as forças armadas revolucionárias da colômbia e … e convenceria a população a apoiar seus...

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1 As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e os diferentes discursos sobre a guerrilha * Julio Cesar da Silva Lopes ** GT6: Estado, Meios de Comunicação e Movimentos Sociais. Resumo: Com a intervenção cada vez maior dos Estados Unidos na Colômbia apoiando o governo na luta contra as “narcoguerrilhas”, o papel da mídia torna-se relevante, visto que cada grupo molda seus ideais e discursos buscando maior legitimidade e apoio frente a população. Cada grupo constrói seu discurso baseado no que pode lhe render respaldo popular contra o grupo opositor, chegando muitas vezes a construir imagens totalmente idealizadas ou distorcer a imagem do grupo rival. Introdução Além da disputa bélica e estratégica, um fator determinante em conflitos onde a população assiste a confrontos entre forças pró-governo e grupos guerrilheiros é a disputa ideológica, ou seja, a tentativa de mostrar para a população qual lado luta pelos seus interesses, buscando maior apoio e apontando as possíveis fraquezas e defeitos do outro lado. A guerra de informação ganha bastante destaque nesse contexto, onde cada um dos lados dispõe de determinados meios (como a mídia cada vez mais presente) para conseguir maior legitimidade das suas ações. A necessidade de “demonização” do outro é um modo de distorcer a imagem do inimigo, na tentativa de se conseguir mais apoio para o lado que acusa. Desde o período entre guerras, nota-se um crescimento de construções de ícones do mal por parte do Estado norte-americano, como os líderes nazistas, os socialistas soviéticos, os traficantes no Pós-guerra Fria e depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o terrorismo árabe. Tal idéia de utilização da mídia para fins “políticos” também estaria ligada a uma tentativa de controle de massas, ou seja, a manipulação do imaginário social da sua população, onde o governo, sustentado pelas suas ideologias, poderia dar uma nova visão (ou interpretação) a determinados fatos * Este artigo constitui-se em parte da monografia desenvolvida durante a Especialização, com várias alterações e adaptações. ** Especialista em História Social e Ensino de História pela Universidade Estadual de Londrina. Contato: [email protected].

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1

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e os diferentes discursos sobre a guerrilha*

Julio Cesar da Silva Lopes**

GT6: Estado, Meios de Comunicação e Movimentos Sociais.

Resumo:

Com a intervenção cada vez maior dos Estados Unidos na Colômbia apoiando o governo na luta contra as “narcoguerrilhas”, o papel da mídia torna-se relevante, visto que cada grupo molda seus ideais e discursos buscando maior legitimidade e apoio frente a população. Cada grupo constrói seu discurso baseado no que pode lhe render respaldo popular contra o grupo opositor, chegando muitas vezes a construir imagens totalmente idealizadas ou distorcer a imagem do grupo rival.

Introdução

Além da disputa bélica e estratégica, um fator determinante em

conflitos onde a população assiste a confrontos entre forças pró-governo e

grupos guerrilheiros é a disputa ideológica, ou seja, a tentativa de mostrar para

a população qual lado luta pelos seus interesses, buscando maior apoio e

apontando as possíveis fraquezas e defeitos do outro lado. A guerra de

informação ganha bastante destaque nesse contexto, onde cada um dos lados

dispõe de determinados meios (como a mídia cada vez mais presente) para

conseguir maior legitimidade das suas ações. A necessidade de “demonização”

do outro é um modo de distorcer a imagem do inimigo, na tentativa de se

conseguir mais apoio para o lado que acusa. Desde o período entre guerras,

nota-se um crescimento de construções de ícones do mal por parte do Estado

norte-americano, como os líderes nazistas, os socialistas soviéticos, os

traficantes no Pós-guerra Fria e depois dos atentados de 11 de setembro de

2001, o terrorismo árabe.

Tal idéia de utilização da mídia para fins “políticos” também

estaria ligada a uma tentativa de controle de massas, ou seja, a manipulação

do imaginário social da sua população, onde o governo, sustentado pelas suas

ideologias, poderia dar uma nova visão (ou interpretação) a determinados fatos

* Este artigo constitui-se em parte da monografia desenvolvida durante a Especialização, com várias

alterações e adaptações. ** Especialista em História Social e Ensino de História pela Universidade Estadual de Londrina. Contato:

[email protected].

2

e convenceria a população a apoiar seus atos, contando também com o

respaldo de órgãos como as polícias (por exemplo, no caso da Colômbia), que

justificariam suas ações violentas (desde La Violencia em 1948) como sendo

um mal necessário, uma ação de combate contra os inimigos do Estado. E

essa imagem pode ser percebida em vários estágios da trajetória norte-

americana no século XX, onde “a identidade totalitária, enfim, tinha base na

criação de ícones do mal que representariam tudo aquilo que não fazia parte

da ideologia oficial do Estado e que, por isso, deveria ser sumariamente

eliminado” (ARBEX JR. e TOGNOLLI, 1997: 201).

O tráfico e consumo de drogas ilícitas é uma dessas práticas,

reprovável em qualquer sociedade, portanto as pessoas ligadas a estas

atividades não seriam bem vistas tanto pela população, seguidora dos bons

costumes, quanto para o Estado, que se utiliza dessas pessoas como

exemplos a não ser seguidos pelos seus cidadãos, como pessoas cujo

comportamento é reprovável, pois iria contra os modelos de boa conduta dos

modelos de cidadãos ideais. Para a política norte-americana, a idéia de

associação do inimigo ao consumo e tráfico de entorpecentes é uma prática

comum desde a Guerra Fria, onde os dois lados trocavam acusações,

alegando que o lado inimigo estaria tentando alienar sua juventude e destruir

seus modelos de sociedade ideal através da introdução e do consumo de

drogas ilícitas no seu país, acirrando ainda mais a guerra ideológica entre as

potências de capitalistas e socialistas, com as suas propagandas contribuindo

para a afirmação e manutenção de seus modelos de sociedades ideais. Com o

colapso da união soviética nos anos 80 e 90 o narcotráfico agora era visto

como a mais nova ameaça à sociedade norte-americana, que no seu discurso

incluía a idéia de que este se constituiria em uma guerra revolucionária, visto

que os comunistas usariam o narcoterrorismo para provocar desequilíbrios

sociais e, conseqüentemente, destruir a sociedade ocidental, objetivo, aliás,

muito comum entre os supostos inimigos.

