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As Forças Armadas e a Comissão Nacional da Verdade

O TORTURADOR debruçava-se sobre a vítima com objetivos imediatos. Através da destrui-ção física e psicológica, buscava quebrar a vontade do tortura-do para que denunciasse com-panheiros; revelasse locais de encontro e reunião; indicasse atos passados e futuros. Exigia que tudo revelasse, a fi m de in-terromper a dor lancinante e o medo à dilaceração irremediá-vel da existência, vivida em ex-trema solidão.

A tortura durava minutos ou mantinha-se por horas, dias e semanas; podia deixar feridas, mais ou menos indeléveis, ou desembocar intencionalmen-te ou não na morte, sobretudo diante de vontade inquebran-tável. Após sevícias inominá-veis, Mário Alves morreu de hemorragia interna, empalado em cassetete, por esbirros in-dignados com o mutismo fér-reo do baiano.

A tortura possuía objetivo mais ambicioso. Almejava im-por o medo aos que resistiam, pensavam em resistir, eram chamados à resistência, sim-patizavam com ela ou conhe-ciam sua existência. Todos de-viam vigiar atos e passos, pa-ra não terminarem diante do torturador. Pais foram tortura-dos diante dos fi lhos pequenos; jovens foram estupradas por cães; militantes foram dilace-rados até a morte, como regis-tro do direito absoluto do tor-turador. Devido a essa “função pedagógica”, enquanto a dita-dura negava a prática da tortu-ra, permitia-se que seu conhe-cimento penetrasse e aterrori-zasse amplos segmentos da po-pulação.

No Brasil, a tortura como ar-ma policial e como instrumen-to de domínio social foi insti-tuição de Estado. Ela foi intro-duzida, sustentada, justifi cada, fi nanciada, apoiada ativamente pelas classes sociais que incen-tivaram e se locupletaram com o golpe militar: industriais; banqueiros; latifundiários; a

grande imprensa; políticos conservadores; ofi ciais da ativa e retirados; a alta hierarquia da Igreja e da Justiça; etc.

Ainda hoje, as instituições ju-diciárias, legislativas e execu-tivas do Estado desdobram-se para proteger e encobrir os res-ponsáveis e os executores pelas práticas generalizadas de tor-tura e execução de prisioneiros políticos, atos que a justiça in-ternacional e o direito dos po-vos defi nem como imprescrití-veis e necessariamente objetos de punição exemplar.

Em 2010, o Superior Tribu-nal Federal reafi rmou a impu-nidade daquelas ações crimi-nosas. Em 14 de dezembro de 2011, a maioria dos vereadores porto-alegrenses, inclusive de partidos punidos pela ditadu-ra, negaram, pelo voto, absten-ção ou ausência, a rebatizar de Leonel Brizola a atual av. Cas-telo Branco – que homenageia o primeiro ditador do regime militar.

Os torturados arrastaram pa-ra sempre as feridas recebidas nas carnes e na alma. Amiúde, elas nunca cicatrizaram, sor-vendo gota por gota a alegria da vida. Também no Brasil, a taxa de suicídio entre os gran-des torturados é estarrecedora, e segue crescendo mesmo dé-

cadas após o martírio. Porém, em geral em silêncio, essas ví-timas da desumanização pro-movida pelo Estado carregam orgulhosas a memória de luta empreendida, nas piores con-dições, por direitos sociais e humanos inarredáveis.

Os torturadores, não. Promo-vidos em suas carreiras civis e militares e retirados com apo-sentadorias magnífi cas, procu-ram esconder seus atos passa-dos ou diminuir a magnitude e o sentido dos mesmos, quando é impossível negá-los. Sobre-tudo, mimetizam-se na popu-lação comum ou simplesmente recolhem-se para a vida fami-liar e privada, escondendo-se por de trás das portas afer-rolhadas de seus ricos aparta-mentos e mansões.

Retomando a prática consa-grada em países como o Chile e a Argentina, uma garotada co-rajosa vem se postando diante das residências e locais de tra-balho de torturadores em Por-to Alegre, Belo Horizonte, For-taleza, São Paulo. Com carros de som, cartazes, panfl etos e muita gritaria, denunciam aos passantes e vizinhos espanta-dos, com farta documentação probatória, que ali se homizia no anonimato responsável pe-lo crime inominável de tortu-ra de prisioneiros e prisionei-ras inermes.

Em registro do indiscutível reconhecimento da infâmia de seus atos impunes, os tortura-dores revelados apenas se es-gueiram pelas portas traseiras dos imóveis e residências ou arriscam-se a entrever os de-nunciantes, escondido por en-tre as cortinas das janelas, co-mo os ratos que mergulham es-pavoridos no esgoto, aterrori-zados pela luz do dia.

Mário Maestri é historiador e professor do Curso e do

Programa de Pós-graduação em História da UPF. Foi preso

e exilado, quando estudante, durante a ditadura militar.

Mário Maestri

O torturador na vitrine

crônica Luiz Ricardo Leitão

A HISTÓRIA DEMONSTRA que ca-da geração une o passado e o pre-sente de forma original. Os elemen-tos e as contradições do presente são imprescindíveis para a construção de novos processos históricos. No entanto, ao mesmo tempo em que os elementos do presente são impres-cindíveis, também são insufi cientes, sendo a síntese dialética das contra-dições do passado e do presente fun-damentais para a construção das mudanças sociais.

O historiador francês Jean Ches-neaux afi rma que os povos, particu-larmente os subalternos do mundo, deviam “libertar o passado”. Atual-mente, viabilizar concretamente a Comissão Nacional da Verdade no Brasil signifi ca contribuir para liber-tar o passado e avançar na constru-ção de uma sociedade comprometi-da com a memória, com a verdade e com a justiça. O apoio e a solidarie-dade de diversos setores da socieda-de com as recentes ações do Levante Popular da Juventude em defesa da Comissão da Verdade indica que es-tá em construção um clima político favorável para que o governo brasi-leiro avance na concretização dessa comissão, proporcionando-lhe ple-nas condições de trabalho.

É um processo complexo. Preci-samos saber de fato quem é o nos-

so inimigo. Conhecer suas táticas e armadilhas conjunturais. É funda-mental nesse momento fazer algu-mas refl exões para a esquerda e para a sociedade brasileira. Os militares da reserva, protagonistas dos crimes da ditadura civil-militar e que fazem uma guerra suja contra a Comissão da Verdade, não falam em nome das forças armadas brasileiras. Encurra-lados e isolados, a tática dos milicos, nesse momento, passa por poten-cializar o sentimento corporativista das forças armadas. Aliás, os milita-res da reserva já foram, recentemen-te, desautorizados de falar em nome das forças armadas brasileiras.

Também é importante ressaltar que as forças armadas não são ini-migas do povo brasileiro. Suas pos-turas diante dos fatos históricos são produto das contradições de seu tempo. Portanto, as forças armadas não são um corpo homogêneo e sem contradições. Quem disse que os jo-vens ofi ciais concordam com os atos de perseguição e de tortura pratica-dos durante a ditadura militar?

Aliás, em diversos momentos da História brasileira os militares ti-veram posturas identifi cadas com os interesses do povo brasileiro. Exemplo disso foi a postura políti-ca do exército brasileiro no proces-so da abolição da escravatura, co-

locando-se contra a continuidade da escravidão no Brasil logo após a guerra do Paraguai. Esse posicio-namento do exército minou as ba-ses da Monarquia, abrindo espa-ço para a proclamação da Repúbli-ca. A Coluna Prestes é produto das contradições das forças armadas brasileiras e do sonho da jovem ofi -

cialidade em mudar o Brasil. Im-portante lembrar também que, pa-ra Juscelino Kubitschek assumir a Presidência da República, o Gene-ral Lott teve que intervir para ga-rantir o cumprimento da constitui-ção. As forças armadas com todas as suas contradições também tive-ram papel importante na campa-nha “o petróleo é nosso”, na garan-tia da posse de João Goulart. O ob-jetivo ao ressaltarmos essa postu-ra das forças armadas nesses fatos históricos (muitos deles arranjos políticos pelo alto, sem protagonis-mo popular) não é reproduzir uma abordagem positivista da história, mas sim evitar posicionamentos cristalizados sobre o papel das for-ças armadas na sociedade.

Claro que as forças armadas tam-bém têm no seu histórico a repres-são violenta ao movimento popu-lar de Canudos, a ação golpista de 1937, o golpe militar de 1964, den-tre outros. Aliás, as mudanças es-truturais de cunho popular no Bra-sil não se darão através de quarte-ladas. Sabemos que a solução está na mobilização popular de milhões. Ressaltamos, portanto, a importân-cia de dialogar com os setores das forças armadas, particularmente a jovem ofi cialidade, comprometidos com seu papel constitucional de as-

segurar as instituições democrá-ticas e com o desenvolvimento de uma nação livre e soberana.

