e cópia,

apenas a virtualidade do código e as diferentes formas de atualização da mensagem. Onde

antes havia uma matriz física e material de onde eram geradas inúmeras cópias, como no caso

da prensa de Gutenberg e do negativo fotográfico, passa a haver uma matriz numérica que,

não importando quantas vezes seja acessada e replicada, poderá permanecer a mesma em seu

código base.

As possíveis discrepâncias entre as versões de uma mensagem não se encontram mais

no nível de ligação da mensagem com uma matriz original, - como era o caso da perda de

fidelidade de uma reprodução a depender se esta era de primeira, de segunda ou de terceira

geração - mas antes, nas diferentes possibilidades de interpretação do código da mensagem

por um determinado programa.

Se não há no digital diferenciação entre gerações de reprodução, é também porque não

há nenhuma manifestação da mensagem que possa ser considerada ‘original’. Toda

apresentação de uma mensagem em um meio digital é sempre a apresentação de uma das

possíveis formas de interpretação de seu código numérico, uma dentre as diversas formas

possíveis de atualização de sua virtualidade.

As informações e, consequentemente, as imagens digitais estão sempre em fluxo, são

sempre virtuais, pois estão sempre na intendência de vir a ser. Toda visualização de uma

imagem fotográfica digital é apenas uma de suas possíveis formas de aparição. A ligação

desta aparição com o código matriz é sempre condicionada pela interpretação dada ao código,

ou seja, pelas variáveis estabelecidas e aceitas pelo programa que a renderá visível.

Para analisar as mensagens codificadas na era digital é importante compreender que

este tipo de informação possui diferentes níveis de codificação. Em primeiro, há sempre o

nível básico do código, em que toda informação é transcrita em impulsos elétricos de ‘sins’ e

‘nãos’, os ‘0’ e ‘1’ do código binário. Em segundo lugar, há a codificação das interfaces,

responsáveis pela mediação do código base até o usuário.

Enquanto o primeiro nível de codificação é o da transformação de informação em

código binário, o segundo tem a ver com as programações, as formas como estas informações

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serão visualizadas após serem transformadas em código binário, que ações e que outros

códigos de funcionamento elas passarão a engendrar.

1.7 O papel das interfaces

De forma geral, é na história do desenvolvimento das interfaces visuais que se

encontra o centro da popularização do computador. Antes da implementação do uso de tubos

a vácuo nos sistemas computacionais, o funcionamento dos computadores era restrito à

administração de dados numéricos em interfaces que se restringiam à inserção de cartões

perfurados e operação de válvulas. É apenas a partir da década de 1950 que são introduzidos

dispositivos periféricos similares aos monitores que vemos hoje em dia (EAMES, 1990).

O computador é essencialmente uma máquina capaz de calcular de forma

automatizada uma grande quantidade de operações matemáticas. Todas as operações

realizadas em um computador são formuladas em operações lógicas de funcionamento,

estabelecidas em programações.

A destinação inicial das máquinas de computação foi o uso bélico. O ENIAC

(Electrical Numerical Integrator and Computer), considerado o primeiro computador digital,

foi construído com financiamento do exército americano, em um projeto desenvolvido

secretamente com o objetivo de prever trajetórias balísticas (EAMES, 1990)

Apenas com o final da Segunda Guerra Mundial, o projeto de desenvolvimento dos

computadores se torna um campo aberto à exploração científica. Mas foi um longo caminho

até chegarmos ao tipo de máquina multimidiática que hoje permeia a sociedade. Neste

caminho, o desenvolvimento de equipamentos periféricos de entrada e saída de dados, bem

como o desenvolvimento de interfaces visuais de fácil manipulação tiveram um papel

fundamental na popularização do uso do computador.

Vale lembrar que antes dos sistemas operacionais baseados em metáforas visuais tais

como o Windows, ou ‘janelas’, as mediações entre usuário e computador eram feitas

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textualmente, como no sistema DOS. Já existia um monitor acoplado, porém os comandos

eram inseridos sob a forma de expressões, com palavras e símbolos. Ainda hoje os comandos

na forma textual existem dentro dos sistemas de computação, no entanto, eles se restringem

cada vez mais a uma linguagem especializada: a linguagem da programação.

Princípios como o de manipulação direta dos objetos na tela, sobreposição de janelas, representação icônica e menus dinâmicos foram gradualmente desenvolvidos ao longo de poucas décadas, do início dos anos de 1950 até o começo da década de 1980, quando finalmente apareceram em sistemas comerciais como Xerox Star (1981), Lisa (1982), da Apple, e de forma mais importante, no Macintosh (1984) da Apple. Desde então, passaram a constituir o modo convencional de operar um computador, e uma linguagem cultural com existência própria. (MANOVICH, 2000, p.72)

A história da construção das interfaces é uma parte central da história atual da

computação. A partir de metáforas visuais, programas como o Windows e computadores

como os da Macintosh, com ícones imitando pastas e blocos de nota, marcam o momento em

que os computadores passam a ser popularizados, ou seja, utilizados por uma parcela maior da

população. Conceitos como o de ergonomia cognitiva e usabilidade, a ideia do user-friendly,

ou seja, das interfaces amigáveis, tornaram-se fundamentais no desenvolvimento da

informática. A partir de então, o computador deixa de ser apenas uma máquina de cálculos e

torna-se uma máquina de mídia, capaz de relacionar conteúdos diversos.

As interfaces cumprem o papel de fazer parecer simples processos que são, em sua

base numérica e de codificação, extremamente complicados. Flusser em seu livro, O universo

das imagens técnicas (2008) afirma: “As imagens técnicas escondem e ocultam o cálculo (e,

em consequência, a codificação) que se processou no interior dos aparelhos que as

produziram.” (2008, p.29). As reflexões de Flusser dizem respeito a todas as imagens

técnicas, incluindo aí as imagens numéricas, categoria em que podemos encaixar as interfaces

visuais.

Porém, há ainda um terceiro nível de codificação das mensagens digitais que devemos

considerar. Este é o nível histórico-cultural em que estas mensagens transitam.

Essencialmente, os meios digitais são meios de aquisição e tratamento de informações,

todavia, as formas de expressar, elaborar, visualizar e se relacionar com estas informações

têm uma dimensão histórica, diretamente ligada à influência de códigos de representação e de

comunicação prévios.

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A construção das interfaces visuais da computação moderna passou pela realocação de

conteúdos e referenciais histórica e socialmente familiares para um ambiente pouco familiar à

grande parcela da população, no caso, o ambiente de cálculo, codificação e operações lógicas

do digital. Foi apenas ao apelar à familiaridade de conteúdos e simbolizações anteriores, ou

seja, a metáforas passíveis de compreensão generalizada, que as interfaces tornaram possível

a popularização do computador pessoal e dos demais mecanismos digitais que hoje permeiam

nosso cotidiano.

1.8 O papel da cultura

A afirmação da importância dos repertórios culturais prévios à construção das

interfaces vale também para a codificação das mensagens realizadas em meio digital. Deste

modo, ao falarmos de fotografia digital, é impossível não levarmos em conta os mais de 180

anos de fotografia analógica.

Mesmo sendo essencialmente algo novo quanto aos seus modos de funcionamento, a

fotografia digital faz parte da trajetória cultural da fotografia, que construiu ao longo de sua

história, certamente não de forma independente e nem de forma isolada, uma série de

referenciais estéticos e visuais que influenciam até hoje a produção cotidiana de fotos.

A escolha e a priorização de determinadas formas e objetos de aquisição de

informação, os modos de elaboração da interface e do desenvolvimento de periféricos, todos

estes componentes passam pela influência de referenciais históricos necessariamente

relacionados a mídias anteriores e aos usos sociais destas mídias ao longo de suas trajetórias.

Todavia, a linguagem digital não se apropria destas trajetórias sem impor mudanças

essenciais, que dizem respeito, em especial, às formas de produção, consumo e circulação das

mensagens.

Na comunicação cultural um código raramente é um simples mecanismo de transmissão, geralmente o código afeta as mensagens que transmite. (...) Um código pode também fornecer seu próprio modelo de mundo, seu próprio sistema lógico ou ideologia; as mensagens culturais subseqüentes ou

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linguagens inteiras criadas a partir desse código serão limitadas pelo modelo, sistema ou ideologia que o acompanham. (MANOVICH, 2000, p. 64)

1.9 Paradigmas da imagem

No livro Imagem: cognição, semiótica, mídia (2008), Lucia Santaella e Winfried

Nöth afirmam a existência das imagens digitais como partícipes de um novo paradigma da

imagem. Os autores delimitam um total de três paradigmas da imagem, justificando que esta

divisão numérica trata de uma generalização entre diferentes classes de representações

imagéticas, cujo propósito é apenas o de delimitar mudanças gerais nas condições de

produção, circulação e consumo da imagem.

Uma vez que nenhum processo de signo pode dispensar a existência de meios de produção, armazenamento e transmissão, pois são esses meios que tornam possível a existência mesma dos signos, o exame desses meios parece ser um ponto de partida imprescindível para a compreensão das implicações mais propriamente semióticas das imagens, quer dizer, das características que elas têm em si mesmas, na sua natureza interna, dos tipos de relações que elas estabelecem com o mundo, ou objetos nelas representados, e dos tipos de recepção que estão aptas a produzir. (SANTAELLA & Nöth, 2008, p.162)

Segundo Santaella e Nöth, o primeiro paradigma da imagem envolve as técnicas

artesanais de produção (2008, p.163). Estas técnicas precedem historicamente os dispositivos

mecânicos responsáveis por inaugurarem processo de automatização na produção das

imagens. Entre os modos automáticos de geração da imagem, dá-se destaque à fotografia

como dispositivo inaugural do segundo paradigma, por isto denominado de paradigma

fotográfico. Denomina-se o paradigma anterior de pré-fotográfico (SANTAELLA & NÖTH,

2008, p.162).

O terceiro paradigma indicado por Santaella e Nöth (2008, p.162) é o paradigma pós-

fotográfico, que sucede as técnicas mecânicas e caracteriza-se pela proeminência dos

processos matemáticos de geração da imagem. Para Santaella e Nöth, o paradigma pós-

fotográfico inicia-se com a possibilidade de construção das imagens em computador, as

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chamadas imagens de síntese – elaboradas a partir de modelos e códigos numéricos. Devido

aos objetivos de nossa pesquisa, centraremos a abordagem nas diferenças entre o paradigma

fotográfico e o pós-fotográfico.

O paradigma fotográfico remete diretamente à fotografia analógica, assim também

como a outros métodos ópticos de aquisição da imagem, tais como o cinema e o vídeo. Este

paradigma caracteriza-se centralmente por modos mecânicos de produção da imagem.

Os autores ressaltam, porém, que há diferenças entre os modos de existência da

imagem, mesmo no interior dos paradigmas. Este é o caso das distinções entre o suporte

fotográfico e o videográfico. Enquanto um é um suporte químico, o outro já envolve um

processo eletrônico de produção da imagem.

A escolha dos autores em manter a manifestação videográfica dentro do mesmo

paradigma que a fotografia faz parte de um esquema que Santaella e Nöth (2008, p.177)

afirmam ser transicional. Para os autores não há divisões nem transformações bruscas entre os

paradigmas, mas fases de modificações nos sistemas de produção e consumo de imagens.

(...) um dos aspectos mais importantes a ser levado em consideração nas passagens de um paradigma a outro é, de fato, a evidência de que essas passagens não se dão nunca abruptamente, da noite para o diga. Ao contrário, há fatores de mudança que chegam verdadeiramente a caracterizar fases mais ou menos longas de transição entre um paradigma e outro.(SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.177)

Apesar de o paradigma fotográfico remeter diretamente à fotografia analógica, o

mesmo não pode ser dito quanto ao paradigma pós-fotográfico e a fotografia digital. A

imagem fotográfica digital não é apenas uma imagem de síntese, como aquelas que

caracterizam o paradigma pós-fotográfico, mas relaciona-se ainda a formas de geração da

imagem pertencentes ao paradigma fotográfico. Respeitando a análise de Santaella e Nöth, o

local da fotografia digital parece ser de hibridismo entre o paradigma fotográfico e o pós-

fotográfico. Esta possibilidade é contemplada pelos autores, ao conceituarem como factível a

mistura entre os paradigmas. (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.183)

Deste modo, a fotografia digital aparece como um objeto híbrido, a meio caminho

entre dois paradigmas. Isto não é estranho, uma vez que, como afirmam Santaella e Nöth,

“(...) o que caracteriza o paradigma pós-fotográfico é sua capacidade para absorver e

transformar os paradigmas anteriores.” (2008, p.186)

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1.10 A fotografia digital como um híbrido entre os paradigmas

Em sua divisão dos paradigmas da imagem, Santaella e Nöth analisaram quatro níveis

básicos de produção e circulação das representações imagéticas. Estes níveis remetem

primeiramente aos meios de produção; em segundo aos meios de armazenamento; em

terceiro, aos meios de difusão, e em quarto lugar, fazem referência aos modos de recepção e

consumo das imagens (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.187).

Em relação ao armazenamento, difusão, e aos modos de recepção e consumo,

identificamos na fotografia digital traços que a relacionam diretamente ao paradigma pós-

fotográfico. Isto implica que a fotografia digital é armazenada em memória no computador, e

não mais em negativos ou fitas. Implica também em dizer que esta imagem deixa de ser

reprodutível no sentido clássico da palavra reprodução, ou seja, deixa de descender de uma

matriz material e torna-se ela mesma uma matriz numérica (2008, p.170).

Neste sentido, a imagem digital vai do regime de reprodução àquele da disponibilidade

que caracteriza a linguagem e o código digital. Neste regime, a imagem não é reproduzida,

mas sim está ou não está disponível a ser atualizada. No digital, qualquer visualização da

imagem é apenas uma forma de atualização do seu código, se este estiver disponível a ser

interpretado e se houver um programa apropriado para tanto.

No que diz respeito aos modos de transmissão, a fotografia digital soma as

possibilidades já existentes no paradigma fotográfico, como a da difusão via jornais, revistas e

outdoors, àquelas que prefiguram o paradigma pós-fotográfico, a partir de “transmissões em

redes individuais ou planetárias” (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.174).

Vale lembrar que a partir da popularização da internet, a difusão de jornais, revistas e

mensagens publicitárias passa a se dar tanto pela forma impressa, quanto através das redes

telemáticas, o que inclui a distribuição de imagens geradas digitalmente em meios tanto

impressos, quanto digitais.

Quanto aos modos de recepção da imagem gerada em câmeras fotográficas digitais,

podemos considerar que há uma mescla entre as características dos paradigmas. Para

Santaella e Nöth, o papel do receptor da imagem no paradigma fotográfico é essencialmente

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de observação, reconhecimento e identificação (2008, p.175). Devido ao mimetismo

promovido pela representação imagética da fotografia digital, é importante considerarmos que

nenhum destes papéis chega a ser definitivamente perdido. Ao mesmo tempo, juntam-se a

eles as possibilidades de recepção que Santaella e Nöth caracterizam como pertencentes ao

paradigma pós-fotográfico, o que inclui a potencial interação, imersão e navegação pela

imagem (2008, p.175).

O ponto central em que as condições dos dois paradigmas mais se entremeiam é, no

entanto, aquele relativo aos modos de produção da imagem. É certamente neste ponto que

podemos testemunhar mais claramente o tipo de hibridismo que a fotografia digital promove

entre os dois paradigmas. Ao analisarmos as características pareadas por Santaella e Nöth

(2008, p.168) na diferenciação dos modos de produção entre os paradigmas, é possível

entrever tanto conjunções aditivas, quanto ao mesmo tempo, indicar mudanças absolutas.

Desta forma, consideramos que a fotografia digital junta a “visão via próteses ópticas”

à “derivação numérica da imagem” (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.168). Na fotografia

digital, a visão via próteses óticas deixa de ser central e passa a ser regida pela numerização

do processo de digitalização, que acabará por indicar a forma de apresentação desta imagem.

Este é certamente o caso dos visores de visualização imediata (live-preview) característicos da

fotografia digital.

Nos visores digitais de visualização imediata, vemos a reprodução de uma imagem

obtida a partir da prótese óptica, no caso, através da lente fotográfica, ser transmutada em

imagem digital. A transmutação mediada por algoritmos de processamento determinará a

conversão analógico-digital da luz incidida sobre o sensor. Este processamento tanto leva à

visualização de imagens que parecem incrivelmente miméticas, quanto pode promover

diferenças sensíveis nos modos de visualização, a depender dos parâmetros de interpretação

dos dados. Isto se torna claro na utilização de filtros de imagem, hoje em dia embutidos até

mesmo em simples câmeras de celulares, como no caso de filtros sépia, de cianotipia ou preto

e branco.

A utilização de filtros fotográficos ainda no processo de visualização da imagem,

previamente à tomada da foto, mostra o papel dominador dos processos matemáticos de

geração da imagem sobre o modelo de captação química do paradigma fotográfico. O

processo de captação da imagem é mediado por programações matemáticas que estabelecem

modelos de conversão de uma informação eletronicamente obtida em uma informação

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numérica. Neste sentido, as “técnicas ópticas de formação da imagem” (SANTAELLA &

NÖTH, 2008, p.168) se aliam aos números e pixels e vemos a “colisão óptica” ser

reinterpretada a partir de “modelos e instruções de visualização de pixels na tela”.

O que de fato muda é a inexistência, na imagem digital, de uma “imagem corte, fixada

para sempre” (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.168). Esta imagem passa a ser substituída

pela virtualidade característica do paradigma pós-fotográfico, que torna a imagem um objeto

em constante fluxo, sempre passível de reformulações a partir da manipulação de seu código

numérico.

Apesar de ainda depender intrinsecamente da luz para existir, a fotografia digital

estabelece um outro tipo de relação com a energia luminosa. Esta deixa de ser a fonte de uma

reação química para tornar-se um dado de leitura a ser convertido, reinterpretado e simulado,

de acordo com coordenadas estabelecidas em modelos de visualização previamente

programados nos dispositivos de aquisição, bem como nos de reprodução de fotografias

digitais.

Uma fotografia vista em tela digital não é mais o resultado da transformação de uma

superfície sensível à luz, mas é sim uma superfície capaz de uma emissão controlada de luz,

planejada e direcionada segundo modelos matemáticos e científicos de projeção visual.

O fato da imagem digital em tela eletrônica ser ela mesma uma emissão de luz

também pode ser comprovado ao vermos um visor fotográfico digital. O visor deixa de ser um

meio de passagem da luz, para tornar-se um meio de emissão de uma imagem luminosa,

simulação da luz recebida pelo sensor da fotografia digital. É a partir desta transformação do

papel da luz, principal objeto da fotografia, que podemos falar de simulação em fotografia

digital

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2. MOMENTO DO VISOR

Em nossa consideração acerca do gesto produtor na fotografia, decidimos estudá-lo

categorizando-o em três momentos centrais de mediação. Esta categorização tem mais a ver

com uma distinção entre etapas temporalmente sucedâneas do que com uma diferenciação

definitiva. Os três momentos que delimitamos sucedem-se temporalmente, mas também

imbricam-se e misturam-se, o que torna a divisão apenas um recurso para a análise.

Trataremos aqui, inicialmente, daquela que consideramos como a primeira etapa necessária ao

processo de produção fotográfica: a etapa ou o momento do visor.

O visor da câmera talvez seja o momento inicial de mediação do dispositivo

fotográfico, afinal é quando o dispositivo se coloca entre o ser vivente e as substâncias

(AGAMBEN, 2009). Não afirmamos que este seja certamente o primeiro momento de

mediação, uma vez que o próprio gesto de manipular o aparelho já traz consigo uma série de

mediações, a partir do design do equipamento, da ergonomia cognitiva aplicada e do

desvendamento dos modos de funcionamento do aparato. No entanto, o gesto de olhar pelo

visor é o primeiro momento em que o dispositivo fotográfico coloca-se não mais apenas como

objeto a ser manipulado, mas como interposição entre sujeito e realidade sensível.

