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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
AS ILUSTRAÇÕES DE GUSTAVE DORÉ NOS CONTOS DE FADAS DO SÉCULO XIX: O SENTIDO DE UNIDADE ENTRE O DESENHO E A
NARRATIVA
MORAES, FABIANA MARIANO (1); SOUZA FILHO, ERASMO BORGES DE. (2)
1. UEFS – PPGDCI
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Desenho, Cultura e Interatividade – PPGDCI, da Universidade Estadual de Feira da Santana, UEFS. Formação em Letras com Francês e
Especialização em Desenho, com ênfase em Registro e Memória Visual pela UEFS, BA.
2. UFPa/UNAMA Doutor em Comunicação e Semiótica. Professor da Faculdade de Artes Visuais, no Instituto de Artes
da Universidade Federal do Pará, UFPA, e do Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem da Universidade da Amazônia, UNAMA, e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Comunicação,
Linguagens e Cultura.
RESUMO
O artigo apresenta o desenho como importante ferramenta na significação do texto literário. A composição intertextual, sincrética, desse importante elemento visual, compõe com o literário uma unidade de sentido, por meio de arranjos semisimbólicos. Personagens e cenários são enriquecidos e reiteram a carga emocional das historias. Para tanto, se apresenta como objeto trechos do livro Contos de Perrault, escrito por Charles Perrault (1628-1708), reeditado no final do século XIX, cuja versão contém ilustrações de Gustave Doré (1833-1853) elaboradas especialmente para os Contos de Fadas de Perrault, cuja análise se faz com base na Semiótica Discursiva. A partir disto, traremos, para revestir o corpo desta pesquisa, um apanhado teórico que nos norteará no caminho a ser seguido para a constituição da respectiva análise. É com esta disposição, que a semiótica Greimasiana se faz obrigatória para o desenvolvimento deste organismo que é a nossa pesquisa embasada por Diana Barros e José Luis Fiorin. Não deixando de incorporar, ao estudo, alguns pensamentos considerados fundamentais para a ratificação da proposta aqui trazida, tais como a configuração dos contos de fadas de Bruno Bettelheim. Pareceres outros, quando necessário, também constituirão o corpus deste trabalho.
Palavras-chave: Desenho. Semiótica. Contos de Fadas. Gustave Doré.
1 INTRODUÇÃO
Em geral, os livros que trazem histórias de Contos de Fadas, apresentam imagens
que revelam a capacidade humana de criação de mundos mágicos e evidenciam que o
saber pautado na figuração1, permanece como insumo necessário a criação do efeito de
sentido ou ilusão de realidade, pondo em foco o universo simbólico presente nas narrativas
desse gênero. As ilustrações dos livros dos contos de fadas tem a função de tornar visual,
enquanto ilusão referencial, o discurso que se concretiza nas narrativas, a partir o campo
das ideias.
Enquanto investimento figurativo, o desenho é a primeira forma de manifestação
gráfica, plástica, estética e da cultura na história da humanidade. É uma das “primordiais
formas de expressão deixadas pelos vestígios e produtos culturais, contendo importantes
revelações da luta do homem em manisfestar a sua evoluçãode” (SOUZA FILHO, 2012). Ele
traz consigo a idéia de perpetuar, de registrar, tornando evidente o seu valor cognitivo e de
ressignificação.
[...] é uma das primordiais formas de expressão deixadas pelos vestígios e produtos culturais, contendo importantes revelações da luta do homem em manifestar sua evolução. É uma forma, digamos quase arquetípica, que surge como forma de comunicar aspectos do mundo circundante, de sua experiência, sua memória e sua imaginação, em uma relação de espaço-tempo imediato. É um grande esforço de abstração, a partir da socialização e da comunicação, na tentativa de fixar, em um suporte físico duradouro, situado fora do seu próprio cérebro, fragmentos de suas percepções e experiências no mundo. (SOUZA FILHO, 2013)
Assim, a imagem, e o desenho em particular, mediados pelos sistemas simbólicos e
pela linguagem na comunicação exercem importante papel na produção cultural.
Este trabalho tem como proposta abordar a relação de intersemiose entre o desenho
e o texto escrito, em função da articulação dessas linguagens utilizadas para um único
propósito enunciativo, o de entendimento do texto literário na sua dimensão fantástica. Tem
como objeto os Contos de Fadas de Charles Perrault publicados no final do século XVII e
reeditados no século XIX com o título de “Contos de Perrault”, contendo as ilustrações de
Gustave Doré, com desenhos bem elaborados.
