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AS GUERRAS POR RECURSOS NATURAIS E O “POLÍTICO”
SCHMITTIANO: ENTRE O DETERMINISMO E O POSSIBILISMO
NA GEOPOLÍTICA.
Marcos Cardoso dos Santos1
RESUMO
Sendo a guerra a continuação da política, a relação entre ambas levanta questionamentos
sobre suas essências. Em um sistema internacional anárquico no qual a escassez de
recursos constitui uma realidade, a tendência a conflitos armados entre Estados é vista
por alguns pesquisadores como algo irremediável. A interação dos pensamentos de Carl
Schmitt e Clausewitz permite investigar o sistema de significados que serve de arcabouço
para a percepção da política e do “político” como influenciadores da guerra. Tomando
uma abordagem pós-estruturalista, por meio da qual defende-se que os significados
antecedem a todo imediatismo factual, argumentamos que o princípio da alteridade é
capaz de explicar o comportamento social dos Estados diante do antagonismo entre
interesses geopolíticos. Para Carl Schmitt o “político” não é uma substância, possuindo
assim uma essência, mas sim um conceito que permite distinguir as relações entre amigos
e inimigos. Analisando conflitos armados ocorridos no Golfo Pérsico em 1972, 1979,
1991 e 2003 verificamos que a cooperação para a manutenção do mercado constituiu-se
no interesse comum dos países consumidores. Embora a cooperação não seja a regra, sua
existência reacende discussões, ocorridas no começo da Geopolítica como ciência, entre
determinismo e possibilismo. Dessa forma, o conceito do “político” schmittiano permite
a introdução da análise do discurso de maneira a identificar como o “nós” e o “eles”,
presentes em toda relação da alteridade, pode afetar a percepção dos atores conduzindo-
os à cooperação ou ao conflito diante da escassez de recursos naturais. Utilizando uma
análise hipotético dedutiva foram comparadas lógicas da segurança energética com
alguns casos históricos a fim de se inferirem relações de alteridade. Concluiu-se que
fatores geográficos não determinam resultados e que o tipo de relação de alteridade entre
atores tem capacidade explicativa maior nos estudos de Geopolítica.
Palavras-chave: Geopolítica; guerra por recursos naturais; pós-estruturalismo
1 Professor Doutor em Ciência Política (UFF), membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação
em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra.
ABSTRACT
Since war is the continuation of politics, the relationship between the two raises questions
about their essences. In an anarchic international system in which scarcity of resources is
a reality, the tendency towards armed conflicts between states is seen by some researchers
as inevitable. The interaction of the thoughts of Carl Schmitt and Clausewitz allows to
investigate the system of meanings that serves as a framework for the perception of
politics and the "political" as influencers of the war. Taking a post-structuralist approach,
by which it is argued that meanings precede all factual immediacy, we argue that the
principle of otherness is capable of explaining the social behavior of states in the face of
antagonism between geopolitical interests. For Carl Schmitt the "political" is not a
substance, having an essence, but a concept that distinguishes the relations between
friends and enemies. Looking at armed conflicts in the Persian Gulf in 1972, 1979, 1991
and 2003, we found that cooperation to maintain the market was in the common interest
of the consuming countries. Although cooperation is not the rule, its existence rekindles
discussions, which took place at the beginning of Geopolitics as a science, between
determinism and possibilism. In this way the Schmittian "political" concept allows the
introduction of discourse analysis in order to identify how "we" and "they", present in
every relation of alterity, can affect the perception of the actors leading them to
cooperation or conflict with the scarcity of natural resources. Using a deductive
hypothetical analysis, energy security logics were compared with some historical cases
in order to infer relationships of otherness. It was concluded that geographic factors do
not determine results and that the type of relation of alterity between actors has greater
explanatory capacity in the studies of Geopolitics.
Keywords: Geopolitics; war for natural resources; post-structuralism
INTRODUÇÃO
As guerras por recursos naturais tem sido objeto de estudo por vários
pesquisadores (Klare 2001). Com o fim da Guerra Fria muitos defenderam que as
motivações para a guerra passariam a se relacionar com a insegurança referente à escassez
de recursos naturais (Shlomi 2011). Outros defendiam o fim da História com o surgimento
de conflitos entre civilizações. Com o ataque terrorista de 11 de setembro às torres
gêmeas, verificou-se que o terrorismo, não obstante tratar-se de um conflito com
fundamentação cultural e de extremismo religioso, poderia também tornar-se uma ameaça
ao fornecimento de energia ao Ocidente. Estrategicamente, Grandes Potências
militarizaram a gestão de recursos naturais estratégicos, como o petróleo, a fim de
proteger a produção e fornecimento desse recurso.
O presente trabalho visa analisar duas perspectivas que levantaram discussões no
início dos estudos da Geopolítica. Possibilismo e determinismo eram visões utilizadas
para conceituar o debate sobre a influência da ação humana e dos fatores geográficos na
dinâmica entre Geografia, Política e História. Tal dinâmica é apresentada por alguns
autores como a própria concepção da Geopolítica (De Castro 1999).