Ao operarmos um aparelho fotográfico é possível percebermos que cada equipamento

possui funcionamentos próprios, aos quais, às vezes, é necessária alguma adaptação. No

entanto, há coordenadas e mediações que pertencem à natureza do dispositivo fotográfico de

forma geral e que podem, por vezes, serem relacionadas às configurações presentes em outros

dispositivos. É o caso das correlações entre fotografia e dispositivos como a camera obscura

ou, na atualidade, o computador.

Apesar das possíveis conexões, o aparelho fotográfico é um dispositivo com

configurações que o distinguem tanto da camera obscura do Renascimento, quanto do

computador na atualidade. São estas particularidades que pretendemos elencar, na busca por

um possível mapeamento das mediações postas em jogo no ato de fotografar.

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Está presente na palavra mediação o significado da ação de fazer ponte ou fazer comunicarem-se duas partes (o que implica diferentes tipos de interação), mas isto é na verdade decorrência de um poder originário de descriminar, de fazer distinções, portanto de um lugar simbólico (...). (SODRÉ, 2008, p.21)

O lugar do fotógrafo atrás da câmera é necessariamente um lugar simbólico. Ao

assumir a posição de fotógrafo, o sujeito assume um local de discurso diferenciado daquele

que se encontra na frente da câmera. Não é necessário ser profissionalmente um fotógrafo

para ‘estar fotógrafo’, ser operador da câmera e assumir com isso todas as prefigurações de

visualização que o aparelho fotográfico carrega em si.

2.1 O visor

Segundo Jonathan Crary, o modo de observação pressuposto pelo dispositivo óptico da

camera obscura é radicalmente diferente daqueles que virão a caracterizar a modernidade.

Para o autor, os dispositivos ópticos do início do séc. XIX são exemplares de uma

modificação nas relações supostas entre olho e aparatos ópticos: os aparatos, a partir da

modernidade, não aparecem mais como metáforas de uma visão ideal de autoridade

inquestionável, que seria a visão ou o próprio olho do espírito.

Com a modernidade, a relação entre olho e aparato será outra e o aparato figurará

como contiguidade do olho. O olho humano, não mais modelo ideal de visão, passa a ser visto

como falível e a óptica geométrica que caracterizou os séculos XVII e XVIII é substituída por

uma óptica fisiológica, como as pesquisas sobre persistência retiniana, entre outras,

exemplificam (CRARY, 1992, p.16)

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Durante os séculos XVII e XVIII esta relação havia sido essencialmente metafórica: o olho e a camera obscura ou o olho e o telescópio ou microscópio estavam ligados por uma similaridade conceitual, em que a autoridade de um olho, ou visão ideal permanecia inquestionável. Já no início do séc. XIX, a relação entre olho e dispositivos ópticos passa a ser de metonímia: ambos passam a ser instrumentos contíguos em um mesmo plano de operação, tendo capacidades e características variáveis. Os limites e as deficiências de um sendo complementados pelas capacidades do outro, e vice versa. (CRARY, 1992, p.129)

A diferenciação essencial da natureza da relação entre olho e dispositivo óptico a

partir da modernidade reflete as ligações existentes entre dispositivos e configurações

históricas. Estas configurações referem-se destacadamente à compreensão e ao lugar

conferido aos corpos dentro da realidade sensível e dos modos de produção de saber

A ligação entre aparelho fotográfico e camera obscura, portanto, não pode ser feita de

forma automática. É necessário observar as diferenciações entre os dois sistemas de

visualização. De forma geral assumimos aqui que as influências do dispositivo da camera

obscura sobre o dispositivo fotográfico podem ser resumidas e observadas a partir de um

componente específico da câmera fotográfica: o visor.

O visor de um aparelho fotográfico fornece um mapa das operações do dispositivo.

Longe de serem 'janelas para o mundo', os visores oferecem uma série de ressignificações da

realidade visível. A primeira e mais fundamental delas é a forma, o recorte da realidade em

um quadro. No entanto, as interferências do visor vão para além desta delimitação do mundo

no espaço figurativo de um quadro, espaço historicamente herdado da tradição das artes

plásticas clássicas.

A maior parte dos visores sobrepõe ao que é visto indicações operativas, que variaram

ao longo da trajetória técnica da câmera fotográfica, mas que estiveram presentes desde o

início. Estas indicações fazem parte do jogo de desvendamento e operacionalização do

aparelho, fornecendo pistas de como o dispositivo interpreta o que está a sua frente e de como

o seu operador deve igualmente interpretar para que possa obter pleno 'sucesso' ao manipular

o equipamento.

Os visores oferecem mapas para visualização do mundo a partir do dispositivo, mapas

que o operador deverá seguir em atitude de leitura e decodificação. Trata-se de uma mediação

simbólica que busca transformar realidade sensível em realidade figurativa. Um exemplo

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desta transfiguração é que, nas primeiras câmeras fotográficas, a imagem aparecia no visor de

forma invertida, da direita para esquerda e de cima para baixo. Para o fotógrafos da época,

esta era apenas uma característica técnica com a qual eles tinham que trabalhar. Mesmo na

câmera Rolleiflex, lançada em 1928, a imagem ainda aparecia invertida, não mais de ponta-

cabeça, mas ainda da direita para esquerda.

A afamada câmera Rolleiflex, assim como uma série de outras câmeras fotográficas

sofisticadas da época, trazia como recurso uma grade quadriculada sobreposta ao visor.

Herança dos aparelhos perspectivistas de Albrecht Dürer e do intersector de Alberti, a grade

quadriculada do visor aparecia como auxílio à composição da imagem no quadro.

No tratado de Alberti encontramos, ainda, a sugestão do uso de um véu 'interceptor', que auxiliará o artista na composição regulada da arte plástica, quer dizer, por detrás de uma espécie de malha quadriculada, muito fina, o artista fixa seu olhar e desenha cuidadosamente os contornos do modelo. (…) Este estratagema do véu, mais tarde, suscitará a imaginação de Albrecht Dürer, na Alemanha, para a criação de suas máquinas perspectivas. (FLORES, 2007, p.51)

O gradeamento no visor da câmera fotográfica aparece como um híbrido de

aproximação e distância com a camera obscura. A função da intervenção de uma tela

quadriculada entre objeto e pintor servia, no caso da pintura, como auxílio à construção da

perspectiva. A grade era então um ponto de apoio à abstração da pirâmide visual que tinha

como cume o olho do artista. Era um auxílio para o traçado da perspectiva e para a

representação mimética da realidade.

Na fotografia, atribuiu-se ao visor quadriculado a função de auxiliar na harmonização

das formas dentro do espaço de representação do quadro. O visor quadriculado aparece como

dupla herança da pintura, mas é em si outro dispositivo, um dispositivo de mediação que

permitiu o uso de leis de composição da pintura no espaço representativo do quadro

fotográfico.

Para Alberti, o quadro é o resultado de uma série de operações bem hierarquizadas. A mais elementar consiste em delimitar as pequenas superfícies componentes dos objetos. Graças ao intersector, o pintor capta – 'mede' – com precisão os contornos do objeto, ele os desenha, ou como diz Alberti, ele os circunscreve. Neste trabalho de circunscrição (circonscriptio), pelo qual começa a pintura, a mão e o olho constituem com o intersector uma máquina simples mas poderosa que automatiza uma parte importante do processo pictórico. Entretanto, as superfícies devem ser reunidas entre si para formar os membros, os quais formarão por sua vez os corpos. Alberti

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chama este trabalho de composição (compositio). Quanto ao encaixe final dos corpos, este é regulado pelo que ele nomeia a história (historia), 'último degrau de acabamento da obra do pintor'. A historia é para Alberti bem mais do que a mensagem do quadro. É graças a ela que o agenciamento dos corpos figurados retém e emociona os olhos e a alma dos espectadores. (COUCHOT, 2003, p.29)

A respeito do gradeamento, destacamos o seu papel fundamental no exercício de

algumas regras de composição que acabaram tornando-se clássicas no âmbito da fotografia,

tais como a Regra dos Terços, ou a Regra da Espiral, que determinam a distribuição dos

objetos de interesse na fotografia segundo um equilíbrio de proporções formais entre partes da

imagem. Desta forma, ressaltamos que enquanto o recurso de gradeamento servia no contexto

dos aparelhos perspectivistas para a composição, mas principalmente como ferramenta de

abstração para aplicação dos paradigmas da perspectiva artificialis; no âmbito da fotografia

ele acabou sendo utilizado para a valorização de uma função discursiva, no caso, a

composição harmoniosa ou significativa dos elementos dentro do quadro fotográfico – a

própria noção de historia de Alberti.

Figura 1 - Imagem vista através de visor da câmera Rolleiflex. Disponível em: <http://www.flickr.com/photos/ritmatt/5111859190/in/faves-57018437@N07/>. Acesso em 10 de dezembro de 2010.

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A câmera Rolleiflex era uma câmera sofisticada, cara, e o visor com gradeamento não

era uma regra entre os visores fotográficos das câmeras amadoras da época. Câmeras como as

primeiras câmeras de mão, fabricadas a partir de 1880, aproximadamente, não chegavam nem

a possuir um visor – este é certamente o caso dos primeiros modelos da câmera Kodak de

1888, que possuía um V inscrito na parte superior como forma de auxiliar a delimitação do

espaço da foto (SZARKOWSKY, 1989, p.151). As câmeras amadoras que surgiriam a partir

de 1900 apresentariam visores, mas em um tamanho equivalente ao de um selo postal, sem

muitos recursos de visualização.

Os visores das primeiras câmeras fotográficas de mão eram no máximo aproximados, e às vezes inexistentes. As primeiras câmeras Kodak de (George) Eastman possuíam um V inscrito no topo que dava uma ideia bruta do que seria incluído entre as margens direita e esquerda da foto; a área que seria inclusa de cima a baixo presumidamente se aprendia por experiência. (SZARKOWSKY, 1989, p.151)

No entanto, convém destacar que o recurso de sobreposição de uma grade

quadriculada ao visor pode ser hoje encontrado como uma opção dentro da maioria das

câmeras fotográficas digitais, mesmo nas mais amadoras, as conhecidas point-and-shoot2.

Para nós, esta é uma pista indicativa da valorização social e comercial do dispositivo

fotográfico digital como um aparelho de produção destacadamente discursiva, mais do que de

simples registro.

                                                            

Figura 2 - Câmera Olympus Stylus 700 (2006) imagem da autora.

2 Termo que designa câmeras fotográficas totalmente automatizadas e que significa, literalmente, aponte e atire.

Figura 3 - Câmera fotográfica embutida em aparelho celular Samsung (2010) - imagem da autora. 

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As câmeras que serão, a partir da Kodak Brownie de 1900, convencionalmente

chamadas de amadoras apresentaram, por um longo tempo, um visor direto, consistindo em

um quadrado ou retângulo com um vidro, ou posteriormente plástico interposto, e em

tamanho reduzido. Este tipo de visor se associa mais não somente ao dispositivo camera

obscura, mas possui uma ligação concreta com o sistema de miras característico das armas de

fogo.

Algumas câmeras possuíam a marcação em cruz, típica da mira de armamentos, além

disto, em tantas outras, o visor se assemelhava visualmente de fato a miras, pois encontrava-

se isolado do corpo da câmera, localizando-se na parte superior, como no caso de muitas

câmeras alemãs fabricadas entre 1910 e 1940.

 

Figura 4 - Câmera Ermanox (1924) e o primeiro protótipo da câmera Leica (1923). Disponível em: <http://www.geh.org/fm/timeline-cameras/htmlsrc/timeline_sld00001.html>. Acesso em 12 de dezembro de 2010. 

No livro de ensaios intitulado “Sobre a Fotografia”, Susan Sontag (2004) ressalta as

ligações entre o equipamento fotográfico e o equipamento bélico, destacando, em especial, os

termos metafóricos utilizados em referência à operação fotográfica: carregar, apontar e 'shoot',

palavra inglesa que denomina o gesto fotográfico e que pode ser literalmente traduzida como

atirar, reforçando a metáfora entre câmera e arma.

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No entanto, as associações entre câmeras fotográficas e armas não param nas

metáforas linguísticas. Na câmera russa Zenith, fabricada do início dos anos de 1950 até os

anos de 1980 (BOCK, 2007), o suporte para a teleobjetiva de longo alcance assemelhava-se

de fato a uma arma, tendo inclusive um disparador em forma de gatilho localizado abaixo do

suporte, exatamente onde seria o gatilho de uma arma de verdade. Com o sugestivo nome de

photosniper (literalmente, atirador de fotos), o kit era vendido como uma ferramenta ideal

para fotografia em meio à natureza.

 

Figura 5 - Página inicial do manual de instruções do kit Photosniper oferecido pela empresa russa Zenith. Disponível em: <http://www.xs4all.nl/~tomtiger/zenit/cover_b.jpg>. Acesso em 12 de dezembro de 2010.

Apesar das ligações entre câmeras fotográficas e armas bélicas não se limitarem aos

aspectos materiais expressos a partir de similaridades visíveis entre câmeras e armas, nos

parece válido ressaltar que a maior parte das câmeras que possuem semelhanças palpáveis

com revólveres, espingardas, etc. foram fabricadas na primeira metade do séc. XX, época de

grandes conturbações, conflitos e guerras. Talvez da mesma forma, não seja surpreendente

perceber que, nas câmeras fotográficas do início do séc. XXI, os visores passaram a se

assemelhar muito mais a telas de televisão e de computador do que a armamentos bélicos.

A aparente distância entre câmeras digitais e equipamentos bélicos é, porém, apenas

superficial. Ao investigarmos a trajetória das invenções e inovações responsáveis pela criação

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das câmeras fotográficas digitais, podemos perceber que de forma geral o desenvolvimento

técnico do aparelho fotográfico continuou bem próximo ao desenvolvimento de equipamentos

bélicos. É que de certa forma, os equipamentos bélicos atuais também não são os mesmos que

do século XX.

A primeira utilidade dada ao dispositivo de carga acoplada, ou charged coupled device

(CCD), peça fundamental ao funcionamento das câmeras digitais de hoje, foi como

dispositivo de detecção de calor para ajudar na teleguiagem de mísseis balísticos. “Esses

sensores são muito sensíveis às ondas de infravermelho e, portanto podem detectar o calor

emitido por turbinas de aviões.” (TRIGO, 2010, s.p.)

2.2 Na lógica do digital

Um computador é basicamente uma máquina capaz de calcular uma grande variedade

de operações matemáticas por segundo. Sabemos que a linguagem matemática caracteriza-se

pela abstração – números ou símbolos que correspondem a operações que podem ser

aplicadas aos mais diferentes contextos práticos. Para ajudar na visualização de suas

abstrações, a matemática tem usado longamente, principalmente após as proposições da

Geometria [1637] de René Descartes, de gráficos e figuras como formas de ilustrar o

pensamento matemático.

A linguagem digital é essencialmente abstrata por ser uma linguagem matemática, no

entanto, a abstração do computador distingue-se daquela da linguagem matemática pura, pois

no computador estas são transformadas em visualizações a partir das interfaces. As interfaces

promovem a mediação entre computador e usuário, ajudando na inserção de dados, assim

como no acesso àqueles já computados. Elas regem a relação entre a memória dos

computadores, os dispositivos periféricos de inserção, visualização e manipulação de dados,

bem como a relação dos usuários com estes dados e dispositivos.

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A câmera fotográfica digital, quando vista no interior dos sistemas computacionais, é

apenas mais um dispositivo periférico – um dispositivo de inserção de dados para a memória

e processamento de informações desempenhado em computadores. Mas convém compreender

que, como periférico, a câmera fotográfica gera um tipo diferente de dados. Neste sentido, não

é apenas mais um periférico, mas baseia-se em todas as teorias ópticas que antecederam a

computação e que dizem respeito à história da fotografia.

A câmera fotográfica digital é, portanto, composta não apenas pelos modelos

matemáticos que regem sua interface como dispositivo periférico, mas também por todo um

subtexto científico e cultural que acompanhou a história de desenvolvimento da fotografia

analógica. Neste sentido, até mesmo a construção das interfaces de interrelação entre as

câmeras digitais e os computadores é irremediavelmente marcada pela trajetória do

dispositivo fotográfico como um todo.

O que podemos depreender destas informações é que, essencialmente, as imagens

fotográficas digitais diferem, em sua criação, das imagens numéricas estritamente geradas em

computador. Na história da computação, o surgimento de meios periféricos de inserção de

dados visuais foi um dos importantes passos na construção de imagens numéricas capazes de

produzirem maior mimetismo, em contraposição às primeiras imagens duras e sem nuances

geradas nos primeiros programas de processamento de imagens em computador.

2.3 Estrutura da imagem digital

A representação de uma imagem fotográfica digital, assim como de qualquer imagem

computadorizada, tem por base o sistema de coordenadas cartesianas, em que cada pixel, que

já é em si uma unidade combinatória de valores de luminância e de cor, ocupa uma

coordenada específica, orientada por eixos x e y. O digital utiliza as bases colocadas por

Renée Descartes, assim também como por outros matemáticos, de representação da realidade

a partir da matemática e de suas equações. Para Descartes o mundo só poderia ser conhecido

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de fato através da matemática, única ciência capaz de estabelecer “razões certas e evidentes”

(DESCARTES, s.d).

Mas não foi minha intenção, para tanto, tentar aprender todas essas ciências particulares que habitualmente se chamam matemáticas; e, vendo que, apesar de seus objetos serem distintos, não deixam de concordar todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas ações ou proporções que neles se encontram, julguei que convinha mais analisar apenas estas proporções em geral, (…) . Depois, havendo percebido que, a fim de conhecê-las, ser-me-ia algumas vezes necessário considerá-las cada qual em particular, e outras vezes apenas de reter, ou de compreender, várias em conjunto, julguei que, para melhor considerá-las em particular, deveria presumi-las em linhas, visto que não encontraria nada mais simples, nem que pudesse representar mais diferentemente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, era necessário que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis (...) (DESCARTES, s.d, p.74) (grifos nossos)

Em itálico destacamos na passagem de Descartes o que parece mais simbólico ao

falarmos sobre informática. Para melhor explicarmos, é necessário fazer entender o modo de

funcionamento da fotografia digital. Como já havíamos afirmado, a fotografia digital baseia-

se, como toda imagem numérica, em um sistema de coordenadas, onde em cada coordenada

encontramos um pixel. E o que seria um pixel se não um signo, dos mais breves possíveis?

2.4 Breve história do pixel

Edmond Couchot fala a respeito do que seria, na história das técnicas de figuração, a

busca por um “elemento mínimo constituinte da imagem” (1999, p.37). Couchot afirma que o

primeiro passo dado em direção a esta busca teria sido a fotografia, por pressupor uma

unidade do plano a partir de um centro de organização visual. Desta maneira, o próprio furo

para a entrada de luz presente na câmera seria então capaz de formar um plano imagético

uniforme. No entanto, não era possível na fotografia controlar a imagem abaixo do nível de

organização fundamental do plano: a natureza da técnica fotográfica analógica não permitia o

controle preciso sobre cada grão fotossensível separadamente.

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Descartes afirma que, para considerar cada proporção de forma particular, deve-se

presumi-la como uma linha, mas que para avaliá-las em conjunto é necessário designá-las por

signos 'breves', ou seja, por signos mínimos (s/d, p.74). Para Descartes, um plano se divide em

linhas que se dividem em pontos - qualquer semelhança com a computação não é mera

coincidência.

Couchot lista, na busca pelo 'elemento mínimo' da imagem, momentos técnicos

importantes que servem para ilustrar as mudanças técnicas nos dispositivos de produção e

distribuição da imagem. Dentre os momentos destacados encontramos a decomposição da

imagem em linhas, a partir do pantelégrafo, primeiro dispositivo a funcionar pelo princípio de

varredura.

