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AS GUERRAS POR RECURSOS NATURAIS E O “POLÍTICO” SCHMITTIANO: ENTRE O DETERMINISMO E O POSSIBILISMO NA GEOPOLÍTICA. Marcos Cardoso dos Santos 1 RESUMO Sendo a guerra a continuação da política, a relação entre ambas levanta questionamentos sobre suas essências. Em um sistema internacional anárquico no qual a escassez de recursos constitui uma realidade, a tendência a conflitos armados entre Estados é vista por alguns pesquisadores como algo irremediável. A interação dos pensamentos de Carl Schmitt e Clausewitz permite investigar o sistema de significados que serve de arcabouço para a percepção da política e do “político” como influenciadores da guerra. Tomando uma abordagem pós-estruturalista, por meio da qual defende-se que os significados antecedem a todo imediatismo factual, argumentamos que o princípio da alteridade é capaz de explicar o comportamento social dos Estados diante do antagonismo entre interesses geopolíticos. Para Carl Schmitt o “político” não é uma substância, possuindo assim uma essência, mas sim um conceito que permite distinguir as relações entre amigos e inimigos. Analisando conflitos armados ocorridos no Golfo Pérsico em 1972, 1979, 1991 e 2003 verificamos que a cooperação para a manutenção do mercado constituiu-se no interesse comum dos países consumidores. Embora a cooperação não seja a regra, sua existência reacende discussões, ocorridas no começo da Geopolítica como ciência, entre determinismo e possibilismo. Dessa forma, o conceito do “político” schmittiano permite a introdução da análise do discurso de maneira a identificar como o “nós” e o “eles”, presentes em toda relação da alteridade, pode afetar a percepção dos atores conduzindo- os à cooperação ou ao conflito diante da escassez de recursos naturais. Utilizando uma análise hipotético dedutiva foram comparadas lógicas da segurança energética com alguns casos históricos a fim de se inferirem relações de alteridade. Concluiu-se que fatores geográficos não determinam resultados e que o tipo de relação de alteridade entre atores tem capacidade explicativa maior nos estudos de Geopolítica. Palavras-chave: Geopolítica; guerra por recursos naturais; pós-estruturalismo 1 Professor Doutor em Ciência Política (UFF), membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra.

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AS GUERRAS POR RECURSOS NATURAIS E O “POLÍTICO”

SCHMITTIANO: ENTRE O DETERMINISMO E O POSSIBILISMO

NA GEOPOLÍTICA.

Marcos Cardoso dos Santos1

RESUMO

Sendo a guerra a continuação da política, a relação entre ambas levanta questionamentos

sobre suas essências. Em um sistema internacional anárquico no qual a escassez de

recursos constitui uma realidade, a tendência a conflitos armados entre Estados é vista

por alguns pesquisadores como algo irremediável. A interação dos pensamentos de Carl

Schmitt e Clausewitz permite investigar o sistema de significados que serve de arcabouço

para a percepção da política e do “político” como influenciadores da guerra. Tomando

uma abordagem pós-estruturalista, por meio da qual defende-se que os significados

antecedem a todo imediatismo factual, argumentamos que o princípio da alteridade é

capaz de explicar o comportamento social dos Estados diante do antagonismo entre

interesses geopolíticos. Para Carl Schmitt o “político” não é uma substância, possuindo

assim uma essência, mas sim um conceito que permite distinguir as relações entre amigos

e inimigos. Analisando conflitos armados ocorridos no Golfo Pérsico em 1972, 1979,

1991 e 2003 verificamos que a cooperação para a manutenção do mercado constituiu-se

no interesse comum dos países consumidores. Embora a cooperação não seja a regra, sua

existência reacende discussões, ocorridas no começo da Geopolítica como ciência, entre

determinismo e possibilismo. Dessa forma, o conceito do “político” schmittiano permite

a introdução da análise do discurso de maneira a identificar como o “nós” e o “eles”,

presentes em toda relação da alteridade, pode afetar a percepção dos atores conduzindo-

os à cooperação ou ao conflito diante da escassez de recursos naturais. Utilizando uma

análise hipotético dedutiva foram comparadas lógicas da segurança energética com

alguns casos históricos a fim de se inferirem relações de alteridade. Concluiu-se que

fatores geográficos não determinam resultados e que o tipo de relação de alteridade entre

atores tem capacidade explicativa maior nos estudos de Geopolítica.

Palavras-chave: Geopolítica; guerra por recursos naturais; pós-estruturalismo

1 Professor Doutor em Ciência Política (UFF), membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação

em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra.

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ABSTRACT

Since war is the continuation of politics, the relationship between the two raises questions

about their essences. In an anarchic international system in which scarcity of resources is

a reality, the tendency towards armed conflicts between states is seen by some researchers

as inevitable. The interaction of the thoughts of Carl Schmitt and Clausewitz allows to

investigate the system of meanings that serves as a framework for the perception of

politics and the "political" as influencers of the war. Taking a post-structuralist approach,

by which it is argued that meanings precede all factual immediacy, we argue that the

principle of otherness is capable of explaining the social behavior of states in the face of

antagonism between geopolitical interests. For Carl Schmitt the "political" is not a

substance, having an essence, but a concept that distinguishes the relations between

friends and enemies. Looking at armed conflicts in the Persian Gulf in 1972, 1979, 1991

and 2003, we found that cooperation to maintain the market was in the common interest

of the consuming countries. Although cooperation is not the rule, its existence rekindles

discussions, which took place at the beginning of Geopolitics as a science, between

determinism and possibilism. In this way the Schmittian "political" concept allows the

introduction of discourse analysis in order to identify how "we" and "they", present in

every relation of alterity, can affect the perception of the actors leading them to

cooperation or conflict with the scarcity of natural resources. Using a deductive

hypothetical analysis, energy security logics were compared with some historical cases

in order to infer relationships of otherness. It was concluded that geographic factors do

not determine results and that the type of relation of alterity between actors has greater

explanatory capacity in the studies of Geopolitics.