Por tratar-se de uma investigação de cunho pós-estruturalista, serão enfatizados o
aspecto relacional dos significados, a alteridade resultante das afirmações identitárias e o
“político” como fundamento para compreensão das relações de poder entre diversos
atores. Inicialmente analisamos a Geopolítica como escrita, um termo usado por Jacques
Derrida para explicar a formação de conceitos. Em seguida trouxemos à discussão o
pensamento de Carl Schmitt sobre o “político” e suas implicações para análise de relações
antagônicas. O possibilismo e o determinismo, discutidos no início dos estudos de
Geopolítica, foram investigados a fim de guiar a análise dos fatos históricos ocorridos no
Golfo Pérsico. O exame sobre cooperação e conflito em temas de Geopolítica foi
realizado ligando as lógicas da segurança energética defendidas por Felix Ciuta (2010)
com as tensões e guerras de 1973, 1979, 1991 e 2003 que tiveram lugar no Golfo Pérsico.
Utilizando o método hipotético-dedutivo, enfocando questões relativas ao gerenciamento
do fluxo comercial de petróleo, concluímos que o tipo de relação de alteridade entre
consumidores e produtores tem maior poder explicativo do que o determinismo
geopolítico que potencializa os fatores geográficos em detrimento da ação humana em
sua esfera coletiva e social. Para início das discussões é fundamental que examinemos a
Geopolítica como “escrita”, como resultado de eventos históricos e sociais e não como
possuidora de uma essência.
1- GEOPOLÍTICA COMO “ESCRITA”
O termo Geopolítica foi criado pelo cientista social sueco Rudolf Kjellen em 1899. O
conceito tem tido uma longa e variada história no século XX, indo além de seu significado
original (Tuathail 2003: 1). O significado dos conceitos tende a mudar ao longo do tempo
e do espaço. Por esta razão a abordagem pós-estruturalista deste trabalho vai de encontro
a visões fundacionistas que defendem a pureza da relação sujeito-objeto e a essência de
conceitos que permaneceriam ao longo da história (Marsh e Furlong 2002). Conforme
Jacques Derrida, um dos fundadores do pós-estruturalismo, não há significados
completos, fixos ao longo do tempo. O que há são metáforas, tentativas de fixar
significados em significantes que “deslizam” de maneira a não permitir a permanência de
significados diante de estruturas sociais de linguagens que estabelecem discursos que
buscam a hegemonia. Não há um ponto central capaz de fixar indefinidamente os
significados (Derrida 2001: 354). O termo hegemonia, na verdade, não é o preferível para
Derrida. O autor prefere usar termos como iterabilidade, traços e escritura para explicar
como, metaforicamente, discursos estabelecem significados precários que dominam
determinados campos sociais (Derrida 1988: 7). A estrutura de significados em
determinado campo discursivo é formada metaforicamente (Derrida 2001: 16)
Não há termos positivos, i. e., que possuam significados em si mesmos, antes os
significados são relacionais, dependem da existência de outros termos para que possam
ser coletivamente compreendidos. Só podemos conhecer o significado de pai porque o
comparamos a mãe, filho, tia e etc. (De Saussure 1959: 120). Conforme dito, não há como
um indivíduo estabelecer, de forma independente, os significados das coisas pois a
linguagem resulta de uma interação coletiva (Hershinger 2011).
Diante dessas premissas referentes à estrutura da linguagem, o conceito de
Geopolítica, mesmo o inicialmente “estabelecido” por Kjellen representava o que
historicamente compunha uma cadeia de significantes aceita e entendida por determinado
grupo social dentro de um escopo espaço-temporal (Laclau e Mouffe 2001).
Therezinha de Castro, embora não se posicionando epistemológica e ontologicamente
como pós-estruturalista, ao definir Geopolítica como a dinâmica da interação entre
política, geografia e história revela a condição precária da fixação de limites de
significados para a Geopolítica (De Castro 1999: 22-3).
Dessa forma, a visão pós-estruturalista de Geopolítica, embora desagrade a alguns
geopolíticos “dogmáticos”, demonstra o esforço de determinadas comunidades
epistêmicas em estabelecer discursos hegemônicos, tendo por motivação ou força motriz
o que alguns autores chamam de “falta subjetiva” (subject lack) (Laclau e Zac 1994: 12)
que nada mais é do que o reconhecimento, ainda que frustrante, da impossibilidade do
estabelecimento de um significado último (Howarth 2013: 159, 246). Nesse sentido,
comunidades epistêmicas nada mais fazem do que “escrever” Geopolítica, repetindo
traços que alteram e criam identidades que passam a ser vistas como naturalmente dadas,
como verdades científicas muitas vezes tidas por inquestionáveis (Laclau e Mouffe 2001).
O significado de Geopolítica segue o princípio da intertextualidade. A Geopolítica não é
capaz de “representar” objetivamente o mundo por ela mesma estudado. A Geopolítica é
“escrita” seguindo o princípio da intertextualidade por meio do qual o seu significado é
produzido de texto para texto antes de ser a expressão entre o texto e o “mundo” (Derrida
1972: 38). A Geopolítica como “escrita” é constitutiva e não simplesmente refletiva, ou
seja, com a capacidade de expor a realidade objetiva do mundo. Novos mundos são
produzidos de velhos textos, e velhos mundos são a base para novos textos. O que é
verdadeiro está dentro do próprio texto (Barnes e Duncan 2006: 2-3).
