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As misericórdias e as suas relações com os poderes político e eclesiástico: evolução histórica Maria Antónia Lopes Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 1

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Page 1: As misericórdias e as suas relações com os poderes ...20Miseric%F3rdias%20e%20as%20... · •Inicialmente, o marquês de Pombal não visou a proteção das misericórdias. Pelo

As misericórdias e as suas relações com os poderes político

e eclesiástico:evolução histórica

Maria Antónia Lopes

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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D. Leonor – Misericórdia de Lisboa

D. Manuel I – promoveu o modelo por todoo reinoUm mito: Fr. Miguel Contreiras (1ª refª:1574)

• A fundação de misericórdias por todo oreino inseriu-se num “esforço da Coroa(Estado) em organizar a assistência”. Trata-se, pois, de uma ação política. A origemdas misericórdias integrava-se ainda nasnovas formas de espiritualidade edevoção dos leigos.

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Filipe III em 1627

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Natureza das misericórdias e sua tutela(sécs. XVI-XXI)• Desde as origens a 1979: confrarias de natureza

civil sob imediata proteção do Estado, constituídaspor mandato ou autorização do monarca/governoe com compromissos obrigatoriamente aprovadospelo poder central.

• Desde 1979 à atualidade: confrarias de naturezacanónica sob imediata proteção da Igreja,constituídas por mandato ou autorização doordinário diocesano e com compromissosobrigatoriamente aprovados pelo bispo.

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Poder Político/Poder Eclesiástico

• Até aos finais do séc. XX, as misericórdias eramtuteladas pelo Estado e estiveram sempreisentas da jurisdição eclesiástica.

• Os bispos não tinham sequer capacidade deescolher os sacerdotes que asseguravam o cultonas igrejas das misericórdias. Eram as Mesas queos contratavam, considerando-os seusfuncionários.

• Como qualquer outra pessoa, os bispos sópodiam entrar numa Misericórdia se para talfossem convidados ou autorizados.

• Isto é, as misericórdias eram completamenteautónomas da fiscalização da Igreja.

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Poder Político/Poder Eclesiástico

• Durante o Estado Novo os bispos começam areivindicar poderes sobre as misericórdias, masSalazar nunca lhos conferiu, limitando-se, apartir de 1945, a permitir-lhe que fiscalizassemas atividades religiosas, mas só essas, pois nãotinham qualquer poder de intervenção nasatividades de proteção social, no património,orçamentos, contas, nomeação de mesas ouaprovação de compromissos.

• As misericórdias relacionavam-se com ogoverno (através do governador civil).

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• As Misericórdias na mira do poder político (século XVIII)• Antes do reinado de D. José (1750-1777), atutela política era pouco interveniente dirigida amisericórdias específicas e quase semprerespondendo a denúncias feitas por elementosinternos. A governação pombalina mudou esterelacionamento, impondo-se uma forteintervenção da Coroa.• Inicialmente, o marquês de Pombal não visoua proteção das misericórdias. Pelo contrário, viunelas uma ótima fonte de capitais para aprossecução dos seus objetivos de governo. Masdepois protegeu-as.

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• As Misericórdias na mira do poder político (século XVIII)• As misericórdias estavam corroídas porilegalidades, compadrios, créditosmalparados e obrigações pias em excesso.

• O Estado nem as eliminou nem ignorou oproblema, mas criou-lhes condições para asua sustentação financeira e boas práticassociais, sob controlo estrito dos governos.

• Isto passou a ser exercício normal dagovernação até ao século XX.

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• As Misericórdias na mira do poder político(século XIX)

• A lei vigente na monarquia constitucional(1834-1910) acentuou a vigilância estrita quepretendia impedir a apropriação individual dosrecursos das santas casas.• Era obrigatório apresentar e aguardaraprovação ministerial de estatutos,orçamentos e contas anuais, despesasextraordinárias, resgate de aplicaçõesfinanceiras, aquisições de bens imobiliários eaté contratações.

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• As Misericórdias na mira do poder político(século XIX)

• Contudo, as autoridades fiscalizadores –governadores civis e administradores deconcelho – podiam ser os principaisinteressados em fechar os olhos àsirregularidades, se não para proveito próprio,pelo menos para os eleitores dos partidos querepresentavam e que os nomeavam, o quegerava níveis de corrupção elevados.

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• As Misericórdias na mira do poder político (1ª República e Estado Novo)

• O grau de ingerência do Estado cresceu muito,sobretudo depois do golpe de 1926, mas aRepública não estabeleceu ruturas com a políticaanterior ao nível do enquadramento legal davigilância.

• Manteve-se a inspeção das misericórdias no querespeita a receitas e despesas, atividadesdesenvolvidas, escolha dos órgãos diretivos,redação de compromissos – tudo isto podendo sersancionado com a dissolução das mesas gerentes,substituídas por comissões administrativas.