Keywords: Geopolitics; war for natural resources; post-structuralism

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INTRODUÇÃO

As guerras por recursos naturais tem sido objeto de estudo por vários

pesquisadores (Klare 2001). Com o fim da Guerra Fria muitos defenderam que as

motivações para a guerra passariam a se relacionar com a insegurança referente à escassez

de recursos naturais (Shlomi 2011). Outros defendiam o fim da História com o surgimento

de conflitos entre civilizações. Com o ataque terrorista de 11 de setembro às torres

gêmeas, verificou-se que o terrorismo, não obstante tratar-se de um conflito com

fundamentação cultural e de extremismo religioso, poderia também tornar-se uma ameaça

ao fornecimento de energia ao Ocidente. Estrategicamente, Grandes Potências

militarizaram a gestão de recursos naturais estratégicos, como o petróleo, a fim de

proteger a produção e fornecimento desse recurso.

O presente trabalho visa analisar duas perspectivas que levantaram discussões no

início dos estudos da Geopolítica. Possibilismo e determinismo eram visões utilizadas

para conceituar o debate sobre a influência da ação humana e dos fatores geográficos na

dinâmica entre Geografia, Política e História. Tal dinâmica é apresentada por alguns

autores como a própria concepção da Geopolítica (De Castro 1999).

Por tratar-se de uma investigação de cunho pós-estruturalista, serão enfatizados o

aspecto relacional dos significados, a alteridade resultante das afirmações identitárias e o

“político” como fundamento para compreensão das relações de poder entre diversos

atores. Inicialmente analisamos a Geopolítica como escrita, um termo usado por Jacques

Derrida para explicar a formação de conceitos. Em seguida trouxemos à discussão o

pensamento de Carl Schmitt sobre o “político” e suas implicações para análise de relações

antagônicas. O possibilismo e o determinismo, discutidos no início dos estudos de

Geopolítica, foram investigados a fim de guiar a análise dos fatos históricos ocorridos no

Golfo Pérsico. O exame sobre cooperação e conflito em temas de Geopolítica foi

realizado ligando as lógicas da segurança energética defendidas por Felix Ciuta (2010)

com as tensões e guerras de 1973, 1979, 1991 e 2003 que tiveram lugar no Golfo Pérsico.

Utilizando o método hipotético-dedutivo, enfocando questões relativas ao gerenciamento

do fluxo comercial de petróleo, concluímos que o tipo de relação de alteridade entre

consumidores e produtores tem maior poder explicativo do que o determinismo

geopolítico que potencializa os fatores geográficos em detrimento da ação humana em

sua esfera coletiva e social. Para início das discussões é fundamental que examinemos a

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Geopolítica como “escrita”, como resultado de eventos históricos e sociais e não como

possuidora de uma essência.

1- GEOPOLÍTICA COMO “ESCRITA”

O termo Geopolítica foi criado pelo cientista social sueco Rudolf Kjellen em 1899. O

conceito tem tido uma longa e variada história no século XX, indo além de seu significado

original (Tuathail 2003: 1). O significado dos conceitos tende a mudar ao longo do tempo

e do espaço. Por esta razão a abordagem pós-estruturalista deste trabalho vai de encontro

a visões fundacionistas que defendem a pureza da relação sujeito-objeto e a essência de

conceitos que permaneceriam ao longo da história (Marsh e Furlong 2002). Conforme

Jacques Derrida, um dos fundadores do pós-estruturalismo, não há significados

completos, fixos ao longo do tempo. O que há são metáforas, tentativas de fixar

significados em significantes que “deslizam” de maneira a não permitir a permanência de

significados diante de estruturas sociais de linguagens que estabelecem discursos que

buscam a hegemonia. Não há um ponto central capaz de fixar indefinidamente os

significados (Derrida 2001: 354). O termo hegemonia, na verdade, não é o preferível para

Derrida. O autor prefere usar termos como iterabilidade, traços e escritura para explicar

como, metaforicamente, discursos estabelecem significados precários que dominam

determinados campos sociais (Derrida 1988: 7). A estrutura de significados em

determinado campo discursivo é formada metaforicamente (Derrida 2001: 16)

Não há termos positivos, i. e., que possuam significados em si mesmos, antes os

significados são relacionais, dependem da existência de outros termos para que possam

ser coletivamente compreendidos. Só podemos conhecer o significado de pai porque o

comparamos a mãe, filho, tia e etc. (De Saussure 1959: 120). Conforme dito, não há como

um indivíduo estabelecer, de forma independente, os significados das coisas pois a

linguagem resulta de uma interação coletiva (Hershinger 2011).

Diante dessas premissas referentes à estrutura da linguagem, o conceito de

Geopolítica, mesmo o inicialmente “estabelecido” por Kjellen representava o que

historicamente compunha uma cadeia de significantes aceita e entendida por determinado

grupo social dentro de um escopo espaço-temporal (Laclau e Mouffe 2001).