As contradições da realidade po-dem levar o povo brasileiro a pres-tar contas com um processo de re-democratização incompleto e mar-cado pela predominância de arran-jos políticos construídos pelo alto. O protagonismo popular do perío-do da redemocratização sofreu um refl uxo na década de 1990 e não foi sufi ciente para efetivarmos, na prática, diversas reivindicações de natureza democrática, nacional e popular. Uma nova geração de lu-tadores e lutadoras do povo certa-mente prestará contas a esse “de-senvolvimento capitalista deforma-do e perverso” no dizer de Flores-tan Fernandes.

Nesse xadrez que começa a se for-mar, percebemos posturas como o constrangimento, a conivência e a oposição aberta de setores da classe dominante brasileira à Comissão da Verdade. Isso porque existe um te-mor de que a Comissão da Verdade seja a ponta do iceberg. Um temor de que a sociedade brasileira, parti-cularmente a juventude, se mobilize para completar a redemocratização inacabada. Um temor de que o po-vo brasileiro resolva traçar os desti-nos da nação.

de 5 a 11 de abril de 20122editorial

Gama

Nem tudo está perdido

Os militares da reserva, protagonistas dos crimes da ditadura civil-militar e que fazem uma guerra suja contra a Comissão da Verdade, não falam em nome das forças armadas brasileiras

No Brasil, a tortura como arma policial e como instrumento de domínio social foi instituição de Estado

opinião

CRESCE A EXCLUSÃO LETRADA no país das desigualdades sociais. Uma pes-quisa recente do Instituto Pró-Livro revela que os nativos de Bruzundanga andam cada vez mais distantes dos livros. Em média, um brasileiro lê a cada ano quatro títulos – e pior: só consegue concluir a leitura de duas obras! Os dados preocu-pam, não resta dúvida, mas há muito caroço debaixo desse angu, meu caro e ra-ríssimo leitor. Afi nal de contas, ninguém disse que ele não estaria lendo: a julgar pelas horas de navegação na internet, muita coisa ainda se escreve e se lê no es-paço virtual. Tampouco, seria válido decretar a falência da literatura nesta ver-são periférica da sociedade do espetáculo, onde milhões de adolescentes conso-mem vorazmente copiosas séries fi ccionais como O Senhor dos Anéis e o prodi-gioso Harry Potter.

Eu sei que, a começar pelo próprio preço, existe uma gama sinistra de fato-res a concorrer contra o livro em uma nação dita emergente, na qual, sob a égide da pós-modernidade, quase tudo se converte em imagem e a palavra escrita pa-rece fenecer sufocada pela vertigem do audiovisual. E sei, também, que a missão de despertar e fomentar o gosto pela literatura é decerto um dos maiores desa-fi os que um professor pode abraçar na Bruzundanga do século 21, seduzida pelos mantras do dinheiro fácil e da celebridade instantânea.

Nem tudo, porém, está perdido, raro leitor. Ainda há quem aposte na magia da palavra, como pude constatar há poucos dias, na cerimônia de formatura dos licenciados em Letras da UERJ. Muitos talvez não saibam, mas nossa Univer-sidade foi a pioneira na adoção da polêmica política de “cotas”, que fez a aca-demia abrir suas portas para um público que jamais lograra ingressar no ensi-no superior. Com parcos recursos (uma bolsa de apenas R$ 300,00) e enorme disposição, uma boa parcela desses ‘novos’ alunos tem conseguido cumprir seu curso e formar-se (inclusive com índices de evasão inferiores àqueles apresen-tados pelos não-cotistas, registra a Profª Lená Medeiros, Sub-reitora de Ensino da instituição).

Que prazer teve o paraninfo ao ouvir a oradora do grupo, uma aluna egressa do pré-vestibular comunitário da Mangueira (o berço do genial Cartola, hoje ocu-pado por uma UPP). Em seu discurso, mesclando citações de Drummond e Che Guevara, ela ponderou que, acima das justas ambições pessoais que cada um aca-lentava de posse do diploma, cabia-lhes, sobretudo, lutar contra a praga do anal-fabetismo (inclusive a sua manifestação mais terrível e daninha, que Brecht de-vassou em seus versos – o analfabetismo político), uma tarefa quase épica neste estado que tem o 2º pior desempenho do Ensino Médio no país e nesta República que durante séculos ignorou o valor estratégico da Educação.

De fato, esses jovens professores poderiam assessorar deputados em Brasília, escrever roteiros para o BBB ou, quem sabe, organizar uma quadrilha de frau-des do INSS, entre outras ardilosas formas de lidar com a “coisa pública”. Toda-via, continuam a exercer o mais nobre dos ofícios, que é compartilhar e produzir conhecimento com o ser humano. As musas não irão abandoná-los: eles estão un-gidos pela beleza epifânica da poesia e pela força desconcertante da fi cção, capaz de instaurar grãos poderosos de dúvida nas certezas cristalizadas deste planeta – amuletos imprescindíveis para a batalha de ideias atual e cuja energia não só ali-menta nosso espírito, como também nos ajuda a desvelar perversas máscaras so-ciais. Afi nal, quem poderia dissecar melhor o cinismo e a desfaçatez de nossas eli-tes do que o defunto-autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas ou o sarcásti-co narrador de Os Bruzundangas? Quem melhor do que o criador de São Bernar-do e de Vidas Secas investigaria com tamanha clarividência o imaginário de nos-sa experiência periférica de modernidade?

Lembram-se da receita de mestre Chico Buarque? “Para um coração mesquinho/ Contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é incontes-te”. Pois bem: contra o suplício das Supervias e obras superfaturadas do Maraca-nã, existe um outro Cabral, o João pernambucano de Morte e Vida Severina; e se o trem da vida for muito perigoso, não titubeiem: Guimarães Rosa é tiro certo, sô! Não importa a via, nem a posologia: há Bandeiras e Quintanas para qualquer vi-rose ao sul do Equador.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e

de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Cristiano Navarro, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Aline Scarso, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti • Correspondentes nacionais: Joana Tavares (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma

– Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela), Marcio Zonta (Peru) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam),João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (Campinas – SP), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maira Moreira Mesquita • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: Folha Gráfi ca • Conselho Editorial: Angélica Fernandes, Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Pinheiro, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Não importa a via, nem a posologia: há Bandeiras e Quintanas para qualquer virose ao sul do Equador

de 5 a 11 de abril de 2012

Síria, sem qualquer protesto ofi cial do chanceler Anto-nio Patriota? Dilma defende diálogo, a mediação de Ko-fi Anan e rejeita sanções. Duas vozes? E se os EUA re-solverem armar a oposição na Venezuela, na Bolívia, no Equador? Qual será a posição do Brasil na eventualida-de de uma situação assim?

E se as grandes potências resolverem também aplicar algum tipo de pressão contra o Brasil, que tem mais de 50 mil homicídios/ano, que é o país onde mais se execu-tam homossexuais; onde há tortura diária e sistemática em qualquer delegacia, dependências do Estado; onde os assassinatos de militantes da reforma agrária e 93% dos homicídios permanecem impunes, conforme dados do Ministério da Justiça?

E se, como sempre ocorre, os poderosos do mundo re-solverem usar como pretexto a bandeira esfarrapada dos direitos humanos para pressionar contra o programa nuclear brasileiro, como fazem contra o do Irã, cujo di-reito, Dilma defendeu na Cúpula da índia?

Há algo desafi nado na política externa brasileira. E não é apenas porque no Comunicado do Itamaraty se grafa o nome do Brasil com Z.

O Brasil em duas vozes?NA ÍNDIA, NO DIA 29 de março, a presidenta Dilma disse, corretamente, que o Brasil rejeita sanções con-tra a Síria, Irã e Palestina. Está no Comunicado Ofi cial do Itamaraty – no qual o nome do nosso país está gra-fado erroneamente com Z, “Brazil” – que Dilma apos-ta no diálogo. Lembra que o Brasil, assim como o Irã, também possui um programa nuclear para fi ns pacífi -cos. Mas, o presidente dos EUA, Barack “Obomba”, o mais desmoralizado dos Prêmios Nobel da Paz, dita que “não admite um Irã nuclear”. Pela lógica dos fatos, pode-se entender também que não admitiria um Bra-sil nuclear.

No mesmo dia, o Embaixador do Irã no Brasil, Moha-mad Ali Ghanezadeh, informou, sob aplausos de um au-ditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) lo-tado, que no governo Dilma o comércio entre os dois países cresceu. Mesmo com o voto equivocado do Bra-sil contra o Irã, na ONU, no tema Direitos Humanos. O discurso de Dilma “todos temos telhados de vidro” pare-ce não ter sido entendido pelo Itamaraty, que pode fl er-tar com as posições de Hillary Clinton. A Secretária de Estado de “Obomba” defende agora armar a oposição na

Gama

instantâneo

Beto Almeida

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Frederico Daia Firmiano

O país do agronegócio

do Jornal do Brasil se deparava com um círculo acom-panhado da seguinte legenda: “Hoje o quadrado foi dar uma circulada!”.

