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AS FOTOGRAFIAS ESCOLARES NA PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Iêda Viana 1 - UTP Grupo de Trabalho – História da Educação Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo As mudanças no campo historiográfico contribuíram para a utilização de novas fontes, temáticas e problemas na construção histórica da área educacional, especialmente na perspectiva da Nova História. Neste artigo serão analisados alguns desses novos documentos históricos a que se tem recorrido, nesse campo investigativo, as fotografias escolares, bem como serão discutidos aspectos metodológicos próprios da análise deste tipo de fonte histórica, a partir de autores como Bencostta (2011), Napolitano (2008), Burke (2004), Martins (2002) e Kossoy (1999). Constituem estas duas ações os objetivos específicos deste texto. O objetivo geral é a captação de indícios da cultura escolar e da cultura social mais ampla que perpassam a interioridade da instituição escolar em estudo. Foram escolhidos registros fotográficos do Instituto de Educação do Paraná Erasmo Pilotto, tradicional instituição de ensino localizada em Curitiba, desde 1876, que correspondem ao período das primeiras décadas do século XX até os dias atuais. Destacam-se no conjunto documental imagens mais correntemente realizadas neste tipo de instituição, ou seja, registros de personagens escolares, de práticas e rituais escolares e de traços da cultura material escolar. Neles identificaram-se práticas, disciplinas, materiais didáticos, uniformes, como traços da cultura escolar; tipo de arquitetura, função e uso dos espaços, materiais e equipamentos como elementos da cultura material escolar; assim como vestígios culturais de imigrantes da sociedade local. Foi também possível perceber nas fontes em geral traços de permanências históricas como no mesmo tipo de fotografia registrada em diferentes épocas sobre o sujeito coletivo classe ou nas práticas desenvolvidas como os desfiles ou atividades, por exemplo; e também foram observadas mudanças culturais expressas nas diferentes formas de comportamento mais formal ou mais maleável na transição da escola tradicional para a escola nova, assim como traços da cultura escolar na cultura social e vice-versa. Palavras-chave: História da educação. Metodologia. Fotografias escolares. Introdução 1 Dra. em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professora no Programa de Mestrado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná.

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AS FOTOGRAFIAS ESCOLARES NA PESQUISA EM

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Iêda Viana1 - UTP

Grupo de Trabalho – História da Educação Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo As mudanças no campo historiográfico contribuíram para a utilização de novas fontes, temáticas e problemas na construção histórica da área educacional, especialmente na perspectiva da Nova História. Neste artigo serão analisados alguns desses novos documentos históricos a que se tem recorrido, nesse campo investigativo, as fotografias escolares, bem como serão discutidos aspectos metodológicos próprios da análise deste tipo de fonte histórica, a partir de autores como Bencostta (2011), Napolitano (2008), Burke (2004), Martins (2002) e Kossoy (1999). Constituem estas duas ações os objetivos específicos deste texto. O objetivo geral é a captação de indícios da cultura escolar e da cultura social mais ampla que perpassam a interioridade da instituição escolar em estudo. Foram escolhidos registros fotográficos do Instituto de Educação do Paraná Erasmo Pilotto, tradicional instituição de ensino localizada em Curitiba, desde 1876, que correspondem ao período das primeiras décadas do século XX até os dias atuais. Destacam-se no conjunto documental imagens mais correntemente realizadas neste tipo de instituição, ou seja, registros de personagens escolares, de práticas e rituais escolares e de traços da cultura material escolar. Neles identificaram-se práticas, disciplinas, materiais didáticos, uniformes, como traços da cultura escolar; tipo de arquitetura, função e uso dos espaços, materiais e equipamentos como elementos da cultura material escolar; assim como vestígios culturais de imigrantes da sociedade local. Foi também possível perceber nas fontes em geral traços de permanências históricas como no mesmo tipo de fotografia registrada em diferentes épocas sobre o sujeito coletivo classe ou nas práticas desenvolvidas como os desfiles ou atividades, por exemplo; e também foram observadas mudanças culturais expressas nas diferentes formas de comportamento mais formal ou mais maleável na transição da escola tradicional para a escola nova, assim como traços da cultura escolar na cultura social e vice-versa. Palavras-chave: História da educação. Metodologia. Fotografias escolares.