Therezinha de Castro, embora não se posicionando epistemológica e ontologicamente

como pós-estruturalista, ao definir Geopolítica como a dinâmica da interação entre

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política, geografia e história revela a condição precária da fixação de limites de

significados para a Geopolítica (De Castro 1999: 22-3).

Dessa forma, a visão pós-estruturalista de Geopolítica, embora desagrade a alguns

geopolíticos “dogmáticos”, demonstra o esforço de determinadas comunidades

epistêmicas em estabelecer discursos hegemônicos, tendo por motivação ou força motriz

o que alguns autores chamam de “falta subjetiva” (subject lack) (Laclau e Zac 1994: 12)

que nada mais é do que o reconhecimento, ainda que frustrante, da impossibilidade do

estabelecimento de um significado último (Howarth 2013: 159, 246). Nesse sentido,

comunidades epistêmicas nada mais fazem do que “escrever” Geopolítica, repetindo

traços que alteram e criam identidades que passam a ser vistas como naturalmente dadas,

como verdades científicas muitas vezes tidas por inquestionáveis (Laclau e Mouffe 2001).

O significado de Geopolítica segue o princípio da intertextualidade. A Geopolítica não é

capaz de “representar” objetivamente o mundo por ela mesma estudado. A Geopolítica é

“escrita” seguindo o princípio da intertextualidade por meio do qual o seu significado é

produzido de texto para texto antes de ser a expressão entre o texto e o “mundo” (Derrida

1972: 38). A Geopolítica como “escrita” é constitutiva e não simplesmente refletiva, ou

seja, com a capacidade de expor a realidade objetiva do mundo. Novos mundos são

produzidos de velhos textos, e velhos mundos são a base para novos textos. O que é

verdadeiro está dentro do próprio texto (Barnes e Duncan 2006: 2-3).

Vale ressaltar que a escrita, decorrente da ausência de um significado transcendental

que caracterize a essência de determinado “objeto” ou conceito, diz respeito a diversos

tipos de signos, sejam eles visuais, sonoros ou escritos, no sentido estrito da palavra. O

ponto principal do pensamento de Derrida é que, como os significados são relacionais, e

não positivos em si mesmos, a diferença é o que nos faz inferir que aquilo que entendemos

por significado nada mais é do que uma relação entre significantes (Derrida 1972: 38).

Dessa forma, figuras de linguagem como a metáfora dominam o saber geopolítico do qual

inferimos a estratégia Geopolítica para diversos temas na área de segurança e defesa. O

uso de figuras de linguagem em decorrência da falta de um significado último para a

Geopolítica é manifesto, por exemplo, no antropomorfismo estatal ou, por alguns

chamado, organicismo estatal dos primeiros pensadores da Geopolítica como Kjellen,

Haushoffer e Mackinder, os quais utilizam termos como “O Estado como forma de vida”,

“espaço vital” e “heartland”.

A ausência ou impossibilidade de fixação de significados na Geopolítica leva-nos

a concluir que a representação dada a temas geopolíticos resulta da interação social dos

Estados. Essa interação ocorre diante de um campo discursivo no qual domina a

alteridade, ou seja, onde o “outro” pode ter representações metafóricas que vão desde

amigo a adversário ou inimigo. Tal campo discursivo é capaz de explicar porque questões

Geopolíticas podem resultar tanto em cooperação como em conflito. Este trabalho busca

mostrar que não há determinismo no que hoje em dia se conceitua como Geopolítica.

Diante da escassez de recursos, a militarização de sua gestão é uma possibilidade e não

um destino. Ademais, mesmo a militarização não implica, necessariamente, em conflitos

entre Estados tendo em vista que o poder militar pode ter diferentes “representações” para

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diferentes Estados. A questão é o que os elementos da Geopolítica “representam” para

determinada elite responsável por tomar decisões estratégicas dentro de determinado

escopo espaço-temporal. Guzzini declara que ao aplicar uma abordagem pós-

estruturalista na análise Geopolítica problematiza-se como representações geográficas

interagem com a realidade social (Guzzini 2012:13)

Partindo-se da ideia de De Castro (1999) quanto à dinâmica da relação entre

geografia, política e história abordaremos inicialmente o político schmittiano para

chegarmos à questão da alteridade e, consequente, à formação da identidade e às

consequências para o estabelecimento do interesse nacional.

2- O POLÍTICO SCHMITTIANO

Os estudos de Carl Schmitt têm gerado muitas controvérsias, principalmente devido

a sua ligação com o nazismo. No entanto, alguns acadêmicos, como Chantal Mouffe

(1999) por exemplo, reconhecem o valor intelectual de suas obras, assim como a

pertinência de seus pensamentos para o contexto internacional ora existente. Schmitt pode

ter seus trabalhos divididos em duas fases intelectuais: durante e depois de seu

envolvimento com o nazismo (Kervégan 1999: 55). Em ambas as fases, sua conceituação

do “político” é centrada no papel do Estado, com ênfase na sua soberania. No entanto,

autores pós-estruturalistas têm visto no pensamento de Schmitt uma abertura para se

discutir alteridade, ou seja, o aspecto relacional dos significados e, consequentemente, de

toda formação identitária.

Ao apresentar ontologicamente o conceito do “político”, Carl Schmitt entende que

somente definindo as categorias do político seria possível obter o seu conceito. Dessa

forma, o contraste com outras atividades humanas e seus respectivos critérios, como a

moral, a estética, a economia, Schmitt chega à seguinte conclusão:

Vamos assumir que no campo da moral as distinções finais são entre

bom e mau, em estética belo e feio, em economia lucrativo e não

lucrativo. A questão então é se há também uma distinção especial que

possa servir como simples critério do político e do que ele consiste. [...]