Vale ressaltar que a escrita, decorrente da ausência de um significado transcendental
que caracterize a essência de determinado “objeto” ou conceito, diz respeito a diversos
tipos de signos, sejam eles visuais, sonoros ou escritos, no sentido estrito da palavra. O
ponto principal do pensamento de Derrida é que, como os significados são relacionais, e
não positivos em si mesmos, a diferença é o que nos faz inferir que aquilo que entendemos
por significado nada mais é do que uma relação entre significantes (Derrida 1972: 38).
Dessa forma, figuras de linguagem como a metáfora dominam o saber geopolítico do qual
inferimos a estratégia Geopolítica para diversos temas na área de segurança e defesa. O
uso de figuras de linguagem em decorrência da falta de um significado último para a
Geopolítica é manifesto, por exemplo, no antropomorfismo estatal ou, por alguns
chamado, organicismo estatal dos primeiros pensadores da Geopolítica como Kjellen,
Haushoffer e Mackinder, os quais utilizam termos como “O Estado como forma de vida”,
“espaço vital” e “heartland”.
A ausência ou impossibilidade de fixação de significados na Geopolítica leva-nos
a concluir que a representação dada a temas geopolíticos resulta da interação social dos
Estados. Essa interação ocorre diante de um campo discursivo no qual domina a
alteridade, ou seja, onde o “outro” pode ter representações metafóricas que vão desde
amigo a adversário ou inimigo. Tal campo discursivo é capaz de explicar porque questões
Geopolíticas podem resultar tanto em cooperação como em conflito. Este trabalho busca
mostrar que não há determinismo no que hoje em dia se conceitua como Geopolítica.
Diante da escassez de recursos, a militarização de sua gestão é uma possibilidade e não
um destino. Ademais, mesmo a militarização não implica, necessariamente, em conflitos
entre Estados tendo em vista que o poder militar pode ter diferentes “representações” para
diferentes Estados. A questão é o que os elementos da Geopolítica “representam” para
determinada elite responsável por tomar decisões estratégicas dentro de determinado
escopo espaço-temporal. Guzzini declara que ao aplicar uma abordagem pós-
estruturalista na análise Geopolítica problematiza-se como representações geográficas
interagem com a realidade social (Guzzini 2012:13)
Partindo-se da ideia de De Castro (1999) quanto à dinâmica da relação entre
geografia, política e história abordaremos inicialmente o político schmittiano para
chegarmos à questão da alteridade e, consequente, à formação da identidade e às
consequências para o estabelecimento do interesse nacional.
2- O POLÍTICO SCHMITTIANO
Os estudos de Carl Schmitt têm gerado muitas controvérsias, principalmente devido
a sua ligação com o nazismo. No entanto, alguns acadêmicos, como Chantal Mouffe
(1999) por exemplo, reconhecem o valor intelectual de suas obras, assim como a
pertinência de seus pensamentos para o contexto internacional ora existente. Schmitt pode
ter seus trabalhos divididos em duas fases intelectuais: durante e depois de seu
envolvimento com o nazismo (Kervégan 1999: 55). Em ambas as fases, sua conceituação
do “político” é centrada no papel do Estado, com ênfase na sua soberania. No entanto,
autores pós-estruturalistas têm visto no pensamento de Schmitt uma abertura para se
discutir alteridade, ou seja, o aspecto relacional dos significados e, consequentemente, de
toda formação identitária.
Ao apresentar ontologicamente o conceito do “político”, Carl Schmitt entende que
somente definindo as categorias do político seria possível obter o seu conceito. Dessa
forma, o contraste com outras atividades humanas e seus respectivos critérios, como a
moral, a estética, a economia, Schmitt chega à seguinte conclusão:
Vamos assumir que no campo da moral as distinções finais são entre
bom e mau, em estética belo e feio, em economia lucrativo e não
lucrativo. A questão então é se há também uma distinção especial que
possa servir como simples critério do político e do que ele consiste. [...]
A distinção específica do político à qual ações políticas e motivos
podem ser reduzidos é aquela entre amigo e inimigo (Schmitt 1996: 26)
A relação do pensamento de Schmitt com o pós-estruturalismo pode ser vista na
definição do autor sobre quem vem a ser o inimigo político. Este não necessariamente
precisa ser moralmente mau ou esteticamente feio, nem precisa se parecer com um
competidor em termos econômicos. Ele é, entretanto:
[...] o outro, o estranho, e é suficiente para sua natureza que ele seja, de
uma forma especialmente intensa, algo existencialmente diferente e
alheio, de tal forma que em caso extremo sejam possíveis conflitos com
ele (Schmitt 1996: 27).
Chantal Mouffe utiliza-se do conceito schmittiano para desenvolver os conceitos
de agonismo e antagonismo. Tais conceitos fundamentam a análise política de Mouffe
quanto à formação de discursos hegemônicos e, consequentemente, de interesses de
grupos sociais (Mouffe 2005:33). Segundo Mouffe o antagonismo possui diversas
formas, sendo uma delas o agonismo. Em todas as formas de antagonismo há a figura do
Outro. Entretanto, em uma relação agônica há regras previamente aceitas pelos
competidores. Já na forma radical do antagonismo o Outro aproxima-se da figura do
inimigo radical que precisa ser eliminado (Mouffe 2005: 75). Eva Herschinger argumenta
que o Outro não necessariamente constitui uma ameaça; de acordo com ela há vários
graus de alteridade. A autora considera este aspecto relevante para explicar como algumas
questões podem mudar, e outras não, da política normal para o campo da securitização
requerendo, então, o uso de medidas extremas (Herschinger 2011: 7).