Até no uso da informática Millôr pode ser considera-do um precursor. Em 1987, quando colaborava na re-vista Isto É, passou a usar um computador PC-XT pa-ra produzir uma série de desenhos chamados “Arte é Intriga”. Enquanto as redações estavam se digitalizan-do, seu objetivo era o de testar os limites do jornalismo nesta sua nova fase tecnológica, e redescobrir um rit-mo próprio da mídia impressa, que já começava a que-rer concorrer com os suportes eletrônicos (antes a tele-visão, depois a internet).

Sempre reclamamos que temos poucos fi lósofos bra-sileiros. Agora que Millôr partiu, compete-nos analisar a fi losofi a debochada, tipicamente carioca do “fi lósofo do Meyer”, como Millôr gostava de se defi nir. E se fi lo-sofar é criar conceitos, Millôr nos deixou milhares de-les através de suas frases, uma das suas especialidades. A minha preferida é esta aqui, que parece encerrar toda uma fi losofi a de vida: “desconfi e de quem lucra com o seu ideal”.

Viva MillôrMILLÔR FERNANDES sempre buscou a imperfeição. No jornalismo, no teatro e na artes plásticas, em que costuma prevalecer a cópia e a reprodução espelhada da realidade, Millôr sempre procurou recriá-la, através da caricatura do bom senso e o do senso comum.

“Se uma imagem vale por mil palavras”, insistia Mil-lôr, “como seria possível afi rmar isso sem o uso da pala-vra?”. É uma frase que revela o fascínio pela linguagem e a predileção pela palavra escrita, que ele soube explo-rar em suas múltiplas relações com a imagem, princi-palmente nas charges políticas, poéticas, provocativas ou pelo puro interesse gráfi co, como no caso dos seus haikais (“esnobar é exigir café fervendo e deixar es-friar”, dizia um deles).

O quadrado destinado a Millôr nos grandes veícu-los por onde ele passou, além de ser um respiro, ver-dadeiro alento de humor e inteligência em meio a tex-tos declaratórios e sem-graça, era um exemplo concre-to do poder de síntese da palavra escrita; da liberdade de expressão artística; da derrubada das fronteiras en-tre popular e erudito, fi cção e realidade, poesia e pro-sa. Em um desses célebres quadrados do Millôr, o leitor

Silvio Mieli

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São Paulo, de 29 de março a 4 de abril de 2012Ano 10 • Número 474

ISSN 1978-5134

O Levante Popular da Juventude realizou dia 26, em vários estados do país, ações simultâneas de denúncia de diversos torturadores que continuam impunes. Os manifestantes apoiam a Comissão

da Verdade e exigem a apuração e a punição sobre os crimes cometidos pela ditadura civil-militar. Págs 2, 4 e 5

O torturador mora ao lado

Frei Betto

Dança das cadeiras A vida não reserva a ninguém cadeira cativa.

Rei posto, rei deposto, a uns faz gosto, a

outros, desgosto. César era imortal e, no

entanto, pereceu. O Terceiro Reich duraria

mil anos e não completou 20. Pág. 3

Altamiro Borges

Cachoeira e a Revista Veja Além do vínculo de Carlinhos Cachoeira

com o líder dos demos Demóstenes Torres,

surgem agora provas sobre as íntimas

relações do mafi oso com o editor-chefe da

Veja, Policarpo Júnior. Pág. 3

Vito Giannotti

Redes sociais e hegemoniaSe em 1990 havia no país seis jornais

sindicais diários, hoje só temos dois. O

mesmo ou pior acontece com o uso da mídia

eletrônica. Muitos sindicatos e movimentos

sociais ainda estão na época da onça. Pág. 3

E a reforma agrária, presidenta Dilma? Págs. 10 e 11

Reprodução

Para André Singer, pobreza diminuiu Pág. 8

Israel rompe com a ONU para esconder ilegalidades Pág. 16

João Zinclar

Ditadura

Levante Popular da Juventude

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 3,00

São Paulo, de 22 a 28 de março de 2012Ano 10 • Número 473

O Ministério Público Federal denunciou à Justiça Federal do Pará o coronel da reserva Sebastião Curió por crime de sequestro qualifi cado contra cinco integrantes da guerrilha do Araguaia. Essa é a primeira ação criminal contra agentes

da ditadura. O juiz federal João César Otoni de Matos rejeitou a denúncia contra Curió. Por outro lado, a Comissão da Verdade tem sido alvo dos torturadores, que lançaram manifesto em nome do Clube Militar atacando a iniciativa. Para

assegurar que a Comissão da Verdade cumpra sua tarefa serão necessárias lutas populares. Págs. 2, 4 e 5

Ditadura Ditadura

Caminho abertoCaminho aberto para a puniçãopara a punição

Aziz Ab ́Saber

Uma vida por outro modelo de sociedade Pág. 13

Francisco Emolo/Jornal da USP

Gama

ISSN 1978-5134

Roberto Malvezzi (Gogó)

Dilma e a esquerda Os entraves políticos do governo

Dilma não se dão apenas com sua

fi siológica base aliada, mas também

com aliados históricos que comungam

muitas de suas causas. Pág. 3

Alipio Freire

Impacto de atropelamento Quando li, na edição de domingo que a

“Mercedes SLR McLaren fi cou visivelmente

destruída com impacto de atropelamento”,

pensei de imediato que se tratava de mais um

ataque da imprensa burguesa ao PT. Pág. 3

Frei Betto

Rumo à reforma agráriaGoverno é, por natureza, expressão da

vontade popular. E a ela deve servir. O que

signifi ca manter interlocução permanente

com os movimentos sociais ligados às

questões ambiental e fundiária. Pág. 3

Ruralistas miram terras indígenas Pág. 7Pág. 7

Na USP, alunos expulsos, presos e processados Pág. 8Pág. 8

NO DIA 28 DE MARÇO, a Câmara Federal instalou a Co-missão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as situações de trabalho escravo e análogo à escravidão em áreas urbanas e rurais, em todo o país. Isto, num mo-mento em que volta à cena a discussão sobre a Proposta de Emenda Constitucional n° 438, de 2001, que estabe-lece a pena de perda da propriedade onde for constata-da a existência de trabalho escravo e reversão em área de assentamento rural dos trabalhadores vítimas das situa-ções de escravidão, cuja promessa é que seja votada no próximo mês de maio.

Segundo os “Cadernos de Confl ito”, da Comissão Pas-toral da Terra (CPT), entre janeiro e setembro de 2011, houve 218 denúncias de situações de trabalho escra-vo, envolvendo 3.882 trabalhadores e trabalhadoras. O estado do Mato Grosso do Sul foi o recordista, com 1.322 casos. Registre-se que o Mato Grosso do Sul lide-ra o ranking de assassinatos de indígenas no Brasil des-de 2005.

Nos últimos anos, os relatórios da CPT vêm mostrando que as diversas situações de trabalho escravo se alastram por todo o país e atingem patamares cada vez mais ele-vados. Antes de 2003, registraram uma média de 20 ca-sos anuais. Depois disto, este número passou para mais 250 casos, anualmente. É a partir deste ano também que os agronegócios registram crescimento de mais de 20% ao ano. Alguns objetam, afi rmando que, na verdade, não houve aumento de casos, mas sim da fi scalização. Mas is-to é pouco relevante.

O que é negativamente importante é que o trabalho es-cravo persiste num contexto de hegemonia dos agrone-gócios. E aparece em seus setores mais modernos. O es-tado do Mato Grosso do Sul e a região centro-oeste, pa-ra onde têm se expandido as cadeias produtivas no agro-negócio, está entre aqueles que utilizam as tecnologias mais modernas na produção agropecuária. Isso indica que, longe de ser uma manifestação de “setores arcaicos da economia que precisam ser modernizados” esta for-ma de superexploração do trabalho é parte constituinte do padrão atual de acumulação de capital no campo bra-sileiro.

A aposta que vem sendo feita pelos governos do Parti-do dos Trabalhadores (PT) responde a um projeto de he-gemonia. Tal projeto aproveitou os processos de reestru-turação produtiva e implementação das políticas neoli-berais para atender os imperativos político-econômicos do capital transnacional e aos interesses das forças polí-ticas internas e reiterou a posição subalterna do país na divisão internacional do trabalho, como fornecedor de commodities.

Com isso, consagrou um padrão de desenvolvimento que reproduz formas de acumulação altamente destru-tivas: é o caso dos agronegócios, que necessitam, perma-nentemente, expandir a área agrícola agricultável e au-mentar a produtividade do trabalho, que reitera as dis-tintas formas de trabalho escravos.

Segundo o deputado paraense Claudio Puty, do PT, a CPI do Trabalho Escravo, que presidirá, não identifi ca-rá e nem punirá as empresas responsáveis, mas analisa-rá a efi cácia da fi scalização trabalhista e verifi cará a legis-lação e a estrutura de combate ao trabalho escravo, pro-pondo, ao fi m, alternativas para a erradicação da pobre-za extrema que, para ele, é a causa principal deste tipo de relação de trabalho.