O discurso benevolente de que os Estados Unidos estariam

interessados somente no combate ao narcotráfico mundial passa a idéia de

que o total apoio das forças norte-americanas em combater o suposto inimigo

maior é mais um discurso para se garantir e justificar os financiamentos para

pesquisa bélica em seu país e o desenvolvimento de novas armas. É

3

importante lembrar que, para o governo colombiano, as guerrilhas e o seu

crescente apoio popular constituem-se em ameaças muito mais concretas e

imediatas do que o narcotráfico e, para os Estados Unidos, esse é somente

mais um pretexto para manter sua presença militar na América Latina. Noam

Chomsky defende que esta suposta ajuda na “guerra às drogas” não passa de

pretexto para intervenções militares (CHOMSKY, 1996: 107).

Formação de Identidades e Imaginários Sociais

Antoine Prost defende que se deve dar atenção ao discurso do

grupo social estudado pois é nele que encontra-se seus ideais, desejos, ou

seja, sua produção simbólica, o que define o grupo e o diferencia dos demais,

em outras palavras, sua identidade. “O grupo só existe na medida em que

existe voz e representação, quer dizer, cultura” (PROST, 1998: 129). Prost

completa dizendo que, ao se analisar textos criados por esse grupo, deve-se

atentar à sua função referencial, ou seja, “o que o texto diz, o que quer dizer, a

situação que pretende descrever, o acontecimento que entende contar”

(PROST, 1998: 129), buscando os interesses que move tal grupo, lembrando

do fato de que nenhuma produção textual é inocente, ou seja, o texto oculta um

discurso, uma idéia destinada a um leitor específico, elementos que podem ser

notados, por exemplo, na linguagem utilizada, nos termos empregados, o

sentido que certas palavras adquirem e sua ênfase em reforçar tais idéias. Por

ater-se a essas representações, Prost coloca a História Cultural como

intimamente ligada ao social, visto que é a cultura que diferencia e divide os

grupos sociais. Mais do que isso, Prost defende que a cultura é a mediação

entre o indivíduo, seu grupo e sua experiência (individual ou coletiva),

permitindo a esse indivíduo e seu grupo refletir sobre ela: “só existe cultura

partilhada, pois a cultura é a mediação entre os indivíduos que compõem o

grupo (...) Mas a cultura é também a mediação entre o indivíduo e a sua

experiência; é o que permite pensar a experiência, dizê-la a si mesmo,

dizendo-a aos outros (PROST, 1998: 135).

E é nessa troca de experiências que o grupo molda sua

identidade, que segundo Serge Berstein pode provocar o surgimento de uma

nova cultura política, que busque uma resposta ou uma reação aos problemas

4

enfrentados no presente, construindo uma nova visão do futuro a ser

conquistado. Berstein defende que cada grupo específico tem a sua cultura

política, que muitas vezes é influenciada por outras culturas políticas, inclusive

contemporâneas.

Roger Chartier, que define a leitura como uma prática cultural,

defende que todo escritor, todo texto escrito impõem uma certa ordem, uma

postura ou atitude de leitura, um protocolo. Ao se referir a esses protocolos de

leitura, o autor coloca que estes procuram definir a interpretação correta e uso

do texto, esboçando também seu leitor ideal. Porém, é preciso destacar que

cada leitor, a partir de suas referências individuais ou sociais, históricas, dá um

sentido mais ou menos singular aos textos que se apropria, e provavelmente

não terá uma leitura exatamente igual à do autor do texto, ou de outros leitores,

devido às particularidades de cada um, ou seja, é preciso atentar em

“reconhecer a pluralidade das leituras possíveis de um texto, em função das

disposições individuais, culturais e sociais de cada um dos leitores”

(CHARTIER, 2001: 100). Ao se referir às diferentes leituras possíveis, Chartier

escreve que mesmo diferenças sociais podem culminar em diferentes tipos de

leitores, assim como seu nível de alfabetização e sua capacidade de ler e

interpretar; problemas esses que não remetem apenas à sua posição social,

mas às particularidades individuais, do seu processo de aprendizagem, seus

interesses, dificuldades, entre outros aspectos.

Jean Marie Goulemot coloca que a prática de ler constitui-se

sempre em produção de sentidos. O autor defende que ler é uma situação de

comunicação, mas não significa que o leitor terá a mesma compreensão que o

autor supostamente pretendia que este tivesse. Em outras palavras, “ler é,

portanto, construir e não reconstruir um sentido” (GOULEMOT, 2001: 108).

Para Goulemot, o ato da leitura pode revelar uma certa polissemia do texto, ou

seja, revelar os vários sentidos diferentes presentes na leitura e interpretação

de um mesmo texto, lembrando-se que tais leituras (ou releituras) são distintas

e possuem influência do indivíduo que lê e do meio que este se encontra.

Goulemot defende que a leitura é influenciada, moldada, pelos valores da

sociedade, seus heróis e momentos, constituindo-se em uma diversidade de

códigos e narrativas.

5

Se por um lado, Goulemot defende o fato de que o texto tem

uma mensagem implícita e de certa forma destinada a um grupo que decifre a

mensagem (como coloca Chartier), por outro lado ele também evidencia a

pluralidade de interpretações que um mesmo texto pode ter dependendo do

tipo de leitor ou pela situação que um mesmo leitor entra em contato com o

texto em outras oportunidades, onde “a cada leitura, o que já foi lido muda de

sentido, torna-se outro” (GOULEMOT, 2001: 108).

Ao se analisar os textos produzidos por guerrilheiros são

importantes também buscar a sua singularidade, conforme Carlo Ginzburg

argumenta em “Mitos, Emblemas, Sinais”, é preciso apegar-se em pequenos

detalhes, indícios, que talvez possam revelar particularidades, aspectos de

determinados grupos ou mesmo da sociedade, como metáforas ou imagens

que identifiquem o grupo.