Ao trazer sua análise para o campo das relações internacionais, Mouffe adverte
que a tendência de determinadas elites que lideram as tomadas de decisão em política
externa a basearem suas posturas em registros morais é o que pode fazer com que
determinada relação social entre Estados desloque-se do agonismo para o antagonismo
(Mouffe 2005: 75). Quando outro Estado, ou ente político, passa a ser visto não mais
como adversário, mas como o inimigo que precisa ser eliminado, há uma desintegração
do processo comunicativo. Se além de ser o outro ele torna-se o mal que precisa ser
extirpado, tal relação tende à concepção de um inimigo radical cuja eliminação compensa
qualquer custo. Fundamentando seu pensamento, Mouffe menciona a atual guerra ao
terror capitaneada pelos Estados Unidos (Mouffe 2005: 75).
Conforme dito no início desse trabalho, como os significados são relacionais,
aquilo que “é” só pode ser por força de um exterior constitutivo (constitutive outside)
(Laclau 1990: 235) que, paradoxalmente, constitui sua condição de possibilidade e
impossibilidade. O outro é aquele que me impede de ser eu mesmo e, concomitantemente,
me faculta existir (Laclau e Mouffe 2001: 125). Esse é o princípio da diferença explicitado
por Derrida, cujas consequências são manifestas em uma relação de alteridade.
Dessa forma, a identidade capaz de interferir na interpretação do que vem a ser o
interesse nacional é entendida como posições do sujeito dentro de determinado discurso
(Foucault 1969: 71,74) (Laclau e Mouffe 2001: 105). Para cada tema da agenda
internacional, incluindo os temas geopolíticos, haveria um discurso que constitui a
verdade para determinado grupo social ou elite (Dos Santos 2016: 46). Conforme
Foucault, o mesmo discurso que sujeita indivíduos forma as suas identidades produzindo
discursos e saberes. Toda formação de conhecimento implica o exercício de poder
(Foucault 1975:32). O que defendemos como ciência exerce poder sobre nós resultando
em conformações epistêmicas que, por sua vez, são capazes de estabelecer o que vem a
ser interesse nacional em determinado tema da agenda dos países. Com a Geopolítica não
poderia ser diferente.
Dentro dessa perspectiva, a guerra como continuação da política, conforme
Clausewitz (1989: 87) não pode ser dissociada do “político”, da relação de alteridade que
estabelece nossa percepção e representação do Outro e de nós mesmos como Estado-
Nação. Esta alteridade define os objetivos políticos estabelecidos inclusive na formação
das grandes estratégias dos Estados (Martel 2015).
Nos primeiros debates sobre a Geopolítica, dois aspectos mereceram a atenção
dos pesquisadores do tema. Dentro da visão da Geopolítica como um saber que retrata a
dinâmica entre geografia, história e política (De Castro 1999), até que ponto a conduta
dos Estados pode ser determinada pela geografia? Em que posição estaria a ação humana,
principalmente em termos de domínio tecnológico, quanto a sua capacidade de influenciar
as decisões estratégicas dos Estados?
3- POSSIBILISMO E DETERMINISMO EM GEOPOLÍTICA
O interesse nacional é uma construção social e um indicador chave do comportamento
dos Estados (Burchill 2005: 186). Conceitos que interferem nesta construção, como
soberania por exemplo, apresentam-se como discursos nos quais certas elites podem se
situar ou não. De acordo com Jens Bartelson deveríamos evitar questionar diretamente o
que é soberania e, em vez disso, perguntar como o tema tem sido apresentado e conhecido
ao longo do tempo e conectar a resposta a esta questão com o porquê de ser tão difícil
falar de soberania e conhecer seu significado nos dias atuais (Bartelson 2001: 4).
Da mesma forma, os objetivos políticos que norteiam a grande estratégia de um
Estado são condicionados histórica e culturalmente. Eles dependem da realidade
Geopolítica particular dos Estados e dos valores compartilhados por sua população, mais
precisamente suas elites. (Martel 2015: 18). Tais aspectos intangíveis ligados tanto à
construção do interesse nacional quanto ao estabelecimento da política desvelam como
discursos e significados são socialmente formados a ponto de interferirem na percepção
dos Estados. Ao comentar sobre inovações tecnológicas e sua influência sobre a condução
da grande estratégia, Martel critica o posicionamento de Gray que vê a tecnologia com a
capacidade de determinar se e como um Estado conduz a sua guerra e, consequentemente,
sua grande estratégia. Para Martel, armas não são inerentemente ofensivas ou defensivas,
mas dependem das intenções e estratégias dos decisores políticos que as usam (Martel
2015:18).
