as mães de 30 mil filhos

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56 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2010 O MEMORIAL DOS DESAPARECIDOS REÚNE DEZ MIL NOMES DE PESSOAS ASSASSINADAS PELO REGIME MILITAR DESAPARECIDOS

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Matéria escrita para a Revista Primeira Impressão e que conquistou o XXVII Prêmio de Jornalismo e Direitos Humanos da OAB/RS.

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Page 1: As mães de 30 mil filhos

56 | PRIMEIRA IMPRESSÃO | JULHO/2010

O MEMORIAL DOS DESAPARECIDOS REÚNE DEZ MIL NOMES DE PESSOAS ASSASSINADAS PELO REGIME MILITAR

DESAPARECIDOS

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AS MÃES DE 30 MIL FILHOS

A DITADURA MILITAR NA ARGENTINA FEZ NASCER UM DOS MAIORES SÍMBOLOS

DE RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA. AS MADRES DE PLAZA DE MAYO LUTAM PARA MANTER VIVA A MEMÓRIA DOS FATOS E DE TODOS QUE DESAPARECERAM NO PERÍODO

TÁRLIS SC

HN

EIDER

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DESAPARECIDOS

Existe uma lembrança que não se calcula pelos dias da se-mana ou pelos meses do ano, pois de tanto tempo que tem, nem vale mais a pena contar. Uma luta cuja causa

ultrapassou a dimensão do tempo. Seus danos até poderiam ser medidos ao longo da história, mas jamais terão o tamanho da dor da saudade. Las Madres de Plaza de Mayo são mulheres para quem, como no poema de Jorge Luis Borges, não há pressa, nem demora. Numa quinta-feira, 30 de abril de 1977, pela primei-ra vez 14 mães foram à frente da Casa Rosada para cobrar do governo o paradeiro de seus filhos. O gesto se transformou em um movimento e foi repetido aproximadamente duas mil ve-zes, todas as quintas-feiras. Essas mães, munidas apenas de seus pañuelos brancos, até hoje realizam a caminhada, uma espécie de marcha sem fim que se constitui em um dos maiores símbolos de resistência na América Latina.

Na Argentina, o regime militar, entre 1976 e 1983, condenou 30 mil vidas. Quiseram os ditadores que o desaparecimento vi-rasse esquecimento, mas o que era pra ser castigo virou luta. A morte que não chega é vida. O destino dos desaparecidos foi dado pelos militares, que arrancaram suas vidas da realidade e os colocaram em lugar nenhum. Nesse período, houve mães que perderam um, dois, três filhos. Outras, 30 mil. “Quando o go-verno constitucional se instaurou, e não foi feito nada, muitas desanimaram e ficaram em casa, pois esperavam somente por seus filhos. Enquanto nós somos mães dos 30 mil desaparecidos e por isso nossa luta continua igual”, revela Célia Prosperi, uma das mães da Praça de Maio.

Quando a vida age cruelmente, os gestos passam a ser sutis, calculados. Célia tem 85 anos, olhar sereno e voz firme. Os 33 anos de militância transformaram-na em uma outra mulher, com o peso de ser mãe de milhares de desaparecidos. O movimento não se

fortalece nos atos, embora importantes e significativos, mas nas pessoas. “A força está aqui!”, responde a madre, com a proprieda-de de quem há mais de três décadas vai à Praça de Maio semanal-mente. “A quinta-‐feira é um dia de encontro com nossos filhos”, destaca Célia, denotando, para elas, o significado de ir à Praça. Além disso, ressalta que é uma forma de protesto e um gesto de legitimação da memória do terrorismo de Estado na Argentina.

Existem fatos que os olhos não veem, e no fundo é até melhor assim, mas que o coração sente. Por debaixo do pañuelo branco, escondidos detrás do verde olhar de Célia, há dias, meses e anos que habitam o silêncio solitário da saudade. Um olhar do qual o tempo tratou de arrancar as lágrimas, mas que se revela emotivo na fala, com a voz diferente, desta vez embargada pela lembran-ça. A madre entrou no movimento por conta do sumiço de sua filha, Maria Cristina Prosperi. Célia tivera anteriormente o marido sumido e considerava-se viúva, pois assim aprendeu. Mas não ha-via, e não há, para ela, um adjetivo que expresse a perda de um filho. A última lembrança tem data marcada: quarta-‐feira, 30 de março de 1977. Maria Cristina foi à Faculdade de Filosofia, em La Plata, e nunca mais voltou. Esse dia marcou o último encontro dos olhos verdes da mãe com os da filha, e aquilo que seria o fim, no caso argentino, era apenas o começo.