Na tentativa de aproximar a população às idéias e objetivos da

guerrilha, além de textos de caráter militante publicados pelas FARC-EP na sua

página on line e no seu periódico Resistencia1, são também publicados textos e

poemas escritos por guerrilheiros ou simpatizantes da guerrilha, numa tentativa

de mostrar o guerrilheiro como um ser humano, que, assim como a população

que este diz defender tem sentimentos e esperanças, afastando-se da imagem

construída pelo governo de que a guerrilha se constituiria por assassinos e

bandidos impiedosos. Os três textos analisados aqui buscam apagar essa

imagem “ruim” para os guerrilheiros.

Vários autores, entre eles Jean-François Sirinelli, argumentam

que a identidade de um grupo está na cultura que este produz e partilha, ou

seja, fazer parte de um grupo é partilhar uma mesma visão do seu passado e

também os mesmos sonhos ou expectativas para o seu futuro. Da mesma

maneira que ao se buscar legitimidade ou o poder (seja governantes ou grupos

opositores, como as guerrilhas) é preciso compreender a realidade da

população e adequar seu discurso às idéias de futuro que essa população (ou

grupo social) tem. Antoine Prost disserta sobre os meios de identificação entre

os indivíduos e o grupo a que pertencem, como por exemplo, a linguagem,

1 Respectivamente www.farcep.org e www.farcep.org/resistencia/internacional. Os dois endereços

contam com centenas de declarações e artigos escritos tanto pelo Estado Maior Central das FARC-EP

quanto por simpatizantes, historiadores e sociólogos entre outros sobre assuntos relacionados à guerrilha.

6

códigos ou palavras utilizadas que podem ter um sentido mais específico (e de

certa forma particular) dentro do grupo, dando àquele que tem contato com

esses códigos e os identifica em textos ou em discussões orais a sensação de

pertencimento a determinado grupo.

Ao se pensar no caso colombiano, ao contrário do que coloca o

governo, as guerrilhas possuem apoio de certas instituições (como partidos e

movimentos de esquerda) e de parte da população, visto que sua idéia de luta

por justiça social e combate à corrupção continuam vivas devido à realidade de

abusos e violência contra a população que se encontra no país, quando ainda

nos dias atuais o discurso das guerrilhas ainda diz muito da realidade e das

esperanças dessa população, não se configurando, portanto, em uma cultura

política em contradição com a realidade e que, conseqüentemente, corra o

risco de deixar de existir.

Jean-François Sirinelli argumenta que pertencer a um mesmo

grupo é partilhar um mesmo conjunto de idéias, aceitando uma visão coletiva

de mesmo passado e as mesmas esperanças que constroem uma única noção

de futuro. Segundo o autor, cada grupo social tem uma idéia formada de seu

passado, e esta muitas vezes não reproduz fielmente os fatos ocorridos nesse

passado, pois essa nova leitura é de certo modo distorcida, alterada de acordo

com o que se passa no presente, assim como a concepção de um futuro ideal

a ser conquistado por esse grupo. Segundo Sirinelli, a visão que um grupo tem

do seu passado é essencial, pois é através dessa leitura (que já é parcial,

modificada ou manipulada para melhor adequar-se ao discurso presente e seus

objetivos) que a comunidade vive seu presente e molda a representação do

seu futuro, suas pretensões e esperanças. Nesse contexto, as representações

coletivas e os imaginários sociais misturam-se, tornando-se essenciais para a

análise e compreensão dos motivos pelos quais regimes ou determinadas

ações são legitimados ou não pela sociedade ou determinado grupo, desde

que tal análise seja devidamente reinserida no contexto histórico estudado para

melhor compreender o grupo.

Bronislaw Baczko analisa mais profundamente a idéia de

construção e manipulação dos imaginários sociais como determinantes para a

legitimação de um regime ou de um governante no poder. Baczko retoma o

discurso de Maquiavel em “O Príncipe” ao defender as ligações entre a

7

manutenção do poder e controle do imaginário, onde governar significa fazer

com que o povo acredite, veja aquele governante como legítimo, colocando a

idéia de que o que leva o homem (súditos, governados) a agir é “o coração”, ou

seja, suas paixões e desejos, cabendo a que detém o poder construir ou

modificar esse discurso e controlar seus governados através da manipulação

de seus desejos, símbolos e ilusões, em resumo “o poder deve apoderar-se do

controlo dos meios que formam e guiam a imaginação colectiva” (BACZKO,

1985: 302). Por outro lado, Baczko também dá ênfase ao imaginário social

construído pela população ou determinados grupos menores dentro dele, onde

os valores, desejos e objetivos colocados visam o bem-estar dessa população,

que também deve ser absorvido, compreendido, aceito pela sociedade para se

conseguir legitimidade e apoio para, por exemplo, a permanência de

determinado grupo no poder ou conseguir apoio para mudanças ou revoluções

propostas por outros grupos: “fazer a revolução implica necessariamente abrir-

se ao imaginário que ela produz, partilhar os mitos e as esperanças que dela

brotam, vive-la em um momento único em que tudo se torna possível”

(BACZKO, 1985: 302). Em outras palavras (e neste caso aplicando-se à

situação colombiana) mesmo grupos insurgentes como as FARC-EP

necessitam de apoio popular, legitimidade para suas ações, desenvolvendo um

discurso que evidencie as dificuldades que passa a população, construindo

uma imagem de futuro baseado nas idéias e esperanças desse povo. Para

Baczko, a permanência no poder e legitimidade frente a sociedade só se

consegue controlando o imaginário social, construindo um discurso que as

pessoas acreditem ser uma saída para as situações difíceis ou para se manter

o status quo. Portanto, todo poder deve impor-se como legítimo, mas para isso

precisa controlar (ou melhor, manipular) os sentimentos da sua população,

assim como atribuir ao seu discurso elementos que passem a idéia (ou a

ilusão) de que os detentores do poder governam baseados nas necessidades e

interesses dessa população, incorporando a esse mesmo discurso suas

relações simbólicas e seus ideais de futuro e vida melhor.