A distinção específica do político à qual ações políticas e motivos

podem ser reduzidos é aquela entre amigo e inimigo (Schmitt 1996: 26)

A relação do pensamento de Schmitt com o pós-estruturalismo pode ser vista na

definição do autor sobre quem vem a ser o inimigo político. Este não necessariamente

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precisa ser moralmente mau ou esteticamente feio, nem precisa se parecer com um

competidor em termos econômicos. Ele é, entretanto:

[...] o outro, o estranho, e é suficiente para sua natureza que ele seja, de

uma forma especialmente intensa, algo existencialmente diferente e

alheio, de tal forma que em caso extremo sejam possíveis conflitos com

ele (Schmitt 1996: 27).

Chantal Mouffe utiliza-se do conceito schmittiano para desenvolver os conceitos

de agonismo e antagonismo. Tais conceitos fundamentam a análise política de Mouffe

quanto à formação de discursos hegemônicos e, consequentemente, de interesses de

grupos sociais (Mouffe 2005:33). Segundo Mouffe o antagonismo possui diversas

formas, sendo uma delas o agonismo. Em todas as formas de antagonismo há a figura do

Outro. Entretanto, em uma relação agônica há regras previamente aceitas pelos

competidores. Já na forma radical do antagonismo o Outro aproxima-se da figura do

inimigo radical que precisa ser eliminado (Mouffe 2005: 75). Eva Herschinger argumenta

que o Outro não necessariamente constitui uma ameaça; de acordo com ela há vários

graus de alteridade. A autora considera este aspecto relevante para explicar como algumas

questões podem mudar, e outras não, da política normal para o campo da securitização

requerendo, então, o uso de medidas extremas (Herschinger 2011: 7).

Ao trazer sua análise para o campo das relações internacionais, Mouffe adverte

que a tendência de determinadas elites que lideram as tomadas de decisão em política

externa a basearem suas posturas em registros morais é o que pode fazer com que

determinada relação social entre Estados desloque-se do agonismo para o antagonismo

(Mouffe 2005: 75). Quando outro Estado, ou ente político, passa a ser visto não mais

como adversário, mas como o inimigo que precisa ser eliminado, há uma desintegração

do processo comunicativo. Se além de ser o outro ele torna-se o mal que precisa ser

extirpado, tal relação tende à concepção de um inimigo radical cuja eliminação compensa

qualquer custo. Fundamentando seu pensamento, Mouffe menciona a atual guerra ao

terror capitaneada pelos Estados Unidos (Mouffe 2005: 75).

Conforme dito no início desse trabalho, como os significados são relacionais,

aquilo que “é” só pode ser por força de um exterior constitutivo (constitutive outside)

(Laclau 1990: 235) que, paradoxalmente, constitui sua condição de possibilidade e

impossibilidade. O outro é aquele que me impede de ser eu mesmo e, concomitantemente,

me faculta existir (Laclau e Mouffe 2001: 125). Esse é o princípio da diferença explicitado

por Derrida, cujas consequências são manifestas em uma relação de alteridade.

Dessa forma, a identidade capaz de interferir na interpretação do que vem a ser o

interesse nacional é entendida como posições do sujeito dentro de determinado discurso

(Foucault 1969: 71,74) (Laclau e Mouffe 2001: 105). Para cada tema da agenda

internacional, incluindo os temas geopolíticos, haveria um discurso que constitui a

verdade para determinado grupo social ou elite (Dos Santos 2016: 46). Conforme

Foucault, o mesmo discurso que sujeita indivíduos forma as suas identidades produzindo

discursos e saberes. Toda formação de conhecimento implica o exercício de poder

(Foucault 1975:32). O que defendemos como ciência exerce poder sobre nós resultando

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em conformações epistêmicas que, por sua vez, são capazes de estabelecer o que vem a

ser interesse nacional em determinado tema da agenda dos países. Com a Geopolítica não

poderia ser diferente.

Dentro dessa perspectiva, a guerra como continuação da política, conforme

Clausewitz (1989: 87) não pode ser dissociada do “político”, da relação de alteridade que

estabelece nossa percepção e representação do Outro e de nós mesmos como Estado-

Nação. Esta alteridade define os objetivos políticos estabelecidos inclusive na formação

das grandes estratégias dos Estados (Martel 2015).

Nos primeiros debates sobre a Geopolítica, dois aspectos mereceram a atenção

dos pesquisadores do tema. Dentro da visão da Geopolítica como um saber que retrata a

dinâmica entre geografia, história e política (De Castro 1999), até que ponto a conduta

dos Estados pode ser determinada pela geografia? Em que posição estaria a ação humana,

principalmente em termos de domínio tecnológico, quanto a sua capacidade de influenciar

as decisões estratégicas dos Estados?

3- POSSIBILISMO E DETERMINISMO EM GEOPOLÍTICA

O interesse nacional é uma construção social e um indicador chave do comportamento

dos Estados (Burchill 2005: 186). Conceitos que interferem nesta construção, como

soberania por exemplo, apresentam-se como discursos nos quais certas elites podem se

situar ou não. De acordo com Jens Bartelson deveríamos evitar questionar diretamente o

que é soberania e, em vez disso, perguntar como o tema tem sido apresentado e conhecido

ao longo do tempo e conectar a resposta a esta questão com o porquê de ser tão difícil

falar de soberania e conhecer seu significado nos dias atuais (Bartelson 2001: 4).