O pantelégrafo servia apenas para a transmissão de contornos de imagem a longas

distâncias e não para a produção destas imagens, suas primeiras transmissões teriam

acontecido entre 1855 e 1861 (COUCHOT, 1999, p.38). A ideia de varredura, leitura da

imagem em termos de linhas, só passará a estar presente no polo da produção a partir do

surgimento dos modos eletrônicos de geração da imagem, com a invenção da televisão e

posteriormente da imagem vídeográfica, já no século XX.

A linha de varredura do pantelégrafo não permitia que se chegasse a um signo breve o

bastante. Era possível influir na imagem, mas a linha comparecia como o elemento mínimo

em si, e não o ponto. A busca pelo 'ponto' na representação seguiu-se à invenção do

pantelégrafo com o surgimento da técnica de fotogravura em trama, a reprodução em halftone,

em que a imagem era automaticamente decomposta em pontos.

Tanto quanto o pantelégrafo, o halftone foi uma técnica de distribuição de imagens.

Seu grande impacto foi facilitar a transmissão, a impressão e a circulação geral de imagens na

sociedade do final do século XIX para o início do século XX. Todavia, tanto quanto seu

antecessor, a fotogravura em trama não era satisfatória em termos de um controle pontual das

proporções da imagem: ela promovia a decomposição da imagem, mas não permitia o

controle exato sobre as propriedades de cada ponto da representação.

Para Couchot, a busca por um elemento mínimo de controle sobre a imagem está

diretamente ligada a uma trajetória continua de automação dos modos de produção e

reprodução das representações imagéticas. Neste caminho, exemplos como o do pantelégrafo

e do halftone demonstram a importância do fator de circulação da imagem. No entanto, por

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não permitirem o controle exato sobre o modo de reprodução, estas técnicas figurativas foram

substituídas por outras, progressivamente mais analíticas.

A trama (do halfone) tornava possível a reprodução (não a transmissão) de uma foto em preto e branco com matizes. Os pontos da fotogravura, contudo, não eram ainda elementos verdadeiramente primeiros, atômicos, pois suas formas variavam num continuum entre o puro ponto negro e o puro ponto branco. (COUCHOT, 1999, p.38).

A palavra continuum utilizada na citação de Couchot é uma palavra chave para

compreensão das diferenças entre as formas analógicas de representação e os modos de

operação do digital. É no aspecto do continuum justamente que o analógico e o digital se

diferenciam. A informação analógica é contínua, enquanto a informação digital é discreta: no

analógico não é possível falar de elementos em separado, mas apenas do conjunto como um

todo.

A diferença entre o analógico e o digital está na forma com que cada modo de medição

encara as variações dentro de um sistema. Nos modos de representação analógicos não há

como medir precisamente cada mudança dentro da escala da variação, pois o instrumento de

medição varia tal qual aquilo que está sendo medido. Por isto mesmo, varia por analogia –

este é o caso, por exemplo, da medição de temperatura em um termômetro de mercúrio. Já na

representação digital, a variação é avaliada pela transição entre níveis específicos pré-

determinados.

A variação digital baseia-se sempre em uma medição analógica que, para ser

convertida, passa a ser interpretada em patamares específicos, pré-determinados à própria

variação. A pré-determinação da escala de valores de uma medição estabelece sempre um

valor mínimo, um valor máximo e o número de parâmetros que podem ser encontrados entre

estes dois patamares. Desta forma, é importante compreendermos que o funcionamento de

uma câmera digital é, em realidade, um modo de funcionamento analógico-digital, em que o

digital tem proeminência sobre a forma analógica de recepção dos dados, uma vez que orienta

como estes serão interpretados.

No caso da câmera fotográfica digital, a componente analógica corresponde ao modo

de variação de energia proporcional à carga de luz que um sensor fotoelétrico, peça essencial

da câmera digital, recebe e passa a emitir. Esta variação de carga no sensor é interpretada

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47  

digitalmente como uma figura numérica para depois ser transcrita de acordo com

programações que determinarão o modo de apresentação deste dado. A cada ponto do sensor,

a transição analógico-digital fará corresponder um pixel – elemento fundamental da imagem

digital.

O pixel é uma unidade que traz em si valores de luminância e de cor, além de

informações de sua posição relativa dentro das coordenadas da imagem. Um pixel (abreviação

de Picture element) não é algo dado a priori, mas antes uma figura de interpretação de dados

construída no interior das programações informacionais. Mais exatamente, a primeira

aparição do pixel foi em 1957, quando o programador Russel Kirsch digitalizou uma imagem

fotográfica de seu filho. (EHRENBERG, 2010, s.p.).

Figura 6 - Primeira imagem digitalizada - Fotografia do filho de Russell Kirsch, escaneada em 1957. Disponível em: <http://www. wired.com/wiredscience/2010/06/smoothing-square-pixels/>. Acesso em 5 de julho de 2010.

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48  

Segundo Jesús Martin-Barbero: “Informar é dar forma.” (2004, p.84). O

estabelecimento, bem como o refinamento de escalas de interpretação de dados analógicos por

meios digitais configura-se como um dos passos fundamentais para a ampliação dos usos

dados aos sistemas computacionais. É na base destes processos de conversão que se encontra

toda a faceta de numerização do digital – a capacidade de converter dados sensíveis em dados

numéricos. Para que uma informação seja interpretada por um sistema computacional, é

necessário e indispensável que ela seja transformada em informação numérica – ou seja,

traduzida em suas qualidades mais diversas para um conjunto de valores quantificáveis.

Na fotografia digital, os valores de luminância e cor de um pixel são determinados

conforme uma escala de interpretação estabelecida por programações informáticas. A

quantidade de valores diferentes que são passíveis de serem determinados é o que varia,

dependendo da resolução do arquivo. Isto, em termos de pixel, é o que se configura como

qualidade da imagem.

No curto período da história da computação moderna, vimos aumentar aceleradamente

a chamada resolução da imagem numérica. O que pode ser traduzido em aumento na

quantidade de 'pontos', ou seja, de pixels, que compõem a imagem, associado ao aumento da

capacidade de representar um número cada vez maior de valores diferenciados na escala de

interpretação dos dados em meio às interfaces analógico-digitais.

O aumento da quantidade de pixels que formam uma imagem, bem como o

refinamento dos parâmetros de interpretação de dados de luminância e cor levaram à

construção de imagens digitais que deixam entrever cada vez menos sua estrutura reticulada.

O pixel, vale lembrar, é um elemento quadrado e, neste sentido, toda vez que olhamos para

uma imagem digital há sempre um ponto máximo de visualização em que os pixels se farão

visíveis em sua estrutura matricial e cartesiana.

Porém, a estrutura reticular da imagem digital não é necessariamente atrativa e nem

essencialmente mimética. Por isto, a busca cada vez maior por dados cada vez mais discretos

e por parâmetros cada vez mais detalhados. A necessidade do digital por um poder crescente

de diferenciação e associação de dados decorre da necessidade de equivalência deste aos

modos de representação analógicos, em sua representação pontual. Pode também ser

associada a uma ambição de tornar cada vez menos visível a estrutura numérica e quantificada

deste tipo de imagem. O sonho do digital é, portanto, parecer contínuo mesmo sendo discreto.

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(...) a maioria das imagens de síntese, apesar de poder inventar figuras visuais totalmente inéditas e nunca vistas, esforçam-se ao contrário para reproduzir imagens já disponíveis, objetos já conhecidos do mundo. Elas apostam na semelhança (mesmo que falseada ou forçada) não tanto para mostrar que podem “fazer tudo”, mas porque não sabem mais o que fazer (que seja diferente). Durante muito tempo, aliás, as pesquisas dos engenheiros e dos programadores visavam prioritariamente melhorar os parâmetros de figuração na acepção realista do termo: nuanças de cor, relações de contraste, sombras e dégradés, reflexos, transparências etc. Toda a energia dos pesquisadores, durante anos, destinava-se simplesmente a nos persuadir de que podemos fazer, com um computador, 'tão bem quanto uma imagem tradicional' (...). (DUBOIS, p.53, 2004)

2.5 Entre o analógico e o digital

De certa forma, o visor das câmeras fotográficas digitais mantém algumas

similaridades com o visor das câmeras analógicas. Afinal, ambos ainda representam o mesmo

momento de mediação e, apesar de a desempenharem de maneira diferente, continuam a

pressupor uma visualidade constituída a partir de um ponto de vista central dentro do espaço

homogêneo de um quadro representativo.

Porém, há um ponto de diferenciação fundamental entre o visor do dispositivo

fotográfico analógico e o visor da câmera digital: o primeiro é, mesmo a despeito de todas

suas possíveis sobremarcações, um visor de transparência, enquanto o segundo é um visor de

projeção.

A diferenciação entre os dois tipos de visor representa uma mudança significativa na

direção do olhar mediado pela câmera. No caso das câmeras analógicas, olhar pelo visor

significava olhar através, ainda que este através fosse também atravessado por marcações e

mediações específicas. No caso da câmera digital, não olhamos mais pelo visor, mas

diretamente para ele. Nosso olhar não mais atravessa, mas é antes barrado por uma superfície,

que, não mais de plástico ou de vidro, tornou-se opaca, tela eletrônica.

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No caso das câmeras amadoras o visor poderia ser até mesmo um simples pedaço de

plástico, indiferente ao funcionamento da câmera. No caso de uma câmera como a alemã

Contessa Nettel, de 1919, o plástico e o vidro poderiam nem mesmo estar presentes no

momento de visualização da foto, sendo o visor representado por uma moldura de ferro que se

erguia do corpo da câmera para delimitar, de forma pouco precisa, a área de corte da

fotografia. Este era o mesmo caso do visor esportivo de uma das câmeras mais usadas pela

imprensa entre os anos de 1920 e de 1950, a Speed Graphic , primeiramente lançada em 1912

(BOCK, 2007). Em outros casos, como no das câmeras de visor reflex, os visores coincidiam

com a visão da lente da câmera, o que introduzia, a depender da configuração da própria lente,

distorções visuais correspondentes.

 

Figura 7 - Câmera Contessa Nettel (1919) - (BOCK, 2007, p.114)

 

Para as câmeras amadoras, prever como a foto sairia era de fato uma questão de

imaginação, em especial no caso das câmeras automáticas: o visor não correspondia de forma

exata à área fotografada e jamais se sabia se o cálculo da câmera seria exato – o flash era um

recurso de segurança, mas por vezes estourava ou era insuficiente.

Toda fotografia trazia em si uma espera, mas era, afora algumas experimentações mais

especializadas, exatamente como era: lamentavam-se olhos fechados ou vermelhos, as

possíveis cabeças cortadas e as imprevisíveis caretas, ou mesmo o fato de justamente a foto

do parabéns ter queimado.

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No caso das câmeras profissionais, o controle era um pouco maior: fotógrafos

profissionais realizavam medições cuidadosas com fotômetros independentes e tiravam

fotografias a partir do mesmo ângulo, modificando apenas os ajustes de abertura e exposição

para cobrir qualquer possibilidade de erro. Erros que ainda assim teimavam em acontecer, por

mais inaceitáveis que fossem.

Como a imagem fotográfica analógica era um objeto que envolvia uma espera e um

tempo, toda vez que uma fotografia era vista, ela era vista necessariamente fora do seu

contexto de formulação. Com exceção das famosas Polaroid, que nunca foram totalmente

popularizadas no Brasil, a imagem fotográfica apresentava-se como um objeto separado,

descolado de seu criador e do momento inicial de sua criação. Era também, quando finalizado

e impresso em papel, um objeto único, pois ainda que reprodutível, cada fotografia revelada e

materializada seguia um rumo próprio dentro do universo das substâncias.

Com o visor projetivo digital vemos uma alteração profunda nas mediações entre

dispositivo fotográfico, experiência e representação. Se antes a fotografia era um produto

visto apenas de forma separada de seu contexto inicial, com a fotografia digital ela passa a ser

um objeto inscrito no fluxo temporal contínuo de sua própria criação. Permanece como

representação separada, posto que ainda é recorte de espaço e tempo, mas passa a apresentar-

se de forma sobreposta ao tempo vivido.

A foto, mais que objeto único e independente, como um pedaço de filme que foi gasto

e não poderá ser apagado, torna-se objeto flutuante, facilmente dispensável e imediatamente

substituível se julgado impróprio para os padrões de consumo de uma fotografia.

O visor projetivo de uma câmera digital apresenta a fotografia quase exatamente como

esta será produzida. Não totalmente, mas apenas quase, uma vez que há um atraso entre o que

é visto e o que é processado pela câmera. O acoplamento temporal entre o que vemos e o que

o visor digital torna visível nos dá a impressão de simultaneidade, mas a simultaneidade é

apenas a ilusão dada pela rapidez dos processos de cálculo invisíveis àqueles que operam o

dispositivo.

Mais importante do que a absoluta sincronicidade entre realidade visível, visor e

registro, que é afinal impossível devido às próprias bases de funcionamento deste tipo de

representação, o que o visor digital materializa é a própria presença da imagem no contexto

específico de sua criação.

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2.6 O visor de transparência

A maioria dos visores das câmeras fotográficas analógicas, ao menos os daquelas mais

populares a partir da metade final do séc. XX, obrigava o operador a colar-se ao dispositivo.

Vestíamos a câmera fotográfica como uma máscara e víamos o mundo a partir do visor, feito

para ser visto apenas com um dos olhos, para que nos tornássemos, assim como a câmera,

ciclopes, observadores monoculares. Fotografar era assim uma experiência de imersão em um

modo de visão. Era preciso coincidir o olhar ao da câmera, o que incluía tornar a visão

limitada pelo espaço de um quadro.

Uma das experiências em que a imersão do fotógrafo era mais exigida no campo da

fotografia analógica era, certamente, no ato da focagem manual. Ao vermos uma imagem

desfocada em um visor fotográfico estamos muitas vezes limitando nossa visão por meio dos

limites da câmera – isto significa dizer que, poderíamos estar olhando o mundo em foco, mas

ao termos o olhar mediado pela câmera, o vemos desfocado, tal qual o aparelho.

A partir da década de 1930, especialmente, desenvolveram-se sistemas de focagem

para auxiliar o fotógrafo em situações de baixa luz. Na maioria destes sistemas, como no caso

do funcionamento de visores de telêmetro, era necessário ao fotógrafo um exercício de

visualização em que se exigia fazer coincidir duas partes da imagem.

Um sistema de visualização por telêmetro é essencialmente um sistema que cria, por

meio de espelhos e prismas, uma visão dupla. Enquanto a imagem não estivesse focada, seu

centro aparecia partido, ou escurecido, ou duplicado – estes indicativos tornavam visível o

fato do olhar da câmera não coincidir com o nosso.

No campo da fotografia do século XX, o sistema de visualização e focagem via

telêmetros foi um dos sistemas mais populares, desde a década de 1930 até a de 1970, quando

começam a surgir os primeiros aparelhos de focagem automática. Ainda hoje, há câmeras

fabricadas com visores de telêmetro, caso das edições digitais das câmeras da marca Leica nos

modelos M7, M8 e M93.

                                                            3 Informação obtida no site oficial da Leica. Disponível em: <http://en.leica-camera.com/

photography/m_system/>. Acesso em 15 de dezembro de 2010.

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Para realizar a focagem no sistema de telêmetro, é necessário ao fotógrafo o exercício

do fazer coincidir: a imagem partida deve tornar-se uma só, a sombra deve ocupar o mesmo

espaço da primeira projeção, a parte escura da imagem em seu centro deve ter uma

luminosidade normal (Figura 7). Todos estes modos são exercícios para que o olhar do

fotógrafo funcione em função dos modos de operação do aparelho. Coloca-se, assim, a visão

do fotógrafo em circuito com a visão do aparelho: apresenta-se ao fotógrafo a necessidade de

operacionalizar sua visão em função dos ajustes do dispositivo para obtenção de uma boa

fotografia.

 

Figura 8 - Imagens explicativas do funcionamento de visualização de focagem por meio de telêmetro. Retirada de manual de instruções da câmera Contax IIIa de 1951. Disponível em: <http://www.cameramanuals.org/contax/contax_iiia-1.pdf>. Acesso em: 15 de dezembro de 2010.

2.7 O observador frente ao visor

O visor de transparência típico da fotografia analógica estabelece uma mediação que

funciona de acordo com a caracterização feita por Jonathan Crary dos aparatos ópticos

modernos. A relação deste tipo de visor com o olhar humano supõe uma relação de

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contigüidade, em que o visor está submetido ao funcionamento do olho e que o olho é

submetido ao modo de funcionamento do visor (CRARY,1992, p.129).

A relação de co-implicância entre olhar e visor determina a imersão do olhar do

fotógrafo no funcionamento do dispositivo. Relembrando a citação de Crary do início do

capítulo, a experiência do olhar pelo visor de transparência se configura como uma

experiência moderna, pois na relação entre olho e visor de transparência ambos podem ser

considerados “(...) instrumentos contíguos em um mesmo plano de operação, tendo

capacidades e características variáveis.” (CRARY,1992, p.129)

Para Jonathan Crary, a fotografia se caracteriza como um sistema totalizante,

nivelador da visão, capaz de configurar um novo arranjo de relações abstratas entre indivíduos

e objetos. “A fotografia é elemento de um novo e homogêneo terreno de consumo e

circulação do qual o observador passa a fazer parte.” (CRARY, 1992, p.13).

No visor de transparência a imagem fotográfica é pré-configurada a partir de uma

relação de cumplicidade entre o olhar do fotógrafo submetido ao visor e o funcionamento do

visor submetido ao olhar do fotógrafo. A partir da fotografia digital, e com a transformação

do visor em um dispositivo de tela eletrônica não há mais relação necessária de contigüidade

entre olhar e visor. O visor projetivo apresenta uma imagem separada daquela do olhar do

fotógrafo.

Talvez o traço mais característico desta quebra seja justamente o distanciamento físico

do olho humano do visor projetivo. No visor de projeção a imagem é apresentada já

mediada, de acordo com os cálculos do dispositivo digital – é de fato uma tela, e vista como

tal, é sempre observada a certa distância.

Toda fotografia promove a transformação da realidade sensível em figuração. No caso

da fotografia analógica, esta transformação só era de fato visível ao nos defrontarmos com a

imagem fotográfica final. No visor de transparência havia apenas indicativos operacionais

para a realização de fotos. Desta forma, toda a operação de observar pelo visor tratava de uma

estimativa prévia do que seria retratado na fotografia, atividade que implicava a imersão nos

modos de operação do dispositivo.

Para ter maior controle sobre o que seria o resultado final da imagem, era necessário

ao fotógrafo pré-visualizar a foto. A pré-visualização era, portanto, uma atividade de

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imaginação dentro do campo da prática fotográfica que buscava prever e, principalmente no

caso da fotografia profissional, controlar a transformação do visível no visual.

O visor projetivo simplesmente elimina qualquer necessidade de previsão estimativa

do resultado da imagem. As transformações que antes só eram visíveis em situações

posteriores, passam a estar presentes desde o primeiro momento que o operador da câmera a

interpõe entre si mesmo e o mundo.

Enquanto na câmera fotográfica analógica o olhar era um olhar mediado pelo visor,

na câmera digital este olhar passa a ser informado pela tela. A visualização deixa de ser uma

conformação do olhar à câmera e passa a ser a recepção de uma imagem final, elaborada de

acordo com os parâmetros da mediação informática presente na programação do dispositivo

fotográfico digital. A mediação não se dá mais na contigüidade do olhar, mas é apresentada

como um objeto visual já pronto.