Introdução

1 Dra. em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professora no Programa de Mestrado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná.

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Neste artigo propõe-se fazer algumas reflexões sobre a noção de documento histórico,

sob o impacto das mudanças historiográficas, especialmente na perspectiva da Nova História,

o que se revelou no uso de novas fontes, temáticas e problematizações no campo da pesquisa

em História, como resultado de sua aproximação com outras disciplinas acadêmicas.

O foco central da análise será o uso de fotografias escolares na pesquisa em História

da Educação, com a atenção voltada a alguns registros fotográficos (primeiras décadas do

século XX até os dias atuais) do acervo do Instituto de Educação do Paraná Professor Erasmo

Pilotto – IEPPEP, primeira Escola Normal, criada em Curitiba, em 1876.

O objetivo geral da análise documental é a captação de indícios da cultura escolar e da

cultura social mais ampla que perpassam a interioridade da instituição escolar em estudo.

Inicialmente serão discutidos aspectos do referencial metodológico que fundamenta a

crítica documental desse tipo de fonte e a seguir será realizada a análise propriamente dita das

imagens que foram categorizadas como: registro dos sujeitos escolares (professores, alunos,

funcionários e outros); registro das práticas escolares (eventos, rituais e atividades); e registro

da cultura material escolar (arquitetura, disposição e uso dos espaços, materiais didáticos,

móveis e equipamentos).

Procurando entender o funcionamento interno das instituições escolares, a

investigação histórica no campo educacional, a partir dos anos de 1990, vem se interrogando

acerca da capacidade da escola de produzir uma cultura própria e original constituída por e

constituinte, também, da cultura social. Assim, vem ganhando importância nas pesquisas os

trabalhos de André Chervel (1990) que destaca essa originalidade da cultura escolar; de

Antono Vinão Frago (1995) que enfatiza os estudos sobre o espaço e o tempo escolares e a

alfabetização como integrantes da cultura escolar e conformadores de aspectos cognitivos e

motores dos sujeitos sociais; e o de Dominique Julia (2001) que defende a noção de cultura

escolar como conjunto de normas e práticas escolares (VIDAL, 2005), dentre outros. É esta

última noção especialmente que vem contribuindo para a reflexão sobre a história das

disciplinas escolares e para o enfoque sobre as práticas no cotidiano escolar, objetos que nem

sempre se apresentam separados nas análises, segundo Vidal (2005, p.11).

As fontes fotográficas: referencial metodológico

As mudanças epistemológicas que afetaram a produção do conhecimento na História

contribuíram para que os pesquisadores buscassem novas fontes, temáticas e

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problematizações, num diálogo profícuo com outras disciplinas como a antropologia, a

arquitetura, a literatura, a psicologia, a semiótica, dentre outras.

Assim, tanto as tradicionais fontes escritas privilegiadas pelos historiadores metódicos,

fundadores da historiografia clássica, permanecem sendo usadas, como documentos de

natureza diversa vem despertando interesse dos pesquisadores como as fontes orais

(depoimentos, entrevistas), audiovisuais (cinema, rádio, televisão, música, pintura, fotografia,

etc.) e outras.

Para os metódicos, “escreve-se História com documentos” e tão somente. Debruçando-

se sobre as fontes documentais dotados da crítica documental para a busca de “testemunhos”,

afirmavam sua neutralidade e transparência e estabeleciam sua datação e autoria, o que lhes

dava o caráter de “verdadeiros”. Na perspectiva da moderna historiografia, porém, nenhum

“documento fala por si mesmo”. A Nova História aponta o caráter representacional de todas

as fontes, acreditando que são monumentos carregados de intencionalidade e parcialidade.

Deste modo, todo documento histórico é portador de uma tensão entre evidência (de um fato

ou processo histórico) e representação (socialmente construída por alguém ou um grupo ou

uma instituição social), portanto sendo passível de um processo de múltiplas interpretações.

(NAPOLITANO, 2008, p.240).

Nesta perspectiva, estudiosos das fontes fotográficas compreendem que a imagem

fotográfica não é o real, como em geral se pensa no senso comum, mas uma interpretação

dele, ela é um vestígio calcado sobre o real, mas perpassado de significados culturais que

foram construídos no seu processo de produção, o que exige que seu uso seja priorizado pelo

exercício de análise e de interpretação, que possa conduzir ao entendimento dessa forma de

representação visual (Ibid.).

