as missões de maynas e a rebelião dos piros e cunivos

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As Missões de Maynas e a Rebelião Dos Piros e Cunivos

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  • Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. ANPUH/SP-USP. So Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

    Roberta Fernandes dos Santos. As Misses de Maynas e a rebelio dos Piros e Cunivos

    em 1695. Mestranda. PUC-SP.

    As Misses de Maynas na Amaznia foram fundadas pelos jesutas em 1638 com o

    propsito de servir aos interesses coloniais da monarquia espanhola que necessitava de corajosos

    desbravadores dos territrios selvagens e tambm de contingente populacional para efetivar a

    ocupao das reas desbravadas; outra funo que igualmente fazia parte dos atributos das redues

    era a de preparar o indgena para sua integrao no sistema colonial como mo-de-obra para as

    encomiendas. Entretanto, no podemos omitir o fato de que a atuao dos padres na regio nem

    sempre seguiu risca os objetivos da poltica mercantilista europia, eles demonstravam claramente

    que sua maior preocupao era com a santa misso jesutica de converso dos gentios no Novo

    Mundo.

    A permanncia dos inacianos na regio se estendeu at 1768 e contou com o

    estabelecimento de 152 povoados que praticamente desapareceram aps a expulso da ordem neste

    mesmo ano. No Rio Ucayali constituram-se apenas duas redues - Sant-iago de la Laguna e

    Santsima Trinidad de los Cunivos - que ficaram sob encargo do padre Enrique Rickter de 1685 at

    1695. Este tentou aglutinar nelas os diversos povos que habitavam as margens do rio, entre eles os

    Piro e os Cunivo, responsveis pela rebelio que culminou com o assassinato do padre e o

    definitivo isolamento da rea, mesmo aps o envio de uma expedio punitiva de soldados

    espanhis em 1698 que malogrou.

    As Misses de Maynas contaram com uma enorme documentao escrita deixada pelos seus

    missionrios. Estes escritos so compostos de relatrios, cartas, informes, crnicas e memrias, que

    registraram os momentos da colonizao da Amaznia, a atuao dos padres nestas misses e a

    resposta dos ndios frente ao contato. Estes eram essencialmente documentos apologticos que

    procuravam, a todo momento, justificar a presena dos padres entre os ndios e para isto era

    necessrio que se registrasse os avanos da atividade missionria, bem como sua herica e santa

    atuao; as privaes, os medos, as dificuldades e sua triunfante vitria na conquista da amizade

    dos ndios graas ajuda incessante da Providncia Divina, assim justificavam o santo trabalho

    missionrio de salvar almas. As crnicas enfocadas nesta pesquisa foram escritas pelos padres, e

    no pelos ndios. Certamente, conseguiremos apontar a viso jesutica da atuao indgena

    presente nas cartas selecionadas. Basicamente delas emanam as vozes daqueles que, considerando-

  • Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. ANPUH/SP-USP. So Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

    se superiores tentaram abolir a cultura indgena. Sabemos que no podemos confiar em tudo o que

    os padres narram sobre os ndios; mas, talvez por um deslize destes, eles acabaram registrando

    momentos em que as vozes que eles queriam calar apareciam ou de forma tmida, como sussurros,

    ou como gritos desesperados.

    A chegada dos jesutas na Amaznia

    Com a finalidade de incorporar novas reas aos domnios da coroa espanhola, encontrar

    metais preciosos e estabelecer encomiendas, os espanhis iniciaram a fundao das primeiras

    cidades na regio. At 1570 as fundaes se concentraram a oeste dos rios Maranho e Huallaga,

    mas com o alastramento de algumas epidemias e ataques constantes dos grupos indgenas que se

    recusavam a trabalhar nas encomiendas, estas cidades logo foram abandonadas. Aps 1574, a

    descoberta de reservas aurferas na regio da Alta Amaznia revigorou o estabelecimento de novas

    cidades agora nas margens dos rios, posio que facilitava o trnsito de mercadorias e pessoas.

    Contrastando com o aumento da ocupao espanhola, a diminuio das populaes indgenas foi

    alarmante pois provocou a insuficincia de mo-de-obra nas encomiendas. As correras1 foram a

    nica soluo encontrada para suprir essa carncia.