Isto não significa que não há mais mediação, mas esta passa a operar de forma

diferente: o fotógrafo recebe uma imagem pronta, uma reinterpretação da realidade sensível

transformada em objeto visual e pode escolher, dentre modos pré-configurados, diferentes

opções de visualização. Ou seja, o fotógrafo escolhe que forma de reinterpretação do visível

ao visual ele deseja ver. Não há mais imersão do olhar no dispositivo, mas antes uma imagem

que emerge pronta aos olhos do observador.

2.8 A visão isolada do corpo

Ao relacionarmos o surgimento da fotografia com o seu momento histórico, vemos

que o dispositivo fotográfico surge em um momento em que a visão humana deixa de

representar um modelo ideal de conhecimento e passa a se tornar objeto de uma série de

pesquisas fisiológicas.

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Como coloca Jonathan Crary, as décadas de 1820 e 1830, anteriores ao surgimento da

fotografia, se caracterizam pelo estudo e pela exposição de uma série de limites da visão

humana como órgão capaz de estabelecer um conhecimento direto sobre o mundo. Não parece

coincidência que justo neste momento surja um dispositivo que se caracteriza como um

produtor de visões autônomas a partir de teorias científicas, caso da fotografia.

A partir de 1820 e 1830 surgem diversos aparatos e estudos científicos que vão

reconfigurar a ideia do olhar e da visão humana (CRARY, 1992). Esta reconfiguração se dá

através de dois movimentos. Primeiramente, a partir de uma exposição sistemática das

idiossincrasias do olho humano, ou seja, de suas limitações, através de estudos da percepção.

Segundo Crary, a partir destes estudos a visão deixa de ser considerada uma atividade de pura

intelecção e passa a ser compreendida como atividade corpórea, cujas bases de funcionamento

são determinadas fisiologicamente (1992, p.16).

A segunda transição que caracteriza a compreensão moderna da visão passa pela

separação desta dos restantes órgãos do sentido. Enquanto a compreensão clássica da

percepção abrangia uma co-relação entre visão e tato, a partir da modernidade o sentido da

visão passa a ser estudado de forma autônoma, separado dos demais órgãos do sentido. A

compreensão clássica da visão envolvia um observador situado em um espaço. Já na

modernidade, “(...) a observação se torna progressivamente uma questão de sensações e

estímulos equivalentes sem qualquer referência a uma localização espacial.” (1992, p.24)

A mudança de uma compreensão clássica para a compreensão moderna do observador

passa, portanto, pela ideia de visão como uma atividade autônoma. A partir desta mudança,

que é anterior à própria fotografia, a ideia de observação passa a ser vista como atividade

limitada pelas restrições do corpo e, portanto, como algo sujeito a falhas. Por outro lado,

passam a ser desenvolvidos diversos procedimentos de cálculo e medição da percepção. Estes

procedimentos de cálculo e medição desenvolvem verdadeiros modelos de percepção visual,

transformando a visão também em uma experiência abstrata (1992, p.24).

Segundo Crary, há então “uma complexa reformulação do indivíduo enquanto

observador em uma entidade calculável e regularizável e da visão humana como algo

mensurável e intercambiável.” (1992, p.17) Sendo assim, a mudança do observador clássico

para um observador moderno se caracteriza tanto pela compreensão fisiológica e subjetiva da

visão, quanto por um movimento de separação do olhar dos demais sentidos de percepção. A

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partir de então, surge a noção de experiência visual como algo “(...) instrumental, modificável

e essencialmente abstrato (...).” (1992, p.24)

A pesquisa de Crary se refere à primeira metade do século XIX, então como relacioná-

la aos visores que hoje fazem parte da fotografia digital? Para fazemos esta conexão, basta

levarmos em conta que os visores digitais, bem como todos os outros tipos de telas

eletrônicas, são construídos tendo por base estudos fisiológicos sobre a visão humana. Um

exemplo simples disto está na forma como é atribuída cor às fotografias digitais.

2.9 A cor verde

Vilém Flusser utiliza os termos programa e programação para falar das

sobredeterminações técnicas existentes no próprio aparelho fotográfico, essenciais à

orientação do gesto do fotógrafo. Segundo Flusser, “Decifrar imagens técnicas implica revelar

o programa do qual e contra o qual surgiram” (FLUSSER, 2008, p.29). Neste trabalho de

deciframento, expresso principalmente em obras como Filosofia da caixa-preta (2002) e O

universo das imagens técnicas (2008), Flusser reserva uma parte importante à exploração das

convenções fotográficas de mediação e transformação do visível em produtos visuais.

Em Filosofia da caixa-preta (2002), Flusser discorre sobre a codificação das cores em

fotografia. O assunto é depois retomado por Arlindo Machado em seu artigo “A fotografia

como expressão do conceito”, publicado no livro O quarto iconoclasmo e outros ensaios

hereges (2001), que remete a discussão a uma experiência pessoal vivida no campo da

fotografia:

Em uma viagem que fiz à Patagônia argentina há algum tempo, chamou-me a atenção a incrível e infinita variedade de verde na paisagem natural. Não imaginava que aquilo que chamamos de ‘verde’ abrangesse uma gama de sensações cromáticas tão luxuriante (...). De volta para casa, depois de revelar e ampliar os negativos fotográficos constatei, bastante frustrado, que todo aquele espetáculo cromático da natureza se estreitara drasticamente. Apesar da utilização de câmera profissional, fotômetro independente e película de largo espectro de resposta, a variação dos tons de verde da

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paisagem fotografada me pareceu demasiadamente reduzida, além de banal e previsível. (MACHADO, 2001, p.123)

A experiência descrita por Machado diz respeito a uma experiência desenvolvida no

âmbito da fotografia analógica. Porém, o relato nos é interessante porque remete aos modos

de codificação da cor operados no contexto fotoquímico da película fotográfica. Mais ainda, a

experiência de Machado remete ao aspecto de codificação e interpretação científica já

presentes na fotografia analógica. O que quebra qualquer possível argumentação de que a

fotografia analógica fosse, em algum sentido, mais direta e menos cercada por convenções do

que a fotografia digital. Como afirma Flusser, ao remeter à questão da fotografia em cores:

O verde do bosque fotografado é imagem do conceito ‘verde’, tal como foi elaborado por determinada teoria química. O aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem. Há, por certo, ligação indireta entre o verde do bosque fotografado e o verde do bosque lá fora: o conceito científico ‘verde’ se apóia, de alguma forma, sobre o verde percebido. Mas entre os dois verdes se interpõe toda uma série de codificações complexas. (FLUSSER, 2002, p.40)

A explicação de Flusser a respeito da construção da cor na película fotográfica remete

ao papel das teorias científicas que levaram à criação dos padrões de cor capazes de serem

reproduzidos na fotografia analógica. Em uma comparação com o processo de atribuição de

cor na fotografia digital, constata-se um deslocamento do tipo de conhecimento científico

necessário. Isto em especial com relação à cor verde.

De modo essencial, uma fotografia digital é sempre inicialmente uma fotografia em

preto e branco, pois o sensor fotográfico só é capaz de interpretar variações da intensidade de

luz. A atribuição de cores é feita posteriormente, em programações pré-estabelecidas nos

equipamentos e nas interfaces responsáveis pela interpretação dos dados emitidos pelo sensor

fotoelétrico. No entanto, e apesar de poder ser feita de outra maneira, a interpretação usual de

atribuição de cores é realizada a partir de modelos científicos que buscam simular a percepção

humana da cor (BROWN, 2004, p.5).

Na computação e nas representações eletrônicas da imagem em geral, o padrão de

representação da cor dá-se a partir de uma divisão tricromática do espectro visível. O padrão

RGB (red, green and blue) de cores foi primeiramente utilizado nas transmissões a cores para

televisão, posteriormente este padrão foi transposto para linguagem digital de simulação de

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cores, a partir também de um processo de numerização do espectro de intensidade de cada

uma destas cores4.

O sistema RGB é um sistema aditivo de replicação da cor. Nisto difere-se do sistema

utilizado nas impressões gráficas e também nas fotografias analógicas, baseado no sistema

CMYK (ciano, magenta, amarelo e preto). A escolha das cores vermelha, verde e azul tem por

base as teorias de percepção de cor, especialmente aquelas desenvolvidas por Hermann Von

Helmholtz em relação à percepção visual, realizadas ainda no século XIX. A respeito do

trabalho de Helmholtz, Crary afirma que o cientista teve papel fundamental na construção de

um modelo normatizado e quantificável da visão humana (1992, p.95).

Em uma representação digital a imagem é dividida em três canais correspondentes às

cores do padrão RGB. Enquanto nas câmeras de vídeo mais complexas e mesmo em alguns

modelos de câmera digital há a existência de três sensores, na maioria dos equipamentos

fotográficos digitais, há apenas um sensor. Nas câmeras fotográficas digitais mais comuns, o

padrão é que haja apenas um sensor, o que as torna efetivamente mais baratas e mais fáceis de

serem comercializadas pelas empresas que as constroem. No entanto, a replicação de cor a

partir deste único sensor deve ser feita a partir de uma divisão dos pixels para que cada um

destes seja mais sensível a um dos canais do RGB. Citamos a seguir um texto publicado no

site da empresa americana Kodak a respeito da questão:

Já que Seurat sabia qual seria o resultado final de sua imagem, ele podia mover a localização e mudar a cor de seus pontos de acordo com o que estava pintando. Mas para os sensores de imagem, a questão chave é saber a melhor maneira de dispor os pontos para que cada parte do sensor possa criar uma imagem vibrante – uma imagem que possibilite excelente reprodução de cor e a utilização de poucos artefatos de renderização. Em 1970, o cientista da Kodak, Bryce Bayer, respondeu a esta questão com o desenvolvimento do que é hoje conhecido como o “Padrão Bayer de filtro de cor” – um conjunto de pixels vermelhos, verdes e azuis que possibilitam a um único sensor criar de forma eficiente e efetiva uma imagem em cores. (DELUCA, 2010, s.p.)

A referência ao trabalho do pintor George Seurat é um dos fatos interessante na

citação. A obra pontilhista de Seurat, desenvolvida na década de 80 do século XIX,

certamente se inspira nas teorias de subjetividade e decomposição do processo de visão

                                                            4 Informação do site Wikipedia. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Rgb>. Acesso em 15 de

dezembro de 2010.

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(CRARY, 1992, p.126). No entanto, o ponto principal desta citação é a referência a criação de

um filtro específico à interpretação de cores no campo da fotografia digital.

Enquanto o sistema RGB é próprio à representação visual de diversos tipos de

equipamentos eletrônicos, o desenvolvimento do Filtro Bayer está prioritariamente

relacionado ao campo da fotografia digital (DELUCA, 2010, s.p.). Interposto entre o sensor e

a lente, o filtro Bayer promove uma divisão de pontos de sensibilidade do sensor a cada um

dos canais do sistema RGB. Esta divisão dos pontos, todavia, não é uma divisão proporcional:

no arranjo do filtro Bayer, 25% dos pixels são reservados à replicação da cor azul, outros 25%

à cor vermelha e os 50% restantes, à replicação da cor verde (DELUCA, 2010, s.p.). É uma

interessante coincidência este papel da replicação do verde dentro da fotografia digital.

(Figura 8)

 

Figura 9 - Simulação do padrão de filtro Bayer sobre sensor fotográfico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bayer_pattern_on_sensor.svg>. Acesso em: 15 de dezembro de 2010

 

Cada ponto fotossensível em um sensor interposto com um filtro Bayer é apenas

sensível a uma cor. A presença maior de pixels sensíveis ao espectro verde se daria, segundo a

patente de Bayer, devido ao fato do olho humano ser mais sensível ao verde do que às outras

cores (BROWN, 2004, p.5). Bryce Bayer, inventor do filtro Bayer, certamente baseou-se em

diversos estudos fisiológicos da percepção humana para chegar a esta conclusão.

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E o que significa o filtro Bayer para a fotografia digital? Maior possibilidade de

replicação da cor verde? Não necessariamente. A interposição e o papel que o filtro Bayer

simboliza é certamente o de um outro tipo de teoria científica, agora presente no momento do

visor. No visor projetivo, a simulação das cores deixa de ser inerente à recepção do produto

fotográfico final, passando a fazer parte do momento inicial de interposição da câmera

fotográfica entre a realidade sensível e o produtor de imagens.

2.10 Algumas (outras) considerações sobre o visor projetivo

O que significa propriamente a mudança do visor de transparência para o visor

projetivo? Dizíamos no início deste capítulo que a visualização da fotografia surgiu, em seu

início, associada à visualização do mundo produzida pelo sistema da camera obscura. As

primeiras câmeras, ainda durante o século XIX, possuíam um sistema de visualização bem

semelhante aos dos aparelhos perspectivos utilizados pelos pintores - a imagem era vista em

um vidro despolido localizado na parte traseira da câmera, em geral, de forma invertida. Este

sistema de visualização foi alterado durante o século XX, sendo substituído por visores que

permitissem uma visualização rápida e sempre disponível – caso dos visores de mira.

Com a transformação do visor de um dispositivo de transparência para um visor de

projeção, é possível constatar uma modificação nos modos de construção da percepção

fotográfica acerca da realidade sensível – no digital o visor se torna um recurso imediato de

produção de uma visão que independe do corpo do observador. No analógico, a produção de

uma imagem independente daquela gerada pela percepção do fotógrafo só acontecia ao final

do processo, quando a foto era revelada.

O objetivo deste capítulo foi mostrar as diferenças do lugar do observador frente ao

visor de transparência, característico da fotografia analógica, em relação à experiência do

visor de projeção, pertencente ao âmbito da fotografia digital. Para isto, buscamos retratar os

modelos de visão e os tipos de sistemas de saber que cada um destes dois tipos de visor traz

amalgamado em seu funcionamento.

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62  

A partir da análise aqui desenvolvida podemos inferir que há, com a transição do

campo da fotografia do analógico para o digital, um deslocamento no campo dos saberes que

passam a compor a técnica fotográfica, o que vem a exigir outros tipos de especialização e de

compreensão dos padrões de formação da imagem. O campo da fotografia digital remete a um

conjunto diferenciado de teorias científicas e a níveis de abstração diferentes dos que estavam

em operação na fotografia analógica. O visor projetivo resulta em uma outra lógica de

produção da fotografia, onde o imediatismo da produção de visões se torna uma constante.

Do próximo capítulo em diante, será abordado como a lógica da produção de

fotografias passou a remeter progressivamente a uma outra temporalidade do ato –

respondendo a uma necessidade social por uma velocidade cada vez maior nos processos de

geração e circulação de mensagens. 

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63  

3. MOMENTO DO OBTURADOR

Toda forma de discurso traz em si variáveis de expressão que se aliam a variáveis de

conteúdo. As possíveis associações entre expressão e conteúdo determinam as especificidades

dos discursos, e assim também ocorre na fotografia. Deixando de lado por apenas um

momento o vetor de expressão, é possível notarmos, no caso do dispositivo fotográfico, um

deslocamento contínuo acerca dos conteúdos, o que significa dizer, acerca do que é ou não

considerado fotografável. É possível observar, ao longo da trajetória da fotografia, uma

progressiva mudança nos critérios de seleção que levam à realização da principal mediação

fotográfica, a saber, o gesto decisivo de escolha do que e de quando fotografar.

Em seu início, a fotografia limitava-se ao registro de pessoas, famílias ou paisagens, as

chamadas vistas. Posteriormente, com a invenção de câmeras menores e de manuseio mais

simples, vemos a transição, não só de conteúdo, mas sobretudo também de expressão, para

uma fotografia de registro social, em que se passa a fotografar eventos socialmente

significativos.

Atualmente, com a fotografia digital, há novamente um deslocamento na relação de

valores que determinam o que é ou não fotografável. Nossa hipótese, no caso, é de que estas

mudanças estão associadas à trajetória de modificação e comercialização do dispositivo

fotográfico enquanto bem de consumo.

Nos primórdios da fotografia, o tempo de exposição necessário para produção de uma

imagem era da ordem de horas, o que tornava possível tão somente fotografias de paisagem, e

de forma difícil, os retratos. Na fotografia de cidades, por exemplo, a movimentação da

presença humana acontecia de forma muito mais rápida do que o processo da época poderia

registrar, estas fotografias resultavam assim insolitamente destituídas de qualquer presença

humana, e isto mesmo no registro de grandes e movimentados centros.

Na mesma época, fazer um retrato poderia ser encarado como uma verdadeira tortura

ou prova de resistência. Em geral, a pessoa fotografada precisava ficar imóvel por um longo

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período, muitas vezes sob um sol escaldante, já que a sensibilidade das placas de metal então

utilizadas no processo era mínima, o que obrigava a fotografia a ser realizada à plena luz.

Por um longo tempo, a fotografia resumiu-se a dois gêneros: os retratos e as vistas de

paisagens. Para o retrato era necessária a pose, já que a recomendação era permanecer parado

para não prejudicar o registro. O ato de ser fotografado era assim um evento em si,

necessariamente separado do fluxo da existência e carregado de todo um simbolismo – era

afinal uma forma de deixar, através da imagem, uma parte de si na história.

Um verdadeiro legado da própria existência, era raro que alguém possuísse mais que

uma daguerreotipia de si mesmo. Afinal, o registro em daguerreótipo não era reprodutível.

Tratado como um objeto único de apreço, o daguerreótipo era muitas vezes guardado em

sofisticados estojos de veludo, como uma verdadeira jóia. (BENJAMIN, 1994, p.93)

Nada mais distante da fixidez e do caráter de objeto de valor dos daguerreótipos do

que os atuais auto-retratos digitais: inumeráveis pedaços de informação numérica imaterial

que se substituem em fluxo progressivo, servindo como possíveis representações temporárias

ao sujeito. Vemos hoje não mais a valorização da conservação de uma imagem fixa para a

'eternidade', mas antes a proliferação de representações flutuantes, contemporizadas, por

vezes fantasiosas, mas sempre inscritas em um processo de exploração e experimentação da

imagem de si não como algo fixo, mas como espaço de mutação.

Não exploraremos aqui toda a complexidade que o assunto das representações em

retratos ou auto-retratos envolve. Afinal, este tópico implica numa profusão de conceitos que

vão além dos objetivos do presente estudo. Uma análise mais cuidadosa pode, por exemplo,

acabar revelando que as aparentes diferenças entre retrato na era da daguerreotipia e na era

digital escondem de fato um grande número de similaridades. Todavia, esta curta e superficial

comparação cumpre com a finalidade de apontar as diferenças muito visíveis, postas que

visuais, entre as modalidades de discurso e os usos culturais empreendidos no âmbito do

dispositivo fotográfico ao longo de sua história.

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65  

 

Figura 10 - GRICE, Francis. Daguerreótipo de homem e mulher não identificados, [1855] Biblioteca do congresso americano. Disponível em: <http://www.loc.gov/pictures/item/2004664531/>. Acesso em 01 de setembro de 2010.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 11 - KENZER, Josh. 365 is Done (2010). Fotografia publicada no site de compartilhamento Flickr.Disponível em: <http://www.flickr.com/photos/shoot-art/4949622365/>. Acesso em 01 de setembro de 2010.

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3.1 Fotografia e automação

A fotografia surgiu como um dispositivo capaz de produzir imagens de forma

automática, liberando o artista do trabalho de conceber manualmente cada parte da imagem. A

palavra automatismo, portanto, está incrustada nas origens da fotografia. No entanto, em seu

início, a prática fotográfica exigia de seu praticante um intenso conhecimento técnico e uma

necessária precisão metodológica. Desta forma, os primeiros fotógrafos deveriam ser, mais do

que artistas, necessariamente, experimentadores técnicos e cientistas (SZARKOWSKY,

1989).

A partir do início do século XX há um deslocamento da prática fotográfica frente ao

conhecimento técnico. Com o surgimento de um novo tipo de suporte químico, a gelatina

seca, a fotografia segue progressivamente o caminho da industrialização. Esta industrialização

primeiramente afetou a produção de suporte fotográfico, para depois chegar ao equipamento

fotográfico em si, que será progressivamente produzido em linhas de montagem industriais

segundo especificações técnicas cada vez mais complexas.