Erra o alvo. Acertá-lo signifi ca tocar no modelo de de-senvolvimento e, mais que isso, no padrão destrutivo de acumulação de capital que hoje dá o tom deste desenvol-vimento. Mas esta é uma tarefa que a CPI do Trabalho Es-cravo e a votação da PEC 438/2001, em que pese sua im-portância na luta contra os agronegócios, não pode cum-prir, pois essa luta está circunscrita àqueles movimentos radicalmente opostos à dinâmica do capital no campo. Cabe a esses movimentos aproveitar o momento político para mobilizar as forças capazes de enfrentar este mode-lo de desenvolvimento reprodutor da escravidão.

Frederico Daia Firmiano é professor-assistente daFundação de Ensino Superior de Passos/Universidade

do Estado de Minas Gerais e doutorando em Sociologia pela FCLar/Unesp.

Cabe a esses movimentos aproveitar o momento político para mobilizar as forças capazes de enfrentar este modelo de desenvolvimento reprodutor da escravidão

brasilde 5 a 11 de abril de 20126

Pedro Carrano,de Curitiba (PR)

A “DESINDUSTRIALIZAÇÃO” do país tem sido motivo de questionamentos por parte dos empresários e também por parcela do movimento sindical. Es-te tema vem fornecendo vários estudos no plano da academia, mas ainda é ne-cessário esmiuçar suas razões no plano da política econômica. Trabalhadores e trabalhadoras sofrem a incidência des-se processo ao se deparar com uma con-juntura global na qual as cadeias produ-tivas optam pelo menor preço da mão-de-obra, deslocando-se entre países. No plano nacional, um problema é a falta de políticas que valorizem o trabalho e a qualifi cação do trabalhador.

Dados do IBGE demonstram que a produção industrial brasileira caiu 2,1% em janeiro e dezembro, a maior redução mensal desde dezembro de 2008, no au-ge da crise fi nanceira global. O Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu 2,7% em 2011, o que pode ser considera-do uma redução drástica. No entanto, a fatia destinada à indústria teve expansão de apenas 1,6% no ano (frente aos 10,4% em 2010). Os dados também apontam a queda na produção da indústria de transformação. Entre 2008 e 2011, en-quanto o setor fi nanceiro cresceu 23,1%, e a extração mineral cresceu 12,8%, por sua vez, o desempenho da indústria de transformação caiu 5,7%.

Mais do que números, o tema da de-sindustrialização pode ser compreen-dido apenas se for levado em conta a questão do modelo de política econômi-ca adotado, as medidas e o seu percur-so histórico, que remonta a opções de inserção do Brasil no plano internacio-nal desde o governo de Juscelino Kubits-chek, na década de 1950, cujo desenvol-vimento foi calcado em empresas trans-nacionais, resgata Adriano Benayon, economista e professor da Universidade Nacional de Brasília (UNB).

A medida da indústria ECONOMIA A “desindustrialização” é a ponta do iceberg dos problemas da política econômica brasileira, inserida no contexto mundial

mantém uma taxa de juros arbitrária, ao passo que nesse momento nos EUA e Europa as taxas de juros são negativas”, critica Díaz.

Determinantes No geral, coincidem muitas condi-

cionantes para a atual situação da eco-nomia brasileira abordadas pelos eco-nomistas. São apontadas a manuten-ção das vantagens para a exportação de bens primários e semimanufaturados, por meio de mecanismos como a isen-ção do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), vigen-te desde a lei Kandir-Collor, de 1991; a continuação dos juros mais elevados do planeta, fi xados pelo Copom e Ban-co Central, forma pela qual é determi-nada a maior parte dos juros nos títu-los públicos.

O economista Adriano Benayon des-creve que, ao lado disso, encontram-se os altos juros cobrados pelos bancos, que aumentam de forma contínua. “Es-pecialmente os cobrados pelos bancos às empresas não-favorecidas por crédi-tos do BNDES e os pagos pelos consu-midores, e mais ainda cheque especial e cartão de crédito”, elenca.

O economista Guilherme Delgado, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afi rma que a razão desses números negativos é en-contrada não somente na saída e entra-da de produtos e mercadorias do país, mas como um todo na conta fi nanceira que trata da renda do capital, o que não é abordado pela mídia corporativa.

“A balança dos serviços é a raiz estru-tural do défi cit, o que envolve remes-sas, juros, viagens internacionais, o que entra e o que sai, o conjunto de servi-

ços apresentam uma situação de défi -cit crescente muito rápido, evoluindoda época de 25 bilhões de dólares aoano, sem nunca cair, mas triplicando”,afi rma Delgado. Para ele, a mídia falaapenas de exportação de mercadorias.

Estudo recente do IPEA ressalta queo défi cit da balança comercial de pro-dutos manufaturados, entre janeiro de2011 e janeiro de 2012, fi cou em US$94,3 bilhões.

A “ressaca” do que foi descrito co-mo uma vantagem do modelo de ex-portação de commodities – aumentode reservas nacionais, sem défi cit emconta corrente – começa a ser senti-da nesse contexto no qual há o aumen-to da dívida pública, o défi cit na balan-ça comercial e, ademais, o fl uxo de ca-pitais de curto prazo, o que gera insta-bilidades no plano futuro. “Os juros al-tos são o principal fator da sobrevalori-zação da taxa de câmbio do real, juntocom a abundância de dólares no exte-rior decorrente das colossais emissõesdo FED (Banco Central estadunidense),para que os EUA paguem suas importa-ções e tudo mais, mediante a disponibi-lidade, sem limites, de sua moeda”, des-creve Benayon. (PC)

ções com o México para limitar a impor-tação de carros, modifi cando um acor-do que vale desde 2002. O Brasil ex-portou 55 mil para o mercado mexica-no, ao passo que foram importadas de lá 134 mil unidades. É um pequeno sinto-ma da fragilidade da economia brasilei-ra quanto à entrada de mercadorias im-portadas, mas que também é marcado pelo ingresso de capitais de curto prazo, atraídos pelo binômio câmbio elevado e grandes taxas de juros, respectivamente. Fatores que seguem estancados no atual xadrez político.

O termo correto para este debate, na avaliação de Pablo Díaz, economista e professor universitário, em lugar de de-sindustrialização, é “deslocação da pro-dução”. Hoje, é mais rentável ao Capital comprar maquinário na China ou sim-plesmente instalar uma fábrica na Ásia, no contexto da atual internacional do trabalho, citando a compra de navios da mineradora Vale na China. Um dos pro-blemas centrais para ele se refere à ma-nutenção da taxa de câmbio, hoje a mais elevada do mundo. “As empresas rece-bem lucros maiores lá fora, ao montar uma fábrica na China, monta e reimpor-ta para cá. Mantemos um modelo que

Agenda conservadora e deslocação da produçãoAs medidas adotadas frente ao baixo crescimento do PIB e pouca efetividade da indústria nacional são paliativas

“Mais que tudo, a atual política econô-mica é responsável pela continuidade da desindustrialização, porque não trata de modifi car a estrutura econômica, dando condições a empresas médias e peque-nas de assumir papel mais importante na economia, o que só seria possível des-montando a grande massa de vantagens que a política econômica do país foi acu-mulando em favor das empresas trans-nacionais”, critica Benayon.

O professor aponta que há hoje uma indústria concentrada em mãos de transnacionais, conformando preços de oligopólio, pois falta concorrência, “e os lucros que obtêm não aproveitam à eco-nomia brasileira, são remetidos para o exterior”, afi rma.

“O mais notável é que esse favoreci-mento segue em alta, com o Banco Na-cional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) provendo fi nanciamen-tos na casa das centenas de milhões e até na casa dos bilhões de reais em favor de grandes empresas concentradoras, em grande parte transnacionais, além de grande número delas sendo produtoras e exportadoras de bens primários com grau pequeno de elaboração industrial”, critica Benayon.

de Curitiba (PR)

Há uma agenda conservadora e li-mitada proposta por setores conser-vadores. Nela, concentra-se o proble-ma apenas no corte de direitos sociais, tais como Previdência e Direitos Tra-balhistas. A culpabilização da alta car-ga tributária como um fator da redução do peso da indústria no Produto Inter-no Bruto (PIB), ou ainda a redução do problema à efi ciência nos gastos públi-cos, encobrem a essência do debate.

As medidas tomadas frente ao bai-xo crescimento do PIB e pouca efetivi-dade da indústria nacional são paliati-vas e incidem sobre determinados seto-res, apenas no marco do incentivo fi s-cal. Modelos de crítica liberal são da-dos a todo momento na mídia corpo-rativa, muitas vezes sem tocar no pro-blema da questão cambial, tentando co-locar a responsabilidade do problema “nos custos” de produção. Leia-se: nos direitos do trabalhador.

Problemas estruturaisUm exemplo dessas medidas não es-

truturais pôde ser visto ainda em mar-ço, quando o Brasil concluiu as negocia-

Entre 2008 e 2011,o setor fi nanceiro cresceu

23,1%,a extração mineral cresceu

12,8% e o desempenho da indústria de

transformação caiu

5,7%.