A Produção Cultural dos Guerrilheiros

8

O discurso da guerrilha busca desenvolve-la culturalmente,

para que seus homens saibam os motivos pelos quais lutam e assim poder

conversar e convencer a população de que a guerrilha luta pelo bem da

Colômbia como um todo, buscando um futuro melhor para todos. Tal ênfase na

cultura pode ser notada em vários textos escritos por guerrilheiros e/ou

simpatizantes sobre o assunto e o apoio dado a essa iniciativa2, inclusive nas

capas do periódico Resistência que são, na sua maioria, fotos ou imagens

pintadas por integrantes da guerrilha.

Os três textos analisados aqui buscam aproximar a guerrilha da

população, mostrando que os guerrilheiros também têm sentimentos, sofrem, e

lutam para que a violência não seja mais um fato cotidiano dos colombianos.

Entre os textos publicados na página on line da guerrilha e no periódico

Resistencia, “Casa Verde” é o que mais chama a atenção, devido à

peculiaridade do momento desse ataque para as FARC-EP e à grande

quantidade de símbolos utilizados, tentando identificar e tocar o grupo através

da linguagem (ou dos códigos) utilizados. Segue-se dois poemas que parece

ter como público alvo a população colombiana, mostrando a indignação e

esperança dos guerrilheiros (adequando seu discurso aos sentimentos da

população) em um futuro melhor em “Colombia Entera” de Fernando Orti e o

sofrimento em se lutar, exaltando a liberdade em “Yo te Nombro” de Paul

Eluard. Embora não se tenha mais detalhes sobre esses autores, pressupõe-se

que também sejam guerrilheiros, visto que os textos enviados por poetas,

artistas e simpatizantes da guerrilha são identificados como sendo textos

enviados por amigos das FARC-EP. Vale lembrar que muitos desses autores

preferem deixar textos anônimos ou usar heterônimos temendo perseguições,

mas as publicações indicam se foi escrito por um guerrilheiro ou por um

“amigo”.

Nesse contexto de construção de imagens para a população e

a criação de imaginários sociais que coloquem essa população do lado da

guerrilha, a produção cultural dos guerrilheiros mostra-se como mais uma

importante arma. Mais do que documentos oficiais do Estado Maior Central,

2 Alguns textos que relatam o cotidiano dos guerrilheiros fazem menção à “Hora Cultural”, que seria uma

reunião obrigatória para todos os guerrilheiros para que estes possam estar sempre em contanto com

músicas, poemas, textos e pinturas, entre outros.

9

discursos ou comunicados à população, a produção cultural parece aproximar

mais a população com o guerrilheiro, produção essa que expressa seus

sentimentos, sonhos e dá relatos da sua realidade. Essa produção, que busca

um lado mais humano, abrange músicas, assim como textos ou poemas, que

tratam desde idéias e exemplos de luta, o cotidiano no acampamento, a visão

do guerrilheiro sobre determinados assuntos como a violência ou mesmo o

narcotráfico, além de outros temas, mas sempre respaldado por sentimentos

humanos, como tristeza, indignação e esperança3.

Um dos textos mais importantes escrito por um guerrilheiro

anônimo narra o ataque ao acampamento de Casa Verde em 1990, buscando

mostrar alguns aspectos dos homens que tiveram que defender o

acampamento. O episódio do ataque a Casa Verde possui grande significado

entre os guerrilheiros, transmitindo tanto um exemplo de luta, de bravura,

colocando o guerrilheiro como alguém que também sofre com a perda de

pessoas queridas. Simbolicamente, esse episódio também é considerado uma

repetição do ataque ao acampamento de Marquetalia em 1964 (o mito

fundacional do grupo), visto que mais uma vez o governo teria lançado um

ataque maciço contra a guerrilha em um período de trégua. Vale lembrar que

em 10 de agosto de 1990 morreu, vítima de um ataque do coração, o

comandante Jacobo Arenas, visto como um grande líder entre os guerrilheiros,

devido a várias de suas ações e reformas propostas para a constituição de um

guerrilheiro mais consciente, aproximando-se em muitos casos de uma figura

paternalista, por prezar certos valores entre os integrantes da guerrilha. Devido

ao seu carisma, sua morte teria sido um grande impacto entre os guerrilheiros.

A ofensiva final contra Casa Verde teria ocorrido em 9 de dezembro do mesmo

ano.

O texto intitulado “Casa Verde”4, que tem o mesmo nome do

acampamento atacado, procura mostrar que o ocorrido em Casa Verde deve

ser encarado como um exemplo de resistência para os guerrilheiros, que

devem sempre se espelhar e lembrar da bravura dos combatentes e a

crueldade dos militares em efetuarem um ataque tão violento e repentino. O

3 Tais textos e poemas podem ser encontrados facilmente na página eletrônica das FARC-EP no endereço

www.farcep.org/cultura, e outros na versão on line do periódico do grupo, chamado Resistencia no

endereço www.farcep.org/resistencia/internacional/. 4 Disponível em www.farcep.org/cultura/cuentos/casaverde.php

10

Estado Maior Central das FARC-EP consideram em vários de seus

documentos o ataque como uma traição, visto o contexto do processo de

pacificação de 1990, com a entrega das armas de vários outros grupos

guerrilheiros e um acordo de cessar-fogo entre o governo e as FARC-EP. Em

certos trechos do texto, pode-se notar a ênfase dada à bravura dos que

resistiram e à importância da imagem de Arenas para os combatentes:

Los pájaros, aunque acostumbrados a la magia, no entendían por

qué el Comandante Jacobo Arenas se había ido para estar por

siempre. La muerte acobardada lo sorprendió con su arma favorita:

un libro. Algunos dicen que desde el libro le sonrió; otros cuentan que

la muerte se sintió inútil: hay sonrisas que jamás se van. Ese diez de

agosto eran todos los días.