O princípio de funcionamento do suporte de gelatina seca sustentou toda a prática

fotográfica do século XX (SZARKOWSKY, 1989). Apesar de algumas mudanças

tecnológicas, a gelatina seca é a base de funcionamento do filme fotográfico até hoje. Antes

desta tecnologia, a comercialização de produtos fotográficos centrava-se na venda de itens de

preparo, e não de placas prontas.

As tecnologias que dominaram a prática fotográfica ao longo do século XIX não

permitiam que houvesse um grande intervalo entre o preparo da superfície sensível e a

exposição à luz. Era necessário ao fotógrafo produzir as próprias placas, isto tanto no

processo da daguerreotipia patenteado por Daguerre, quanto no processo do colódio úmido,

que foi o meio mais difundido da prática fotográfica entre as décadas de 1850 e 1880

(SZARKOWSKI, 1989).

Como não era possível a comercialização e, portanto, a compra de placas sensíveis já

prontas, àquele que se aventurasse na prática da fotografia antes da gelatina seca era exigido

um conhecimento técnico mínimo, pois a preparação das placas demandava, além de tempo,

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habilidade técnica. A partir de 1879, no entanto, esta exigência passou a ser dispensada e

começam a surgir as primeiras indústrias a comercializar placas e papéis sensibilizados para

produção fotográfica. Dentre estas indústrias, há uma que contribui decisivamente para a

mudança do campo fotográfico ao longo do século XX: A Eastman Dry Plate and Film

Company, posteriormente conhecida mundialmente como Kodak.

3.2 Fotografia e mascaramento

Jonathan Crary em seu estudo Techniques of the observer (1992) faz questão de

destacar que, para ele, a fotografia não é o evento central na ruptura entre o observador

clássico e o que viria a ser um observador moderno. Para Crary, a reformulação do lugar do

observador frente ao mundo e às formas de representação antecede o aparecimento da

tecnologia fotográfica que é, em si, um sintoma desta mudança (1992, p.5).

No entanto, apesar de não centrar seu estudo no surgimento da fotografia, Crary

afirma o lugar problemático que esta ocupa em meio à mudança da compreensão social da

percepção visual a partir do século XIX. Para ele, na fotografia já está abolida a

inseparabilidade entre observador e objeto de observação que era central ao funcionamento da

câmera obscura. Todavia, a fotografia pareceu, mesmo assim, uma forma de continuação de

códigos pictoriais ‘naturalísticos’ anteriores, como o da própria perspectiva central que

também caracterizava a câmera obscura.

Para Crary, a aparente continuidade da fotografia com sistemas anteriores de

observação centra-se em um aspecto específico da prática fotográfica: apesar de ser um

aparato independente, capaz de produzir uma visão separada daquela do observador, a câmera

fotográfica sempre foi mascarada como um intermediário transparente e incorpóreo entre

aquele que a opera e o mundo (1992, p.136). Para o autor, formas de representação como a

fotografia e o cinema triunfaram sobre outros dispositivos ópticos modernos, como o

caleidoscópio ou o esteroscópio, por serem capazes de ocultar, em sua aparência, os processos

de produção que as constituíam (1992, p.133).

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A análise de Crary baseia-se em grande parte na análise da recepção de imagens

fotográficas. Aqui consideramos que as simplificações realizadas nos modos de operação da

câmera fotográfica ao longo do século XX foram também fundamentais para o mascaramento

da dimensão técnica da mediação fotográfica na geração de imagens.

Se até hoje, ao olharmos uma fotografia, não somos completamente capazes de avaliar

seu processo de produção, é certo também que, ao longo da trajetória do equipamento

fotográfico, este processo se tornou cada vez mais oculto não só para aqueles que observam

uma fotografia já pronta, como também para os próprios produtores de fotografia. As

automatizações do aparelho fotográfico que se tornaram contínuas a partir do século XX

permitiram o mascaramento progressivo de sua intermediação.

A diminuição do tempo de exposição, a industrialização dos suportes, o

desenvolvimento de instrumentos e mecanismos de controle, a delegação do processo de

revelação a lugares especializados – todas estas mudanças contribuíram para criar a imagem

da fotografia como um processo ‘natural’ de produção de imagens. É no mascaramento do

funcionamento técnico e das características específicas das bases científicas da fotografia que

se encontra a constituição da ideia do meio fotográfico como intermediário transparente entre

homem e mundo.

Do analógico para o digital, modifica-se aquilo que está invisível ao operador no

momento de confronto com o dispositivo. Torna-se mais visível no digital a importância da

base técnica de funcionamento. Ainda assim, no entanto, as formas de codificação da imagem

digital, tanto quanto o eram os processos químicos de geração da imagem fotográfica

analógica, ainda são acessíveis a apenas uma pequena parcela de técnicos especializados. Isto

leva a crer que ainda há, neste modo de representação, uma grande parcela de mascaramento,

colocada com especial ênfase sob as formas de programação dos dispositivos computacionais.

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3.3 Indústria fotográfica e fotografia no século XX

Se a fotografia surge como uma forma automática de produzir imagens, é apenas a

partir do século XX que começa a se desenvolver um processo de automação propriamente

industrial no campo da produção e comercialização de equipamentos fotográficos. A indústria

da fotografia que surgiu no início do século XX promoveu o afastamento progressivo dos

fotógrafos de um conhecimento técnico que era antes indispensável.

É comum afirmarem que a invenção das placas secas simplificou imensamente a tecnologia fotográfica. Seria mais correto afirmar que a gelatina seca complicou a tecnologia fotográfica tão radicalmente que esta não pôde mais ser deixada nas mãos dos próprios fotógrafos. No início da década de 1880, fotógrafos deixaram de fabricar suas próprias placas; poucos anos depois, pararam de sensibilizar seu próprio papel para impressão fotográfica. A tecnologia artesanal inicial da fotografia havia sido substituída por uma tecnologia industrial imensamente sofisticada; do início do século seguinte em diante, os fotógrafos passaram a trabalhar com os materiais que a indústria fotográfica julgou apropriado tornar disponíveis a eles. (SZARKOWSKI, 1989, p.126)

De todas as propagandas de equipamento fotográfico realizadas desde a década final

do século XIX, nenhuma estratégia foi mais comentada do que a das câmeras Kodak. A

primeira câmera Kodak, de 1888, resumia o ato fotográfico à realização de apenas três passos

pelo fotógrafo: “1) Pull the cord. 2) Turn the key. 3) Press the button. And so on for 100

pictures.” (1) Puxe a corda. 2) Vire a chave. 3) Aperte o botão. E assim por diante por 100

fotos.) Este anúncio foi depois simplificado e reformulado, sendo substituído pelo famoso

slogan Kodak: “You press the button, we do the rest.” (Você aperta o botão, nós fazemos o

resto). (NEWHALL, 2002)

Quando a câmera Kodak aparece em 1888, ela não é a única. Havia na época uma

numerosa variedade de câmeras de mão: devido à rapidez de exposição que o suporte de

gelatina seca permitia, o tripé passa a ser um acessório dispensável à fotografia, e assim se

populariza toda uma categoria de pequenas câmeras, chamadas inicialmente de ‘câmeras

detetive’. No entanto, como afirma Beaumont Newhall, “A mais importante contribuição de

Eastman não foi certamente o desenho de sua câmera, mas o oferecimento aos seus clientes de

um serviço fotográfico completo.” (2002, p.129)

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Mais do que simplesmente vender uma fotografia, a Kodak estabeleceu um modelo de

comércio para a fotografia amadora que se tornaria padrão durante o século XX. A câmera

Kodak simplificava tanto a preparação prévia da câmera, pois já vinha carregada com o filme,

como tirava das mãos do fotógrafo a necessidade dele mesmo realizar o processo de

revelação, considerado por grande maioria da população como uma atividade complicada,

difícil e demorada.

Nos anos de sua ascensão, Eastman possuía total conhecimento das bases técnicas sobre as quais seus triunfos se erguiam; no entanto, sua genialidade não estava no campo das invenções químicas, mas em seu entendimento quase ecológico a cerca da interdependência entre tecnologia e comércio. Ele compreendeu que se fosse para a fotografia se tornar uma atividade universal, seria necessária uma tecnologia simples, barata e que demandasse pouco esforço. Ele também compreendeu que tal tecnologia seria tão cara de se por em prática e ser mantida que só poderia ser sustentada por um uso virtualmente universal. A solução ao dilema era clara: todos no mundo deveriam se tornar fotógrafos simultaneamente. (SZARKOWSKI, 1989, p.125)

Desde seu início e durante todo o século XX, a Kodak buscou divulgar a fotografia

como uma atividade simples e fácil, passível de ser associada a momentos de lazer e diversão.

A simplificação do modo de funcionamento do equipamento fotográfico era uma estratégia

tecnológica fundamental ao sucesso comercial da iniciativa de George Eastman. Toda

indústria para ser lucrativa depende de uma demanda. A estratégia de George Eastman foi

certamente a de tirar a fotografia de um circulo restrito e torná-la uma atividade popular.

O nome da câmera mais popular da Kodak, a Brownie de 1900, foi tirado de um

desenho popular na época, The Brownies, de Palmer Cox. Os Brownies eram basicamente

elfos escoceses que desempenhavam tarefas da casa sem que os humanos percebessem ou

precisassem realizar algum trabalho para fazê-las. Vê-se ai uma associação entre o processo

fotográfico vendido por Kodak e a ideia de algo místico e mágico, que acontece sem esforço

humano. Mais a mais, em uma das peças publicitárias da Kodak Brownie (Figura 9), vemos

que é uma criança quem opera o aparelho, o que ressalta mais ainda a ideia de facilidade de

operação.

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Figura 12 - Propaganda francesa da câmera Kodak Brownie (1905). Disponível em <http://education.eastmanhouse.org/discover/kits/kit.php?id=5>. Acesso em: 15 de dezembro de 2010.

 

A necessidade de promover inovações que facilitassem a operação do equipamento

fotográfico sempre foi fundamental à empresa Kodak. Além de ter produzido a primeira

câmera realmente popular, no caso, a Brownie de 1900, a Kodak foi também a primeira a

empresa a desenvolver um sistema de exposição automática. A câmera Kodak Super Six-20

de 1938 foi a primeira a oferecer exposição automática (Figura 10). A câmera custava, na

época, o equivalente à metade do preço de um carro Ford 1938, e só foram produzidas mil

unidades do modelo. O sistema de exposição automática era basicamente mecânico e possuía

sérias limitações, não sendo nem um pouco confiável (SCHNEIDER, 2008, p.2). É apenas a

partir da década de 1960, mais de vinte anos depois, que serão comercializadas as primeiras

câmeras de exposição automática a se tornarem verdadeiramente populares.

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Figura 13 - Câmera Kodak Super Six de 1938. Disponível em: <http://shutterbug.com/equipmentreviews/ classic_historical/0708classic/index1.html>. Acesso em: 10 de agosto de 2010.

3.4 O papel da eletrônica no campo da fotografia

A necessidade de ampliação das possibilidades de consumo tanto de fotografias,

quanto das próprias câmeras orientou de forma decisiva as mudanças técnicas operadas na

estrutura e no funcionamento dos aparelhos fotográficos. A necessidade essencialmente

comercial de difusão da prática fotográfica enquanto prática de consumo levou à realização

contínua de modificações no dispositivo fotográfico.

Ao analisarmos a linha de modificações realizadas no equipamento de fotografia ao

longo do séc. XX, percebemos principalmente que as mudanças tecnológicas se deram sempre

nos limites de uma busca alinhada aos paradigmas do desenvolvimento industrial. Priorizou-

se na indústria fotográfica a busca de aprimoramentos em três pontos básicos: diminuição do

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tempo necessário ao ato fotográfico, maior precisão de uma produção moldada segundo certos

parâmetros e o aumento da facilidade de circulação de fotografias.

As três vertentes que acompanharam as modificações técnicas do dispositivo

fotográfico têm implicações diretas sobre os atuais usos e concepções da fotografia.

Destacadamente, é possível associar estas vertentes a conceitos típicos da produção industrial,

sempre orientada para a busca da máxima produtividade, com o maior aproveitamento, menor

custo e no menor tempo possível. Podemos, portanto, associar o desenvolvimento do

dispositivo fotográfico ao seu caráter de bem de consumo, feição que assume tanto como

equipamento de produção, quanto sob a forma de fotografias produzidas.

A partir do final dos anos 1950 ocorrem na fotografia inovações ligadas à inserção de

componentes eletrônicos no corpo do aparelho fotográfico. A eletrônica passa a constituir um

outro sistema de conhecimento que irá se integrar ao dispositivo fotográfico a partir da

segunda metade do século XX. A linguagem eletrônica, com sua lógica de funcionamento

própria, será um grande vetor de mudanças tecnológicas, notadamente a partir do final da II

Guerra Mundial.

Para Roy Armes, os períodos posteriores aos finais das duas grandes guerras mundiais

foram, não por acaso, períodos de grandes desenvolvimentos tecnológicos. Armes considera,

ao falar do nascimento da tecnologia do vídeo, notadamente fruto do desenvolvimento da

eletrônica, que esta se deu principalmente devido ao “(...) final das duas guerras mundiais,

que deixou a capacidade produtiva industrial sem uma aplicação imediata e liberou técnicos

experientes para o trabalho no mercado.” (1998, p.126).

Enquanto antes as automações do equipamento estavam mais voltadas para aspectos

mecânicos da câmera – passagem de filmes, prevenção de dupla exposição, retorno

automático do espelho de visualização -, a partir da segunda metade do século XX as

modificações do aparelho fotográfico ocorrerão, mais e mais, pela inserção de componentes

eletrônicos capazes de colocar em funcionamento modos de programação complexos, que

passaram a ter grande influência sobre a forma de aquisição de imagens em fotografia.

A inserção de componentes eletromecânicos cada vez mais complexos nas câmeras

fotográficas acompanhou a própria tendência de complexificação do campo da eletrônica. A

primeira câmera capaz de calcular automaticamente a exposição foi a Agfa Optima de 1959.

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Em 1977 é lançada a Konica C35AF, a primeira câmera capaz de calcular o foco de forma

eletrônica, a partir de dois foto-sensores instalados5.

A introdução de componentes eletrônicos em câmeras fotográficas seguiu a tendência

geral de aplicação da eletrônica na época, notadamente, em prol da automação de processos

antes mecanizados. Como é afirmado no livro History of American Technology (OLIVER,

1956):

Acompanhando os avanços da metade do século XX no fornecimento de comida, abrigo e vestuário; no processamento de matéria prima em produto final; na criação de novos materiais; nas tecnologias da comunicação e do transporte; e na introdução de novas fontes de energia veio ainda um outro desenvolvimento – o da automação. (OLIVER, 1956, p.634)

O livro nos fornece ainda uma citação retirada da revista “Industry and Power”, de

julho de 1952, que nos oferece uma valiosa perspectiva sobre automação, partindo do cenário

de desenvolvimento industrial da época:

(A automação é) um mecanismo avançado através do qual é possível um aumento de produção, através do qual os padrões de qualidade podem ser elevados e controlados, e pelo qual os custos de produção são cortados através do uso de máquinas automáticas, esteiras de transporte, controles eletrônicos, sistemas de feedback e computadores com funções semelhantes àquelas do cérebro humano. (EVANSON apud OLIVER, 1956, p.634)

Um exemplo de como a introdução de componentes eletromecânicos nas câmeras

fotográficas era orientado pela mesma demanda que levava a automação na indústria -

aumento de produção, controle dos padrões de qualidade, redução dos custos de produção -

pode ser encontrado em um artigo escrito na revista Popular Science, de dezembro de 1980,

sobre os então novos sistemas de focagem automática:

                                                            5 Informação obtida em pesquisa da internet, com referência cruzada entre vários sites especializados em

equipamentos fotográficos históricos, dentre os quais destaca-se o site http://www.ukcamera.com/classic_cameras/historyenglish.html

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Se você pedisse aos especialistas dos laboratórios fotográficos líderes de mercado para listar os problemas mais comumente encontrados nas fotos de clientes, eles rapidamente responderiam: exposição imprópria, enquadramento ruim e erro de foco. Sistemas automáticos conseguem agora dar conta do cálculo da exposição fotográfica para várias pessoas. O enquadramento ainda precisa estar na cabeça do fotógrafo. E, até recentemente, este também era o caso com a escolha do foco, mas agora, sofisticados sistemas eletrônicos estão começando a colocar um fim nisso. (JACOBS, 1980, p.97)

Mais a frente, em outro artigo publicado na mesma revista, desta vez com o título:

Camera eletronics launches photography into the 21st century, o repórter Robb Smith chama

a atenção para a segurança de funcionamento trazida pelos componentes eletrônicos na

prevenção de erros e na certeza de sucesso estético das fotografias realizadas:

E de fato estas câmeras são muito fáceis de usar. O motivo: componentes microeletrônicos sofisticados. Mas elas não servem apenas para pessoas sem conhecimento. Os avançados componentes eletrônicos oferecem vantagens aos fotógrafos de todos os níveis: (...) De forma mais importante, estes novos componentes aumentam o percentual de boas exposições e até mesmo expandem o campo de possibilidades de realização fotográfica (SMITH, 1980, p.100)

3.5 O papel do homem por trás da câmera

A indústria fotográfica do século XX fez de tudo para tornar a fotografia uma

atividade descomplicada e de simples operação. Para isto, centralizou a produção e a

padronização científica dos processos de fabricação dos suportes, bem como o processamento

dos resultados finais.

O outro foco de simplificação da atividade foi no pólo de operação do dispositivo

fotográfico, com a inserção de componentes capazes de calcular ajustes, sem a necessidade de

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interferência do fotógrafo. Este processo resultou no lançamento de equipamentos capazes de

realizar fotografias a partir de modos automáticos

No mercado amador, a automação levou à construção de câmeras que chegavam até

mesmo a se recusarem a fotografar caso as condições da fotografia não correspondessem

àquelas julgadas ideais pelo sistema de automação (SZARKOWSKI, 1989, p.262). Esta

sobredeterminação das prefigurações do aparelho à vontade do fotógrafo acontecia em favor

da programação da câmera para que apenas fotos que pudessem ser julgadas como boas

fossem tiradas. A automação era vendida como forma de simplificação da atividade do

fotografar, mas nesta simplificação estava implícita uma busca pela exclusão de possíveis

erros no processo.

A busca pela exclusão do erro é certamente uma das características dos processos de

automação, não apenas na fotografia, mas em atividades industrializadas em geral. A grande

questão que se esconde neste caso é que quase sempre o lugar que é visto como origem dos

erros pela automação é o lugar do operador humano.

Neste sentido, enquanto a missão publicitariamente veiculada do automatismo era a de

oferecer sistemas que praticamente anulavam qualquer trabalho ou dificuldade no ato de

fotografar, o lado oculto destas mesmas automações era a delegação do controle de ajustes da

câmera a mecanismos inacessíveis ao usuário, que poderiam, por vezes, virtualmente anular a

vontade do fotógrafo em decidir pela fotografia.

O fotógrafo amador, encarado como potencial fonte do erro foi estimulado

publicitariamente a recorrer, em cada novo tipo de automação, a recursos cada vez

tecnologicamente mais complexos de controle de captura. Todavia, os parâmetros que

determinavam a programação das câmeras fotográficas amadoras que dominaram o mercado

entre as décadas de 1970 até aproximadamente o final da década de 1990, eram ainda

parâmetros lineares. Ou seja, envolviam processos em que não era possível a consideração de

um número grande de variáveis. Estas programações eram ainda muito distantes da

complexidade de leitura matricial e de controle de erro que a câmera digital se provaria capaz

de estabelecer.