Charles Perrault (1628-1703) foi escritor, advogado, poeta e um ativo intelectual da
corte francesa, ministro de Colbert e do rei Luís XIV. Teve seu reconhecimento tanto pelo
seu status intelectual, quanto e principalmente como o iniciador da Literatura Infantil
(COELHO, 1991). Seus contos foram ilustrados dois séculos depois por Paul Gustave Doré
(1832-1883), que com suas gravuras, colocou os contos de Perrault ainda mais em
evidência.
Doré por sua vez, além de pintor, escultor, cartunista e desenhista, foi um importante
ilustrador de livros, com grande produção e tendência à imaginação criativa, construindo um
dos mais importantes acervos de obras do gravurismo. Aos 14 anos já era ilustrador
profissional e trabalhava para as grandes editoras francesas de revistas humorísticas, dando
seguimento aos seus estudos no Liceu Carlos Magno, em Paris. (LA FONTAINE, 2012)
O texto linguístico e a ilustração são objetos semióticos que se caracterizam por
veicularem tanto informação quanto significação. Esse processo ocorre na articulação entre
plano de expressão e plano de conteúdo, enquanto um sistema sincrético, acionando mais
de uma linguagem de manifestação (GREIMAS; COURTÉS, 1990). Texto e imagem, ao
assumirem o estatuto de texto sincrético, constituem-se num todo de significação, ou seja,
em “um único conteúdo manifestado por diferentes substâncias da expressão” (FIORIN,
2009, p.35). Assim, a leitura do texto literário, articulado com as imagens, constitui-se em
“relações que se instauram entre a instância da enunciação, responsável pela produção e
pela comunicação do discurso, e o texto-enunciado” (BARROS, 2005, p.15).
Dessa forma, tem-se “uma única enunciação sincrética, realizada por um mesmo
enunciador, que recorre a uma pluralidade de linguagens de manifestação para constituir um
texto sincrético” (FIORIN, 2009, p.38). Na concepção de Jean-Marie Floch, essa é uma
estratégia global de comunicação.
En lo que respecta a los procedimientos de sincretización, se rechazará primeramente la idea de que para tal enunciado sincrético hay una enunciación verbal, una enunciación gestual, una enunciación visual... El recurso a una pluralidad de lenguajes de manifestación para constituir un texto sincrético depende, creemos, de una estrategia global de comunicación sincrética que "administra", si se quiere, el continuo discursivo resultante de la textualización y elige "verter" la linealidad del texto en sustancias diferentes;[...] (FLOCH, 1982)
2
No dizer de Fiorin “do quanto tem sido discutido o conceito de sincretismo em nossos
encontros e congressos, para dizer que estamos ainda longe de chegar a uma definição
clara dos procedimentos de sincretização” (FIORIN, 2006, p.5), ao invés de se falar em
semióticas sincréticas, melhor seria situar o texto como sincrético (FIORIN, 2009),
considerando a diversidade de linguagens na construção do todo de sentido.
Martine Joly ao propor fundamentos para a análise da imagem considera que a
imagem deve falar tanto quanto, e junto à narrativa escrita, uma vez que é “[...] injusto achar
que a imagem exclui a linguagem verbal, em primeiro lugar, porque a segunda quase
sempre acompanha a primeira na forma de comentários, escritos ou orais, títulos, legendas,
artigos [...] conversas, quase ao infinito” (1996, p.116).
A relação entre o texto linguístico e o texto visual e o discurso verbo-visual também é
manifesto, e tem profundas implicações sobre o interesse no estudo da ilustração nos
Contos de Fadas: “Ver precede as palavras. A criança olha e reconhece, mesmo antes de
falar”. (BERGER, 1999, p.9). As riquezas que trazem em suas ilustrações, os Contos de
Fadas emergem, assim, na imaginação de quem os contam, os ouvem, os ilustram e os
vêem.