Segundo Martins (2002, p.225), existem significações e determinações ocultas na

realidade fotografada que demandam uma interpretação, para identificar o que está por trás do

visível e fotografado. Para este autor, a realidade apresentada pela imagem fotográfica “não é

mais ela mesma, e sim uma realidade mediada pelo tempo da fotografia, pelo olhar e pela

situação social do próprio fotógrafo, por aquilo que ele socialmente representa e pensa...”.

Com Kossoy (1999) pode-se acrescentar que a fotografia apresenta-se como

representação de realidades imediatas (primeira realidade) e mediatas (segunda realidade).

Para ele, a primeira realidade é o instante de curta duração, no qual se dá o ato de registro da

imagem por meio da ação ou técnica do seu autor que resultará na fotografia como suporte

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físico daquela imagem gravada. E a segunda realidade corresponde ao assunto, o verdadeiro

tema representado na imagem fotográfica, o evento visual e aparente do assunto selecionado

no espaço/tempo de um passado. Esta segunda realidade depende do ponto de vista e modo de

ver do fotógrafo – que realiza escolha com relação ao tema e à forma de sua tomada e

composição. Assim, as imagens dependem do modo de ver do fotógrafo e de cada um que as

interpreta, a partir de informações que possui sobre aquela imagem e tema.

Vale lembrar ainda que o uso deste tipo de documento, como outros de natureza

histórica, precisa levar em consideração que as fontes (não importa qual), constituem um

texto, portanto carregado de significados, para serem lidos e interpretados pelo pesquisador.

No caso da fotografia, ele é visual. A compreensão de sua representação só será possível se as

informações resultantes de sua análise estiverem relacionadas à natureza da linguagem

fotográfica (certo domínio da técnica de produção fotográfica), ao contexto histórico, no qual

foram produzidas as imagens e, em muitos casos, se forem cotejadas com outros documentos

complementares.

Estes são alguns aspectos do referencial metodológico que fundamentará a análise de

fotografias escolares encontradas na instituição pesquisada.

Os registros fotográficos escolares do IEPPEP

A prática de produção de fotografias escolares teve início no século XX, sendo a

fotografia de classe reproduzida mais frequentemente, pois era um tipo de objeto-mercadoria

para a recordação familiar. Possuía como característica básica a homogeneidade e a

uniformização, trazendo certa padronização da identidade escolar.

Segundo Burke (2004, p. 99) as “imagens são especialmente valiosas na reconstrução

da cultura cotidiana de pessoas comuns”. Assim, as fotografias escolares são testemunhos da

trajetória de vida tanto dos alunos quanto de outros agentes escolares (diretores, professores,

funcionários e outros). Além disso, embora possam representar recordações individuais,

servem ainda para registrar atividades, eventos e rituais escolares que ocorrem na intimidade

da escola, preservando sua memória coletiva.

A seguir passa-se a uma análise preliminar (sem ambição de interpretação total ou

absoluta) de alguns destes documentos iconográficos. Foram selecionados três conjuntos de

imagens: fotografias dos sujeitos escolares (professores, alunos, funcionários e outros);

fotografias de práticas escolares (eventos, comemorações cívicas, desportivas ou culturais que

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revelam fragmentos dessas práticas); e fotografias da cultura material escolar (arquitetura,

disposição e uso de espaço, móveis, equipamentos, materiais didáticos).

Os sujeitos escolares

Na Figura 1, apresenta-se um tipo mais comum de fotografia escolar – a clássica

imagem do sujeito coletivo, a classe – primeira realidade –, disposta na escadaria frontal da

instituição escolar, tendo uma professora, à esquerda do conjunto de alunas. A representação

desta unidade composicional que não escapa a um olhar mais criterioso – a segunda realidade

– é a uniformidade e identidade escolar marcada pelo tipo de registro padronizado,

composição de fotografia escolar modelar do início de século XX, registrada em um

determinado local – a majestosa escadaria frontal da instituição escolar.