Da mesma forma, os objetivos políticos que norteiam a grande estratégia de um

Estado são condicionados histórica e culturalmente. Eles dependem da realidade

Geopolítica particular dos Estados e dos valores compartilhados por sua população, mais

precisamente suas elites. (Martel 2015: 18). Tais aspectos intangíveis ligados tanto à

construção do interesse nacional quanto ao estabelecimento da política desvelam como

discursos e significados são socialmente formados a ponto de interferirem na percepção

dos Estados. Ao comentar sobre inovações tecnológicas e sua influência sobre a condução

da grande estratégia, Martel critica o posicionamento de Gray que vê a tecnologia com a

capacidade de determinar se e como um Estado conduz a sua guerra e, consequentemente,

sua grande estratégia. Para Martel, armas não são inerentemente ofensivas ou defensivas,

mas dependem das intenções e estratégias dos decisores políticos que as usam (Martel

2015:18).

Nesse contexto, falar sobre possibilismo refere-se às diversas formas pelas quais o ser

humano interfere no seu ambiente, entre elas a tecnologia. De la Blache foi um dos

primeiros pesquisadores em Geografia Humana a tratar do assunto. Com sua obra

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Principes de Géographie Humaine, o autor critica o pensamento científico que de longa

data era atraído pelas influências do mundo físico e sua ação sobre as sociedades

humanas. Conforme De La Blache, o papel do homem é tanto ativo quanto passivo em

relação ao seu ambiente. Ele observa que a ação do homem é exercida mais facilmente

nos locais onde há abundância de recursos (De La Blache 1955: 13). De Castro chama de

possibilismo o fato de o homem gozar de liberdade numa proporção que aumenta na razão

direta do avanço da Ciência e da Tecnologia. De Castro não considera os trabalhos de De

La Blache como pesquisas em Geopolítica haja vista não serem encontradas em seu

trabalho as diretrizes que caracterizam a Política e a Estratégia do Estado-Nação para a

consecução de seus objetivos (De Castro 1999: 26). De La Blache entende que se a

natureza impusesse quadros rígidos aos homens estes não seriam capazes de realizar obras

de transformação e de restauração em seu ambiente (De La Blache 1955). Meira Mattos

enquadra Vidal de la Blache, juntamente com outros autores franceses como Brunhes e

Vallaux, também como possibilistas devido ao fato de considerarem o fator geográfico,

na interação homem-geografia, como menos ponderável que o fator político (Meira

Mattos 2007: 21). Tanto De Castro como Meira Mattos conceituam o possibilismo em

oposição ao determinismo defendido pela escola alemã de Geopolítica. Meira Mattos

descreve a escola determinista como aquela que considera o fator geográfico

determinante no processo civilizatório. Defendendo o que alguns chamam de organicismo

ou antropomorfismo do Estado, o final do século XIX e primeiras décadas do século XX

marcaram o que Meira Mattos chamou de ‘grande progresso nos estudos das ciências

sociais e da ciência geográfica’. Surgem na Alemanha os livros Antropogeografia e

Geografia Política, de Friedrich Ratzel, e a obra pioneira Geopolítica , de Rudolf Kjellen,

esta já transpassando a Geografia Política, estática, panorâmica, para um cenário vivo,

movimentado, prospectivo. Segundo Meira Mattos, Ratzel, ao comparar a Geografia

Política com a Geopolítica, afirmou que aquela era como uma fotografia, enquanto esta

era a cinematografia, tendo em vista ser produto da interação dinâmica da Política,

Geografia e História (Meira Mattos 2007: 20-1). O determinismo desses autores é

manifesto no antropomorfismo estatal que Ratzel, por exemplo, retrata em seu livro Leis

do Crescimento Territorial dos Estados. Com suas sete leis do expansionismo estatal,

Ratzel serve de inspiração para o General Karl von Haushofer, professor da Universidade

de Munique, cujas obras serviram como endosso científico para as teses expansionistas

da Alemanha de Adolf Hitler (Meira Mattos 2007: 23).

Há que se ressaltar que enquanto para De Castro o possibilismo enfatizava a ação

humana relativa à Ciência e Tecnologia e sua interferência no espaço físico, para Meira

Mattos o possibilismo enfatizava o fator político na interação homem-geografia,

considerando a ação política do homem e não seu aspecto científico e tecnológico.

Entendemos que a visão de De la Blache inclui a ação humana como um todo, o que

englobaria tanto a Ciência e Tecnologia quanto a ação política. Guzzini cita o pensamento

de alguns realistas clássicos, como Raymond Aron, que veem a tecnologia como um fator

capaz de agregar valor aos recursos naturais (Guzzini 2012: 14). Dessa forma, a

tecnologia é vista como uma variável a interferir na mensuração do poder nacional.

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Entretanto, uma visão pós-estruturalista da Geopolítica entende que os valores dos fatores

geográficos não são dados naturalmente. O significado dos fatores geográficos resulta do

entendimento que os atores possuem sobre eles. Independente da importância de certos

territórios em termos de recursos naturais ou humanos, é seu lugar na representação dos

atores que mais fortemente condiciona seu valor atual (Guzzini 2012: 14). Sendo assim,

o possibilismo deve ser entendido como mais do que simplesmente a influência da

Ciência e Tecnologia nos fatores geográficos. Ele deve enfatizar a ação humana em uma

amplitude maior do que a científica, deve ressaltar a inserção humana em discursos que

são capazes de definir o entendimento e a interpretação dos fatores geográficos. Nesse

contexto, é pertinente que analisemos o conceito de segurança energética, tendo em vista

sua proximidade conceitual com a Geopolítica.