    No ano de 1616, numa dessas correras, os espanhis contactaram um grupo indgena de

    etnia Mayna, dos quais alguns acompanharam voluntariamente o regresso da expedio at a

    cidade de Santiago de las Montaas, fato que motivou o governador Diego Vaca de la Vega a

    solicitar ao vice-rei don Francisco de Borja y Aragon permisso para fundar uma cidade no

    territrio daqueles ndios to amistosos; ela foi concedida em 1619 e a cidade recebeu o nome de

    San Francisco de Borja em homenagem ao vice-rei. Aps a fundao, os ndios Mayna que

    habitavam a regio foram divididos em encomiendas. Os Mayna desconheciam at ento as formas

    de trabalhos que os espanhis queriam lhes impor e no as aceitaram, o descontentamento inicial se

    agravou com a disperso das primeiras epidemias trazidas pelos europeus que ocasionando a morte

    de muitos ndios. A rebelio indgena no demorou a acontecer. Estourou em 1635 na cidade de So

    Francisco de Borja onde os Mayna mataram muitos espanhis, tanto civis quanto militares, e se

    espalhou at o rio Maranho. O mesmo governador que antes ordenou a fundao da cidade

    organizou uma expedio punitiva que saiu de Borja caando e matando violentamente os ndios

    rebeldes. Temeroso do resultado que tamanha violncia poderia acarretar para o bom andamento do

    1 Correras eram expedies para perseguir e capturar indgenas, transferi-los para os acampamentos mineiros a fim de trabalharem em proveito de um encomendero e, consequentemente, da coroa espanhola.

  • Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. ANPUH/SP-USP. So Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

    projeto colonizador, Diego Vaca de la Vega mandou chamar os jesutas para servirem de

    apaziguadores. Os padres - Gaspar de Cugia e Lucas de la Cueva - chegaram cidade em 1637 e

    iniciaram o processo de pacificao dos Mayna.

    Neste mesmo ano, chegou tambm a Quito uma expedio portuguesa liderada por Pedro

    Teixeira que subiu o rio Amazonas desde Belm. Este fato causou grande espanto e temor aos

    espanhis que teriam ento que se preocupar com a concorrncia lusitana no domnio das terras e

    mo-de-obra nativa.

    Foi entre os ndios de etnia Mayna que se fundou o primeiro aldeamento jesutico na

    Amaznia no ano de 1638, depois de assegurada a paz. Tambm aos mesmos ndios se deve o nome

    do complexo missionrio estabelecido pelos jesutas em toda a regio do Alto Amazonas que

    compreendia parte do Equador, do Peru, e se estendia at as fronteiras com o Brasil: as Misses de

    Maynas. As rotas que saam de Quito e chegavam nas Misses eram compostas de caminhos

    tortuosos, animais, insetos, clima adverso, falta de alimentos, epidemias, ataques de ndios e a

    imensa diversidade cultural e lingustica dificultavam a entrada dos padres e o estabelecimento de

    povoados; sendo assim, a maioria das misses foi fundada s margens dos rios para facilitar o

    deslocamento dos padres e de povos e o acesso ao colgio de Quito, responsvel pela administrao

    delas.

    Primeiros contatos com os Cunivos e Piros e a fundao da Reduo Santssima Trinidad de

    Cunivos

    Podemos observar no processo de avano dos missionrios para regies amaznicas o que

    chamamos de ondas de redues. Atravs da leitura e anlise das fontes percebemos que a histria

    da atuao dos padres jesutas em Maynas pode ser dividida em perodos nos quais estes padres se

    empenhavam em avanar organizadamente pelo territrio. O primeiro perodo abarcou os anos de

    1638 as 1685 e foi marcado pelo avano missionrio e estabelecimento de redues no Rio

    Huallaga; dentro deste perodo tivemos a rebelio dos Cocama e o assassinato do Padre Figueroa

    (1666) e sua pacificao e aldeamento em 1669, tambm observamos as primeiras tentativas de

    avano para o leste e os primeiros contatos com os Chipeo do Ucayali. O segundo perodo (1685

    1695) ficou marcado pela fundao de misses Santiago de la Laguna e Santssima Trinidad De

    Cunivos no Ucayali; exatamente sobre este perodo que vamos tratar nesta comunicao. E um

    terceiro e ltimo perodo que foi do fracasso no Ucayali em 1695 at a expulso dos jesutas da

    regio em 1768.

  • Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. ANPUH/SP-USP. So Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

    Os Chipeo, os Piro, os Cunivo e outros povos de lngua pano viviam nas regies do Rio

    Ucayali (a leste do Rio Huallaga) e eram muito conhecidos pela sua belicosidade. As incurses dos

    missionrios na regio comearam aps a rebelio dos Cocama, que foram deslocados para o

    Huallaga, com a procura de outros povos no Ucayali. Padre Lorenzo Lucero contactou e pacificou

    os Chipeo e fundou a reduo de Santiago de la Laguna em 1669. J em 1680 os povos aldeados

    foram atingidos por uma epidemia de varola que matou muitos ndios e causou a fuga de mais

    alguns. No resgate aos chipeos fugidos, Lucero encontrou, rio acima, com os Manamabobo que o

    levou at os Cunivo. Estes foram contactados e mostraram-se amigos. Mas a efetiva pacificao dos

    Cunivo s se deu em 1685 com a chegada do padre Enrique Rickter, alemo da mesma regio de

    Fritz, que fundou a reduo Santssima Trinidad de Cunivos.

    Em 1689 outra epidemia atingiu o povoado dos Chipeo e o padre teve que deixar os Cunivo

    para impedir a fuga dos Chipeo. Foi durante a ausncia do padre que os Piro chegaram at Trinidad

    de Cunivos mostrando-se interessados em contactar o padre e receber seus presentes (objetos de

    ferro como facas, agulhas e anzis), mas como no o encontram eles voltaram para as suas terras

    acima da misso. Ao retornar e tomar conhecimento do acontecido, padre Rickter mandou um ndio

    aos Piro para avis-los que os visitaria mas antes precisava ir at Laguna para buscar objetos de

    ferro. Mas, na trajetria, o padre adoeceu e no conseguiu completar sua jornada. Os Piro se

    mostraram insatisfeitos e ameaam matar o padre e seus aliados caso eles no recebam os objetos

    desejados. O padre pediu ento que os Piro viessem at a Misso dos Cunivos para pegar os objetos

    mas eles se recusaram e Rickter, para garantir a amizade com o grupo, se deslocou , chegou aos

    Piro, os presenteou e garantiu uma amizade temporria, como tudo na Amaznia.

    Entre os anos de 1690 a 1692, os Cunivo acompanham Rickter em vrias expedies

    pacificadoras dos Xbaro rebelados e comearam a demonstrar ao padre certa insatisfao com a

    situao pois o estavam ajudando e no recebiam nada em troca. Mais uma vez o padre sofreu com

    suas enfermidades e se ausentou da Misso.

    Seu retorno aconteceu em 1695, encontrando os ndios completamente descontentes e

    rebeldes. Um ndio de nome Enrique incitou os Piro e os Cunivo a se unirem contra o padre e logo

    aps uma breve conversa, assassinaram Rickter. Aps a morte do padre, os povos Piro, Cunivo e

    Chipeo fizeram uma aliana com outros grupos da regio para impedir a entrada de espanhis numa

    possvel misso punitiva pelo Ucayali. Em 1698, o Capito Diego de Armas comanda uma

    expedio mal sucedida contra esses povos que acaba com a morte de 90 ndios amigos que

  • Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. ANPUH/SP-USP. So Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

    participavam da expedio e mais 19 espanhis, entre eles o prprio Capito. Desde ento no se

    teve mais notcia dos povos do Ucayali.

    Mas ser que os povos indgenas da bacia amaznica foram completamente vencidos?