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77  

3.6 Modos de aquisição automática da fotografia analógica à digital

As automações fotográficas inauguradas na segunda metade do século XX se

propagaram garantindo a facilidade de uso e promovendo um apagamento progressivo das

especificidades técnicas de operacionalização do aparelho fotográfico. A substituição do

conhecimento dos modos de operação fotográfica por programações automáticas estimularam

a percepção do aparelho fotográfico como sendo apenas um meio para se chegar a um fim: o

registro fotográfico. Esta visão certamente está de acordo com aquela proposta por George

Eastman ao iniciar a companhia Kodak: de que a câmera fotográfica fosse vista e utilizada

como um caderno de anotações (NEWHALL, 2002, p.129)

A construção dos módulos de aquisição fotográfica automatizada passou

necessariamente pela adição ao corpo da câmera de sensores: equipamentos capazes de

receber informações, sem as quais não seria possível o estabelecimento de programações

como os módulos de auto-exposição e auto-focagem.

Com a inserção da fotografia no campo da tecnologia digital, os sensores que antes

eram externos ao modo de existência da fotografia analógica – a própria película – passam a

ocupar o lugar central. O centro de funcionamento de toda fotografia digital é o seu sensor

fotoelétrico, responsável pela geração da imagem numérica e computada que visualizamos

nos visores de projeção ou nas outras telas eletrônicas de exibição.

Na fotografia digital vemos a transformação do equipamento fotográfico em uma

máquina sensora, capaz de receber e processar informações. Com esta transformação, a

complexidade das programações de controle no âmbito do aparelho fotográfico chegou a

interessantes extremos. Para além da sofisticação nos cálculos de exposição e focagem

automática, surgem modos de aquisição fotográfica que chegam mesmo a substituir o papel

do fotógrafo naquele que foi, durante todo o século XX, considerado o momento místico e

central de consecução de uma imagem fotográfica: o momento do clique.

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78  

Neste sentido, um exemplo destacado é certamente o módulo smile-shutter,

primeiramente lançado em uma câmera da empresa Sony em agosto de 20076. Quando

acionado o módulo smile-shutter, a câmera fotográfica passa a funcionar em um modo de

aquisição automática em que a foto só é realizada quando há a detecção, por parte do sensor,

de um sorriso na face de ao menos uma das pessoas enquadradas.

Para o fotógrafo ainda resta a decisão de para onde apontar a câmera fotográfica e em

que momento ativar o modo de funcionamento automático. No entanto, o módulo smile-

shutter insere no campo da fotografia um outro tipo de aquisição de imagens – uma aquisição

automatizada, em que a decisão de gerar ou não uma imagem passa a depender não mais do

fotógrafo, mas do próprio aparelho. Neste sentido, a câmera retira das mãos do operador a

decisão daquele que foi considerado ao longo do século XX o momento privilegiado do ato

fotográfico: o momento do corte, da decisão entre realizar ou não uma fotografia.

Programações como as do smile-shutter modificam a ideia do corte como a de um

instante a ser decidido pelo gesto do fotógrafo. O gesto decisivo do clique é substituído por

um modo de aquisição temporalmente indeterminado, em que resta ao fotógrafo decidir o

momento de ativar o mecanismo. A partir deste momento, é a câmera que decide, a partir de

suas programações, pela criação ou não de uma imagem fotográfica.

3.7 Considerações sobre o momento do obturador

Durante todo o século XX, o pensamento sobre a fotografia centrou sua análise sobre

o momento do clique fotográfico – a própria noção do instantâneo que levou a encarar a

fotografia como um ato que se resumisse apenas a um gesto, a decisão do fotógrafo entre

realizar ou não uma fotografia.

                                                            6 Informação obtida em site oficial da empresa Sony, a partir do release de lançamento das câmeras Sony

cybershot série T. Disponível em: <http://news.sel.sony.com/en/press_room/consumer/digital_imaging /digital_cameras/cyber-shot/release/31103.html>. Acesso em 5 de janeiro de 2011. No Brasil, as câmeras com esta função foram lançadas em setembro de 2008 (O GLOBO, 2008, s.p.)

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O centramento da atividade fotográfica sobre o momento do obturador foi estimulado

tanto pela indústria fotográfica, como ilustra o slogan da Kodak (“Você aperta o botão, nós

fazemos o resto”), quanto fez parte do discurso de vários fotógrafos profissionais a respeito de

sua prática. Certamente de forma mais destacada, nas formulações de Henri Cartier-Bresson

sobre o momento decisivo (CARTIER-BRESSON, 1981, p.384).

Arlindo Machado aponta ainda para a presença desta tendência de valorização do

‘clique’ até mesmo no campo da reflexão teórica acerca do campo fotográfico, em que se

“(...) privilegiou o aperto do botão disparador da câmera como o momento emblemático da

fotografia.” (2001, p.132)

Ainda hoje, apesar da crescente digitalização do processo fotográfico em todos os seus níveis, grande parte dos círculos teóricos e profissionais permanece paralisada pela mística do ‘clique’, do ‘momento decisivo’, do instante mágico em que o obturador pisca, deixando que a luz entre na câmera e sensibilize o filme. Tudo mais, antes e depois do ‘clique’, é considerado afetação pictórica (icônica) ou ‘manipulação’ intelectual (simbólica), fugindo, portanto, da ‘especificidade’ da fotografia. (MACHADO, 2001, p.133)

Machado aponta para o fato da mística em torno do momento do clique fotográfico ser

ainda cultivada em diversos círculos da prática e da reflexão fotográfica (2001, p.133).

Conforme o autor elucida, esta questão está em muito ligada à ideia da fotografia como

registro, no campo da prática fotográfica, e como índice, na área das reflexões teóricas.

No campo das reflexões teóricas, há ainda boa parte da crítica que considera a falta de

indicialidade como sendo o principal traço de diferenciação entre a fotografia analógica e a

digital. Esta seria uma falsa diferença. Insistimos aqui no caráter simbólico da representação

fotográfica: a imagem fotográfica resulta sempre de uma interpretação da luz segundo leis

científicas. Isto tanto na fotografia analógica quando na digital.

Se antes as formas de interpretação da luz pertenciam ao campo da química, hoje elas

pertencem ao campo da eletrônica. Há sempre um traço de indicialidade e de iconicidade na

fotografia, pois o regime triádico de Peirce especifica que há sempre traços de cada uma das

três categorias presentes em um signo (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.143). O digital

torna mais visível as convenções do fotográfico como representação mediada por códigos e

tecnologias científicas, capaz de transfigurar o visível em um signo visual – características

que já estavam presentes na fotografia analógica.

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Eis porque uma fotografia pode ser considerada um signo de natureza predominantemente simbólica, pertencente prioritariamente ao domínio da terceiridade peirceana: ela é, tanto quanto a imagem digital, imagem científica, imagem informada pela técnica, ainda que certo grau de indicialidade esteja presente na maioria dos casos. Em outras palavras, a fotografia é o resultado da aplicação técnica de conceitos científicos acumulados ao longo de pelo menos cinco séculos de pesquisas nos campos da óptica, da mecânica e da química, bem como da evolução do cálculo matemático e do instrumental para operacionalizá-lo. (MACHADO, 2001, p.129)

Se há traços indiciais na fotografia analógica, é possível admiti-los também na

fotografia digital. Isto tanto é verdade que ainda são atribuídos diversos usos da fotografia que

se baseiam em sua precisão enquanto ‘verdade científica’. Este é certamente o caso das

câmeras-pardais que registram infrações de trânsito nas ruas de grandes cidades ou em

imagens obtidas automaticamente por satélites. O que ambos os casos têm em comum? São

módulos automatizados de aquisição de imagem, módulos que pressupõem uma não

influência do homem sobre o registro da câmera, e que virtualmente apagam o papel de

qualquer operador nos seus modos de funcionamento.

O lugar de desconfiança acerca do digital não é, portanto, a questão da geração da

imagem em si, mas o das possibilidades de modificação do registro científico da imagem

através de escolhas feitas pelos operadores dos dispositivos. Isto não chega a ser um problema

na maior parte da prática cotidiana da fotografia. Apenas em campos que se construíram

embasados no caráter documental da representação fotográfica que a questão da possibilidade

de edição a partir do meio digital provoca polêmicas.

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4. MOMENTO DA PÓS-PRODUÇÃO

A consideração da fotografia como traço sempre tendeu a desconsiderar, como bem

afirma Machado (2001, p.133), as possibilidades posteriores de intervenção do fotógrafo

sobre a imagem. No caso da fotografia analógica, os procedimentos de pós-produção eram

tecnicamente complicados de realizar. No entanto, não é como se edições, manipulações e

cortes não fizessem parte do vocabulário da fotografia analógica.

Com a fotografia digital, o procedimento de pós-produção deixa de pertencer ao

interior de um laboratório fotográfico, onde antes ele era realizado em uma série de etapas

complexas. Devido às características particulares do código digital, a pós-produção passa a

acontecer a partir de agora diante dos olhos de qualquer um que opere um programa de

edições de imagens em um computador.

Uma das características essenciais do código binário é, segundo Lev Manovich, a

modularidade. (2000, p.32). Como explicamos antes, uma fotografia digital é formada por

pixels. Os pixels são pequenos elementos que, quando juntos, formam uma imagem. Desta

forma, toda imagem digital é um conjunto de pequenos elementos discretos, independentes

entre si. A modularidade da imagem digital está na capacidade de computar e controlar cada

pixel, isoladamente ou em conjuntos determinados, que facilita imensamente as possibilidades

de controle sobre a imagem.

O que na fotografia analógica eram modos difíceis, trabalhosos e complicados de

alteração e controle na pós-produção passam a ser, com o digital, operações configuradas em

meio a processamentos numéricos. Estas operações matematicamente complexas são

apresentadas de forma simplificada nas interfaces dos programas de edição de imagens.

A facilidade de controle sobre cada elemento da imagem gera um novo tipo de

percepção sobre as fotografias, que passam a ser vistas cada vez mais como formas

propositivas de comunicação, ao invés do papel que lhes foi longamente atribuído de registro

‘natural’ da realidade. Isto gera desconfiança à atribuição histórica que foi dada a fotografia

enquanto registro do real.

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A desconfiança quanto à veracidade do registro fotográfico não chega a ser um

problema no caso dos usos amadores ou pessoais, apesar de gerar questões interessantes

quanto ao registro da memória (DIJCK, 2007, p.106). No entanto, no caso de campos de

atuação profissional em que a veracidade da imagem foi propagada como questão ética

fundamental, a possibilidade de alteração de fotografias se torna foco de discussões

acaloradas e decisões controversas.

4.1 Fotojornalismo e manipulação da imagem fotográfica

Em 19 de julho de 2010, a agência de fotografias Getty Images demitiu o fotógrafo

free-lancer Marc Feldman por ter publicado uma imagem editada de um torneio de golfe. Na

foto, Feldman retirou a imagem de uma pessoa que aparecia logo atrás do jogador de golfe

Matt Bettencourt enquanto este segurava a bola de sua jogada vitoriosa em um torneio nos

Estados Unidos (LUM, 2010, s.p.). A alteração só foi percebida porque o fotógrafo enviou

duas versões da mesma imagem – uma com o recorte vertical, em que a imagem parece

inalterada, e outra no sentido horizontal, em que o auxiliar atrás do golfista foi solenemente

eliminado da imagem (FIGURA 14).

 

Figura 14 - As duas imagens enviadas pelo fotógrafo Marc Feldman à agência Getty Images. À direita, aimagem editada. Disponível em: <http://www.petapixel.com/ 2010/07/19/getty-photographer-terminated-over-altered-golf-photo/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011 

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Marc Feldman, ao ser confrontado com a notícia de sua demissão afirmou ter enviado

as duas imagens por erro. Segundo o fotógrafo, após o evento, o golfista e seu auxiliar foram

ver as fotos e sugeriram que esta seria muito melhor caso aparecesse apenas o golfista (LUM,

2010, s.p.). Feldman haveria então feito uma edição apenas para mostrar como era fácil tornar

isto possível. A imagem alterada teria assim sido enviada por acidente, junto às demais não

editadas. Feldman declarou que “Não havia nenhuma intenção de que esta imagem fosse

passada como uma imagem verdadeira. Apenas um idiota enviaria ambas as fotos, e eu a teria

editado muito melhor também.” (FELDMAN apud LUM, 2010, s.p.).

A declaração de Feldman de que ele teria mandado as duas fotos por engano parece

verossímil. No entanto, segundo a opinião do fotógrafo, se ele quisesse, poderia ter editado

melhor a imagem e tê-la transmitido como uma fotografia não editada. Não há nada que possa

contradizer a opinião de Feldman, no entanto há uma desconfiança implícita a toda fotografia

digital de ser ou não uma imagem diferente da que teria sido primeiramente realizada.

O tipo edição hoje julgado com tanto intento e severidade, já fez parte da prática

fotojornalística em casos que precedem à fotografia digital. Como no caso da imagem do

fotógrafo John Filo tirada em meio a protestos anti-guerra, nos anos 1970, nos Estados

Unidos. Em maio de 1995, a revista LIFE publicou uma versão alterada da imagem original

que mostrava uma jovem ajoelhada ao lado do corpo de um estudante morto durante um

protesto. Na imagem original, há um poste que se encontra diretamente atrás da jovem. Na

fotografia reproduzida na revista LIFE, o poste foi removido.

 

Figura 15 - Fotografia tirada por John Filo (1970). À esquerda está a imagem tal como publicada na revista LIFE, edição de maio de 1995. Disponível em: <http://www.cs.dartmouth.edu/farid/research /digitaltampering/ kentstate1 +2.jpg>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.

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Quando o diretor de fotografia da revista LIFE, na época, David Friend, foi

confrontado sobre as alterações realizadas na foto, ele se defendeu argumentando que não

havia sido responsável pela edição e que apenas havia utilizado uma imagem disponível no

arquivo da empresa Time-Life (FRIEND, 2007, s.p.). Antes deste momento, a imagem

alterada já havia sido publicada em diversas revistas de renome, tais como na revista TIME (6

de Novembro, 1972, p.23), PEOPLE (02 de Maio, 1977, p.37), TIME (07 de Janeiro, 1980,

p.45) e PEOPLE (30 de Abril, 1990, p.117), no entanto nunca havia sido notada a alteração da

foto.7 Ao buscar a fonte da edição, Friend descobriu que havia duas versões da mesma foto no

arquivo da empresa jornalística.

A segunda fotografia, sem o poste, estava estampada com mais marcações de publicação no verso do que a imagem com o poste. Esta versão também havia sido publicada nas revistas Time e em LIFE. Assim como na revista People. Muitas vezes. (…) E havia sido publicada repetidamente ao longo de 25 anos, sem que ninguém notasse a ausência do poste. (FRIEND, 2007, s.p.)

Quando a fotografia editada de Filo foi divulgada pela revista LIFE, acusou-se a

revistar de manipular digitalmente a imagem. Na verdade, a imagem havia sido editada anos

antes, ainda em um laboratório fotográfico. Mesmo tendo sido divulgada diversas vezes,

nunca se havia notado a ausência do poste.

Apenas na publicação de 1995 a edição chegou a ser notada e a promover algum tipo

de comoção. Isto indica que em 1995 havia um cenário mais propício à detecção da edição do

que 5 anos antes, quando a imagem editada havia sido publicada pela última vez (PEOPLE,

1990, p.117). Vale citar que o Photoshop, ferramenta mais usada para a edição digital de

imagens, foi primeiramente lançado em 1991.8

Ao investigar a origem da imagem alterada, o editor Brian Friend descobriu que o

fotógrafo John Filo havia disponibilizado a segunda cópia, sem o poste, para publicação. O

fotógrafo, incomodado com o poste na imagem, editou uma cópia em laboratório e a entregou

                                                            7 Referências à mensagem enviada por David Friend à NPPA (National Press Photographers Association)

disponíveis em: < http://www.zonezero.com/magazine/articles/meyer/06.html>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011. A questão foi novamente abordada por Friend em um blog pessoal no ano de 2007, em um texto intitulado “Nefarious darkroom deeds?”. Disponível em: < http://davidfriend.net/2007/04/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.

8 Informação retirada do site especial da empresa Adobe em comemoração aos 20 anos de existência do Photoshop. Disponível em : <http://www.photoshop20anniversary.com/>. Acesso em 20 de fevereiro de 2011.

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à empresa. Como a empresa Time-Life já tinha a versão original, parece óbvio que soubessem

que se tratava de uma edição.

Em nenhum dos dois casos apresentados, seja no atual caso de Feldman, ou no de Filo,

os elementos retirados da imagem eram indispensáveis à compreensão do que elas

veiculavam. Os fins da edição eram, portanto, estéticos. No entanto, enquanto a apresentação

da imagem editada em nada tirou os méritos de Filo, nos dias de hoje este mesmo tipo de

edição acabou por levar à demissão um fotógrafo experiente, e uma agência fotográfica a

emitir um mandado de exclusão da fotografia dos bancos de dados.

 

Figura 16 - Aviso da agência de imagens Gettyimages para eliminação da fotografia de Marc Feldman do banco de imagens. Disponível em: <http://www.petapixel.com/2010/07/19/getty-photographer-terminated-over-altered-golf-photo/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2011.

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O fotojornalismo é um dos campos de atuação em que a fotografia digital mais

provoca controvérsias. A imagem fotojornalística construiu seus modos de operação sobre a

ideia da fotografia como registro. A partir do digital, a possibilidade de modificar de forma

controlada parâmetros e partes específicas da imagem torna-se facilitada pela modulação e

pela construção de interfaces digitais de manipulação da imagem, o que levanta uma

desconfiança social maior quanto à possibilidade de veracidade ou não de uma fotografia.

A popularização das ferramentas digitais de edição de imagem trouxe à frente o fato já

conhecido de que toda fotografia pode mentir. Com o surgimento em 1991 do Photoshop, e

com a distribuição de programas de edição da imagem junto com as câmeras digitais, vemos

serem inseridos, também no campo da fotografia amadora, recursos de manipulação da

imagem que antes eram indisponíveis à maior parte dos usuários. Isto levou a modificações na

relação do fotógrafo com a imagem produzida, momento que aqui chamamos de pós-

produção.

4.2 Pós-produção na fotografia pessoal

No livro Mediated memories in the digital age (2007) a teórica holandesa José van

Dijck discute as transformações que a fotografia digital traz para o âmbito da reconstrução da

memória pessoal a partir de imagens. Segundo a autora a transferência da fotografia para o

campo da linguagem digital modifica o lugar central reservado à prática fotográfica. A autora

considera que, se antes era prioridade tratar a foto como um objeto a ser guardado para

posterior memória, com a fotografia digital vemos uma maior valorização dos usos

comunicativos e performativos da imagem

Nos anos recentes, o papel e a função da fotografia digital parecem ter mudado substancialmente. Na era analógica, a fotografia pessoal era primeira e principalmente considerada como um meio para a memória autobiográfica, e as fotografias usualmente terminavam como mementos guardados no álbum fotográfico de alguém ou em uma caixa qualquer. Eram tipicamente consideradas como o recurso mais confiável à lembrança da memória de uma vida,(...). As funções da fotografia como um meio de comunicação e de formação de identidade eram devidamente reconhecidas,

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mas sempre eram consideradas como funções secundárias a um propósito principal. A recente explosão do uso de câmeras digitais – incluindo-se aí câmeras integradas a outros dispositivos de comunicação – pode ser muito bem uma razão para reconsiderarmos a primazia da fotografia como ferramenta da memória. (DIJCK, 2007, p.99)

A própria autora faz questão de esclarecer que os usos da fotografia como meio de

comunicação não são novos, mas que este não era o princípio central dos modos de

enunciação fotográfica na esfera do cotidiano. Para a autora, esta transformação dos usos está

conectada com a possibilidade de maior domínio sobre os resultados finais de uma imagem

(DIJCK, 2001, p.100), ou seja, relacionam-se com o que aqui denominamos de momento da

pós-produção.