Esse trecho mostra o quanto os guerrilheiros (representados

por pássaros) teriam sentido a perda de seu comandante, engrandecendo a

sua imagem de homem culto, tendo como arma favorita um livro, e até mesmo

a morte teria hesitado em levá-lo. Arenas prezava por um guerrilheiro

alfabetizado e consciente do seu papel social. O trecho procura mostrar que a

imagem de um comandante sempre sorridente permanecia entre os

guerrilheiros nos dias seguintes e seu exemplo de vida, que deveria ser sempre

lembrado e seguido. Arenas também defendia que o sorriso, a cordialidade era

uma arma do guerrilheiro para conquistar a população que entra em contato

com os ideais da guerrilha. No trecho seguinte é possível ver a imagem da

bravura das pessoas que teriam defendido o acampamento:

Casa Verde nos previno; volaban halcones tapando el sol; el

bombardeo sorpresivo, traicionero, levantó la rabia del tigre; con

rugidos imposibles balaceaba a los helicópteros "black hawk".

Colaboramos con esa rabia y nueve dejaron de volar.

Um símbolo interessante utilizado nessa passagem é o de

falcões tapando o Sol, como se fosse uma espécie de aviso, ou presságio

(figura muito presente nas culturas indígenas americanas, principalmente

11

Astecas e Incas), mas também remetendo aos modelos dos helicópteros

utilizados no ataque (Black Hawk) e pode ser visto com a imagem de dezenas

de helicópteros sobrevoando o acampamento, fazendo sombra. O tigre, com

sua fúria pode significar a força da guerrilha que estava adormecida (já que se

tratava de um período de cessar-fogo entre ambas as partes) e sua reação

contra um ataque considerado covarde, ou mesmo a incompreensão e revolta

da natureza com tal ofensiva. Colocar as forças da natureza ao seu favor é

também uma maneira de se convencer a população de que o lado mais justo é

o da guerrilha, visto que o governo estaria cedendo aos interesses de um

inimigo externo, como mostra a seqüência do texto:

Seis mil militares avanzaban con la tarea de borrar Casa Verde.

Habían cambiado de idioma: sus patrones ordenaban: "Kill, fucking

bastards, kill". Una bala de Susana terminó con la voz nacida en

Texas. -¿A qué vienen aquí?- se preguntó un pájaro.

Essa passagem busca denunciar o envolvimento dos Estados

Unidos em financiar o governo colombiano na sua luta contra as guerrilhas,

assim como a maior presença de oficiais norte-americanos nos postos de

comando do exército colombiano. A crítica que se faz é a de um exército que

muda seus patrões, ou seja, obedece a ordens de outro país, criticando o que

seria uma perda de soberania por parte do governo colombiano, entregando o

controle do país a um inimigo. Até mesmo o uso da palavra “patrões” ao invés

de “comandantes” passa uma imagem pejorativa do Exército, que parece agir

como grupos contratados, ou mesmo mercenários, lutando por dinheiro contra

as pessoas que representariam a resistência (e, para eles a vontade) do povo.

O trecho tem como contexto o estabelecimento do Plano Colômbia em 1991,

um acordo em que os Estados Unidos liberaria verbas para a luta contra o

narcotráfico na Colômbia, mas o dinheiro (e inclusive ajuda militar) estava

sendo empregado para eliminar os focos guerrilheiros, visto pelo governo como

um mal maior do que os cartéis de droga. Outro fator importante é a presença

de mulheres defendendo o local, e a incompreensão de um dos guerrilheiros

com o ataque, mais uma vez trazendo a imagem de um ataque infundado. Vale

notar também a imagem de tranqüilidade dada ao local antes do ataque e a

12

surpresa das pessoas que ali estavam, representados por pássaros, ao que

estava ocorrendo.

É interessante lembrar que a denominação pájaros era dada a

grupos armados e exércitos particulares nas décadas de 60 e 70 (por se

constituir em bandos), tornando-se sinônimo de guerrilheiros somente nas

décadas seguintes, quando os paramilitares passaram a ser denominados por

eles de galináceos (gallinazos). Tal diferenciação pode ser interpretada no

sentido de que o pássaro (o guerrilheiro) torna-se símbolo de liberdade, voando

mais alto, vendo o mundo de uma maneira mais ampla, global e “verdadeira”,

enquanto os galináceos (paramilitares), sinônimo de aves condicionadas, que

não voam alto, portanto têm uma visão mais parcial do mundo, seguindo as

ordens de seus patrões sem contestar ou pensar sobre o que estariam

fazendo.

O último parágrafo também dá ênfase à idéia de que os

guerrilheiros estariam lutando pelo bem do país e mesmo a morte de seu

Comandante não cessaria seu trabalho e luta: “Casa Verde es Colombia.

¿Quién puede matar ese corazón?- Y puedo jurar que vi la sonrisa del

Comandante Jacobo Arenas.” Tal trecho parece passar a idéia de que Arenas,

se estivesse vivo, aprovaria e se orgulharia da resistência do grupo, além da

simbologia da palavra coração, lembrando a perda do líder por ataque cardíaco

e ressaltando a idéia de um sentimento mais forte, como amor pelo seu país,

colocando a agressão à Casa Verde como uma agressão a todo o povo e seus

ideais.

Esses simbolismos, que muitas vezes podem passar

despercebidos, servem para transmitir à população as idéias da guerrilha.

Certamente um camponês mais humilde possa não identificar sozinho esses

elementos, mas a cultura popular, a convivência com outras pessoas que

conhecem tal texto, seja por via escrita ou oral, desperta no imaginário dessas

pessoas tais mensagens. Vale lembrar que nesses os poemas não devem ser

interpretados somente pelo que está escrito, mas sim pelo que essas pessoas

sentem ao ler e identificar determinados símbolos ou aspectos da sua cultura,

dando ao texto um significado mais amplo, permitindo que a mensagem seja

absorvida e interpretada inclusive por aqueles que não tem acesso ao texto

escrito, mas o conhece oralmente. “Casa Verde” parece ter sido escrito mais

13

especificamente para motivar os guerrilheiros e recordar-lhes de seus valores,

mas nada impede que a população também o interprete e tenha um contato

maior, interpretativo com o texto. A presença de guerrilheiros entre essa

população em suas missões de conscientização também é uma forma de

mostrar para essas pessoas que não se trata de uma história simples,

inocente, mas uma mensagem que deve ser interpretada por quem escuta tal

narrativa, aproximando ainda mais a guerrilha da população, seus medos e

anseios.