O Brasil exportou 55 mil para o mercado mexicano, ao passo que foram importadas de lá 134 mil unidades

Estudo recente do IPEA ressalta que o défi cit da balança comercial de produtos manufaturados, entre janeiro de 2011 e janeiro de 2012,

fi cou em US$ 94,3 bilhões

No plano nacional, um problema é a falta de políticas que valorizem o trabalho e a qualifi cação do trabalhador

Robert Scoble/CC

Para o capital, por conta da taxa de câmbio, é mais rentável montar uma fábrica na China e importar o produto manufaturado

“Há hoje uma indústria concentrada em mãos de transnacionais, pois falta concorrência”

brasil 7

da Redação

Volks vai expandir fábricaNo momento em que amplos setores

da sociedade vão às ruas contra a desin-dustrialização e em defesa do emprego, a Volkswagen vai expandir as atividades em Taubaté (SP), até 2016, devendo gerar mil empregos diretos. Essa expan-são, a partir da planta local, que empre-ga hoje 5,2 mil trabalhadores, foi asse-gurada por uma série de iniciativas, que envolvem o governo municipal e estadu-al. Porém, foi decisiva a negociação com o Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté e Região e a entidade do ABC, ambas ligadas à CUT. Os dois sindicatos nego-ciaram um acordo trabalhista de fôlego, sacramentado em duas assembleias na manhã do dia 29 de abril, em Taubaté, e à tarde em São Bernardo do Campo, na Região do ABC. O acordo assegura ganhos reais para os trabalhadores das duas unidades.

Operários paralisam construção A construção da Eldorado, maior

fábrica de celulose do mundo, foi com-pletamente parada na manhã do dia 1 de abril em Três Lagoas, interior do Mato Grosso do Sul. Cerca de oito mil operários decidiram em assembleia cruzar os braços devido à política de arrocho e precarização, que permanece sendo praticada pela empresa e suas subcontratadas, passado pouco mais de um mês do fechamento do último acordo. A equiparação salarial entre as várias terceirizadas e quarteirizadas é a principal bandeira, já que existe muita desigualdade em termos salariais, de tratamento e de direitos. “Havíamos convocado uma assembleia para tirar um indicativo de greve, antes de uma nova rodada de negociação com a em-presa. Mas a categoria decidiu paralisar as atividades desde já, pois o acordo assinado está sendo descumprido”, declarou Antonio Luiz, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas In-dústrias da Construção de Cacilândia e Três Lagoas (Sintiespav).

Um acidente após o outroA Federação Única dos Petroleiros

(FUP) noticiou, nas últimas semanas, uma série de situações que têm coloca-do ainda mais em risco os trabalhado-res das unidades do Sistema Petrobras, assim como as comunidades vizinhas e o meio ambiente. Acidentes e inciden-tes praticamente diários nas refi narias, plataformas e terminais; redução dos efetivos; cortes de custos no Abasteci-mento; descumprimento das normas de segurança; desmantelamento das brigadas de incêndio; subnotifi cação de acidentes, entres outros absurdos que a FUP e seus sindicatos constantemente denunciam. Enquanto os gestores da empresa acumulam em seus gabinetes avaliações e estudos que quase nunca saem do papel, os trabalhadores das áreas operacionais perdem vidas, adoe-cem e são mutilados. No dia 24 de mar-ço, o vigilante Almir da Silva Marques, 34 anos, morreu ao ser atropelado den-tro da Refi naria Abreu e Lima, em Per-nambuco, junto com um colega, que, por sorte, sobreviveu ao acidente. Antes mesmo de começar a produzir, a refi na-ria já levou à morte dois trabalhadores nos últimos dois anos. Em setembro de 2010, o eletricista Milton José da Silva, 51 anos, perdeu a vida durante um aci-dente na refi naria, quando sofreu uma descarga elétrica violenta e caiu de uma altura de 12 metros. Acidentes que po-deriam ter sido evitados se a Petrobras desse a devida importância às denún-cias do sindicato, que tem constante-mente criticado as péssimas condições de trabalho.

ReprimarizaçãoA “reprimarização” da economia se dá

por meio da prioridade em investimento no setor primário da economia, ao invés de investimentos em indústria de alta tecnologia, algo que no momento é ne-gativo, defende Tádzio Peters Coelho, no artigo A Reprimarização da Economia Brasileira e o Desenvolvimento de Fôle-go Curto’. “O saldo – exportação menos importação – de produtos da indústria alta e de média-alta tecnologia atingiu em 2002, 15.674 milhões de dólares ne-gativos, e, em 2010, 46.669 milhões de dólares negativos”, descreve.

Bancários paralisam BNBOs funcionários do Banco do Nordeste

na Capital pernambucana paralisaram as atividades por uma hora dia 28 de abril contra a tentativa de redução da Participação nos Lucros. Durante o ato, o Sindicato da categoria denunciou a enrolação do BNB nas negociações.

Proteção para a indústria O governo federal divulgou dia 2, que

irá lançar, um pacote de medidas para fortalecer a indústria nacional. Segundo o comunicado governamental, o pacote tem como principal objetivo ampliar a competitividade dos setores industriais, bem como a valorização do real. Seu conteúdo está sendo fi nalizado pelo Mi-nistério da Fazenda. Maiores detalhes serão divulgados pela própria presidenta Dilma Rousseff.

espaço sindical

de 5 a 11 de abril de 2012

de Curitiba (PR)

A visualização do economista Guilher-me Delgado, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é de que tivemos a mudança do modelo de inserção do Brasil na economia-mundo, consolidado nos anos 2000. Isso, segun-do ele, ocasionou a perda de importân-cia relativa do setor industrial nas con-tas nacionais, o que ganha impulso no momento de aceleração das exportações primárias no comércio internacional, com o agronegócio e a mineração como setores dinâmicos.

Esse ponto de análise atual é diferen-te do enfoque sobre o processo de es-tagnação industrial característico dos anos 1980, quando a desaceleração afe-tou a economia como um todo, o que, de acordo com Delgado, “não signifi cou a perda de dinamismo completo da in-dústria no conjunto da atividade eco-nômica”. O que está acontecendo ago-ra é uma outra inserção na divisão in-ternacional do trabalho, com perda re-lativa de participação da pauta indus-trial no comércio de exportação, abrin-do alas para o comércio exterior de bens primários.

“Exportações dão um pulo em dez anos e quadruplicam, ligadas ao setor primário e à indústria leve. O valor adi-cionado e o progresso técnico, que ha-viam comandado o período precedente, não são o fator fundamental que eleva a produtividade, muito ligada hoje aos re-cursos naturais e aumento da expansão agropecuária”, defi ne.

Na cesta de exportações da economia hoje, onde dentre os dez principais pro-dutos, seis deles são matérias-primas, Delgado aponta o petróleo como a exce-

ção, com uma cadeia industrial grande. Porém, é a exceção que confi rma a regra. “Em essência são os setores exportado-res de commodities, com base na van-tagem comparativa natural de matéria-prima”, diz Delgado.

ReprimarizaçãoRecentemente, no cenário político na-

cional, a esquerda brasileira fez questio-namentos sobre o papel desempenhado pelo país frente a outras nações. Ou se-ja, o subimperialismo brasileiro e a ex-pansão das transnacionais do Brasil em diferentes países, dos centrais aos peri-féricos. Isso até o ano de 2010, na estei-ra do crescimento de 7,5% do PIB. Ago-ra, com a desaceleração da economia e 2,7% de crescimento em 2011, a submis-são da pauta de exportações às commo-dities minerais etc, e a manutenção do câmbio alto, muitas análises confl uem para a caracterização de nossa econo-mia como dependente. Qual é, em li-nhas gerais, afi nal, o caráter de nossa economia, somos potência ou seguimos atrelados a políticas dependentes? So-mos as duas coisas?

“Não. O Brasil não é potência. Poderia ser se alterasse substancialmente toda sua estrutura de mercado, sua concep-ção de infra-estrutura, toda a racionali-dade de sua política de desenvolvimen-to, e também, é claro, seu sistema políti-co”, diz Adriano Benayon.

Segundo ele, nacionalmente, com a importação “desenfreada” de produtos estrangeiros, existe um descolamento entre o crescimento do setor comercial

e o setor industrial, onde grande parce-la da demanda nacional (que tem cres-cido de maneira signifi cativa nos últi-mos anos) é atendida por produtos es-trangeiros.

Desta forma, em função do câmbio va-lorizado e o elevado consumo de maté-rias-primas por parte de países asiáti-cos – em especial a China - assiste-se a um processo de reprimarização da pau-ta de exportação, através da venda de bens de baixo valor agregado (commo-dities agrícolas e minerais), como soja, açúcar, minério de ferro, entre outros, que geram empregos pouco qualifi ca-dos, afi rma o economista.