4- COOPERAÇÃO E CONFLITO EM TEMAS DE GEOPOLÍTICA

Para discutirmos cooperação e conflito envolvendo a escassez de recursos

entendemos que, seguindo uma perspectiva pós-estruturalista, a exposição dos

significados do que usualmente é chamado de “segurança energética” (energy security)

serve como um profícuo ponto de partida. Felix Ciuta (2010) apresenta três “lógicas” que

fundamentam os significados de segurança energética: a lógica da guerra, a lógica da

subsistência e a lógica da totalidade e reflexividade. Iremos nos ater às duas primeiras

lógicas, tendo em vista que para a nossa análise a última não oferece argumentos teóricos

suficientes para investigação de conflito e cooperação por meio da qual possamos inferir

conclusões referentes ao possibilismo e ao determinismo. Considerando as duas primeiras

lógicas como hipóteses, apresentaremos uma análise hipotético-dedutiva com casos que

exemplificam a questão da alteridade, conforme a noção do “político” schmittiano. Tal

análise nos permitirá, também, ressaltar, de acordo com o conceito de possibilismo aqui

discutido, a ação ativa do ser humano, mais especificamente das elites que participam do

processo decisório em assuntos de segurança e defesa envolvendo questões de

gerenciamento de recursos energéticos.

4-1 A lógica da guerra

A lógica da guerra é a que considera a sobrevivência do Estado como o objetivo

principal de uma política externa. Dessa forma, partir para um conflito armado é

justificável na medida em que a escassez de determinado recurso energético pode levar

um país a deixar de existir. Tal lógica se assemelha à visão antropomórfica do Estado

apresentada pela Geopolítica clássica (Ciuta 2010: 130).

Um efeito chave dessa lógica é o de “capturar” questões que, usualmente, não

estão associadas com a guerra e apagar suas características distintivas. A implacável

“gramática” do conflito abole o significado de energia em si dando-lhe uma importância

que está ligada a distribuição de capacidade dos Estados no sistema internacional. No

contexto europeu, por exemplo, o problema não é necessariamente energético (mais

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especificamente o gás), mas sim os ‘interesses geopolíticos da Rússia’ e outros Estados

fornecedores cuja força torna-se inerentemente ameaçadora. O efeito dominante da lógica

da guerra é a militarização da energia. Ainda que os Estados fornecedores não manifestem

o desejo de reduzir sua produção mantendo assim o funcionamento do mercado, a

capacidade relativa em termos de posse de recursos energéticos passa a ter um significado

propenso à beligerância e militarização do gerenciamento do recurso energético em

questão. Essa lógica modifica não somente o vocabulário da segurança energética, mas

também sua racionalidade política (Ciuta 2010). Shlomi Dinar afirma que a grande

questão é como os Estados percebem a assimetria em termos de posse de recursos

energéticos (Dinar 2011: 13). Ciuta ao analisar a relação da Rússia com a União Europeia

no que diz respeito à dependência desta última, em termos de fornecimento do gás russo,

afirma que durante a Guerra Fria a preocupação da OTAN com a referida questão era

menor do que na atualidade (Ciuta 2010: 130). Para Guzzini há um reavivamento

geopolítico na Rússia decorrente de uma crise identitária pós-Guerra Fria. Não

encontrando um novo caminho dentro do liberalismo, o retorno à Geopolítica clássica foi

a opção adotada pela elite russa (Guzzini 2012: 241). Tal postura gera desconfiança nos

membros da OTAN quanto ao compromisso russo com uma economia de mercado no

setor energético. Até que ponto a assimetria russa em relação à Europa, em termos de

posse de gás e petróleo, não seria usada como instrumento de coerção? Nesse sentido, a

ação dos Estados Unidos ao redor do mundo, militarizando a gestão de recursos

energéticos, é vista como uma decisão estratégica a fim de garantir o funcionamento do

mercado. Para Moran e Russel a questão para os Estados Unidos não é se se pode confiar

no mercado, mas sim se e como o mercado pode ser defendido, caso seja necessário

(Moran e Russel 2009: 12). Obviamente que essa mesma postura de “proteção” do

mercado com meios militares apresenta significados que podem ser interpretados de

diversas maneiras pelos Estados de determinada região. O que para alguns pode

representar segurança para outros significa insegurança tem em vista o poder dissuasório

dos meios militares empregados. O Outro para alguns Estados pode não representar o

garantidor do funcionamento da ordem internacional ou do bem coletivo, mas sim um

imperialismo arrogante (Moran e Russel 2009: 13).

4-2 A lógica da subsistência

A lógica da subsistência não apela para a sobrevivência do Estado, mas sim para

a sua funcionalidade. A escassez de recursos energéticos é vista como uma ameaça ao

funcionamento estatal, causando transtornos nos campos econômico e político sem,

contudo, causar a extinção do Estado. A busca por um nível adequado de suprimento

energético não é conduzida por uma preocupação com a sobrevivência estatal, mas pela

demanda funcional de vários setores de atividade, o que significa que sua falta não leva à

extinção, mas à disfunção. Enquanto a lógica da guerra atém-se à quantidade de recursos

energéticos em posse dos Estados, a lógica da subsistência é um modelo complexo com

uma interligação de segmentos e níveis de interação (Ciuta 2010: 132). De acordo com

essa lógica, diversos atores possuem interesse em garantir a produção e fornecimento de

energia, o que traz à lógica da subsistência uma grande preocupação com a manutenção

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do mercado. Essa lógica possui duas características chave: segregação e multiplicidade.