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• As Misericórdias na mira do poder político (1834-1974)

• Em suma: o domínio das misericórdias por partedo governo central estava assegurado pela lei eera manobrado tanto pelos ministros como pelosnotáveis locais.

• A grande arma utilizada foi a capacidade legal deexoneração das mesas com a consequentenomeação de comissões administrativas, o quesignificava a supressão das capacidades eletivasdos membros destas instituições e foimecanismo abusivamente utilizado.

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• Comissões administrativas entre 1835 e 1945 (nos médios mínimos)

• )Regime Duração Em cada ano

Monarquia Liberal 2,7 anos 3,6 misericórdias

1ª República 2,4 anos 7,1 misericórdias

Ditadura 9,4 anos 13,5 misericórdias

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• As Misericórdias na mira do poder político (1834-1974). Conclusão

• Na Monarquia Liberal e na 1ª República, ocontrolo político das misericórdias foi umaarma da luta partidária.

• Com o Estado Novo, regime de partido único,as misericórdias perderam interesseenquanto agentes eleitorais, mas eram umapoderosa arma de enquadramento evigilância políticos.

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• As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI)

• Por meados do século XX difundia-se a ideia deque as misericórdias sempre tinham sidoinstituições da Igreja Católica, responsabilizando-se os governos liberais e a Primeira República porterem alterado a natureza dessas confrarias – oque é totalmente erróneo.

• Mas assim o proclamou o arcebispo de Évora em1958. E o “regresso” à tutela eclesiásticacomeçou a ser defendido, adulterando-se assim averdade da história das misericórdias.

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• As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI)

• Em 1974 e 1975 os hospitais dasMisericórdias passaram a ser administradospor comissões nomeadas pelo governo. Apropriedade dos edifícios manteve-se (nãohouve nacionalização), mas foram ocupadosa título gratuito.

• Reação das Misericórdias: V Congresso emViseu (1976).

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• Objetivos do V Congresso das Misericórdias (Viseu, 1976):

1. Explicitar claramente a natureza dasmisericórdias, à luz da sua história.

2. Renová-las para que readquirissemdinamismo.

3. Criar uma confederação nacional paraautodefesa e afirmação.

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Congresso de 1976: explicitar claramente anatureza das misericórdias à luz da sua história.O que se fez?

• Não se recorreu a historiadores. Os própriosorganizadores se encarregaram da tarefa,recorrendo aos argumentos do padre QuelhasBigotte e do arcebispo de Évora (anos 1950).

• Assim, o 5º Congresso das Misericórdiasreivindicou que “seja reconhecida a naturezajurídica tradicional de irmandades ou confrariascanonicamente erectas para a prática da caridadecristã”. Tremendo erro histórico.

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As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI)

Congresso de 1976: Criar uma confederaçãonacional. O que se fez?

• Foi criada a União das Misericórdias Portuguesas(UMP) à qual se deu ereção canónica em Janeirode 1977, concedida pelo bispo de Viseu .

• Presidente: o provedor da Misericórdia de Viseu,padre Virgílio Lopes.

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As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI). Consequências do 5º Congresso

Logo a seguir à constituição da UMP, o padre VirgílioLopes movimentou-se por todo o país promovendoreuniões nas santas casas, insistindo em afirmar quea natureza das misericórdias era eclesial.

Por isso, explicava, era necessário aprovar novoscompromissos e fazê-los aprovar pela autoridadediocesana – novidade absoluta em termoshistóricos.

As misericórdias acolheram estas diretivas.

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As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI). Consequências do 5º Congresso

No 1º Estatuto das IPSS (1979) as misericórdiassão definidas como “associações constituídas naordem jurídica canónica”.“Adquirem personalidade jurídica e são reconhecidascomo instituições privadas de solidariedade social,mediante participação escrita da sua erecçãocanónica, feita pelo ordinário diocesano aosserviços competentes do Ministério dos AssuntosSociais”.

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As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI). Consequências do 5º Congresso

• O 2º Estatuto das IPSS (1983) manteve adefinição de 1979 e afirmava claramente que asmisericórdias podiam ser extintas peloordinário diocesano ou pelos tribunais.Atenuou ainda mais a tutela administrativa.

• Estava consumada a transformação danatureza das misericórdias portuguesas, quepassavam a ser o que nunca haviam sido emquase 500 anos da sua história e poucos seterão apercebido disso.

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As Misericórdias na mira do poder eclesiástico (sécs. XX-XXI). Consequências do Congresso de 1976

• Como havia poderosos interesses em jogo ese evoluiu rapidamente no sentido de umaestrita dependência dos bispos que violava atradicional autonomia das misericórdias, logoem 1988 a UMP e a CEP entraram emconflito, questão penosa e que não está aindaresolvida.