Essa visão coincide com a análise de Guilherme Delgado sobre a primariza-ção da economia. “O Brasil se insere na dinâmica da primarização, importamos todo o resto, no primeiro momento isso parecia uma solução, com o movimen-to sem défi cit em conta corrente, só que agora volta a partir de 2008 e volta forte. Com isso é necessário permanentemen-te recorrer ao ingresso de capitais e de formação de dívida, para ser adimplente com esse processo”, reforça. (PC)

de Curitiba (PR)

Quais soluções e qual margem de ma-nobra é possível no curto prazo? Os es-pecialistas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato pensam que, no debate de projeto, há algumas décadas nos afasta-mos de um projeto de industrialização, além de coincidir com a necessidade de controle público do sistema fi nanceiro.

“Temos que sair desse dilema e fazer novamente um programa de fomento in-dustrial. Hoje vale a pena ingressar ca-pitais no Brasil, país onde ainda é viável para dar remuneração ao capitalista. Po-rém, a longo prazo não se sustenta esse modelo como primário exportador – es-tamos dando um tiro na indústria cons-truída a prazo longo e custos altíssimos, precisamos voltar a reequilibrar as con-tas externas de outras forma”, equaciona o economista Guilherme Delgado.

Trabalhadores e as consequências A baixa participação do peso da indús-

tria manufatureira nos números da eco-nomia pode ser cruzada com os dados de que a maioria dos empregos gerados es-tão atrelados aos ramos de construção civil, serviços e telecomunicações, en-tre outros, o que deixa entrever também que a força de trabalho no país é extre-mamente desvalorizada.

O economista do Dieese-PR, Fabia-no Camargo, avalia que o baixo preço da força de trabalho no Brasil está liga-do à impossibilidade de acesso da clas-se trabalhadora a um patamar maior de

renda. O resultado é que, desse modo, o processo de desindustrialização no país acontece de forma precoce, e as conse-quencias são típicas de uma tragédia anunciada.

“Normalmente os países que possuem renda per capita acima de US$ 30 mil (nações consideradas ricas) são aqueles que sofrem com o processo natural de desindustrialização resultante da dinâ-mica estrutural de suas economias, sem que isso refl ita sobre o empobrecimento das suas populações. Pelo contrário, ve-rifi ca-se o desenvolvimento do segmento de serviços, como setor dinâmico da eco-nomia, demandante de mão de obra al-tamente especializada, de elevados salá-rios, e gerador de alto valor agregado, ci-ta-se como exemplo, a produção de sof-twares”, destaca Camargo.

Isso se traduz em uma inserção no mundo do trabalho, o que caracteriza os atuais baixos níveis de desemprego e es-tabilidade. Porém, um olhar crítico reve-la a fragilidade desse processo em médio prazo. “Com a queda da participação do setor industrial, o avanço que ocorre no setor de serviços é de baixa qualidade, devido à baixa renda da população e tam-bém ao baixo nível de desenvolvimento tecnológico nacional, quando serão in-centivados e por consequência demanda-dos serviços de baixo valor agregado, ge-radores de postos de trabalho com baixos salários”, explica Camargo. Segundo ele, assim, não se constrói um setor de servi-ços avançado do modo verifi cado nas na-ções mais desenvolvidas, indutores do processo de desenvolvimento.

No anuário estatístico da Previdência Social, 80% do salário- contribuição vai até três salários mínimos. Aumenta-se de 30 para 57 milhões inscritos no INSS, trabalhadores formais, principalmente no setor de serviços, mas os salários de contribuição são muito baixos, com per-fi l de especialização e exigência técnica baixos”, afi rma o economista Guilherme Delgado. (PC)

Opções dependentes Em 2012, os números do

PIB revelaram que a partici-pação da indústria no cres-cimento econômico foi a pior em 50 anos, fi cando em 14,6%. A fatia é semelhan-te à participação da indústria no PIB durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando essa taxa fi -cou em 13,75%. Naquele mo-mento, o governo tomou me-didas de urgência, resultando no Plano de Metas.

“Certamente foram instituí-dos estímulos e subsídios pa-ra a indústria, mas o ‘xis’ da questão é que no entendimen-to, quase geral no Brasil, pós-1954, o conceito de ‘nossa in-dústria’ não exclui as empre-sas de capital estrangeiro”, avalia o economista Adriano Benayon.

Para ele, os subsídios à in-dústria e à exportação foram favorecendo cada vez mais as empresas transnacionais em detrimento das de capital na-cional, as quais foram até es-magadas pela política econô-mica, com intensidade maior em determinados períodos, como 1964-1966, quando im-perou Roberto Campos como czar da economia no governo de Castello Branco. (PC)

Mudança de modelo de acumulaçãoOpção consolidada nos anos de 2000, mais do que diminuir a atenção à indústria, favorece o modelo de exportação de mercadorias sem valor agregado

Romper com o dilema e com a encruzilhada Para o economista Guilherme Delgado, temos de fazer novamente um programa de fomento industrial

“Exportações dão um pulo em dez anos e quadruplicam, ligadas ao setor primário e à indústria leve”

“É necessário permanentemente recorrer ao ingresso de capitais e de formação de dívida, para ser adimplente com esse processo”

Roosewelt Pinheiro/Abr

A venda de commodities agrícolas de baixo valor agregado, como a soja, geram empregos pouco qualifi cados

brasilde 5 a 11 de abril de 20128

Pedro Carrano, de Curitiba (PR)

NA AGENDA das centrais sindicais, o tema da desindustrialização é pautado frente ao governo e à sociedade, por meio de manifestações que acontecem nos es-tados. Isso ocorre desde 2011, quando governo, centrais e empresariado, re-presentados na Federação das Indústrias nos estados, montaram uma composição tripartite para negociação. Há defi nição de pautas comuns sobre o tema. Um de-bate que ganha corpo se pensarmos que, em 2011, o Brasil obteve um crescimen-to de apenas 0,3% de sua indústria e de 2,7% do Produto Interno Bruto (PIB).

Mas o real impacto da desindustriali-zação nas cadeias produtivas e no mundo do trabalho, o horizonte da composição entre patrões e o sindicalismo, além das soluções cabíveis para o tema, que afetam os rumos da política econômica do gover-no, são os principais pontos de aprofun-damento sobre a questão.

Na defi nição de Wagner Gomes, di-rigente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), essa am-pla composição tem como objetivo tirar privilégios dos setores fi nanceiros e ren-tistas. “Não há país forte, com emprego de qualidade, sem indústria. As centrais juntaram-se com o setor produtivo para enfrentar o sistema fi nanceiro, que ganha dinheiro e não gera um emprego. Quere-mos que o governo mude a política eco-nômica e direcione para a produção e não para o sistema fi nanceiro”, argumenta. Os sindicalistas falam do enfraquecimen-to da indústria nacional e da perda de competitividade, da guerra cambial e da desvalorização da moeda brasileira em relação ao dólar.

MoblizaçãoNo dia 4 de abril, diante da Assembleia

Legislativa de São Paulo, 100 mil pesso-as são esperadas para o “Grito de Aler-ta” contra a desindustrialização do país, campanha organizada por entidades em-presariais, entre os quais está o empresá-rio Jorge Gerdau Johannpeter, além das seis centrais sindicais: CTB, UGT, CUT, Força Sindical, CGTB e Nova Central. Em Curitiba, o ato deve se dar frente à Bos-ch – transnacional que demitiu arbitra-riamente 800 trabalhadores no início da crise desencadeada em 2008. Uma sema-na antes, cerca de quatro mil pessoas par-ticiparam em Porto Alegre (RS), na pri-meira manifestação do movimento.

As manifestações têm o objetivo de for-çar o governo a tomar medidas de prote-ção à indústria frente à concorrência do capitalismo internacionalizado. Até ago-ra, houve espaços de reunião entre as partes interessadas, porém poucas ações concretas foram tomadas, avalia Wagner Gomes, quem acredita que esse cenário deve mudar.

Na mesma semana dos atos, acontece, em Brasília, reunião entre a presidenta Dilma e as centrais. Segundo João Car-los Gonçalves (Juruna), dirigente da For-ça Sindical, o governo deve anunciar me-didas como a redução de impostos sobre determinados ramos da economia. De acordo com ele, essas medidas vão redu-zir o Imposto sobre Produtos industria-lizados (IPI) e o Imposto sobre Circula-ção de Mercadorias e Serviços (ICMS) de alguns produtos. Ainda assim, tais me-didas são paliativas, no interesse de sin-dicalistas e do empresariado, restritas a parte do programa da Fiesp e outros seto-res mais conservadores, que se limitam a exigir salvaguardas, antidumping e “me-didas de defesa comercial”, como avisa o programa da própria entidade. O tom da reunião de março entre a presidenta Dil-ma e o empresariado foram medidas nes-se sentido, no desconto da tributação so-bre o empresariado.