No período do Realismo, Doré descreve as suas imagens ao gosto da burguesia que
ainda cultuava a estética romântica. Seus desenhos cheios de detalhes e sua majestosa
destreza em manipular texturas, utilizando a técnica da Litografia3, o ilustrador francês
conseguiu transportar o leitor para uma atmosfera quase sobrenatural por meio das suas
imagens em preto e branco, marcadas pelas luzes e sombras, das quais retravam os seus
personagens. Doré foi mais que um mero ilustrador, foi um tradutor de palavras em
imagens. Seu estilo é carregado de poesia e drama que mostram expressões e gestos
humanos dificilmente reproduzidos por outro artista, suas criações contribuíram com o
elemento fantástico dos seus desenhos que conflitavam com estética realista e objetiva
daquela época. (LINARDI, 2007)
Das obras magnifics e sombrias de Dante e das belas ilustrações das Fábulas de La
Fontaine, incluindo os Contos de Fada de Perrault, muitas obras literárias reconhecidas
foram ilustradas por Doré, que continuam alimentando gerações através dos séculos. Dentre
algumas obras ilustradas, se podem citar as seguintes: “Contos Divertidos” (1856), de
Honoré de Balzac (1799-1850), “Don Quixote” (1857), de Miguel de Cervantes (1547-1616),
“Inferno de Dante” e “Divina Comédia” (1861), de Dante Alighieri (1265-1321), “Fábulas”
(1867), de Jean de La Fontaine (1621-1695). (LA FONTAINE, 2012).
A narrativa precisa de Charles Perrault induziu inúmeros artistas a lançar-se ao
desafio de tornar visíveis seus personagens. Baseando-se no conto do escritor francês, os
ilustradores foram dando forma a seus personagens mergulhando no desenrolar de um
mundo fantástico. Segundo Ítalo Calvino:
[...] a imagem é determinada por um texto escrito preexistente (uma página ou uma simples frase com a qual me defronto com a leitura), dele se podendo extrair um desenrolar fantástico tanto no espírito do texto de partida quanto numa direção completamente autônoma. (1990, p.105)
Dessa forma, os ilustradores transpõem, em forma de imagens que são inseridas no
texto, a quase totalidade de informações que o conto literário apresenta.
Em 1861 Doré ilustrou os personagens dos Contos de Fadas especialmente para as
histórias de Perrault, escritas em 1627, que resultou em 1883 na publicação do livro “Les
Contes de Perrault”, em Paris. Nele são encontradas as belas histórias de contos escritos
pelo francês Perrault seguidas das ilustrações de Gustave Doré, dando assim luz à
mensagem escrita. Embora separados por séculos, há nas imagens, a junção do imaginário
popular das ilustrações feitas no século XIX com a obra de Charles Perrault no século XVII.
Doré reconta nas suas ilustrações os Contos de Perrault através da Linguagem da
Arte; as ilustrações, enquanto objetos semióticos, além de comunicar e de significar,
possibilitam ao leitor o prazer, por meio dos jogos fascinantes de luz e sombras, das formas
e das cores, o estimulo a fantasia e a imaginação. Nas ilustrações dos Contos de Fadas por
Doré, encontram-se: “A Bela Adormecida do Bosque”, “O Pequeno Polegar”, “Cinderela”, “O
Gato de Botas” e “Chapeuzinho Vermelho”.
2 FRAGMENTOS DA RELAÇÃO TEXTO-IMAGEM NA CONSTRUÇÃO
DO SENTIDO
A análise semiótica do texto verbo-visual torna-se possível como uma unidade de sentido,
porque parte da concepção de que é no “princípio do primado epistemológico da relação
sobre os termos que está a base do procedimento semiótico [...] como método de análise
dos discursos e das práticas significantes” (LANDOWSKI, 2002, p.3). É na relação que o
mundo ganha sentido e torna-se analisável, a partir de sua visão como um universo
articulado.
Além de o significado ser construído na relação, a “maneira como vemos as coisas é
afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos” (BERGER, 1999, p.10). Assim como
olhar é um ato de escolha, no dizer de Berger, essa escolha se dá a partir do que tanto a
imagem quanto o texto evocam. Indo além, “O que se vê contagia o que se lê” e “O que se
vê transforma o que se lê” (ANTUNES, 2007, p.128), numa clara referência ao status que
imagem possui em interseção com o texto escrito.
No conto intitulado “A Bela Adormecida do Bosque”, é narrada a história de uma
princesa que, por conta de uma maldição, o seu destino ao completar 15 anos é o de
“morrer” ao espetar o dedo numa roca. A maldição só é quebrada pelo encontro com o
príncipe encantado, descrito a seguir.