A segregação da energia é visível em três aspectos:

1- O tipo de recurso energético;

2- Os setores de atividade envolvidos (extração, transporte, distribuição); e

3- Os tipos de atores (produtores, disruptores, fornecedores, protetores do

mercado (wardens), consumidores, distribuidores, compradores, vendedores,

etc)

As políticas voltadas para a segurança energética podem variar quanto aos seus

enfoques. Para a União Europeia a maior preocupação é com o suprimento. Debates

envolvendo a participação da OTAN em segurança energética focam mais a infraestrutura

necessária (Ciuta 2010: 132).

A segunda característica a lógica da subsistência é a multiplicação de atores

envolvidos na segurança energética, incluindo atores securitizantes, objetos de

referência2, experts, elaboradores de políticas e agentes reguladores. Esse aspecto não é

surpreendente haja vista que no campo energético governos, organizações internacionais,

lobbies, ONGs, movimentos civis e de negócios são considerados como partes

interessadas (stakeholders). Os Estados permanecem como os principais atores, mesmo

em situações em que o tema não é securitizado (declarado por um ator proeminente como

objeto existencialmente ameaçado). Isso devido ao fato de o Estado ser o gestor das

atividades reguladoras do setor energético (Ciuta 2010: 132-3).

Devido a essa multiplicidade de atores, Dinar analisa a questão das guerras por

recursos naturais utilizando-se da teoria da ação coletiva de John Rawls. Quando os

recursos, naturais ou de outros tipos, são abundantes, esquemas de cooperação tornam-se

supérfluos. Por outro lado, quando as condições são particularmente extremas,

empreendimento cooperativos falham. Uma situação de escassez moderada, portanto,

fornece um ímpeto adequado para ação entre as partes envolvidas (Rawls, 1999: 110).

Dinar afirma que há outros fatores que podem interferir no sucesso ou não de processos

cooperativos (Dinar 2011: 10-11). No entanto, para não aprofundar demasiadamente o

debate, enfatizaremos a teoria de John Rawls, defendida por Dinar, para prosseguirmos

nossa discussão. Ademais, a foco deste trabalho é demonstrar que pela vertente

possibilista, a ação humana, em seus mais diversos aspectos, é capaz de influenciar as

decisões políticas tomadas em questões relacionadas a recursos naturais. O conflito

armado torna-se uma possibilidade, e não mais um destino quando abordamos temas

geopolíticos.

Dentre os casos de cooperação em situação de escassez de recursos apresentados

por Dinar, escolhemos os que envolviam a gestão do fornecimento e produção de petróleo

no Golfo Pérsico. Os casos analisados se referem aos anos de 1973, 1979, 1991 e 2003.

2 Os termos usados se referem à teoria da securitização de Barry Buzan, Ole Wæver e Jaap de Wilde

(1998). Agente securitizante é o que enuncia o ato de fala (discurso) que declara determinado objeto de

referência como ameaçado existencialmente. O objeto de referência pode ser o Estado em si ou algum

outro elemento como cultura da sociedade, meio ambiente, economia, entre outros.

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Vale ressaltar que ao falar de cooperação Fettweis (2011) não advogada a ausência de

mobilização de forças militares nos anos de 1991 e 2003. O enfoque é quanto a conflitos

entre países consumidores devido a uma possibilidade de escassez relativa de

fornecimento de petróleo no Golfo Pérsico. Segundo Fettweis (2011) os Estados

consumidores, e principalmente as Grandes Potências, agiram cooperativamente para

garantir o fluxo comercial de petróleo na região. Em 1971, por exemplo, o embargo árabe

que levou a redução da produção de petróleo no Golfo Pérsico, além de revelar a extensão

e profundidade da dependência do Ocidente deixou claro, também, que a grande

rivalidade nesse tema geopolítico não era entre as Grandes Potências, mas entre

consumidores e produtores de petróleo (Fettweis 2011: 206). Com certeza havia um grupo

de policymakers nos Estados Unidos que se posicionavam favoráveis a uma “captura”

dos campos petrolíferos árabes, principalmente quando se percebeu um interesse comum

entre os países consumidores. Henry Kissinger, em uma entrevista ao Business Week,

recusou-se a descartar o uso da força. Ele ressaltou que “uma coisa seria usá-la no caso

de disputas sobre o preço” e outra “onde há um estrangulamento real do mundo

industrializado” (Fettweis 2011: 206). No entanto, os Estados não se guiaram pela lógica

realista durante o embargo. Conforme ficou demonstrado, Moscou e Washington

chegaram à mesma conclusão sobre a viabilidade de se tomarem os campos petrolíferos

no Golfo Pérsico. Muito embora os soviéticos tivessem a óbvia vantagem da proximidade

e um maciço desequilíbrio em forças disponíveis na região, eles não pareciam considerar

seriamente esse tipo de intervenção militar (Fettweis 2011: 208).