Agenda própriaAs centrais sindicais, por sua vez, afi r-

mam entrarem no tema e no debate pau-tando uma agenda própria, buscando be-nefícios aos trabalhadores. “Defendemos que eventuais incentivos por parte do Es-tado sejam acompanhados de contrapar-tidas aos trabalhadores, como a proibição de demissões e a manutenção de direitos. É inaceitável que o empresariado rentis-ta e setores que se utilizam das importa-ções para potencializar lucros sejam be-nefi ciados por medidas gerais, enquan-to setores como o de máquinas, vincula-do ao país, não receba a atenção adequa-da”, defende Quintino Severo, secretário-geral da CUT nacional.

Consta no programa da Fiesp e das fe-derações industriais o seguinte tripé: re-dução da taxa básica de juros, redução do spread bancário e medidas urgentes pa-ra atenuar a sobrevalorização cambial. A preferência pelos componentes nacionais fi ca mais evidente, tanto no discurso sin-dical e empresarial, tendo como principal exemplo a exploração do petróleo. Diz o documento da Fiesp, em um dos seus pontos: “Utilização das compras gover-namentais, inclusive da Petrobras, como indutoras da produção nacional, da agre-gação de valor e da geração de emprego e renda, com aplicação de margens de pre-

ferência para todos os setores industriais em percentuais que efetivamente incenti-vem a produção nacional”.

A agenda conservadora, nesse temá-rio, tem como ponto de partida a respon-sabilização do PIB baixo pela falta de re-formas na Previdência, nas leis trabalhis-tas, na desoneração da folha de pagamen-to, e na tributação que, como indicam es-pecialistas, não é tão elevada no Brasil e incide principalmente no holerite do tra-balhador.

Obstáculos Um dos problemas centrais reside no

câmbio, na “liberdade cambial” e na so-brevalorização do real, encarecendo a produção nacional e abrindo alas para a importação. “A isso se soma a taxa de ju-ros, que precisa ter acelerada a sua que-da. (Há também) a defi ciência da política alfandegária, por falta de presença do Es-tado, que necessita ter o seu papel forta-lecido. Moeda, alfândega e juro alto são, neste momento, os três principais obstá-culos a um crescimento industrial sobe-rano”, afi rma Quintino Severo, da CUT. Nesse contexto, as centrais criticam a en-trada sem barreiras de produtos “Made in China” por meio dos portos de Itajaí (SC) e de Vitória (ES).

Há divergências ou ainda poucos ele-mentos sobre a real dimensão do impacto da desindustrialização na cadeia produti-va nacional. Entre os principais debates, estão aqueles que observam um cenário de deslocação da produção para outros países onde o valor da força de trabalho é menor. Centrais como a CUT, por sua vez, enxergam que a desindustrialização não chega a ser estrutural nesse momen-to, mas resultado de uma política eco-nômica que pode ser alterada. A maio-ria, porém, observa que desmontes e de-missões de fato vêm acontecendo dentro do ramo produtivo. “Setores como o de vestuário e de calçado tem sofrido mui-to o impacto das importações, assim co-mo parte do setor químico, de máquinas e equipamentos, automobilístico e eletro-eletrônicos. Este último pela importação dos países asiáticos”, aponta Severo.

Ataques contra trabalhadores A avaliação de Ana Paula Rosa de Si-

mone, dirigente da Intersindical, sobre a desindustrialização, é diferente. No con-texto de internacionalização da produ-ção, as empresas tem deslocado seus par-ques produtivos para diversos países, de modo a intensifi car a exploração do tra-balho. Ou podem mesmo ampliar a pro-dução em suas sedes, em nome da pro-dução em menor tempo de trabalho. Ou-tro elemento apontado é o fato de que as principais montadoras costumam demi-tir e logo após recontratar funcionários, como tática de rebaixamento de salários e precarização.

“A burguesia nacional defi niu seu es-paço no capitalismo mundial: o de ser su-bordinada e feliz, e assim tem sido. Em-presas com sede aqui como Gerdau, Em-braer, Vale, Usiminas, a maior parte de-las vendedoras de bens de capital produ-zidos pelos trabalhadores, a custas de ar-rocho salarial e ritmos intensos de produ-

ção, estão com seus produtos em várias partes do mundo. Vendem ao Império e também vendem às economias domina-das”, afi rma Ana Paula Rosa de Simone. A sindicalista cita o fato de que há seto-res na produção brasileira que seguem tendo lucratividade na atual conjuntura, como é o caso do setor de eletrodomés-ticos nacional – mesmo em meio à inva-são de mercadorias chinesas. “As multi-nacionais instaladas no País seguem am-pliando suas plantas e consequentemente sua produção”, afi rma a dirigente da In-tersindical.

Esta avaliação coincide em alguns pon-tos com a análise do economista Pablo Diaz (matérias nas págs. 6 e 7), no senti-do de que a transferência da produção se dá em busca de maiores lucros. “Empresas como a Bosch no setor de autopeças, que fechou o ano de 2011 com um dos maiores lucros registrados em sua história, não es-tá em concorrência com os produtos chi-neses, mas sim transferindo parte de sua produção para sua própria planta na Chi-na. Dados que, na expressão podem pare-cer localizados, mas são exemplos de em-presas de ponta, que demonstram que não há desindustrialização, mas sim o Ca-pital se movimentando para manter e am-plia seus lucros”, aponta Diaz.

Ações imediatas Economistas apontam que, no pla-

no imediato, o governo deve tomar me-didas que alterem a política econômica, hoje favorável à especulação e ao rentis-mo. “Quando a realidade evidencia o es-magamento de pólos industriais, o fecha-mento de empresas, a eliminação de pos-tos de trabalho e queda na renda gera-da, então é porque algo deve estar errado nesse modelo”, afi rma o economista Pau-lo Kliass, em artigo publicado na Agência Carta Maior.

Além do controle de capitais de curto prazo, aponta-se também a necessidade de limitações aos produtos estrangeiros. “Tem que haver uma medida para bre-car a entrada de produtos estrangeiros no Brasil, tudo vem de fora, as empresas estão fechando e virando revendedoras”, diz Wagner Gomes. O sindicalista da CTB afi rma que a unidade com os empresários é pontual nas medidas contra o Capital fi -nanceiro – sobretudo no que se refere à pauta do tripé juros, câmbio e proteção da indústria. “A única coisa que nos une é a necessidade de o Brasil ser um país in-dustrializado, e garantir a indústria for-te. De resto, nós temos reivindicações que precisavam ser atendidas, como o Fator Previdenciário, a jornada de 40 horas, uma pauta extensa, o empresariado tem que negociar com a gente”, diz.

Em nome da indústriaECONOMIA Centrais sindicais unem-se ao setor produtivo para enfrentar o sistema fi nanceiro, que ganha dinheiro e não gera emprego, e contra a desindustrialização do país

“Queremos que o governo mude a política econômica e direcione para a produção e não para o sistema fi nanceiro”

“Setores como o de vestuário e de calçado tem sofrido muito o impacto das importações, assim como parte do setor químico, de máquinas e equipamentos,

automobilístico e eletroeletrônicos”

Fotoarena/Folhapress

Centrais sindicais realizam protesto contra os juros altos em frente ao Banco Central, na Avenida Paulista, em São Paulo

de 5 a 11 de abril de 2012 9brasil

Aline Scarsoda Reportagem

OS CICLISTAS saíram às ruas e peda-laram em todas as regiões do Brasil no dia 30 de março com um claro objetivo: questionar a impunidade dos motoris-tas que causam as mortes de quem usa a bicicleta como prioridade de transpor-te urbano. Em São Paulo, dezenas de-les se reuniram na Praça dos Ciclistas, na Avenida Paulista. Sob suas magre-las, eles homenagearam o ajudante de caminhoneiro Wanderson Pereira dos Santos, atropelado e morto no dia 17 de março pelo fi lho do bilionário Eike Ba-tista, Thor Batista.

“Não queremos julgar o Thor pois é a Justiça que deve fazer isso, mas estamos protestando contra a impunidade. Mui-tos ciclistas morrem todos os dias e não acontece nada”, afi rma a professora de educação física, Silvia Oliveira. No dia 02 de março ela também perdeu a amiga Juliana Ingrid Dias, que morreu de for-ma trágica após ter sido atropelada por um ônibus enquanto pedalava na mes-ma região da manifestação.

Motivados pelo mesmo propósito, ci-clistas que participam do movimento mundial Massa Crítica – também conhe-cido no Brasil como Bicicletada – peda-laram em Belo Horizonte (MG), Brasí-lia (DF), Belém (PA), Caxias do Sul (RS), Campo Grande (MS), Cuiabá (MT), Curi-tiba (PR), Florianópolis (SC), Grama-do (RS), Londrina (PR), Manaus (AM), Maringá (PR), Natal (RN), Ponta Grossa (PR), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), São Luis (MA), São Paulo (SP) e Vitória (ES).