4.3 “Revelação em uma hora”

O mais comum na fotografia amadora ao longo do século XX era o esquema de

produção fotográfica introduzido pela Kodak no início do século: o fotógrafo ‘apertava o

botão’ e a empresa fotográfica fazia o resto. Isto deixava todo o papel da seleção e da

impressão das imagens para os técnicos de laboratório responsáveis pelo processo. Quando

muito, restava ao usuário amador escolher uma ou mais fotos que julgasse particularmente

importantes para posterior ampliação.

A prática no campo da fotografia analógica pessoal durante o século XX diferia em

muito daquela da fotografia profissional. Especialmente a partir da década de 1960, quando a

fotografia passou a ser mesclada com outras formas de arte. As transformações no campo

artístico questionaram a ideia da fotografia como registro, explorando os principais meios

possíveis de ‘fabricar’ uma fotografia.

Este processo fez parte da inserção da fotografia na arte, não mais como forma de

expressão separada, mas como mais um meio para a realização artística. Concretizou-se no

campo fotográfico um processo artístico de ruptura com a denotação referencialista que havia

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sido construída pelo campo da fotografia documental. “(...) de forma freqüente a fotografia

passou a ser não uma ideia alternativa, mas meramente um meio alternativo – uma outra

técnica, tal como o silkscreen ou a tinta em spray, que estava disponível aos artistas abertos a

outras possibilidades.” (SZARKOWSKI, 1989, p.275)

Nas décadas de 1950, 1960 e principalmente, 1970, a expressão fotográfica fez parte

de um amplo movimento de hibridização das artes (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.179). A

partir deste momento, a fotografia artística volta-se a explorações diferenciadas das

possibilidades de fotográfico – remetendo em especial às técnicas do tableaux e à encenação,

como nas obras de Cindy Sherman e Bernard Faucon; mas também a trucagens e grafismos

da imagem, como na retomada da fotografia pinhole por Eric Renner, ou nas falsas anatomias

vegetais e espécies animais de Joan Fontcuberta.

 

 

Figura 17 - Untitled film still #21 de Cindy Sherman(1978). Disponível em: <http://www.moma.org/interactives/exhibitions/1997/sherman/untitled21.html >. Acesso em 03 de fevereiro de 2011.

Figura 18 - La neige qui brule (1981) deBernard Faucon. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/bcodeimagens/imagens _publico/013302115378.jpg>. Acesso em 03 defevereiro de 2011.

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Figura 19 - Barrufeta godafreda (da série Herbarium) de Joan Fontcuberta (1983). Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2841&cd_materia=1125>. Acesso em 3 de fevereiro de 2011.

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Figura 20 - Ticul ice house de Eric Renner (1968). Disponível em: <http://ericrennerphoto.com/ artwork/1584510_Ticul_Ice_House_Ticul_Mexico_1968.html>. Acesso em 3 de fevereiro de 2011.

A associação entre imagem fotográfica e outros meios de expressão, como a

instalação, a performance, o teatro, a pintura e a escultura levou a um reconhecimento maior

da possibilidade propositiva de toda representação fotográfica. A imagem considerada não

como registro, mas como meio de expressão elaborado segundo parâmetros conceituais

determinados pelo realizador e mediados pelas possibilidades técnicas do equipamento

(SZARKOWSKY, 1989, p.276).

Se antes este tipo de expressão fotográfica estava muito distante da prática cotidiana

da fotografia, o que vemos a partir da transição do digital é a incorporação mais intensa destes

procedimentos (encenação, alterações no registro, colagens variadas) à prática amadora não-

especializada. A imagem pessoal da produção amadora passando a ser veiculada não como

imagem registro, mas como uma imagem escolhida para simbolizar determinado momento,

conceito, ou situação.

A fotografia digital favorece a exploração discursiva do meio fotográfico – a ideia da

imagem como meio não só de registro, mas de elaboração de uma mensagem. Isto acontece a

partir de variados procedimentos, alguns antes da fabricação da imagem, tais como no caso da

encenação em frente à câmera; outros, por meio das ferramentas digitais de edição.

Não podemos esquecer que as ferramentas digitais de edição da imagem são

programações informáticas mediadas ao usuário em interfaces específicas. O usuário pode

fazer diversos ajustes, mas pode também utilizar padrões pré-estabelecidos de edição: tal

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como um ajuste automático de correção de cor ou de exposição em uma fotografia. O que

torna a questão discursiva mediada crucialmente pelos programas de edição da imagem.

4.4 Não armazene suas fotos no facebook

Se antes a fotografia era guardada e exibida para poucos escolhidos, hoje em dia ela é

publicizada em meio a uma rede de transmissão e recepção de mensagens, o que a torna um

tipo diferente de enunciação: “Quando as fotos se tornam uma linguagem visual veiculada por

um meio de comunicação, o valor das imagens individuais diminui, enquanto o significado

geral de comunicação visual aumenta.” (DJICK, 2007, p.115). Isto leva a um outro tipo de

relação do produtor fotográfico amador com a imagem produzida.

A partir da inserção das imagens pessoais em grandes redes de distribuição, a seleção

das imagens fotográficas passa a ser considerada a partir de categorias do compartilhamento,

mais do que relacionadas a preocupação de guarda e de registro: “(...) as fotografias parecem

estar sendo cada vez mais usadas como ferramentas de comunicação em tempo real do que

como meio de guardar momentos da vida para memória posterior.” (DIJCK, 2007, p.99).

Toda e qualquer visualização de imagem digital é apenas uma aparição desta imagem.

Saindo do léxico do mágico e reentrando na terminologia computacional, toda aparição de

uma imagem digital é uma atualização da imagem que, enquanto permanece não vista, é

apenas virtual. Portanto, não são só os novos espaços de exibição da imagem digital que estão

em fluxo, mas a própria imagem passa a ser também um código flutuante sempre pronto a ser

reatualizado.

O componente de transformação da imagem em diferentes meios não é novo, ele está

no cerne do surgimento da imprensa ilustrada do início do século XX (SZARKOWSKY,

1989, p178). O digital apenas transforma o processo de reatualização e adaptação da imagem

em um processo mais rápido, mais econômico e mais preciso, a partir da substituição da

matriz material, como um negativo de vidro, por exemplo, por uma matriz numérica,

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constantemente repetível. Daí para frente é possível que haja perda de qualidade e de

informações, mas trata-se das escolhas na forma de atualização desta imagem.

Um exemplo dos modos de existência da fotografia digital: escolher imprimir uma

fotografia na impressora de casa, em um papel não especializado terá um resultado estético

diferente de imprimi-la em um laboratório especializado. No digital, apenas a matriz numérica

pode ser considerada constante, não os resultados posteriores.

A conformação de uma matriz numérica não significa que não haverá degradação da

informação contida em uma imagem digital. De forma destacada, manter e administrar

informações tem se tornado um dos grandes problemas da atualidade.

A questão afeta tanto empresas quanto indivíduos. No caso da fotografia digital, um

dos espaços destacados de organização e armazenagem tem sido o dos álbuns de fotografia

em redes sociais. Em março de 2010, o site especializado em fotografia digital Petapixel9

chamava a atenção de seus usuários com o artigo Don’t Use Facebook for Photo Storage.

Traduzindo literalmente, o titulo do artigo é um aviso: “Não use o Facebook para

armazenar fotografias”. O texto faz referência às estatísticas publicadas no jornal The

Washington Post, em matéria realizada pela jornalista Caitlin McDevitt, sobre os modos de

uso da fotografia digital nos Estados Unidos:

40% dos lares com câmeras digitais não imprimem mais fotografias; 65% das pessoas compartilhando fotografias on-line o fazem pelo site Facebook; Menos de 33% destas pessoas se dão conta de que o site Facebook armazena fotografias em uma resolução menor. (MCDEVITT, 2010, s.p.)

Seguindo as estatísticas apresentadas na pesquisa, o autor do texto, Michael Zhang

alarma para a possibilidade de que “(...) talvez tenhamos toda uma geração de pessoas que

está essencialmente 'jogando fora seus negativos' após fazerem cópias muito pequenas”

(ZHANG, 2010, s/p). A preocupação expressa por Michael Zhang é realista, mas chama

atenção no texto os vestígios de uma mutação na economia simbólica de uso, de guarda e de

consumo de fotografias. Mais a frente, o autor confabula que:

                                                            9 <http://www.petapixel.com>

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Também é perturbador que a maioria dos usuários não tenha ideia de que, ao armazenar uma fotografia no Facebook – e então deletá-la de sua câmera – significa que você tenha perdido a imagem original para sempre. Isto é provavelmente porque as fotos do Facebook pareçam simplesmente boas o bastante em uma tela de computador. (ZHANG, 2010, s/p)

Talvez a análise mais efetiva sobre a atual conjuntura, em que cada vez imprimimos

menos e compartilhamos mais, seja justamente a de um engenheiro do site Facebook. Scott

Marlette considera que o importante nos dias de hoje não é o tamanho da imagem

armazenada, mas que “(...) o valor de uma foto é quem está nela, quando foi tirada e qual

memória ou experiência associamos a ela.” (MARLETTE apud SUMMERS, 2009, s.p.).

Os sites de relacionamento têm se tornado os lugares privilegiados de exibição de

imagens pessoais. Nestes sites, o objetivo não é a conservação de arquivos, mas antes o

estímulo à circulação social de conteúdos. Neste sentido, parece importar cada vez menos aos

usuários que as fotos armazenadas jamais sejam impressas e vistas em suas mãos, pois torna-

se mais importante veicular estas imagens em rede, torná-las disponíveis à visualização de

amigos, entes queridos ou até mesmo ilustres desconhecidos.

4.5 O que será de nossa memória?

O armazenamento e a guarda das imagens digitais é um dos problemas principais em

torno da fotografia digital. No início da computação, uma das principais limitações era a

pouca capacidade de armazenamento de memória do computador. De 1950 para cá, o

crescimento da possibilidade de armazenamento de informações digitais foi exponencial.

Enquanto no princípio a capacidade de armazenamento se restringia à casa dos megabytes,

hoje encontramos pequenos dispositivos com capacidade de mais de uma dezena de

gigabytes, além da popularização crescente de memórias superiores a um terabyte.

Apesar de cada vez maiores em sua capacidade, os dispositivos de armazenagem

computacional não são confiáveis. Para assegurar a existência de um arquivo digital,

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recorremos sempre a uma série de cópias de segurança, seja em outros dispositivos, ou agora,

de modo mais proeminente, através do recurso do cloud computing (computação em nuvem)

que armazena os arquivos não em um dispositivo material, mas em uma rede de dispositivos.

Neste sentido, há tanto modos profissionais de armazenamento por envio via internet, quanto

alternativas tão mais baratas, quanto mais inseguras, de dar guarda aos arquivos digitais.

A produção de arquivos não para de crescer a uma taxa ainda maior do que cresce a

capacidade de armazenagem dos dispositivos computacionais. O problema continua sendo

não apenas de armazenamento, mas também de como lidar com o imenso número de

informações que armazenamos. No caso de uma pessoa com compulsão fotográfica, o suporte

digital torna possível tirar mais de 100 fotos em um dia, ou mesmo em uma hora. Porém, o

que acontece com estas imagens? Elas chegam ao menos a serem vistas? Como lidar com

tanta informação?

No caso da fotografia digital, a maior parte das imagens produzidas em câmeras

digitais não chega jamais a serem impressas. Do grande número de imagens produzidas,

comparativamente são poucas as que chegam à veiculação publica da internet. Neste sentido,

para muitas pessoas, publicar fotos em sites de relacionamento ou de armazenamento

fotográfico tem se convertido em um novo hábito de organização e visualização de imagens.

Todavia, como nos afirma Dijck (2007, p.114), os novos meios virtuais de publicação

de imagens não equivalem aos álbuns fotográficos de outrora. Não há, nos meios de

armazenamento digital, nenhuma garantia de guarda a longo prazo, nenhuma certeza de

memória. O que há é um fluxo contínuo de informações atualizáveis por tempo

indeterminado.

4.6 Do momento decisivo à decisão por momentos disponíveis

Com a fotografia digital cresce o número de imagens que um indivíduo é capaz de

produzir em um curto espaço de tempo. Na fotografia profissional, era comum realizar um

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95  

grande número de imagens, de onde apenas poucas seriam escolhidas para representar o

tempo total de duração do ato fotográfico.

Os modos de aquisição fotográfica automática, a capacidade de realização de centenas

de fotos, mais a possibilidade de revisão imediata da foto realizada contribuem no campo da

fotografia digital para um deslocamento da prática de realização de imagens.

Com a fotografia digital, há a possibilidade de se produzir em um curto período de

tempo, um número cada vez maior de imagens. No entanto, o número de imagens produzidas

por um indivíduo não é necessariamente proporcional ao número de imagens que chegam a

ser valorizadas e guardadas com cuidado pelo fotógrafo ou qualquer outra pessoa. Mesmo

havendo um número cada vez maior de imagens em circulação, isto não significa um aumento

no número daquilo que poderíamos chamar de imagens-tesouro: pequenas lembranças de

momentos ou pessoas guardadas com cuidado no interior de álbuns, gavetas ou entre as

páginas de um livro.

Por maior que seja a quantidade de fotografias que um sujeito seja capaz de produzir,

as imagens-tesouro, como seria a imagem da foto de formatura de um filho na parede,

parecem se tornar materialmente escassas, ou ao menos, sua economia simbólica passa a ser

outra. O lugar de guarda, de cuidado e atenção para estas imagens não é mais necessariamente

o porta-retrato na cabeceira, ou o retrato no quadro da parede, mas a tela de fundo de um

computador, um avatar em uma rede social, ou a imagem de uma ligação em um celular.

Estes novos espaços digitais, em constante fluxo de reatualização, parecem se

configurar como novas formas de condensação da imagem fotográfica, cada vez mais uma

imagem fantasmática, já agora em outro sentido. Se antes a fotografia era fantasmática em

seus mitos de fluído, de transferências vaporosas da aura para a chapa fotossensível

(DUBOIS, 1994), o que há agora de mais fantasmático é o próprio suporte.

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96  

4.7 Armazenamento da imagem do analógico ao digital

Os lugares reservados às fotografias na era analógica eram lugares específicos de

exibição de imagens impressas, objetos materiais. Dentre estes lugares destacamos: os álbuns

fotográficos, feitos para serem folheados; os porta-retratos, lugares de destaque para

determinadas fotografias escolhidas; os quadros na parede, no caso de imagens muito

importantes, como de formatura ou casamento; ou o interior de objetos pessoais, como

carteiras, para-sóis de automóveis.

As imagens fotográficas seguiam uma vida própria no mundo das substâncias

(AGAMBEN, 2009). No caso dos porta-retratos e dos retratos de parede, estes eram deixados

nos espaços comuns de trânsito das pessoas. Os álbuns e fotografias guardadas em objetos

pessoais requeriam uma vontade direcionada de revisitar as imagens.

Às vezes estas representações permaneciam por tanto tempo no mesmo lugar que

chegavam a se tornar invisíveis. No entanto, quando lembradas, poderiam ser revistas, pois

permaneciam lá, apesar dos possíveis desgastes químicos. Por vezes se perdiam, mas sempre

era possível reencontrá-las. Eram propriamente coisas, objetos materiais e, inadvertidamente,

poderíamos esbarrar com uma quando menos esperássemos.

O par achado/perdido referente às fotografias impressas em papel não equivale, no

caso da fotografia digital, ao par disponível/indisponível. Imagens digitais são imagens

virtuais. Toda forma de apresentação de uma imagem digital é um dos modos possíveis de sua

aparição – isto desde que a imagem esteja disponível. Se não houver um programa capaz de

acessá-la, ou se houver algum erro no código da imagem, é possível que jamais a vejamos

novamente. Faço referência aqui a uma experiência pessoal.

Em viagem à cidade de Canela – RS, fiz um passeio de teleférico. Durante o passeio,

foi tirada uma fotografia por uma câmera automática do estabelecimento local. Como no dia

tinha presente equipamento fotográfico próprio, o funcionário do estabelecimento deu como

opção transferir o arquivo da imagem, do computador local para a câmera. Assim feito, a

imagem aparecia como disponível na visualização da câmera.

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97  

No entanto, o formato do arquivo era, de algum modo, incompatível com o programa

do equipamento. Isto resultou em uma imagem aprisionada, que nunca foi possível transferir

para qualquer outro suporte ou dispositivo. Possuo a imagem, a vejo, mas ela me permanece

indisponível.

Apesar de ser fundamentalmente imaterial, a fotografia digital só pode ser visualizada

por equipamentos de existência física, que possuem configurações próprias e, também, um

custo. Estes equipamentos são guiados por programações e modos específicos de

funcionamento que são inacessíveis a boa parte dos usuários. Mais ainda, estas imagens são

construídas em código, e não há nenhuma segurança de que este código vá permanecer o

mesmo, e de que poderemos no futuro acessar as imagens que produzimos hoje.

A segurança da durabilidade de uma imagem digital é inexistente, já que ela passa a

depender de tecnologias sobre as quais a maior parte da população tem apenas um controle

ínfimo, e que ainda estão sujeitas, como quaisquer outros objetos materiais, às intempéries do

tempo. A falta de garantia do armazenamento digital se dá também pela sazonalidade dos

formatos de gravação. Como acessar hoje em dia uma informação armazenada em um

disquete, tecnologia que era tão comum na década de 1990? Que garantia temos de que os

formatos de arquivamento que utilizamos hoje serão válidos daqui há dez ou vinte anos?

Mesmo que Santaella e Nöth afirmem que o caminho da humanidade tenha sido na

busca de meios cada vez mais resistentes e imperecíveis de armazenamento (SANTAELLA &

NÖTH, 2008, p.138), a atual conjuntura do digital nos faz duvidar e questionar até que ponto

está assegurado o acesso futuro ao imenso contingente de imagens e conteúdos culturais que

circulam nos dias de hoje. Pois, se o digital favorece o compartilhamento das mensagens, é

também verdade que ele favorece o fluxo interminável de substituição de uma mensagem por

outra, sem garantias de conservação das que passaram.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No livro A máquina de esperar (2008), Maurício Lissovsky fala sobre a experiência

fotográfica moderna como sendo essencialmente uma experiência da espera. Lissovsky se

refere centralmentte à experiência fotográfica artística. No entanto, consideramos que a

descrição do autor sobre o ato fotográfico serve também para ilustrar o que foi a experiência

fotográfica amadora ao longo do século XX: uma fotografia em que a espera era componente

essencial.

Lissovsky considera haver uma diferença essencial entre o que era a postura do

fotógrafo do século XIX e o que foi a prática fotográfica no século XX. Segundo Lissovsky, o

fotógrafo do século XIX apostava todas as suas fichas no enquadramento da foto (2008,

p.162). O central à fotografia de então era a escolha e a composição de uma vista a partir de

um ponto.

Antes de decidir realizar uma foto, era necessário ao fotógrafo oitocentista posicionar

cuidadosamente a câmera, e esperar em repouso a realização da foto. É apenas a partir do

século XX que vemos a fotografia se tornar um sinônimo do olhar em movimento e em

constante agitação.

A modificação na técnica fotográfica faz surgir, a partir da gelatina seca, outras formas

de composição e elaboração da imagem fotográfica. Para Lissovsky, o tempo na fotografia

era, antes do suporte de gelatina seca, o tempo necessário da exposição do suporte fotográfico

à luz. A partir da nova tecnologia, o tempo de exposição deixa de ser um tempo longo, e passa

a ser de fração de segundos, o tempo do corte.