A escadaria é um elemento arquitetônico geralmente mais ou menos suntuoso na

arquitetura escolar. Ter uma unidade escolar construída nesses moldes era significativo para

uma localidade, um dos símbolos do seu progresso, no contexto de modernização do país.

Os personagens geralmente sisudos neste tipo de fotografia do início do século XX,

aqui na Figura 1 (de 1940), aparecem mais à vontade, podendo-se observar o sorriso matreiro

ou tímido no rosto de algumas das jovens, como as duas da primeira fila e outras no interior

do conjunto, embora o momento seja solene.

Figura 1: Formandas da Escola de Professoras de 1940. Curitiba. Fonte: IEPPEP

O Jornal Gazeta do Povo complementa as informações da imagem fotográfica,

destacando a tradição que envolvia a formatura de professoras normalistas, naquele contexto

histórico, coroada por um baile em clube local:

As professoras normalistas formadas pela nossa Escola de Professoras, em noite de hoje e nos salões do Clube Concórdia, oferecerão um grande baile à nossa

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sociedade, baile que vem sendo aguardado com grande expectativa pelos meios sociais. A hora inicial da grande serata das novas Professoras Normalistas é às 22, sendo que o traje exigido é o de rigor (Gazeta do Povo, 22/11/1940).

A Escola Normal e suas alunas tornam-se símbolos da cultura brasileira, durante o

século XX, como se pode ver na canção popular “Normalista” de autoria de Benedito Lacerda

e David Nasser, popularizada na voz do cantor Nelson Gonçalves:

Vestida de azul e branco Trazendo um sorriso franco No rostinho encantador Minha linda normalista Rapidamente conquista Meu coração sem amor.

[...]

Mas a normalista linda Não pode casar ainda Só depois de se formar Eu estou apaixonado O pai da moça é zangado E o remédio é esperar...2

A Escola Normal, fundada em Curitiba em 1876, formou sua primeira turma de

professores em 1878, sob a direção do Dr. Justiniano de Mello e Silva, então Diretor Geral da

Instrução Pública. Estudar na Escola Normal era sinônimo de respeitabilidade e competência,

pois só as alunas mais comprometidas com o estudo é que conseguiam passar pelo exame

seletivo e, após a formatura, apenas as três melhores eram contempladas com nomeações em

escolas públicas de Curitiba, sendo as demais nomeadas para o interior do Estado, lá

permanecendo por um tempo até conseguirem remoção.

Figura 2: Alunas da Barreirinha em direção à Escola Normal, 1938. Curitiba. Fonte: IEPPEP

2 LACERDA, B. E NASSER, D. Home Page Letras.mus.br. Disponível em: http://letras.terra.com.br/nelson-gonçalves/261107/. Acesso em 01/10/2011.

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A Figura 2 foge dos padrões clássicos de fotografias escolares do sujeito coletivo -

classe, permitindo destacar alguns aspectos da cultura social mais ampla da cidade e de sua

característica de colonização por imigrantes, além de alguns indícios particulares. Apresenta

em primeira realidade o grupo de alunas, vestidas com um dos primeiros uniformes da Escola

Normal, numa rua pouco movimentada, sendo transportadas em carroça e revelando

edificações, ambos indicando traços da cultura polonesa (a exemplo do telhado alto da casa à

direita da fotografia). A imagem traz somente a inscrição: “vinda de alunas da Barreirinha,

1938”. Apenas com informações do contexto histórico e cultural local naquele período se

pode chegar a um mínimo de problematizações desse registro.

O bairro Barreirinha é marcado pela presença de uma importante colônia polonesa,

que imprimiu características significativas em seu aspecto, oferecendo uma paisagem de

lavouras e carroças que circulavam por suas ruas ao lado de outros veículos. Os colonos

poloneses ali iniciaram sua vida, cultivando centeio, milho, batata e outros cereais. Tornaram-

se conhecidos pela produção das tradicionais broas de centeio, mas logo iniciaram a indústria

de carroças.