Nesse contexto, falar sobre possibilismo refere-se às diversas formas pelas quais o ser
humano interfere no seu ambiente, entre elas a tecnologia. De la Blache foi um dos
primeiros pesquisadores em Geografia Humana a tratar do assunto. Com sua obra
Principes de Géographie Humaine, o autor critica o pensamento científico que de longa
data era atraído pelas influências do mundo físico e sua ação sobre as sociedades
humanas. Conforme De La Blache, o papel do homem é tanto ativo quanto passivo em
relação ao seu ambiente. Ele observa que a ação do homem é exercida mais facilmente
nos locais onde há abundância de recursos (De La Blache 1955: 13). De Castro chama de
possibilismo o fato de o homem gozar de liberdade numa proporção que aumenta na razão
direta do avanço da Ciência e da Tecnologia. De Castro não considera os trabalhos de De
La Blache como pesquisas em Geopolítica haja vista não serem encontradas em seu
trabalho as diretrizes que caracterizam a Política e a Estratégia do Estado-Nação para a
consecução de seus objetivos (De Castro 1999: 26). De La Blache entende que se a
natureza impusesse quadros rígidos aos homens estes não seriam capazes de realizar obras
de transformação e de restauração em seu ambiente (De La Blache 1955). Meira Mattos
enquadra Vidal de la Blache, juntamente com outros autores franceses como Brunhes e
Vallaux, também como possibilistas devido ao fato de considerarem o fator geográfico,
na interação homem-geografia, como menos ponderável que o fator político (Meira
Mattos 2007: 21). Tanto De Castro como Meira Mattos conceituam o possibilismo em
oposição ao determinismo defendido pela escola alemã de Geopolítica. Meira Mattos
descreve a escola determinista como aquela que considera o fator geográfico
determinante no processo civilizatório. Defendendo o que alguns chamam de organicismo
ou antropomorfismo do Estado, o final do século XIX e primeiras décadas do século XX
marcaram o que Meira Mattos chamou de ‘grande progresso nos estudos das ciências
sociais e da ciência geográfica’. Surgem na Alemanha os livros Antropogeografia e
Geografia Política, de Friedrich Ratzel, e a obra pioneira Geopolítica , de Rudolf Kjellen,
esta já transpassando a Geografia Política, estática, panorâmica, para um cenário vivo,
movimentado, prospectivo. Segundo Meira Mattos, Ratzel, ao comparar a Geografia
Política com a Geopolítica, afirmou que aquela era como uma fotografia, enquanto esta
era a cinematografia, tendo em vista ser produto da interação dinâmica da Política,
Geografia e História (Meira Mattos 2007: 20-1). O determinismo desses autores é
manifesto no antropomorfismo estatal que Ratzel, por exemplo, retrata em seu livro Leis
do Crescimento Territorial dos Estados. Com suas sete leis do expansionismo estatal,
Ratzel serve de inspiração para o General Karl von Haushofer, professor da Universidade
de Munique, cujas obras serviram como endosso científico para as teses expansionistas
da Alemanha de Adolf Hitler (Meira Mattos 2007: 23).
Há que se ressaltar que enquanto para De Castro o possibilismo enfatizava a ação
humana relativa à Ciência e Tecnologia e sua interferência no espaço físico, para Meira
Mattos o possibilismo enfatizava o fator político na interação homem-geografia,
considerando a ação política do homem e não seu aspecto científico e tecnológico.
Entendemos que a visão de De la Blache inclui a ação humana como um todo, o que
englobaria tanto a Ciência e Tecnologia quanto a ação política. Guzzini cita o pensamento
de alguns realistas clássicos, como Raymond Aron, que veem a tecnologia como um fator
capaz de agregar valor aos recursos naturais (Guzzini 2012: 14). Dessa forma, a
tecnologia é vista como uma variável a interferir na mensuração do poder nacional.
Entretanto, uma visão pós-estruturalista da Geopolítica entende que os valores dos fatores
geográficos não são dados naturalmente. O significado dos fatores geográficos resulta do
entendimento que os atores possuem sobre eles. Independente da importância de certos
territórios em termos de recursos naturais ou humanos, é seu lugar na representação dos
atores que mais fortemente condiciona seu valor atual (Guzzini 2012: 14). Sendo assim,
o possibilismo deve ser entendido como mais do que simplesmente a influência da
Ciência e Tecnologia nos fatores geográficos. Ele deve enfatizar a ação humana em uma
amplitude maior do que a científica, deve ressaltar a inserção humana em discursos que
são capazes de definir o entendimento e a interpretação dos fatores geográficos. Nesse
contexto, é pertinente que analisemos o conceito de segurança energética, tendo em vista
sua proximidade conceitual com a Geopolítica.