“A morte caduca. O castigo, a desaparição, não. Esse é um deli-to que não se extingue nunca, pois é um ato contra a humanidade”, defende Célia. Platão dizia que o tempo é a imagem móvel da eter-nidade, e as madres lutam, justamente, por essa eternidade. Suas iniciativas, gestos e protestos buscam preservar a memória de seus filhos, vítimas de uma das mais cruéis ditaduras latino-‐americanas. Há coisas que pertencem à natureza da existência. A morte, por exemplo: por mais incompreensível e dolorosa que possa ser, re-presenta o fim de um ciclo. Nos habituamos a encarar a ideia da

TEXTO DE ANA CRISITINA BASEI E RICARDO MACHADO | FOTOS DE BRUNA SCHUCH E TÁRLIS SCHNEIDER

Alguien ya contó los días.Alguien ya sabe la hora.

Alguien para quien no hayni premuras ni demora.

(Milonga de Albornoz, Jorge Luis Borges)TÁ

RLIS SCH

NEID

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CÉLIA PROSPERI MILITA NO

MOVIMENTO DESDE 1977

BRUNA SCHUCH

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finitude, nos acostumamos com a morte, diferente do desapareci-mento, quando a única certeza é a incerteza. A luta se reforça não apenas pela militância semanal; para as madres, os filhos vivem na memória, nas ações e na postura de rechaçar qualquer tentativa de fechamento do ciclo. “Aceitar dinheiro é decretar uma data de morte para nossos filhos. Mas não sabemos nem quem os matou e nem o que fizeram com eles”, enfatiza. Os memoriais e túmulos também não são bem-vindos, pois de alguma forma remetem a esse encerramento, tão combatido pelas madres.

O movimento tem em seus personagens a perseverança que o mantém vivo. Das madres, apenas duas não contam 80 anos. A mais velha tem 95. Na primeira vez, eram pouco mais de uma dúzia, houve épocas em que duas mil estiveram na Praça. Atual-mente, falta-lhes coragem para contabilizar quantas mães ainda restam. Mas o movimento busca perpetuar-se no tempo.

TESTEMUNHAS DA TORTURAEm Rivadavia, bairro retirado do centro de Buenos Aires, há

uma antiga escola naval que esconde, atrás de suas grossas e altas grades, histórias das quais só sobraram as salas, com suas portas e janelas mudas. A falsa paz existente no local abriga o segredo das vidas interrompidas pelo regime. No lugar frequentado ante-riormente por torturadores e vítimas, apenas árvores e prédios vazios compartilham a solidão. As velhas paredes, depois de pre-senciarem tudo que passou durante a ditadura, aprenderam a não confiar nos homens e, por isso, mantêm-‐se caladas. Dos militares, ficou apenas a estética espartana e a triste lembrança de sua estada. Porém, há uma nova perspectiva para o lugar. Os tristes e sangrentos episódios fazem parte do passado, pois o cárcere virou o Espaço Cultural Nuestros Hijos, onde são promovidas apresen-

tações artísticas, peças de teatro e oficinas, atividades mantidas pela fundação das Madres de Plaza de Mayo. “Isso é o que quere-mos, num lugar onde houve tanta morte e tortura, nós colocamos a vida”, conta Célia.

Os tempos pós-‐modernos escondem uma calma que só existe na aparência. A perversidade é inerente à história humana e se apresenta de formas cada vez mais sofisticadas e sutis. Célia Pros-peri lembra que, na semana da entrevista, uma matéria de jornal trazia na manchete a fala de um ex-‐militar: “O pior foi deixar os subversivos vivos”. A frase ilustra, de alguma maneira, que nem todo o sofrimento pelo qual o país foi submetido bastou para que esse tipo de pensamento fosse extinto da sociedade.

Célia mostra em seu discurso uma doçura de quem aprendeu a lutar pela vida. São 85 anos que se revelam não somente nas palavras, marcadas por uma existência combativa e determinada, mas nos gestos e movimentos, que têm a rapidez que a idade lhe permite. Talvez a maior cicatriz dessa madre seja a saudade, que, diferente de todas as outras, não se fecha, pelo contrário, au-menta a cada dia. “Não creio que se possa explicar, nós sentimos a falta deles sempre”, confessa.

A ausência, para as madres, é a presença mais constante. Essa falta é o combustível que alimenta as ações dessas mulheres que viram o movimento crescer dia a dia, além de celebrarem as con-quistas ligadas aos direitos humanos, tornando-se uma importante ferramenta política social. “Nesse tempo todo, crescemos fazen-do as coisas que nossos filhos fariam”, orgulham-‐se, sustentando que se transformaram em filhas de seus filhos. Assim, essas mães continuam firmes na luta pela lembrança, pois, como sintetizou Borges, em seu poema Milonga de Albornoz, “el tiempo es olvido

y es memória.”