Antes do advento do instantâneo, durante a longa exposição que tomava conta da pose fotográfica, modelo e fotógrafo eram prisioneiros de uma espera cujo fim estava previamente determinado – o tempo necessário de exposição. (...). O instantâneo tornou a espera indeterminada, entrega subjetiva a um tempo do outro, à eventualidade de um ajuste, virtualidade interminável, seja daquele que posa, daquele que clica, ou de ambos. Uma espera indeterminada e, ao mesmo tempo, finalista, teleológica, redentora. (LISSOVSKY, 2008, p.212)

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O que fica assinalado no texto de Lissovsky é o caráter eminentemente temporal da

experiência de enunciação fotográfica e como esta modificou-se com o surgimento de uma

outra tecnologia de suporte fotográfico. Para o Lissovsky, a mudança tecnológica da virada do

século XIX para o XX foi fundamental em estabelecer uma outra experiência temporal quanto

ao ato fotográfico (2008).

Para outro autor, John Szarkowsky, esta mudança também resultou na construção de

parâmetros visuais e estéticos diferenciados dos praticados anteriormente (SZARKOWSKY,

1989). Segundo Szarkowsky, as placas de gelatina seca possibilitaram um outro tipo de

exploração fotográfica do mundo que permitia “(...) maiores improvisações e um sentido

generalizadamente mais aceito da natureza discursiva da imagem do que o método do colódio

úmido (1989, p.134)

A partir do século XX, a experiência de fotografar passa a ser moldada por uma outra

concepção do tempo do ato. Passa-se à compreensão da fotografia como um corte em meio ao

tempo de uma duração. No entanto, este corte, segundo Lissovsky vêm também carregado de

espera. Esta espera já é de outro tipo, pois não se encontra mais como uma espera em repouso,

como a do tempo antes necessário à exposição do suporte, mas como uma espera ativa, pela

decisão de realizar ou não uma fotografia. “A espera é um lugar difícil de descrever (…). E,

no entanto, não é de outra coisa que vão falar os fotógrafos modernos: de sua espera e do

modo como ela se torna – ela, e não a imagem – a principal matéria sobre a qual trabalham.”

(LISSOVSKY, 2008, p.59)

Lissovsky faz questão de ressaltar que o tipo de experiência centrada no corte como

lapidação do tempo da imagem é, todavia, uma experiência pertencente a um momento

específico da história fotográfica, que começa mesmo a ser suplantado já a partir das décadas

de 1960 e 1970. Fotografias como as de William Klein, Lee Friedlander e Arthur Omar são

exemplos de uma outra concepção da imagem, de uma relação temporal diferente com o

processo de criação fotográfica (2008, p.143).

No limite da experiência moderna, as manipulações no laboratório de Klein não são um intervenção posterior, uma 'segunda' fase. São ainda, mesmo que revividas em outro espaço, a mesma fase. Estão em continuidade com o instante. São seu 'transbordamento', que o transe sustenta e prolonga.” (LISSOVSKY, 2008, p.141)

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A partir da metade final do século XX, a espera deixa ocupar o lugar central no

discurso dos fotógrafos quanto à sua prática. Segundo Lissovsky, criações como as de Omar e

Klein refletem um modo de produção que “no limiar histórico da experiência moderna, evoca

a espera pelo fim da espera.” (2008, p.143).

 

Figura 21 - Candy Shop de William Klein, Nova york, (1954-55). Disponível em: <http://www.masters-of-photography.com/K/klein/klein_candy_store_full.html>. Acesso em 10 de fevereiro de 2011.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 22 - Leite Zulú para HarmoniaQuímica Nacional, de Arthur Omar,parte da série Série Antropologia daFace Gloriosa, (1973-1997). Disponívelem: <http://www.colecaopirellimasp.art.br/autores/145/obra/509>. Acesso em 10de fevereiro de 2011. 

Figura 23 - Albuquerque, de Lee Friedlander(1972). Disponível em: <http://www.artscenecal.com/ArtistsFiles/FriedlanderL/LFriedlander.html>. Acesso em 10 de fevereiro de2011. 

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A fotografia em outros tempos

Em uma palestra realizada durante o 2º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São

Paulo, Lissovsky apontou para o fato de serem outras as preocupações dos fotógrafos de hoje

quanto ao tempo. Frente ao fotógrafo clássico e a importância do ponto de vista; frente ao

fotógrafo moderno concentrado no instantâneo e o no gesto do corte, vemos hoje um

fotógrafo que passa a lidar face a face com o imaginário, composto e alimentado por imagens

cada vez mais voláteis.10

Durante o caminho desta dissertação, um traço específico da mudança se destacou em

meio às análises empreendidas. Ao analisarmos o momento do visor, do obturador e da pós-

produção, foi possível encontrar, em todos, alterações na lógica temporal de produção da

imagem fotográfica.

Se antes toda foto era uma imagem resultante de uma espera, a partir do digital, ela

passa a ser uma representação colocada em fluxo. Isto desde o momento inicial, quando, ao

olhar para o visor projetivo, o operador já se defronta com a possibilidade de escolher entre

um modo ou outro de mediação visual para criação da imagem.

O visor projetivo provoca uma mediação semi-imediata de criação de uma

representação visual separada, gerando um acavalamento temporal entre realidade percebida e

representação imagética. Esta modificação fundamental do visor coloca o momento inicial de

mediação da fotografia em um outro regime temporal: o que é visto como movimento na tela

não é o movimento dos corpos tal como na realidade sensível, mas antes o movimento de um

fluxo de informações processadas.

No momento do obturador, a possibilidade de visualizar as fotos realizadas insere o

momento de edição da imagem no ato de aquisição. Ao ver a foto realizada, o fotógrafo

escolhe imediatamente se deseja ou não mantê-la e, até mesmo, se quer ou não alterá-la,

aplicando-lhe filtros ou fazendo um novo recorte.

                                                            10 O 2º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo foi realizado no Instituto Itau Cultural, na cidade

de São Paulo - SP entre os dias 20 e 24 de outubro de 2010. A fala de Lissovsky ocorreu no dia 24 de outubro, em uma mesa intitulada “Divagações Sobre o Futuro”. Os vídeos da palestra podem ser acessados em: <http://www.tvaovivo.tv.br/itaucultural/forumfoto/#>

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A imagem gerada, mediada e já paralisada como representação fotográfica passa a ser

confrontada imediatamente com seu contexto de criação. Isto torna a questão do registro

fotográfico uma mediação em constante atualização entre o que é visto pelo fotógrafo e as

fotografias geradas pelo equipamento.

Em nenhum caso, porém, a característica de fluxo da imagem digital está tão em

destaque quanto no momento da pós-produção. A imagem, convertida numa mensagem

codificada passa a ser um objeto em constante fluxo de atualização, sujeito a um número

ilimitado de alterações.

Se antes os limites materiais do suporte e os complicados processos químicos

limitavam os processos de re-elaboração da imagem, a partir da modularidade do digital

(MANOVICH, 2000), o procedimento de pós-produção passa a ocupar um lugar central no

imaginário da prática fotográfica.

Ao analisarmos as características da imagem digital, percebemos que ela é

propriamente uma imagem em fluxo, sempre dependente de modos de atualização. Este fator

também influi nos modos de distribuição da imagem, em que se torna mais comum privilegiar

o trânsito do que a permanência e a conservação.

Segundo Santaella e Nöth, é só a partir da computação que “(...) o tempo passou a ser

introjetado dentro da imagem em si mesma, imagem que, finalmente, adquire o poder de se

comportar exatamente como o som na sua natureza de puro tempo” (2008, p.93). Mais à

frente, seguindo com as analogias entre imagem digital e música, Santaella e Nöth assinalam

o que seria uma das diferenças centrais entre as formas de registro dos paradigmas pré-

fotográfico e fotográfico com relação às representações digitais da imagem:

Desde as inscrições nas grutas, sempre se tratou de alguma forma de registro que (...) utiliza algum tipo de meio e de suporte em busca da fixação e eternização do observado. Ânsia de captura de um instante essencial, repúdio e vingança humana contra o perecível, o provisório, o acidental, contra a mortalidade da vida em casa instante em que é vivida. A música, ao contrário, porque só pode por fatalidade passar, evanescer, soar e desaparecer, é, tal como a vida, devir irremediável. É dessa mesma evanescência, dissolvência e puro devir a antimatéria luminescente de que é feita a imagem eletrônica. (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p.95)

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A vida em aceleração

As mudanças na fotografia não são exclusivas ao campo, mas se inserem em um

processo amplo de alteração de modos e hábitos de percepção. Neste contexto, citamos o

trabalho de Muniz Sodré (2008). A opinião de Sodré é a de que entramos, a partir da

popularização do digital, em um novo regime de visibilidade, com características particulares.

A análise de Sodré aborda as mudanças na situação comunicacional frente à sociedade

atual. Um dos pontos que o autor faz questão de assinalar é o da imprecisão terminológica do

uso do termo Revolução da Informação para designar a situação sócio-econômica e cultural

em processo nos dias de hoje. Para o autor, o termo revolução se mostra impróprio uma vez

que:

(...) não se trata exatamente de descobertas linearmente inovadoras, e sim da maturação tecnológica do avanço científico, que resulta em hibridização e rotinização de processos de trabalho e recursos técnicos já existentes sob outras formas (telefonia, televisão, computação) há algum tempo. (SODRÉ, 2008, p.13)

As mudanças da tecnologia digital não podem ser consideradas deslocadas de seu

contexto histórico. Apesar de trazer transformações definitivas às práticas da fotografia, a

transição para o digital se inscreve em um processo de exacerbação de alguns intentos já

presentes na produção industrial do século XX – tais como a aceleração do modo de produção

e uma contínua tendência a automação.

Não se trata de atribuir ao digital o lugar de realização final de algo já programado, ou

de considerar a trajetória de mudanças como algo lento ou gradual. Trata-se de perceber que

esta nova tecnologia surge a partir de um campo histórico de tensões entre modos de uso e de

comercialização, modos de saber e modos de controle sobre a produção.

A inserção da fotografia no âmbito do digital se deu por uma urgência de velocidade

que não partia do campo da fotografia em si, mas dos modos de circulação da mensagem que

passaram a ser cada vez mais acelerados a partir das últimas décadas do século XX.

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Não é de estranhar, portanto, que as primeiras câmeras fotográficas eletrônicas tenham

sido projetadas e vendidas para profissionais apresentando como maior vantagem a

possibilidade de transmissão de fotografias por meio de cabos telefônicos. Este foi o caso da

câmera RC-701, primeira câmera a ser comercializada para fotógrafos profissionais. A câmera

foi desenvolvida pela empresa Canon para ser utilizada na aquisição e transmissão de imagens

fotográficas durante os jogos olímpicos de Los Angeles em 1984.11 (CANON, 2010, s.p.)

A câmera RC-701 não era propriamente uma câmera digital, mas uma câmera de vídeo

capaz de gerar stills fotográficos. No entanto, podemos considerá-la um antepassado direto

das câmeras digitais, uma vez que o que estava em jogo em seu desenvolvimento era a

possibilidade de uma fotografia realizada sem película fotográfica ou processos químicos.

O que aqui importa é delimitar a ligação existente entre o surgimento e popularização

da fotografia digital com modos de produção ligados à necessidade, primeiramente

profissional, depois também assumida pela esfera amadora, da circulação acelerada de

conteúdos. Este traço da aceleração temporal vem hoje a caracterizar a existência das imagens

digitais em nosso cotidiano.

No que diz respeito à Revolução da Informação, novo mesmo é o fenômeno da estocagem de grandes volumes de dados e a sua rápida transmissão, acelerando, em grau inédito na História, isto que se tem revelado uma das grandes características da Modernidade – a mobilidade ou a circulação das coisas no mundo. (SODRÉ, 2008, p.13)

As modificações no modo de aquisição de fotografias não são, portanto, modificações

isoladas, mas refletem alterações nos modos sociais de produção e de trabalho. Isto tanto no

campo da prática profissional, que orientou o surgimento da RC-701, quanto na fotografia

amadora. É possível associarmos a popularização da câmera fotográfica digital à

popularização dos computadores pessoais e do uso da Internet. A distribuição em rede gerou

novos hábitos de consumo e circulação de imagens, hábitos capazes de dar vazão e sentido à

produção pessoal de um número cada vez maior de imagens.

                                                            11 Informação obtida em site oficial da empresa Canon. Disponível em: < http://www.canon.com/camera-

museum/history/canon_story/1976_1986/1976_1986.html>. Acesso em 10 de fevereiro de 2011.

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Figura 24 - RC-701 Still video cameraacompanhada por seus acessórios que incluiam,máquina para envio, receptor decodificador emáquina de impressão. Disponível em:<http://www.canon.com/camera-museum/history/canon_story/1976_ 1986/1976_1986.html>. Acessoem 10 de fevereiro de 2011. 

Mitos do digital

Um dos aspectos que acompanhou as discussões sobre o digital em seu início foi a

discussão sobre um suposto potencial democratizante das linguagens digitais. Este aspecto da

discussão também foi remetido ao campo da fotografia, onde o acesso a equipamentos mais

baratos, capazes de gerar um número maior de imagens sem custo adicional foi remetido a

uma ideia pouco precisa de democracia.

Para nós, não é possível afirmar uma linearidade causal que determinaria que quanto

mais pessoas estejam fotografando, mais democrático será o convívio social. Toda a

construção da ideia de que a fotografia digital promove uma democratização do ato

fotográfico passa por uma associação errônea entre democracia e possibilidade de consumo.

Evidente já se fez que a democratização (...) não é nada que se obtenha pela multiplicidade técnica de canais, nem por uma legislação liberal aplicada às telecomunicações, nem mesmo pela concentração de espaços promovida pelas redes cibernéticas, que faz os ‘grandes’ equivalerem virtualmente aos ‘pequenos’. (SODRÉ, 2008, p.27)

Não há nada no digital que garanta que quanto mais pessoas estiverem tirando fotos

será maior a democratização. Seguindo a abordagem discursiva, a análise das condições de

um discurso não pode se centrar em uma etapa, mas deve investigar os caminhos que um

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discurso percorre. Isto envolve a questão das condições de produção, de distribuição e de

consumo que cada fotografia pode assumir.

No entanto, mesmo se não associamos a fotografia digital diretamente a qualquer tipo

de democratização, não negamos também que ela possa trazer, junto às redes digitais, novas

formas e novos pontos de tensionamento do poder, uma vez que, como diria Foucault, este é

sempre relacional (2002, p.248).

Entre o código e a imagem

Um dos aspectos mais positivos do advento da fotografia digital foi o fato desta

mudança ter trazido o meio fotográfico à berlinda, colocando novamente em discussão as

práticas e percepções sociais sobre fotografia. O digital reacendeu velhas polêmicas,

resultando na necessidade de se repensar os processos de criação fotográfica, além de levar à

reformulação do senso comum quanto ao que é fotografia.

As alterações nos modos de aquisição de fotografias refletem modificações nos

modos sociais de produção e de trabalho. Neste âmbito, destaca-se a importante presença do

desenvolvimento das ciências da eletrônica e a tendência moderna de busca por processos de

automação.

No âmbito da fotografia digital, o desafio dos fotógrafos continua de certa maneira a

ser o que sempre foi, o de empurrar os limites questionando as determinações técnicas do

campo fotográfico, em um constante embate com o aparelho (FLUSSER, 2002). Afinal,

mesmo que o digital favoreça a ideia da fotografia cada vez mais como uma ferramenta

discursiva, ainda persiste nos equipamentos uma inacessibilidade e um desconhecimento

quanto aos processos básicos de formação da imagem. Os equipamentos fotográficos digitais

ainda se configuram como caixas-pretas para a maioria dos usuários, “(...) o que se vê é

apenas input e output. Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se

passa no interior da caixa preta (FLUSSER, 2002, p.15).

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Na maioria das ferramentas atuais de imagem, os modos de codificação continuam

tendendo à ocultação, A codificação de uma imagem fotográfica digital apresenta-se, muitas

vezes, como um elemento inacessível a reconfigurações, deixando o fotógrafo como mero

usuário de um aparelho programado (FLUSSER, 2002). A situação só passa a ser outra no

caso de pessoas com formação técnica suficiente para identificar e conhecer os modos

específicos de operação tecnológica dos dispositivos. É o aspecto vedado do conhecimento

técnico dos equipamentos digitais que precisa ser revisto.

A problematização não se limita ao campo da fotografia, mas se alinha à discussão

geral sobre as condições de produção e circulação de conteúdos dentro do dispositivo da

computação. No atual contexto, podemos enxergar a fotografia como um dispositivo que se

insere na rede de relações do dispositivo computacional como um todo. Por ser linguagem, o

digital é dispositivo por excelência e, como a própria linguagem verbal, permite uma série de

variedades de expressões. No entanto, é também meio que só roda a partir de determinados

aparelhos.

O surgimento e a propagação de novos discursos em potencial de discutir com as

formas antes estabelecidas de fotografia, seja no fotojornalismo, seja na fotografia de arte, só

pode ser percebido com bons olhos dentro do contexto atual. Mas esta é apenas a metade do

caminho, a outra parte diz respeito ao próprio suporte e à discussão em torno do entendimento

do meio digital, um esforço pela sua não misticização, necessário à prática não só de uma

fotografia crítica, mas de uma utilização da computação que vá contra tendências de controle

que se apresentam de forma cada vez mais exacerbada. Este certamente é o caso de

tecnologias como a do face detection, base de operação para o modo smile shutter, que tem

como origem pesquisas militares de desenvolvimento de sistemas de vigilância.12

Entre a homogeneização que tanto o código quanto as programações são

tecnologicamente capazes de promover e o uso cada vez mais constante da imagem digital

como um veículo de comunicação em rede, há uma zona de indeterminação da prática

fotográfica. Esta região cinza do campo fotográfico pode muito bem ser relacionado àquilo

que Flusser (2008, p.141) designa como nuvens de futuro.

O código e a programação podem ser apresentados como aspectos centrais ao

processo de homogeneização da prática fotográfica. No entanto, temos sempre que ter em

                                                            12 Informação retirada do site Wikipedia. Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/Computer_vision>.

Acesso em: 11 de fevereiro de 2011.

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mente que os códigos digitais são reprogramáveis. Todo programa é uma forma de

reinterpretação do código, e estas formas de reinterpretação podem ser refeitas, desde que haja

acesso e entendimento aos modos de funcionamento das programações digitais.

A nova forma de produção e consumo de imagens estabelece uma outra relação com

as imagens produzidas, uma relação mais apta ao diálogo, em que toda imagem passa a ser

vista como imagem aberta, sujeita à apropriação, a modificações e reformulações de acordo

com a intenção comunicacional desejada.

Ao mesmo tempo, a característica de fluxo da imagem digital não pode ser tomada

como garantia de diferenciação e heterogeneidade da imagem. Afinal, temos de considerar

que a rápida substituição de imagens umas pelas outras é capaz, ás vezes, de gerar de forma

mais imediata um sentimento de homogeneidade que de diferenciação quanto à prática do

fotográfico.

O suporte digital insere o campo fotográfico em um outro tipo de lógica produtiva,

uma lógica do fluxo, da velocidade de produção e da rapidez de circulação das informações.

Mas as modificações dos modos de operação e dos suportes não são assim tão estranhas ao

campo da fotografia. Szarkowsky (1989, p.291) afirma que, ao interpretarmos os dados

históricos da fotografia, seria possível afirmar que esta nunca possuiu um suporte estável,

material ou moral, que chegasse a durar sequer uma geração.

As mudanças que o digital traz ao campo da fotografia são muitas, mas são tantas não

porque são apenas mudanças na fotografia, mas porque dizem respeito a mudanças nos

sistemas sociais de produção, circulação e consumo de produtos culturais. Em um primeiro

momento, estas alterações geram choques, conflitos e reações anacrônicas. Porém, geram

também outras possibilidades. Citando novamente John Szarkowsky ao falar das

instabilidades dos modos de operação no campo da fotografia: “Talvez nada de conseqüência

tenha sido de fato perdido – apenas uma ilusão” (1989, p.291).

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