[...] Entra num quarto todo dourado e vê sobre a cama, cujas cortinas estavam afastadas, o mais belo quadro que seus olhos tinham contemplado até então: uma princesa que parecia ter quinze ou dezesseis anos e cuja beleza resplandecia com uma luz quase que divina. Ele se aproxima, [...], e se ajoelha perto dela. E então, como havia chegado ao fim o encantamento a princesa despertou e, olhando-o com ternura e bastante ousadia [...], disse-lhe: “É você, meu principe?”. (PERRAULT, 1985, p.102-105)
Doré ilustra (Fig.1) essa passagem do conto a partir do título e dos detalhes descritos
na narrativa, em que a composição da cena detalha o momento do encontro do principe com
a princesa.
Figura 1: A Bela Adormecida do Bosque. (Fonte: PERRAULT, 1985, p.109)
Observa-se nessa cena a profusão entre o quarto e o bosque, num cuidadoso jogo
de claro e escuro, cujos tons de cinza particularizam em detalhes a condição nobre da
princesa. A profusão é um visível marcador de tempo, divinizado pelos raios de luz, que ao
mesmo tempo em que penetram pelo bosque, pela direita (Leste), parecem transpassar a
janela, reiterando a passagem da inocência para despertar mulher, expressa na sua
gestualidade despojada. É a espera da consolidação de um sonho que se descortina no
amanhecer de uma nova vida, com o príncipe, em uma atmosfera de encantamento, de
radiante beleza, no despertar da sua feminilidade.
Outro bom exemplo da relação verbo-visual é o conto “Cinderela” (Fig. 2), que narra
a história de uma bela jovem que sofre maus tratos e discriminação de sua madrasta,
diferenciando-a de suas filhas. Ela é proibida de ir ao baile no castelo do Rei. Uma fada
madrinha aparece para ajudá-la realizar o desejo, mas com certas restrições. Como num
toque de mágica a fada transforma as maltrapilhas roupas de Cinderela num belo vestido,
dando-lhe um par de sapatinhos de cristal. Ela vai ao baile numa bela carruagem, mas teria
que voltar a meia noite, pois findaria o encantamento. No baile, ela rouba a cena
encantando o principe com sua beleza. Ao soar meia noite, ela sai às pressas e deixando
um dos sapatinhos, que servirá para o principe encontrá-la. (PERRAULT, 1985)
Figura 2: Cinderela e o seu sapatinho de cristal. (Fonte: PERRAULT, 1985, p.123)
Perrault, nesse conto, descreve a burguesia do século XVII e Doré dois séculos
depois (século XIX) consegue traduzir a concepção estética de Perrault num desenho
repleto de detalhes (Fig.2), cujos simbolismos enriquecem sobremaneira a narrativa verbal.
Nele, tem-se o exato momento em que Cinderela experimenta o sapatinho diante de todos,
como expressa o fragmento do texto: “Fez Cinderela sentar-se e calçou nela com toda a
facilidade o sapatinho, que se ajustou ao seu pé à perfeição.” (PERRAULT, 1985, p.126).
Nessa cena, foi grande o espanto de todos, e ainda maior o das duas irmãs. Na sequência
da narrativa de Perrault, todos se surpreendem quando Cinderela tira do bolso o outro
sapatinho e o calçou, no mesmo instante a fada madrinha chega e, tocando com sua
varinha os trapos de Cinderela, transforma-os novamente na mai magnífica de todas as
roupas.
Em Cinderela a esperança e a agonia, são marcadas pela necessidade do
despojamento, da simplicidade, moldadas pelas decepções, que conduzem a vitória final de
superação, de conquista da autonomia, da heroina vitoriosa diante dos maus tratos, além
ressaltar nesse contexto a importância do apadrinhamento.
Na imagem, o foco da narrativa está localizado nos terços medio e inferior da
imagem segundo a proporção áurea, destacado no contraste luz e sombra, claro e escuro.
Novamente temos um personagem revestido de uma aura divinatória (traço característico de
Doré), caracterizada no conto pela doçura, e o simbolismo de virtude, distinção e beleza
pelo minúsculo tamanho do pé, e a preciocidade do material do qual é feito o sapatinho.
Tem-se ainda o investimento figurativo da narrativa da “atração sexual e a beleza à
pequenez extrema do pé, como faziam os antigos chineses, de acordo com o costume de
enfaixar os pés das mulheres.” (BETTELHEIM, 2012, p.325), uma vez que esse conto mais
conhecido e apreciado, é também bastante antigo, datando no século IX d.C. o seu registro
na China.