Em 1979 a invasão do Iran pela União Soviética foi considerada pela

administração Carter como o primeiro passo de uma grande estratégia visando objetivos

mais promissores. O presidente Carter chamou a situação de “a maior ameaça à paz desde

a Segunda Guerra Mundial”. Os Estados Unidos responderam reiterando seu duradouro

compromisso em defender o Golfo Pérsico mobilizando a Força Tarefa Conjunta de

Rápido Emprego, que ao final tornou-se o Comando Central estabelecendo uma presença

militar permanente no Golfo. Uma guerra por recursos naturais pareceu ser uma real

possibilidade. No entanto, arquivos recentemente tornados públicos revelaram que o

ataque soviético não se tratava de um primeiro movimento em um grande avanço em

direção ao Golfo, mas antes um esforço para remover um regime fantoche na sua

proximidade que se mostrava indisposto a cooperar com os soviéticos. De fato, não há

nenhuma evidência para apoiar a ideia de que nunca houve um plano soviético para

controlar o petróleo do Golfo, um pesadelo para os Estados Unidos. No entanto, os

soviéticos nunca tentaram interferir no trânsito do petróleo do Golfo pelos vulneráveis

pontos de estrangulamento (choque points) marítimos da região. Mesmo nos momentos

mais conturbados da Guerra Fria o Ocidente e os Soviéticos nunca deixaram que as crises

no Golfo Pérsico os conduzissem a um conflito armado. Nenhum dos lados parecia sentir

que uma guerra pelo controle do fluxo de petróleo valeria a pena (Fettweis 2011: 208).

Em 1991 e 2003 ficou evidente que desde o colapso da União Soviética as Grandes

Potências têm um padrão de interação cooperativo e não conflitivo em relação ao petróleo

do Golfo Pérsico. Como foi percebido nas duas guerras entre Estados Unidos e Iraque, a

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resposta dos Estados consumidores tem sido cooperativa. As Grandes Potências não têm

permitido que os países produtores fomentem divisões entre os consumidores, os quais

têm agido como se tivessem internalizado normas pacíficas em vez da insegurança gerada

pela anomia de um sistema de autoajuda (Fettweis 2011: 209). A ação militar

estadunidense no Iraque, após a invasão do Kwait, não teve a objeção das Grandes

Potências. Ao testar o sistema internacional à época vigente, Sadam Hussein não contou

com o apoio da Rússia. A ação dos Estados Unidos representou o interesse comum dos

países consumidores com a manutenção do mercado. Já em 2003 não havia a mesma

harmonia entre os países consumidores. A legitimidade da ação estadunidense era

questionável. Eram fortes as oposições diplomáticas às ações da administração Bush em

várias capitais. No entanto, nenhum país industrializado pareceu disposto a apoiar

militarmente o Iraque. Desacordos entre as Grandes Potências sobre a política

internacional para o Golfo Pérsico persistirão, mas medidas militares em oposição aos

Estados Unidos jamais foram consideradas por nenhum outro país industrializado

(Fettweis 2011: 210).

A lógica da subsistência, no entanto, não impede a militarização da segurança

energética, que passa a ser vista como um recurso para garantir a estabilidade do mercado

caso algum Estado não esteja disposto a zelar pela manutenção de um mercado livre.

Conforme apresentado durante este trabalho, a relação de alteridade não necessariamente

implica a figura do inimigo político que precisa ser erradicado. A interdependência

complexa, conforme descrita no aspecto multiplicador da lógica da subsistência,

manifesta o “nós” e o “eles” diante do processo de gestão dos recursos escassos, como a

relação entre consumidores e produtores. Diante da prevalência do discurso liberal de

economia de mercado, controvérsias ligadas ao fluxo comercial de petróleo no Golfo

Pérsico, ao menos no contexto atual, têm direcionado os Estados a cooperarem para a

manutenção do mercado.

Nas duas lógicas apresentadas, seguidas de seus respectivos exemplos históricos,

verifica-se a existência de significados que fundamentam discursos que são adotados por

tomadores de decisão. Não há um discurso “correto”, mas sim discursos que são

sedimentados e que fundamentam as decisões tomadas por determinadas elites políticas.

Sendo assim, o determinismo da Geopolítica, reforçado pela visão antropomórfica do

Estado, não pode ser entendido como uma inferência científica da dinâmica entre

geografia, política e história, mas sim como a leitura de significados produzidos pela

escrita Geopolítica em determinado contexto.

Passemos então às considerações finais, nas quais revisaremos alguns dos

principais pontos abordados concluindo com a visão pós-estruturalista do discurso

geopolítico em suas vertentes possibilista e determinista.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por constituir-se na análise da dinâmica entre Geografia, Política e História,

conceitos de estratégia geopolítica possuem significados que variam ao longo do tempo

e espaço. Tendo em vista o aspecto relacional dos significados, não há como se chegar a

um significado último que represente a essência de um conceito. Para compreensão da

Geopolítica é necessário que se investiguem os aspectos históricos e sociais vivenciados

por elites que tomam decisões na esfera da gestão dos recursos naturais energéticos.

Os conflitos envolvendo os Estados Unidos no Golfo Pérsico revelaram a

prevalência da cooperação entre consumidores para a manutenção do fluxo comercial de

um mercado livre. A relação de alteridade foi entre consumidores e produtores de

petróleo. A relação entre consumidores não implicou em conflitos pela posse dos campos

petrolíferos no Golfo Pérsico, como uma visão determinista da Geopolítica poderia

concluir.

A relação de alteridade implica a manifestação de diversos “Outros” que não

somente o inimigo radical. Mesmo relacionando-se com um adversário ou competidor a

cooperação entre Estados segue sendo uma possibilidade em um ambiente de escassez

moderada de recursos. O “nós” e o “eles” continuam a ter seus significados precariamente

definidos pela representação dada aos recursos naturais em disputa.

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