Esses dados possibilitam problematizar de diferentes formas a imagem do grupo de

normalistas. Por exemplo, qual seria a intencionalidade do fotógrafo, ao realizar o

documento-memória? Registrar simplesmente a imagem das alunas da Escola Normal (fazer

parte dessa Escola traduzia certo status)? Evidenciar as dificuldades das alunas no seu

deslocamento para a escola? Demonstrar o traço cultural presente no grupo de alunas (é

possível identificar traços fisionômicos e outros elementos culturais específicos - carroça,

arquitetura, etc.)? De qualquer modo, independenete das indagações, os indícios permitem

questionar o perfil das normalistas daquela instituição escolar: elas não seriam apenas

moradoras do entorno do estabelecimento, localizado no centro da cidade, mas viriam

também de bairros periféricos, assim como do ponto de vista étnico poderiam pertencer a

descendentes de diferentes imigrantes que afluiram à capital do estado a partir da metade do

século XIX, com o incentivo governamental à colonização. Curitiba foi transformada pela

intensa imigração de europeus (alemães, franceses, suiços, poloneses, italianos, ucranianos

etc.) que conferiram um novo ritmo de crescimento à cidade e influenciaram os hábitos e

costumes locais.

O registro fotográfico seguinte (Figura 3) foi realizado sob a clássica composição na

escadaria frontal do edifício escolar, com a presença das professoras também uniformizadas

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com o tradicional “guarda-pó” branco das escolas públicas de ensino primário, em posição

estratégica à esquerda e à direita, tendo os meninos separados das meninas, na parte posterior,

nos limites da co-educação em processo de desenvolvimento ainda na década de 1950.

Figura 3: Turma de alunos da Escola de Aplicação Alba Guimarães Plaisant, anexa ao IEP, 1952. Curitiba. Fonte: IEPPEP

O último registro fotográfico de um sujeito coletivo (Figura 4) permite observar um

exemplar típico da recordação-memória escolar, a qual era produzida por um fotógrafo

profissional, aqui não mais na escadaria frontal, mas em frente às janelas da sala de aula,

tendo o conjunto de alunos vestidos com o mesmo uniforme da imagem anterior. Nesse

registro a irreverência (sorrisos e postura de alguns alunos do ensino primário, sentados no

chão) substitui o espaço da circunspecção das fotografias mais antigas, apresentando agora

fragmentos de uma cultura escolar em transição na expressão de sua ordem escolar, cujos

traços de maleabilidade misturam-se a outros mais tradicionais presentes nas duas imagens da

mesma Escola de Aplicação anexa ao Instituto de Educação do Paraná – IEP, especialmente a

composição formal homogeneizada, na qual se ressalta o lugar dos alunos, seja pela

hierarquia com os professores seja com relação ao gênero, separando meninos de meninas.

Figura 4: Lembrança escolar de turma da Escola de Aplicação Alba Guimarães Plaisant, anexa ao IEP, 1961. Curitiba. Fonte: IEPPEP

As práticas escolares

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As festividades cívicas da cidade, realizadas como fervor pátrio em determinados

momentos da história nacional, contavam com desfiles de comemoração e, neles, estavam

sempre presentes as normalistas. Os desfiles em Curitiba aconteciam ao longo da Rua XV de

Novembro, com início na Praça Santos Andrade e término na Praça Osório (em grande parte

do século XX). Assim, na Figura 5, apresenta-se a imagem do desfile comemorativo da data

de emancipação política do Paraná, em 1953. O uniforme impecável, a sincronia da marcha e

a homogeneidade na formação das alunas, tudo expressa solenidade e respeito que o universo

escolar manteve com relação às práticas cívicas.

A escola e principalmente algumas das disciplinas de seu currículo (História, “Língua

Pátria”, Educação Física, Música, Educação Moral e Cívica, dentre outras) tiveram um papel

fundamental no processo civilizador moderno, na disciplinarização do corpo para o trabalho,

para o estudo e para a vida em sociedade e na construção e difusão das ideias de nação, moral

cívica e patriotismo.

As Figuras 5 a 8 são representativas dessa função moralizadora e disciplinarizante da

cultura escolar. A Figura 5, com o registro do desfile comemorativo de um evento histórico,

representa, ela própria, um lugar de memória – o fato histórico político: centenário de

emancipação política do Paraná (1953). A Figura 6 indica a permanência da prática escolar de

cultuar o civismo no século XXI (2004), no dia 7 de setembro, embora com outra linguagem

estética e representação. A Figura 7 traz o registro fotográfico de uma atividade de Educação

Física numa formação cenográfica, quase militar, das alunas para a ginástica rítmica. E a

Figura 8 complementa esta análise com outra das atividades que contribuíram

significativamente nesse processo cultural civilizador: a banda escolar ou coral.