A idéia de insatisfação e necessidade de luta por um futuro

melhor também pode ser vista em um outro poema chamado Colombia Entera,

assinado por Fernando Orti, publicado na 18ª edição do periódico Resistencia5,

que utiliza uma linguagem mais coloquial, popular, além de versos curtos que

facilitam a memorização. A imagem da dura realidade que se queixa o autor e

toda a população colombiana pode ser encontrada logo na primeira estrofe:

Tus hombres y mujeres

Presencian la injusticia

La vida vale poco

dentro de tus fronteras

Nesses versos fica clara a idéia de que a violência extrema

presente há décadas no país parece ter acabado com certos valores como

justiça (principalmente social), além da banalização da vida, pois a violência, já

cotidiana, parece ter imposto tantos as centenas de assassinatos e as mortes

por motivos banais como algo comum para essas pessoas. Na segunda

estrofe, o autor já chama a população para que esta mostre sua insatisfação e

com a violência e sofrimento cotidianos, buscando um outro caminho a ser

seguido:

Grita Colombia entera

5 Disponível em www.farcep.org/resistencia/internacional/18/Sentimiento_de_Solidaridad.htm

14

Por um futuro humano

Que acabe el genocídio

De todos tus hermanos

Esses quatro versos demonstram claramente a insatisfação

com a violência que sofre a população, aparecendo mais uma vez a idéia de

mobilização por um futuro melhor, por uma outra realidade, construindo já um

discurso que mostre que este futuro é possível, mas é preciso acreditar e lutar

por ele:

Y así comiecen a brillar

De nuevo sus colores

Los pájaros, las flores

Borrar la realidad.

Nesses versos, mais uma vez surge a analogia entre os

pássaros e a guerrilha, como agentes que ajudariam a modificar e apagar a

realidade violenta do país, mesmo nesse trecho isolado o termo parece não

remeter ao pássaro como guerrilheiro, sua presença pode configurar em uma

espécie de código, que identifique a idéia de associação entre o futuro

promissor e a guerrilha (o verso poderia ser mais abrangente, como “los

animales, las flores”, mas o autor deu preferência à palavra “pájaros” pelo seu

duplo sentido no contexto). As flores também podem passar a mensagem de

ternura presente nas pessoas de bem, trazendo novamente o brilho de suas

cores, podendo significar uma vida mais alegre, sem violência e preocupação

para o povo que lê e interpreta esse texto. Na quarta estrofe ainda há uma

crítica à intervenção norte-americana e a política oligarca, que só pioram a

situação do país:

Interés extranjero

Junto a las amenazas

Corrompen a tu pueblo

mutilan esperanzas.

15

Nesse trecho o autor parece resumir bem o discurso

empregado por vários movimentos de esquerda no país, inclusive as FARC-

EP, que alegam que os interesses norte-americanos não se importam com o

povo, e somente os corruptos se sujeitariam a tais interesses, como o próprio

autor coloca, mutilando esperanças, ou seja, não melhorando em nada as

condições de vida da sua população, não se importando com suas

necessidades e não lhes dando condições para uma vida melhor. Finalmente,

na quinta estrofe, tem-se mais uma vez a imagem da esperança em um futuro

melhor, que pode ser alcançado no tão esperado dia da vitória final:

Cuando llegara el día

De que este mundo cambie

De hundir al poderoso

Y que seamos iguales.

Mais uma vez a idéia de que somente a mudança traria uma

vida melhor para a população, onde essa mudança significaria a não

submissão ao mais forte (como os interesses de grandes empresários, e dos

Estados Unidos), enaltecendo a vontade de igualdade, que para a guerrilha e o

povo colombiano é uma vida mais justa, segura e menos miserável. Igualdade

nesse contexto pode significar, por exemplo, uma lei que se cumpra, onde os

responsáveis pagam pelos seus crimes, e a população não precise mais viver

com medo de ameaças e da violência.

Esse poema de Fernando Orti possui uma linguagem simples,

sem muitas complicações e termos específicos que possam remeter a outras

idéias ou interpretações. Tal produção visa não só a fácil compreensão mesmo

pelas pessoas mais simples e menos alfabetizadas, mas também seus versos

curtos e rimas podem ser mais facilmente lembrados e memorizados por quem

os lê ou escuta. O objetivo desses textos sempre é atingir a população e fazer

com que ela pense, se coloque ao lado da guerrilha, e uma linguagem simples

e direta contribui para que essas palavras cheguem mesmo a analfabetos ou

pessoas que não leram esses versos. Ao contrário de “Casa Verde”, que tem

uma carga emotiva maior e vários símbolos da guerrilha presentes, o público

alvo de Orti parece ser a população colombiana, e não os guerrilheiros.

16

Um terceiro texto é o poema Yo te Nombro assinado por Paul

Eluard6, que pode ser encontrado na página on line da guerrilha. A exemplo do

poema de Fernando Orti, esse texto também possui uma linguagem simples,

compreensível para a maioria das pessoas, porém contém algumas idéias nas

entrelinhas que são notadas com uma leitura mais atenciosa, mais uma vez

contendo os códigos que identificam a guerrilha e os aproxima da população. A

idéia central do texto é mostrar que o a guerrilha luta pela liberdade do povo.

Ao fim de cada estrofe, encontra-se um verso isolado que se repete em todo o

poema (“Yo te nombro... Libertad!”), que enfatiza a idéia de que todas as

dificuldades enfrentadas, a violência, enfim, a luta da guerrilha é pela liberdade,

que por estar escrita com letra maiúscula e o ponto de exclamação, pode

passar a impressão que a liberdade alcançada é um sonho maior, mais forte,

uma idéia que mereça ser pronunciada com letra maiúscula, como um nome

próprio, e com a devida emoção, tão presente entre aqueles que lutam por ela.

A primeira estrofe remete à violência que o Estado impõe à população e à

guerrilha:

Por el pájaro enjaulado

por el pez en la pecera

por mi amigo que está preso

porque ha dicho lo que piensa

por las flores arrancadas

por la yerba pisoteada

por los árboles podados

por los cuerpos torturados

Yo te nombro... Libertad!