4- COOPERAÇÃO E CONFLITO EM TEMAS DE GEOPOLÍTICA
Para discutirmos cooperação e conflito envolvendo a escassez de recursos
entendemos que, seguindo uma perspectiva pós-estruturalista, a exposição dos
significados do que usualmente é chamado de “segurança energética” (energy security)
serve como um profícuo ponto de partida. Felix Ciuta (2010) apresenta três “lógicas” que
fundamentam os significados de segurança energética: a lógica da guerra, a lógica da
subsistência e a lógica da totalidade e reflexividade. Iremos nos ater às duas primeiras
lógicas, tendo em vista que para a nossa análise a última não oferece argumentos teóricos
suficientes para investigação de conflito e cooperação por meio da qual possamos inferir
conclusões referentes ao possibilismo e ao determinismo. Considerando as duas primeiras
lógicas como hipóteses, apresentaremos uma análise hipotético-dedutiva com casos que
exemplificam a questão da alteridade, conforme a noção do “político” schmittiano. Tal
análise nos permitirá, também, ressaltar, de acordo com o conceito de possibilismo aqui
discutido, a ação ativa do ser humano, mais especificamente das elites que participam do
processo decisório em assuntos de segurança e defesa envolvendo questões de
gerenciamento de recursos energéticos.
4-1 A lógica da guerra
A lógica da guerra é a que considera a sobrevivência do Estado como o objetivo
principal de uma política externa. Dessa forma, partir para um conflito armado é
justificável na medida em que a escassez de determinado recurso energético pode levar
um país a deixar de existir. Tal lógica se assemelha à visão antropomórfica do Estado
apresentada pela Geopolítica clássica (Ciuta 2010: 130).
Um efeito chave dessa lógica é o de “capturar” questões que, usualmente, não
estão associadas com a guerra e apagar suas características distintivas. A implacável
“gramática” do conflito abole o significado de energia em si dando-lhe uma importância
que está ligada a distribuição de capacidade dos Estados no sistema internacional. No
contexto europeu, por exemplo, o problema não é necessariamente energético (mais
especificamente o gás), mas sim os ‘interesses geopolíticos da Rússia’ e outros Estados
fornecedores cuja força torna-se inerentemente ameaçadora. O efeito dominante da lógica
da guerra é a militarização da energia. Ainda que os Estados fornecedores não manifestem
o desejo de reduzir sua produção mantendo assim o funcionamento do mercado, a
capacidade relativa em termos de posse de recursos energéticos passa a ter um significado
propenso à beligerância e militarização do gerenciamento do recurso energético em
questão. Essa lógica modifica não somente o vocabulário da segurança energética, mas
também sua racionalidade política (Ciuta 2010). Shlomi Dinar afirma que a grande
questão é como os Estados percebem a assimetria em termos de posse de recursos
energéticos (Dinar 2011: 13). Ciuta ao analisar a relação da Rússia com a União Europeia
no que diz respeito à dependência desta última, em termos de fornecimento do gás russo,
afirma que durante a Guerra Fria a preocupação da OTAN com a referida questão era
menor do que na atualidade (Ciuta 2010: 130). Para Guzzini há um reavivamento
geopolítico na Rússia decorrente de uma crise identitária pós-Guerra Fria. Não
encontrando um novo caminho dentro do liberalismo, o retorno à Geopolítica clássica foi
a opção adotada pela elite russa (Guzzini 2012: 241). Tal postura gera desconfiança nos
membros da OTAN quanto ao compromisso russo com uma economia de mercado no
setor energético. Até que ponto a assimetria russa em relação à Europa, em termos de
posse de gás e petróleo, não seria usada como instrumento de coerção? Nesse sentido, a
ação dos Estados Unidos ao redor do mundo, militarizando a gestão de recursos
energéticos, é vista como uma decisão estratégica a fim de garantir o funcionamento do
mercado. Para Moran e Russel a questão para os Estados Unidos não é se se pode confiar
no mercado, mas sim se e como o mercado pode ser defendido, caso seja necessário
(Moran e Russel 2009: 12). Obviamente que essa mesma postura de “proteção” do
mercado com meios militares apresenta significados que podem ser interpretados de
diversas maneiras pelos Estados de determinada região. O que para alguns pode
representar segurança para outros significa insegurança tem em vista o poder dissuasório
dos meios militares empregados. O Outro para alguns Estados pode não representar o
garantidor do funcionamento da ordem internacional ou do bem coletivo, mas sim um
imperialismo arrogante (Moran e Russel 2009: 13).
4-2 A lógica da subsistência
A lógica da subsistência não apela para a sobrevivência do Estado, mas sim para
a sua funcionalidade. A escassez de recursos energéticos é vista como uma ameaça ao
funcionamento estatal, causando transtornos nos campos econômico e político sem,
contudo, causar a extinção do Estado. A busca por um nível adequado de suprimento
energético não é conduzida por uma preocupação com a sobrevivência estatal, mas pela
demanda funcional de vários setores de atividade, o que significa que sua falta não leva à
extinção, mas à disfunção. Enquanto a lógica da guerra atém-se à quantidade de recursos
energéticos em posse dos Estados, a lógica da subsistência é um modelo complexo com
uma interligação de segmentos e níveis de interação (Ciuta 2010: 132). De acordo com
essa lógica, diversos atores possuem interesse em garantir a produção e fornecimento de
energia, o que traz à lógica da subsistência uma grande preocupação com a manutenção
do mercado. Essa lógica possui duas características chave: segregação e multiplicidade.
A segregação da energia é visível em três aspectos:
1- O tipo de recurso energético;
2- Os setores de atividade envolvidos (extração, transporte, distribuição); e
3- Os tipos de atores (produtores, disruptores, fornecedores, protetores do
mercado (wardens), consumidores, distribuidores, compradores, vendedores,
etc)
As políticas voltadas para a segurança energética podem variar quanto aos seus
enfoques. Para a União Europeia a maior preocupação é com o suprimento. Debates
envolvendo a participação da OTAN em segurança energética focam mais a infraestrutura
necessária (Ciuta 2010: 132).