Figura 5: Desfile do Centenário da Emancipação Política do Paraná, 1953. Curitiba. Fonte: IEPPEP

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Figura 6: Desfile comemorativo da Independência do Brasil – 7/9/2004. Centro Cívico, Curitiba. Fonte: IEPPEP

Figura 7: Ginástica rítmica, s/d. Fonte: IEPPEP

Figura 8: Bandinha da Escola de Aplicação anexa ao IEP, s/d. Fonte: IEPPEP

A cultura material escolar

E, por último, foram selecionados registros fotográficos expressivos da cultura

material escolar. Na figura 9 aparece a edificação original da instituição no final do século

XIX. Nas Figuras 10 e 11 estão os registros do mesmo edifício que ainda hoje é usado pela

escola e cuja construção foi concluída em 1922. Nas duas imagens é nítida a diferença do seu

entorno. Na Figura 10 (anos 1930) detectamos a rua ainda em calçamento de pedra e a quase

ausência de transeuntes; na Figura 11 (anos 2000) revela-se uma das faces do

desenvolvimento urbano representada pelos inúmeros pedestres e o asfalto sinalizado que

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expressa uma “inovação” técnica do século XX, para proporcionar melhor segurança aos

transeuntes e à circulação dos veículos. A arquitetura do edifício obedece a alguns princípios

neoclássicos que eram valorizados na época da sua construção, os quais enobreciam o edifício

e contribuíam para a construção de uma representação de imponência e de traço significativo

da modernidade, cujo projeto acreditava-se precisava desse tipo de representações coletivas

para consolidar-se nas cidades brasileiras, naquele contexto histórico e cultural do final do

século XIX e início do XX.

Figura 9: Fachada do 1º prédio da Escola Normal, s/d. Curitiba. Fonte: IEPPEP

Figura 10: Instituto de Educação do Paraná, 1930. Curitiba. Fonte: IEPPEP

Figura 11: Instituto de Educação do Paraná. 2005. Curitiba. Fonte: IEPPEP

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O projeto de escola nova, contrapondo-se à escola tradicional exigia também um

aparato em termos de móveis e equipamentos: quadro negro, carteiras, armários, materiais

didáticos específicos para cada disciplina, como se observa nas Figuras 12 e 13, onde aparece

um acervo de materiais para as aulas de História Natural e de Geografia, respectivamente.

Nas Figuras 14 e 15, imagens da sala de direção, em ângulos diversos, que embora

correspondam a um registro fotográfico mais recente (2005) mantêm móveis de época

contemporâneos à sua instalação (mesa, armários, cadeiras, etc.) reveladores do status do

cargo ou função. Nas paredes da sala de direção estão também alguns originais de pintores

paranaenses clássicos e quadro de fotografia da pessoa do diretor que há vários anos dirige o

estabelecimento, a qual futuramente deverá incorporar a galeria de imagens de diretores da

escola que se em encontra no corredor de entrada do estabelecimento.

Figura 12: Sala de aula de História Natural. s/d. Curitiba.

Fonte: IEPPEP

Figura 13: Sala de aula de Geografia. s/d. Curitiba. Fonte: IEPPEP

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Figura 14: Sala da Direção, 2005. Curitiba. Fonte: IEPPEP

Figura 15: Sala da Direção, 2005. Curitiba. Fonte: IEPPEP

A arquitetura escolar, semelhante a outras instituições sociais, como presídios,

quartéis, orfanatos, hospitais e conventos é marcada pelo que Foucault chamou de

“procedimentos do poder”, ou seja, pelo enclausuramento e pela vigilância com técnicas de

disciplinarização necessárias para a construção da sociedade moderna. Tal traço está presente

no edifício. Se do lado externo o prédio é delimitado por grades e portões, separando espaços

e corpos da sociedade, do lado interno o princípio do controle está presente na construção de

espaços hierarquizados (sala de direção, de coordenação, salas de aula, pátio, corredores, etc.).