Logo no primeiro verso já aparece a analogia entre pássaros e

guerrilheiros, onde nos parece que a idéia que se busca passar é a dos

guerrilheiros que são presos pela polícia nacional e pelo exército. É importante

também notar o sentido pejorativo do termo enjaulado, remetendo à idéia que

estão sendo tratados como animais, assim como os peixes no aquário,

6 Disponível em www.farcep.org/cultura/cuentos/tenombro.php

17

igualmente prisioneiros e vivendo em um ambiente limitado, de falsa liberdade,

que é evidenciada em outros versos. A imagem da censura como agressão

também aparece no terceiro e quarto versos, representada pelo amigo que está

preso por dizer o que pensa. Nos versos seguintes, mais uma vez a idéia de

agressão e de certa forma limitação de ações, onde as flores arrancadas,

grama pisoteada e árvores podadas remetem à censura não permitindo a

propagação, desenvolvimento (ou florescimento) de novas idéias, que no

contexto configuram-se nas idéias de justiça e liberdade que a guerrilha prega.

No último verso, a agressão física, os corpos torturados, a violência do

governo. Finalmente, o verso isolado, enfatizando que a guerrilha luta em

busca da liberdade para acabar com todos esses problemas que a população

enfrenta. Na segunda estrofe, está mais presente o sentimento de sofrimento e

revolta dessas pessoas:

Por los dientes apretados

por la rabia contenida

por el nudo en la garganta

por las bocas que no cantan

por el beso clandestino

por el verso censurado

por el joven exiliado

por los nombres prohibidos

Yo te nombro... Libertad!

Nesses versos o autor busca o sentimento popular, a revolta, a

raiva contida pela incapacidade de muitos de presenciar agressões, abusos e

não poder fazer nada a respeito. Vale lembrar nesse caso a pressão sofrida

principalmente pela população rural que apóia a guerrilha, onde a simples

desconfiança desse apoio aos ideais e ações guerrilheiras pode culminar em

torturas e assassinatos por parte de grupos paramilitares. As bocas que não

cantam, ou o verso censurado podem dar mais ênfase a essa idéia de censura

e repressão, assim como a imagem do beijo clandestino, que pode significar a

necessidade de segredo da ligação entre essas pessoas e a guerrilha para sua

18

própria segurança, e os nomes proibidos, ou seja, assuntos que devem ser

evitados por se relacionar à guerrilha e conseqüentemente aqueles que os

pronunciam poderiam ser perseguidos por se envolver com a guerrilha. A

terceira estrofe continua a mostrar essa imagem de clandestinidade por parte

dos que lutam pela liberdade:

Te nombro en nombre de todos

por tu nombre verdadero

te nombro y cuando oscurece

cuando nadie me ve

escribo tu nombre

en las paredes de mi ciudad

escribo tu nombre

en las paredes de mi ciudad

tu nombre verdadero

tu nombre y otros nombres,

que no nombro, por temor.

Vale lembrar que o termo nombro, além de nomear, pode

significar citar ou mencionar, portanto pode-se interpretar o primeiro verso

dessa estrofe como “te menciono (ou falo de você) em nome de todos”. O

caráter da clandestinidade, da luta por uma idéia, mesmo que proibida ou

perseguida está mais presente nesses versos. O primeiro verso mostra que a

luta é por todos, pela população. Os próximos versos evidenciam a

perseguição e a necessidade de propagar as idéias de liberdade, onde

“escrever seu nome verdadeiro” (Liberdade) nas paredes da cidade mostra a

insatisfação e a impressão de que é preciso propagar tais idéias, evidenciando

sua insatisfação com a situação atual e de certa forma, mostrar para aqueles

que tem medo da violência de que é possível lutar e resistir. Esses outros

nomes que o autor diz não citar por temor podem remeter a palavras e idéias

como revolução, justiça, entre outros. Essa estrofe configura-se na idéia central

do poema e não é por acaso que é repetida no fim do poema, para que seja

mais marcante para os que lêem esses versos. A quarta estrofe além de citar a

violência, tenta passar a mensagem de que se luta pela liberdade de todos,

mesmo aqueles que tem medo de lutar:

19

Por la idea perseguida

por los golpes recibidos

por aquél que no resiste

por aquellos que se esconden

por el miedo que te tienen

por tus pasos que vigilan

por la forma en que te atacan

por los hijos que te matan

Mais uma vez evidencia-se a violência aplicada contra a

população em geral, inclusive aqueles que apóiam a guerrilha ou almejam um

futuro melhor. Ao ler ou ouvir tais versos, certamente a população os assimila à

sua realidade, seja por conhecer alguém que lutou e foi morto pelos

paramilitares, seja pelo medo que sentem das reações do exército ou polícia

nacional que muitas vezes investigam e vigiam a vida de certas pessoas

quando essas são suspeitas de envolvimento com a guerrilha, ou

simplesmente pela violência que essa população sofre desses grupos. O último

verso busca atingir os pais, que perderam seus filhos, seja por apoiar a

guerrilha, seja por levantar a voz para um paramilitar ou simplesmente

assassinado por diversão destes, o que infelizmente acontece em muitas áreas

do país em conflito ou sob controle do exército, paramilitares ou mesmo das

guerrilhas, porém, em seus textos, certamente a guerrilha vai associar todas as

mortes ocorridas ao inimigo. Finalmente, a penúltima estrofe resgata a imagem

das injustiças cometidas:

Por las tierras invadidas

por los pueblos conquistados

por la gente sometida

por los hombres explotados

por los muertos en la hoguera

por el justo ajusticiado

por el héroe asesinado

por los fuegos apagados

20

Os primeiros versos dessa estrofe remetem aos abusos e

violência ocorridos no campo desde o período de La Violencia (1948-1954) e

que ainda ocorre nos dias atuais, com pequenos proprietários tendo suas terras

invadidas e tomadas por grandes proprietários, que nas últimas décadas virou

costume entre os “barões da droga” para conseguir mais terras e mão-de-obra

barata, pra não dizer semi-escravizada para trabalhar no cultivo da coca e

refino da cocaína. Os versos seguintes falam da injustiça que essas pessoas

sofrem, onde os mortos na fogueira podem significar tanto a tortura que muitos

desses homens sofrem, quando aqueles condenados e mortos cruelmente por

acuações falsas. O herói assassinado pode remeter a Jorge Eliécer Gaitán, o

carismático líder político e defensor do povo, assassinado em 1948 pela

oligarquia colombiana, mas também pode significar todos aqueles que deram

exemplo de luta e acabaram mortos pelos inimigos, seja pelo governo ou pelos

traficantes. Os fogos apagados podem ser vistos como uma analogia às vidas

que se dissipam, ou aqueles que perderam suas vidas pelos abusos ou

violência desses homens.