A segunda característica a lógica da subsistência é a multiplicação de atores
envolvidos na segurança energética, incluindo atores securitizantes, objetos de
referência2, experts, elaboradores de políticas e agentes reguladores. Esse aspecto não é
surpreendente haja vista que no campo energético governos, organizações internacionais,
lobbies, ONGs, movimentos civis e de negócios são considerados como partes
interessadas (stakeholders). Os Estados permanecem como os principais atores, mesmo
em situações em que o tema não é securitizado (declarado por um ator proeminente como
objeto existencialmente ameaçado). Isso devido ao fato de o Estado ser o gestor das
atividades reguladoras do setor energético (Ciuta 2010: 132-3).
Devido a essa multiplicidade de atores, Dinar analisa a questão das guerras por
recursos naturais utilizando-se da teoria da ação coletiva de John Rawls. Quando os
recursos, naturais ou de outros tipos, são abundantes, esquemas de cooperação tornam-se
supérfluos. Por outro lado, quando as condições são particularmente extremas,
empreendimento cooperativos falham. Uma situação de escassez moderada, portanto,
fornece um ímpeto adequado para ação entre as partes envolvidas (Rawls, 1999: 110).
Dinar afirma que há outros fatores que podem interferir no sucesso ou não de processos
cooperativos (Dinar 2011: 10-11). No entanto, para não aprofundar demasiadamente o
debate, enfatizaremos a teoria de John Rawls, defendida por Dinar, para prosseguirmos
nossa discussão. Ademais, a foco deste trabalho é demonstrar que pela vertente
possibilista, a ação humana, em seus mais diversos aspectos, é capaz de influenciar as
decisões políticas tomadas em questões relacionadas a recursos naturais. O conflito
armado torna-se uma possibilidade, e não mais um destino quando abordamos temas
geopolíticos.
Dentre os casos de cooperação em situação de escassez de recursos apresentados
por Dinar, escolhemos os que envolviam a gestão do fornecimento e produção de petróleo
no Golfo Pérsico. Os casos analisados se referem aos anos de 1973, 1979, 1991 e 2003.
2 Os termos usados se referem à teoria da securitização de Barry Buzan, Ole Wæver e Jaap de Wilde
(1998). Agente securitizante é o que enuncia o ato de fala (discurso) que declara determinado objeto de
referência como ameaçado existencialmente. O objeto de referência pode ser o Estado em si ou algum
outro elemento como cultura da sociedade, meio ambiente, economia, entre outros.
Vale ressaltar que ao falar de cooperação Fettweis (2011) não advogada a ausência de
mobilização de forças militares nos anos de 1991 e 2003. O enfoque é quanto a conflitos
entre países consumidores devido a uma possibilidade de escassez relativa de
fornecimento de petróleo no Golfo Pérsico. Segundo Fettweis (2011) os Estados
consumidores, e principalmente as Grandes Potências, agiram cooperativamente para
garantir o fluxo comercial de petróleo na região. Em 1971, por exemplo, o embargo árabe
que levou a redução da produção de petróleo no Golfo Pérsico, além de revelar a extensão
e profundidade da dependência do Ocidente deixou claro, também, que a grande
rivalidade nesse tema geopolítico não era entre as Grandes Potências, mas entre
consumidores e produtores de petróleo (Fettweis 2011: 206). Com certeza havia um grupo
de policymakers nos Estados Unidos que se posicionavam favoráveis a uma “captura”
dos campos petrolíferos árabes, principalmente quando se percebeu um interesse comum
entre os países consumidores. Henry Kissinger, em uma entrevista ao Business Week,
recusou-se a descartar o uso da força. Ele ressaltou que “uma coisa seria usá-la no caso
de disputas sobre o preço” e outra “onde há um estrangulamento real do mundo
industrializado” (Fettweis 2011: 206). No entanto, os Estados não se guiaram pela lógica
realista durante o embargo. Conforme ficou demonstrado, Moscou e Washington
chegaram à mesma conclusão sobre a viabilidade de se tomarem os campos petrolíferos
no Golfo Pérsico. Muito embora os soviéticos tivessem a óbvia vantagem da proximidade
e um maciço desequilíbrio em forças disponíveis na região, eles não pareciam considerar
seriamente esse tipo de intervenção militar (Fettweis 2011: 208).