A PLAZA DE MAYO, QUE FICA EM FRENTE À SEDE DO GOVERNO FEDERAL, É IMPORTANTE PALCO POLÍTICO DA HISTÓRIA DA ARGENTINA

TÁRLIS SC

HN

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A Asociación Madres de Plaza de Mayo, liderada pela pre-sidente Hebe de Bonafini, desenvolve ações voltadas para a educação, a cultura, os projetos sociais e a democratização do conhecimento. Além do Espaço Cultural Nuestros Hijos, elas mantêm uma biblioteca popular, uma livraria e, há dez anos, uma fundação universitária (conhecida como Universi-dad Popular Madres de Plaza de Mayo), que oferece os cursos de graduação em Direito, Serviço Social e História. Os estu-dantes pagam mensalidades reduzidas, e as aulas se realizam em duas sedes em Buenos Aires. A iniciativa oportunizou a formatura de mais de dois mil alunos. Há também o projeto profissionalizante pelo qual pessoas de baixa renda aprendem atividades na área de construção civil e trabalham na edi-ficação de habitações populares. Esses operários ainda são estimulados a estudar, para concluir ensino fundamental e médio, depois do horário de trabalho. São reconhecidas e lau-readas por institutos e universidades de diversos países do mundo. Entre mais de 90 prêmios conquistados por elas, está o UNESCO-‐ Educação pela Paz.

MONUMENTO: Em frente ao Rio da Prata, existe um monu-mento para lembrar as vítimas do terrorismo de Estado. No lo-

cal, em grandes muros, há o nome completo, a idade e o ano de sequestro de dez mil pessoas, desaparecidas ou assassina-das entre 1969 e 1983. A iniciativa é do governo argentino, que continua trabalhando junto aos familiares para encontrar mais informações sobre outros desaparecidos. O lugar, ao norte de Buenos Aires, foi escolhido por ser o destino de muitos presos assassinados pelo regime. Da margem, as pessoas eram jogadas ao rio. Na extensão de 14 hectares, há o monumento, composto por quatro muros repletos de nomes, cuja disposição apresenta o formato de um corte, para simbolizar uma ferida aberta.

FILHOS: Os militares também foram responsáveis pela mu-dança no destino de crianças. Cerca de 500 bebês, filhos de mães sequestradas, foram entregues para outras famílias e muitos outros ficaram órfãos. Ao longo dos anos, dois importan-tes movimentos também lutaram pela causa: as Abuelas (avós) conseguiram encontrar, resgatar a identidade e devolver para as famílias de origem cerca de 100 crianças. O movimento dos Hijos (filhos) existe há 13 anos e tem sedes em diversas pro-víncias do País; pregam a justiça política, reparação social e punição aos torturadores. Para eles, o sofrimento de seus pais não pode ficar no esquecimento e no silêncio.

PRESENTE, PASSADO E FUTURO DAS MADRES

“Essa é a pequena história de quem acredita, simplesmente. Acreditar era o que precisávamos

para ir à Argentina, entrevistar uma madre de Maio e trazer o relato de quem viveu um dos períodos mais sombrios da repressão militar. Assim a equipe foi montada: dois fotógrafos, Bruna e Tárlis, e dois repórteres, Ana e Ricardo. O grupo partiu de Porto Alegre numa quinta-feira à noite, para realizar a entrevista na manhã seguinte. Era o começo da jornada que fez a gente descobrir um pouco de Buenos Aires e muito de nós mesmos. O que deu certo está expresso na matéria. O que deu errado, contamos agora. Antes de começar a entrevista, tentamos resolver a burocracia da autorização de uso de imagem e depoimento, e o que parecia simples, tornou-se uma grande ansiedade, pois foi devolvida somente ao fim da conversa. Quase

uma hora de entrevista deu tempo suficiente para fazer diversas fotos da madre. Tudo em vão. Ela estava sem seu pañuelo e isso significou fazer as fotos novamente. Ainda queríamos fotografá-la na Praça. A resposta foi: “Venham na quinta-feira, que estaremos lá”. Os imprevistos não haviam impedido uma boa coleta de dados e imagens, mas almejávamos mais. Fomos à Rivadavia, num centro de tortura. Portões fechados. Entramos mesmo assim, e nossa incursão durou o tempo de o segurança nos retirar do local.Ao cabo de tudo, a experiência serviu para que um repórter aprendesse com o outro, um a ser mais “hard news”, e o segundo a ser mais “literário”. E ambos descobriram nos olhares de Bruna e Tárlis as lembranças mais transformadoras, que ficarão para sempre registradas nas fotografias dessa dupla.”

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

BRU

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SC

HU

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