O poema termina, como já foi dito, com a repetição da terceira

estrofe, mostrando a importância de se continuar acreditando e lutando,

mesmo na clandestinidade. A idéia desses versos é enaltecer a luta da

guerrilha pelo propagado futuro melhor para todos, defendendo que se luta

contra os abusos, injustiças e violência impostos pelo governo, buscando um

bem maior, a liberdade para todos. A idéia de liberdade que aparece nesses e

outros textos remete à liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento e idéias,

onde um futuro livre significa para eles um futuro sem violência, medo, abusos,

assassinatos e uma vida mais humana.

Considerações Finais

Desde o período de La Violencia e a formação das primeiras

guerrilhas na Colômbia a partir da década de 1950, a violência parece estar

sempre presente no cotidiano das pessoas. Apesar dos discursos do governo

em defender a população das guerrilhas (que para eles seriam formadas por

assassinos e criminosos da pior espécie), do governo norte-americano (em

combater uma suposta narco-guerrilha para assim livrar o mundo todo desse

21

mal), e das guerrilhas (que dizem lutar pelos seus ideais e por uma Colômbia

mais justa), o que se pode constatar é que a população (principalmente nas

áreas próximas a conflitos) se vê desnorteada, sofrendo abusos de todos os

lados, sem saber ao certo em quem acreditar ou quem apoiar, tendo

consciência que o apoio a um dos lados resultará em retaliações dos outros

lados. Como defendem vários dos autores citados como Sirinelli e Baczko, todo

grupo social precisa de apoio popular, e este só é conseguido através da

adequação do seu discurso às necessidades e anseios do grupo que se busca

apoio (no caso Colombiano, a população civil) para poder se manter ou

alcançar o poder ou qualquer outro objetivo, em outras palavras, conseguir

apoio popular para que esta população veja seus atos como lícitos.

Nesse sentido, a situação colombiana se coloca como bastante

complexa, na medida em que a disputa no país não abrange a disputa de dois

lados antagônicos, mas os interesses de vários outros grupos que almejam

alcançar maior representatividade, poder ou seus interesses. Resumidamente,

as diferentes forças que atuam no país são: as classes dirigentes do país, que

procuram manter seu status quo de uma política oligarca, colocando as

guerrilhas e os traficantes como sendo uma única coisa, visando apoio militar e

financeiro de uma segunda força, os Estados Unidos, que buscam manter sua

presença militar na América Latina com o pretexto de estar combatendo o

narcotráfico mundial. Nesse caso, a associação da guerrilha ao narcotráfico

mostra-se vantajosa, pois o governo colombiano tem apoio e dinheiro para

combater o que realmente lhe incomoda e pode oferecer perigo: as guerrilhas.

Um terceiro grupo, já citado, é dos narcotraficantes ou barões da droga, que

sofrem extorsão de vários grupos guerrilheiros, dizimando-os para manter o

controle sobre a população local subempregada no cultivo da coca e refino da

cocaína, buscando apoio do governo por combater a guerrilha, visando um

certo “relaxamento” no combate ao tráfico. Um quarto grupo configura-se em

exércitos particulares e paramilitares, que fazem o “trabalho sujo” do exército

regular, assassinando povoados inteiros e também combatendo as guerrilhas.

Finalmente, os grupos guerrilheiros, que buscam - cada um ao seu modo –

alcançar seus objetivos, alegando que lutam para defender essa população e

garantir seus direitos. O fato é que, em muitos casos, as FARC-EP acabam

sendo responsabilizadas por atos de outros grupos como os radicais do extinto

22

M-19 (que depôs suas armas em 1990), ou mesmo do rival Ejército de

Liberación Nacional (ELN), além de vários outros grupos guerrilheiros

espalhados pelo país (o que não absolve as FARC-EP de efetuar ataques

contra grupos rivais ou pessoas que os apoiariam). E como já foi dito, a

população civil fica no meio dessas disputas, sem saber a que lado recorrer.

Nesse aspecto, os textos produzidos pelos próprios

guerrilheiros das FARC-EP pretendem mostrar para essa população que o

guerrilheiro não é um traficante, assassino e impiedoso como é taxado pelos

grupos rivais, mas tem sentimentos, esperanças e sonhos de uma Colômbia

mais justa, sem se esquecer de que esses também são as esperanças da

população colombiana. A presença de textos carregados de emoção seja amor

ou revolta e mesmo simbologias identificam ainda mais a população ao grupo,

como se partilhassem de um mesmo ideal, de um mesmo objetivo. Essa

imagem mais humanizada do guerrilheiro é mais uma arma para se conseguir o

apoio popular frente os inimigos da guerrilha.

Portanto, mesmo que seja um discurso idealizado, como a

princípio, todos são por ter que se adequar à realidade e anseios de uma

população que se pretende ter apoio ou legitimidade. O trabalho das FARC-EP

em identificar e aproximar o guerrilheiro do povo mostra-se como uma

poderosa arma no contexto em que se insere, onde a disputa ideológica é

intensa e o imaginário popular é um campo importante a ser conquistado, pois

é onde é possível criar heróis, monstros, e principalmente destruir (ou

deformar) a imagem dos grupos rivais. Retomando Baczko, nenhum grupo se

mantém no poder sem o controle do imaginário social, ou seja, sem que sua

população veja seus atos como legítimos.

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