Em 1979 a invasão do Iran pela União Soviética foi considerada pela
administração Carter como o primeiro passo de uma grande estratégia visando objetivos
mais promissores. O presidente Carter chamou a situação de “a maior ameaça à paz desde
a Segunda Guerra Mundial”. Os Estados Unidos responderam reiterando seu duradouro
compromisso em defender o Golfo Pérsico mobilizando a Força Tarefa Conjunta de
Rápido Emprego, que ao final tornou-se o Comando Central estabelecendo uma presença
militar permanente no Golfo. Uma guerra por recursos naturais pareceu ser uma real
possibilidade. No entanto, arquivos recentemente tornados públicos revelaram que o
ataque soviético não se tratava de um primeiro movimento em um grande avanço em
direção ao Golfo, mas antes um esforço para remover um regime fantoche na sua
proximidade que se mostrava indisposto a cooperar com os soviéticos. De fato, não há
nenhuma evidência para apoiar a ideia de que nunca houve um plano soviético para
controlar o petróleo do Golfo, um pesadelo para os Estados Unidos. No entanto, os
soviéticos nunca tentaram interferir no trânsito do petróleo do Golfo pelos vulneráveis
pontos de estrangulamento (choque points) marítimos da região. Mesmo nos momentos
mais conturbados da Guerra Fria o Ocidente e os Soviéticos nunca deixaram que as crises
no Golfo Pérsico os conduzissem a um conflito armado. Nenhum dos lados parecia sentir
que uma guerra pelo controle do fluxo de petróleo valeria a pena (Fettweis 2011: 208).
Em 1991 e 2003 ficou evidente que desde o colapso da União Soviética as Grandes
Potências têm um padrão de interação cooperativo e não conflitivo em relação ao petróleo
do Golfo Pérsico. Como foi percebido nas duas guerras entre Estados Unidos e Iraque, a
resposta dos Estados consumidores tem sido cooperativa. As Grandes Potências não têm
permitido que os países produtores fomentem divisões entre os consumidores, os quais
têm agido como se tivessem internalizado normas pacíficas em vez da insegurança gerada
pela anomia de um sistema de autoajuda (Fettweis 2011: 209). A ação militar
estadunidense no Iraque, após a invasão do Kwait, não teve a objeção das Grandes
Potências. Ao testar o sistema internacional à época vigente, Sadam Hussein não contou
com o apoio da Rússia. A ação dos Estados Unidos representou o interesse comum dos
países consumidores com a manutenção do mercado. Já em 2003 não havia a mesma
harmonia entre os países consumidores. A legitimidade da ação estadunidense era
questionável. Eram fortes as oposições diplomáticas às ações da administração Bush em
várias capitais. No entanto, nenhum país industrializado pareceu disposto a apoiar
militarmente o Iraque. Desacordos entre as Grandes Potências sobre a política
internacional para o Golfo Pérsico persistirão, mas medidas militares em oposição aos
Estados Unidos jamais foram consideradas por nenhum outro país industrializado
(Fettweis 2011: 210).
A lógica da subsistência, no entanto, não impede a militarização da segurança
energética, que passa a ser vista como um recurso para garantir a estabilidade do mercado
caso algum Estado não esteja disposto a zelar pela manutenção de um mercado livre.
Conforme apresentado durante este trabalho, a relação de alteridade não necessariamente
implica a figura do inimigo político que precisa ser erradicado. A interdependência
complexa, conforme descrita no aspecto multiplicador da lógica da subsistência,
manifesta o “nós” e o “eles” diante do processo de gestão dos recursos escassos, como a
relação entre consumidores e produtores. Diante da prevalência do discurso liberal de
economia de mercado, controvérsias ligadas ao fluxo comercial de petróleo no Golfo
Pérsico, ao menos no contexto atual, têm direcionado os Estados a cooperarem para a
manutenção do mercado.
Nas duas lógicas apresentadas, seguidas de seus respectivos exemplos históricos,
verifica-se a existência de significados que fundamentam discursos que são adotados por
tomadores de decisão. Não há um discurso “correto”, mas sim discursos que são
sedimentados e que fundamentam as decisões tomadas por determinadas elites políticas.
Sendo assim, o determinismo da Geopolítica, reforçado pela visão antropomórfica do
Estado, não pode ser entendido como uma inferência científica da dinâmica entre
geografia, política e história, mas sim como a leitura de significados produzidos pela
escrita Geopolítica em determinado contexto.
Passemos então às considerações finais, nas quais revisaremos alguns dos
principais pontos abordados concluindo com a visão pós-estruturalista do discurso
geopolítico em suas vertentes possibilista e determinista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por constituir-se na análise da dinâmica entre Geografia, Política e História,
conceitos de estratégia geopolítica possuem significados que variam ao longo do tempo
e espaço. Tendo em vista o aspecto relacional dos significados, não há como se chegar a
um significado último que represente a essência de um conceito. Para compreensão da
Geopolítica é necessário que se investiguem os aspectos históricos e sociais vivenciados
por elites que tomam decisões na esfera da gestão dos recursos naturais energéticos.
Os conflitos envolvendo os Estados Unidos no Golfo Pérsico revelaram a
prevalência da cooperação entre consumidores para a manutenção do fluxo comercial de
um mercado livre. A relação de alteridade foi entre consumidores e produtores de
petróleo. A relação entre consumidores não implicou em conflitos pela posse dos campos
petrolíferos no Golfo Pérsico, como uma visão determinista da Geopolítica poderia
concluir.
A relação de alteridade implica a manifestação de diversos “Outros” que não
somente o inimigo radical. Mesmo relacionando-se com um adversário ou competidor a
cooperação entre Estados segue sendo uma possibilidade em um ambiente de escassez
moderada de recursos. O “nós” e o “eles” continuam a ter seus significados precariamente
definidos pela representação dada aos recursos naturais em disputa.
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