    Certamente no, a anlise das nossas fontes revelam que eles encontraram formas de forjarem um

    espao prprio de atuao, mostrando aos europeus que o sucesso ou fracasso de um projeto

    colonizador tambm dependia da sua vontade, como vemos aqui descrito:

    (...). Con grandsimo afan y sin poder dar paso llegu al paraje de los Asorunatoas

    (sic), (...) se atemorizaron con extremo, imaginando que eramos sus enemigos (...) y con

    este recelo huyeron muchos (...) les requerimos de paz, dicindoles no temiessen,

    pues antes solicitabamos su amistad para defenderlos de sus contrarios, y que yo los

    buscaba para hacerlos cristianos y hijos de Dios. (...) y dijeron que yo era su padre, que

    serian cristianos y nuestros amigos. Pregunt luego por los caciques, quienes di

    anzuelos, hachas y agujas (...). (Santos, 1986, p. 353) 2.

    Percebemos, atravs da observao deste caso e de outros no citados, como foram os

    avanos dos padres pelo Ucayali e tambm que as relaes de amizade entre os diversos grupos

    indgenas e os padres jesutas e o estabelecimento da redues s foram possveis nos momentos em

    que os ndios as aceitavam e consideravam que ganhavam alguma coisa com isso.

    A configurao dos acordos, a disposio das alianas ou as declaraes de inimizade entre

    os prprios grupos nativos ou entre eles e os europeus demonstravam que a colonizao da

    Amaznia e o avano missionrio na regio eram condicionados pela manuteno do equilbrio

    entre os interesses de ambos, tanto que a menor situao de descontentamento podia ter

    consequncias desastrosas para os ndios...

    (...) aport este Real una gran manga de indios gentiles xeberos de nacion (...).

    Salieron stos de sus tierras en prosecucion del servicio que avian comenado hacer

    los espaoles, ayudndoles en la guerra contra maynas rebeldes (...). Y aunque por este

    servicio pudieran esperar premio y correspondencia, y vivir alentados con essa esperanza, 2 As crnicas selecionadas para constituio do corpus documental dessa pesquisa foram publicadas pelo CETA (Centro de Estdios Teolgicos de la Amaznia) na dcada de 1980 e esto organizadas na coleo MONUMENTA AMAZNICA Serie B (missionrios) da Editora Abya-Yala, Iquitos, Equador. Trata-se de verses de textos anteriormente impressos na Espanha.

  • Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de Histria: Poder, Violncia e Excluso. ANPUH/SP-USP. So Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

    no solamente no la tenian, antes bien, posseidos de un horroroso recelo de los espaoles,

    andaban caidos, tristes, amilanados y llenos de congoja y llanto. Ponales en estos

    estremos el aver visto tantos indios ajusticiados, tantos cuerpos desquartizados en los

    rboles y horcas, tantos desorejados, muchos desnarigados, desgarronados otros,

    cortadas las manos y pis qual y qual, llagados y desollados con aotes los que mejor

    libraran (...).(Figueroa, 1986, p. 171)

    ... quanto para os conquistadores...

    Tierra tan rica de metales preciosos, posee el Xbaro (sic), (...) que al primer paso del

    espaol se da por ofendido y sale la venganza, unas veces de emboscada en lo ms fragoso de la

    serrania (...) otras de frente frente, impidiendo el paso fuerza de lanza (...) otras saliendo

    de paz fingida, que suele ser el tiro ms cierto con que suelen sair ricos de cabezas de

    espaoles y amigos (...). (Lucero, 1986, p. 333).

    A partir da investigao documental e bibliogrfica pretendemos analisar a administrao do

    padre Rickter nas redues do Ucayali entendendo que o contato, a fundao dos povoados e a

    permanncia dos padres entre os ndios representavam processos de mo dupla - pois reuniram em

    si sentidos e propsitos diferentes para ndios e missionrios - nos quais ambos tiveram seu espao

    de atuao, mas tambm restries dentro desses processos. Portanto, a rebelio de 1695, embora

    descrita pelos jesutas, evidencia o momento em que os indgenas assumiram o papel de agentes

    histricos e impuseram um limite tanto ao projeto cristo de converso quanto ao colonizador de

    dominao de terras e gentes. Fica evidente que esta pesquisa ainda no est completa pois nosso

    maior objetivo entender justamente como se mantinha, ou no, este equilbrio. Esperamos que at

    o final deste, estas questes estejam amadurecidas e para isso contamos com a ajuda dos presentes

    atravs de suas crticas e apontamentos.