Para o conto “Chapeuzinho Vermelho”4 Doré extrai o que há de simbólico no texto
para construir o desenho da menina e o Lobo. Encontram-se no livro três ilustrações: a
primeira em que a menina se encontra com Lobo na floresta; a segunda, o momento do
ataque do lobo a avó; e a terceira, Chapeuzinho Vermelho na cama com o Lobo, e seu
estranhamento diante da aparência desnuda da avó, cuja sequência na narrativa é dada
pelas perguntas singulares que marcam o enredo da história, conforme o trecho a seguir:
[...] Chapeuzinho Vermelho despiu-se e se meteu na cama, onde ficou muito admirada ao ver como a avó estava esquisita em seu traje de dormir. Disse ela: “Vovó, como são grandes os seus braços!”. “É para melhor te abraçar, minha filha.” “Vovó, como são grandes suas pernas!” “É para correr melhor, minha netinha.” “Vovó, como são grandes as suas orelhas!” “É para ouvir melhor, netinha.” “Vovó, como são grandes seus olhos!” “É para ver melhor, netinha!” “Vovó, como são grandes os seus dentes!” “É pra te comer!” E assim, dizendo, o malvado lobo atirou-se sobre Chapeuzinho Vermelho e a comeu. (PERRAULT, 1985, p.55).
Essa cena ilustrada por Doré é aqui destacada, pelo foco no rosto nos dois
personagens (primeiro plano), parcialmente cobertos pelo lençois, cujo revestimento
figurativo reitera o trecho da narrativa anterior, conduzindo a imaginação do leitor para o
desfecho da história.
Figura 3: Chapeuzinho e o Lobo na cama. (Fonte: PERRAULT, 1985, p.53)
Na visão de Bettelheim o conto “perde muito do seu atrativo por ser tão óbvio que o
lobo não é um animal voraz mas sim uma metáfora, que deixa pouco à imaginação do
ouvinte” (BETTELHEIM, 2012, p.235). No entanto, na suposta superação dessa obviedade,
Doré torna o conto atrativo para que o leitor descubra novos significados a partir do
recobrimento figurativo para a narrativa, como no caso da ambivalência inocência (criança)
e malícia (lobo) não impede Chapeuzinho de deitar-se ao lado do lobo protegida unicamente
por sutil recobrimento do seu corpo pelo lençol, submetendo-se a sedução dissimulada do
lobo, e assim deixar sua inocência ser “devorada”.
O conto “Pequeno Polegar” trata da história de um pobre casal de lenhadores que
tinha sete filhos, o mais novo, chamado de o Pequeno Polegar era um menino muito
pequeno. A família passando por dificuldades decidem abandonar seus filhos na floresta
para que não morram de fome. As crianças encontram uma casa e são acolhidos por uma
mulher, sem saberem que ali mora um Ogro devorador de crianças. A mulher tenta
esconde-las do Ogro, mas ele descobre e resolve come-las no dia seguinte. O Pequeno
Polegar empreende vários atos de coragem para salvar ele e seus irmãos da crueldade do
Ogro. Em uma delas, salvando todos, faz com que o Ogro mate suas filhas no lugar deles
(PERRAULT, 1985).
O Pequeno Polegar tinha reparado que as filhas do Ogro traziam coroas de ouro na cabeça. [...] ele levantou-se no meio da noite e, pegando o seu gorro e de seus irmãos, colocou-os com toda cautela na cabeça das sete filhas do Ogro, depois de lhes tirar as coroas de ouro, que pôs na sua cabeça e na de seus irmãos, para que o Ogro pensasse que eles eram as suas filhas e suas filhas, os meninos que ele queria matar. [...] (PERRAULT, 1985, p.74)
Cujo desfecho é o seguinte,
[...] o Ogro tendo acordado por volta da meia noite. [...] Saltou, pois, buscamente do leito e apanhou o seu facão. [...]. Subiu [...] para o quarto das filhas e se aproximou do leito onde estavam os meninos; todos dormiam, menos o Pequeno Polegar que sentiu muito medo quando a mão do Ogro tateou sua cabeça [...] O Ogro percebeu as coroas de ouro [...] Em seguida dirigiu-se ao leito das suas filhas e, ao apalpar os gorros em suas cabeças disse: “Ah, aqui estão eles, os malandrinhos! Façamos o serviço com presteza.” E assim falando, cortou sem titubear o pescoço de suas sete filhas. (PERRAULT, 1985, p. 74-77)
Doré ilustra (Fig.4) o momento que antecede o ato cruel do Ogro, o seu lado
antropofáfico, deixando para o leitor a configuração simbólica desse ato. A conexão do texto
com a imagem criada por Doré é imediata.