Estes visam dificultar o convívio social desordenado, a integração, priorizando a vigilância

das pessoas e sua condução a um único destino: a sala de aula.

Na Figura 16 é possível perceber nitidamente o princípio do panoptismo (de onde se

vê tudo e todos) presente no espaço de circulação. “Através dos corredores chega-se às salas

de aula, o locus central do educativo”. (DAYRELL, 2001, p.137)

Figura 16: Instituto de Educação do Paraná, pátio interno e corredores das salas de aula, 2005. Curitiba. Fonte: IEPPEP

Entretanto, mais recentemente as mudanças na cultura escolar e social mais ampla

permitem aos alunos a transgressão parcial dessa ordem de vigilância e controle, levando-os a

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adotar atitudes mais flexíveis e descontraídas até o uso social dos corredores, mesmo à vista

de funcionários responsáveis pela disciplina, como se observa na Figura 17.

Figura 17: Instituto de Educação do Paraná, corredor da entrada lateral, 2005. Curitiba. Acervo: IEPPEP

Não é incomum o agrupamento de alunos em algum banco com um violão ou apenas

conversando socialmente pelos corredores ou outras áreas comuns. Esta é uma forma dos

alunos revelarem a importância da escola, principalmente pública, como espaço de

sociabilidade que proporciona o encontro em situação de relativa segurança. A importância

deste espaço está na possibilidade de o aluno aprender a conviver, de adquirir conhecimentos

e saberes que vão além do conhecimento sistematizado.

Considerações Finais

O uso de imagens fotográficas, com o objetivo de recuperar o passado escolar, seus

agentes e suas práticas, tem demonstrado uma relativa eficácia na historiografia da educação

mais recente, para aqueles historiadores que conseguem transpor alguns dos obstáculos

próprios da construção histórica, como as dificuldades de localização, datação e interpretação

da fonte iconográfica. A aproximação da História a outras ciências humanas e sociais levou-a

a buscar outros métodos e novas abordagens teóricas e metodológicas, alterando a própria

noção de documento. Na perspectiva moderna da prática historiográfica, nenhum documento

fala por si mesmo. Assim, parafraseando Napolitano (2008, p. 240), as fontes audiovisuais,

assim como outras, portam uma relação de tensão entre evidência e representação. Ao mesmo

tempo em que se constituem em uma representação construída por alguém ou alguma

instituição, elas são uma evidência de um processo ou fato ocorrido no passado e demandam

uma análise interpretativa.

Desse modo, as fontes, mesmo as tradicionais, são concebidas na perspectiva da nova

historiografia em seu caráter representacional, isto é, como documentos carregados de

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intencionalidade e parcialidade, cada qual possuindo características próprias e exigindo

metodologias específicas, conforme sua linguagem constituinte.

A análise de fontes escolares visando à recuperação de práticas pedagógicas e

educativas, como se pode experimentar neste texto, exigiu além do conhecimento técnico, um

conhecimento sobre o contexto educativo e social mais amplo para sua interpretação.

Destacaram-se no conjunto documental imagens escolares mais correntemente produzidas, ou

seja, registros de personagens, de práticas e de traços da cultura material escolar. Neles

identificaram-se sujeitos, atividades, eventos e rituais, saberes (disciplinas), comportamentos,

materiais didáticos, uniformes, como traços da cultura escolar; tipo de arquitetura, função e

uso dos espaços, materiais e equipamentos como elementos da cultura material escolar; assim

como vestígios culturais de imigrantes da cultura social local. Foi também possível perceber

traços de permanências históricas como no mesmo tipo de fotografia registrada em diferentes

épocas sobre o sujeito coletivo classe ou nas práticas desenvolvidas como os desfiles ou

atividades, por exemplo; assim como foram observadas mudanças culturais expressas nas

diferentes formas de comportamento mais formal ou mais maleável na transição da escola

tradicional para a escola nova ou em data mais recente, bem como identificados traços da

cultura escolar na cultura social e vice-versa.

REFERÊNCIAS

BENCOSTTA, M. L. Memória e Cultura escolar: a imagem fotográfica no estudo da escola primária de Curitiba. História. São Paulo, v.30, n.1, p.397-411, jan/jun, 2011.

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