Figura 4: O Ogro da história O Pequeno Polegar. (Fonte: PERRAULT, 1985, p.83)
O traço do artista não poupa dramaticidade e aura de terror, nos detalhes descritos
com minucias no texto. Isso é percebido nas feições monstruosa do Ogro, com os olhos
quase que saltando de sua face, as veias saltando nas mãos e testa do Ogro, e o facão na
mão direita em direção ao pescoço de uma das crianças.
Há nessa narrativa visual uma recorrência semântica com “Chapeuzinho Vermelho”,
pela verossimilhança entre os personagens, e a inocência perdida. A ameaça de devoração
parece ser a questão central nesse fragmento. No entanto, ao visualizar-se o conto, verifica-
se que é apenas uma das tematizações, já que o inesperado ocorre de quem menos se
espera: o Pequeno Polegar.
Em o “Mestre Gato” ou “Gato de Botas”, como é mais conhecido, tem-se a história do
filho mais novo de um moleiro, que recebe de herança apenas um gato. O rapaz fica
desolado ao perceber que doseu gato, somente o couro lhe sobraria. O Gato muito fiel ao
seu dono, e para salvar a própria pele, pede um par de botas e promete ajudá-lo a ficar rico
e conseguir um bom casamento. Em suas proezas, o Gato de botas consegue fazer com
que o seu amo se case com a princesa. (PERRAULT, 1985)
No trecho a seguir tem-se a narrativa que descreve uma das estrategias do Gato de
Botas para ajudar o seu dono.
O Marquês de Carabás fez o que seu gato aconselhou sem saber qual a razão de tudo aquilo. Enquanto ele se banhava no rio, o rei passou na sua carruagem. O Gato pôs-se a então gritar o mais alto que pôde: “Socorro! Socorro! O Marquês de Carabás está se afogando!” Ao ouvir seus gritos, o rei enfiou a cabeça na portinha e, ao reconhecer o Gato que lhe tinha levado caça tantas vezes, ordenou à sua escolta que fosse depressa socorrer o Marquês de Carabás. (PERRAULT, 1985, p.133)
Na ilustração, Doré consegue figurativizar a aflição do gato pela dinâmica da
movimentação da cena, da firmeza nos gestos, e da vegetação que serve como cenário,
que parece compartilhar do mesmo sentimento (Fig.5). Esse mesmo recurso discursivo é
expresso na pintura “O Grito”, do pintor norueguês Edvard Munch. Acompanhando a cena,
temos o seu amo banhando-se no rio, na condição obscura de espectador e expectador,
comportamento quer será assumido ao longo de toda a narrativa.
Figura 5: O Gato de Botas. (Fonte: PERRAULT, 1985, p.129)
Doré nos apresenta os Contos de Fadas com as marcantes características descritas
por Perrault. As ilustrações de Doré imprimiram aos contos uma realidade fantástica que
suscita ao leitor o exercício de construção mental. Não bastasse a capacidade de incitar a
fantasia que a própria literatura já possue, a ilustração eleva mais ainda o grau dessa
imaginação que acompanha as histórias, sobretudo pelo nivel de detalhamento que
apresenta. Nas palavras de Calvino (1999, p.99), “Esse ‘cinema mental’ funciona
continuamente em nós e sempre funcionou, mesmo antes da invenção do cinema – e não
cessa nunca de projetar imagens em nossa tela interior”.
Perrault marca o inicio da literatura infantil e assim os desenhos de Gustave Doré,
artista que ilustra a edição da época, retratam a versão do passado, dizem respeito à
memória de quem as narra e do desenhista. São a partir dessas memórias que o desenhista
figurativiza os enunciados dos contos, ressignificando valores na dimensão dual proibido vs
permissividade, quando a história foi ilustrada. Um terceiro momento é o da sua
interpretação. Não bastasse a questão temporal, existe a particularidade da subjetividade do
ilustrador.
A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não saiba formular em termos discursivos ou conceituais (CALVINO, 1009, p.104).
Essas cenas míticas são descritas pela literatura do seu tempo, registrando
costumes e a cultura francesa do século XVII e de como se devia passar à narrativa, muitas
delas recriadas para alertar, educar e trazendo consigo um simbolismo por traz da narrativa
e da sua própria imagem. Carvalho exemplifica que: “Os ideais e a estética literária são
resultados do pensamento social, político, cientifico e filosófico de cada época, dirigindo de
modo mais ou menos coerente e unificado toda a complexidade de suas manifestações”
(1989, p. 122).
As ilustrações podem ir além do que nela está delineada, ou seja, perceber nos seus
traços, nas feições dos personagens a comunicação com relação ao texto que traduz o
pensamento de uma época. Neste contexto Paiva também esclarece que:
É importante sublinhar que a imagem não se esgota em si mesma. Isto é, há sempre muito mais a ser apreendido, além daquilo que é nela dado a ler ou a ver. [...] Nessa perspectiva a imagem é uma espécie de ponte entre a realidade retratada e outras realidades, e outros assuntos, seja no passado, seja no presente. (2006, p.19)
Portanto, as imagens têm a função de comunicar e de significar, em que na
interseção com o texto linguístico, possibilitam uma convergência semisimbólica entre
expressão e conteúdo, com o uso de “recursos” na materialidade dos discursos desse
gênero literário.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desse artigo foi o de reiterar a noção de texto sincrético e não de semiótica
sincrética, considerando a diversidade de linguagens que podem estabelecer uma unidade
conceitual ou discursiva, tal qual ocorre nos exemplos apresentados, entre imagem e texto
escrito, em uma relação semi-simbólica homogênea e plural.
Produzidos originalmante no final do século XVII, os mais diversos contos de Perrault
retratavam os costumes e moral da época, sendo considerado esse autor o precursor da
literatura infantil. Reeditados no final do século XIX, sob o título “Contos de Perrault”
juntaram-se a essas histórias as bem elaboradas ilustrações de Gustave Doré que deram
vida aos personagens. Aqui foram apresentados fragmentos de cinco desses contos, neles
as bem elaboradas ilustrações de Gustave Doré tem como caracteristica marcante detalhes
que realçam as expresssões dos personagens e que fazem emergir um fascínio pelos
contos, ora pela graciosidade, ora pela dramaticidade, ou pelo terror presentes nas histórias.
Gustave Doré explora o universo fantástico das histórias, personificando seres e cenários, a
partir das narrativas de Charles Perrault.
Gustave Doré, ao desenhar para os Contos de Fadas de Charles Perrault traduz em
um processo de figurativização, a comunhão do desenho e da literatura enquanto uma
unidade de sentido, evidenciando dessa forma o importante papel da ilustração na narrativa
literaria.
1 A figuração “é a primeira fase do procedimento semântico de figurativização do discurso, ou seja, a primeira etapa de especificação figurativa do tema, quando se passa, pura e simplesmente, do tema à figura”. (BARROS, 2005, p.83)
2 Acerca do verbete “semióticas sincréticas”, verificar em <http://www4.pucsp.br/cos/floch/obra/6.htm> Acesso em 10 de maio de 2013, presente nas referências em FLOCH, 1982.
3 Técnica que consistia em desenhos feitos em uma matriz de pedra, depois, com o auxílio de um profissional, era feito o trabalho de impressão com a tinta, por essa razão, a maioria dos desenhos Doré possui duas assinaturas, uma do ilustrador e outra do profissional, o gravador. (LINARDI, 2007)
4 Originalmente o título do conto de Perroult denomina-se “Capuchinho Vermelho”, posteriormente popularizado pelos Irmãos Grimm como “Chapeuzinho Vermelho”.
REFERÊNCIAS
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São Paulo: Senac, 2007.
BARROS, Diana L. P. De. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005.
BERGER, John. Modos de Ver. Tradução Lucia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução Arlene Caetano. São
Paulo: Paz e Terra, 2012.
CALVINO, Itálo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A Literatura Infantil: visão histórica e crítica. Rio
de Janeiro: Global Editora, 1989.
COELHO, Nely Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil. São Paulo:
Ed. Ática, 1991.
FIORIN, José Luiz. Para uma definição das linguagens sincréticas. In: OLIVEIRA, Ana
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