A pedagoga Fernanda Rachib conta que os manifestantes de Brasília (DF) lembraram a morte dos irmãos Rafael Araújo, de 15 anos, e Jussimara Araújo, de 6 anos, ocorrida um dia antes. Rafa-el voltava da escola e trazia a irmã na ga-rupa da bicicleta quando ambos foram atingidos por um carro na BR-70, num local próximo à comunidade Girassol. O caso chocou a população local. “A popu-lação de baixa renda é a que mais sente a inefi ciência das políticas públicas. As ci-dades estão preparadas para os carros e não para pessoas”, acredita.

O advogado Marcelo Sgarbossa, que participou da ação em Porto Alegre (RS), explica que esse tipo de atividade acon-tece em todo Brasil na última sexta-fei-ra de cada mês. “É uma celebração. Para nós, pedalar é a busca da felicidade atra-vés de um ato concreto e simples. Não é só uma conquista de espaço pelo ciclis-ta, mas uma tentativa de que as pessoas deixem o carro em casa”, pontua.

Sgarbossa não chegou a ser atropela-do, mas estava presente quando ocorreu o atropelamento coletivo ocasionado pe-lo funcionário público, Ricardo Neis, em 25 de fevereiro do ano passado. Neis res-ponde em liberdade e deve ir a júri po-pular acusado de 17 tentativas de homi-cídio triplamente qualifi cado.

Um ano depois, cicilistas voltaram ao local do crime e protestaram, com seus corpos e bicicletas no chão. “A bicicle-ta é um instrumento que tem algo de transgressor, porque quebra tudo aqui-lo que se constrói em relação ao endeu-samento do carro. O que o Neis fez, ou-tros motoristas poderiam ter feito”, ava-lia Sgarbossa.

Atividade de riscoPedalar pelas vias do Brasil quase sem-

pre não é uma atividade segura. Segun-do levantamento preliminar do ano de 2011 do Departamento de Transporte de Infraestrutura e Transporte (DNIT), fei-to a partir dos registros do Departamen-to de Polícia Rodoviária Federal, 1.698 ciclistas foram atropelados nas rodovias federais; desses, 246 morreram.

Dados de 2010 do Departamento de Trânsito (Detran) também mostram que 34 ciclistas perderam a vida no Dis-trito Federal, uma média de 2,8 casos por mês. Ainda no mesmo ano na capi-tal paulista, onde estima-se que cerca de 350 mil pessoas utilizam a bicicleta co-mo meio de transporte todos os dias, fo-ram 49 mortes. Fora dessa conta estão os acidentes que causam todos os tipos de lesões.

Segundo a professora de educação fí-sica, Silvia Oliveira, é raro encontrar um ciclista que não sofreu algum tipo de de-sastre. Ela mesma, conta, já caiu por cau-sa da imprudência de um motorista em janeiro passado. A constância desse tipo de ocorrência serve até para a criação de gírias e expressões entre os próprios ci-clistas, como é o caso das chamadas “fi -nas educativas”. “É quando um motoris-ta vai te ultrapassar e passa muito próxi-mo do seu guidão. Quer dizer, ‘dá próxi-ma você cai’”, explica. Ou pode ser ainda pior: “É a ideia do ‘eu tenho mais força e quero passar, e você que espere”.

Na opinião dela, a implantação de ci-clovias diminuiria e muito o stress gera-do em quem anda sobre duas rodas, mas considera a política pública de mobilida-de completamente falha. “É tudo volta-do para o carro e para o individualismo. A classe média, que tem um poder fi nan-ceiro maior e quer carro, tem preferên-cia. As calçadas são horríveis para pe-destres e cadeirantes. O transporte pú-blico é horrível. E a situação para nós não é diferente”, destaca.

De acordo com pesquisa realizada pela Escola Politécnica da USP, 25% de toda a área construída da cidade de São Paulo é usada para estacionamento de carros. O trânsito é, a olhos vistos, caótico: gas-ta-se nele em média 2 horas e 42 minu-tos diariamente, conforme levantamen-to do Movimento Nossa São Paulo e do instituto de pesquisas Ibope. A valoriza-ção do transporte coletivo e alternativo – como as bicicletas – é há muito tem-

po apontada por especialistas como uma saída para esses problemas, mas de efe-tivo pouco é feito.

Em São Paulo, o prefeito Gilberto Kas-sab (PSD) prometeu construir 100 quilô-metros de ciclovias até 2012. Apenas 18 quilômetros foram entregues até agora, uma média de 4,5 quilômetros por ano. A prefeitura da cidade informa que fo-ram construídos 76 quilômetros, mas inclui na conta 13 quilômetros em áreas verdes e outros 45 em ciclofaixas de la-zer, utilizáveis somente aos fi nais de se-mana. Segundo levantamento da asso-ciação de ciclistas Ciclocidade, São Pau-lo tem hoje 110 quilômetros destinados aos ciclistas, entre ciclovias, ciclofaixas e vias de trânsito compartilhado, o que na avaliação dos ciclistas é insufi ciente.

E a pistaO estudante paulistano Rafael Álva-

res tem a bike como meio de transporte há um ano e cinco meses. Segundo ele, a opção pela bicicleta surgiu por causa da inefi ciência do transporte coletivo. Rafa-el mora no bairro Brasilândia e trabalha no centro. Se fi zesse o trajeto de ônibus demoraria cerca de 3 horas por dia. Em cima da bicicleta gasta 1h20.

Apesar de tomar precauções como sair sempre de capacete e instalar um pisca alerta na parte de trás da magrela, Rafa-el conta que se sente inseguro, mas op-ta por pedalar sempre pelo mesmo ca-minho e nos mesmos horários. “Mas não pego ciclovia. Passo por locais como a Marquês de São Vicente (zona oeste da cidade), Freguesia do Ó, Avenida João Paulo (ambas situadas na zona norte). Mesmo se quisesse fazer um caminho mais longo utilizando ciclovias, eu não conseguiria”, afi rma.

Problema semelhante também ocor-re em Porto Alegre (RS). O plano diretor cicloviário da cidade de 2009 indica a construção de 495 quilômetros de pistas para bicicletas. Até março de 2012 foram construídos 8 km. “Atualmente estamos construindo uma na Ipiranga com 9,4 quilômetros de extensão e que deve ser fi nalizada esse ano. Já no ano que vem devemos fi nalizar uma ciclorota integra-da na zona norte de 12 quilômetros”, ex-plica o assessor de comunicação da Em-presa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) de Porto Alegre, Lucas Barrosa.

Questionado se a prefeitura considera a implantação da política pública moro-sa, o assessor afi rma que é “satisfatória”. “Porto Alegre está iniciando essa cultu-ra. Antes nem sociedade nem poder pú-blico incentivavam o uso da bicicleta co-mo meio de transporte”, avalia.

“Muitas pessoas não andam de bicicle-ta por medo de serem atropeladas. Isso só a ciclovia consegue resolver de ime-diato, pois coloca em um lugar específi co o ciclista”, cobra o gaúcho Marcelo Sgar-bossa. Segundo ele, a lei municipal que determina que 20% do valor das multas de trânsito sejam aplicadas em constru-ção de ciclovias também não está sen-do cumprida. De acordo com a prefeitu-ra, as ciclovias em construção já utilizam parte do dinheiro das multas.

da Reportagem

Integração de políticas públicas pa-ra todos os meios de transporte, infra-estrutura para incentivar o uso de bici-cletas, punições severas para quem des-cumprir a lei. Essas são característicasque favorecem o ciclismo em Leipzig, na Alemanha e em Amsterdã, na Holan-da, segundo dois brasileiros que moram nessas cidades.

Theo Ortega, aluno de história da USP que está fazendo intercâmbio na Uni-versidade de Leipzig, conta que está im-pressionado, “é como se ‘tivesse lugar pra todo mundo’”, destaca. Segundo ele, entre os aconselhamentos ofi ciais aos estudantes estrangeiros, a Universidade inclui até mesmo como comprar e con-sertar sua bike.

“Assim como para os pedestres, car-ros e bondes, a bicicleta é considerada no sistema viário da cidade. Sempre tem um corredor para os ciclistas - seja na calçada ou na rua mesmo. Quando não tem corredor, há uma placa indicando se ali pode pedalar junto dos carros ou dos pedestres”, afi rma Theo Ortega.

Os xingamentos no trânsito, quando alguma regra é violada, existem, mas, em geral, os alemães convivem bem com os diferentes meios de transporte. “Os pedestres xingam os ciclistas quando eles estão no lugar errado e vice-versa”, conta o brasileiro residente de Leipzig.

Em relação aos carros, segundo ele, sempre que vão fazer a conversão param e esperam os ciclistas “religiosamente”. “Eles também passam bem longe, acho que aqui vale o bendito ‘1,5m’”, explica, fazendo referência à lei brasileira que obriga o motorista a manter a distância de 1,5 metros de um ciclista.

De acordo com ele, em quase todo lu-gar há barras de alumínio pra estacio-nar e amarrar a bicicleta. Theo acres-centa ainda que vê o poder público local tratando o ciclismo como uma opção de transporte, não simplesmente lazer.

Em Amsterdã, onde a jornalista Da-niela Stafano vive, também há a mes-ma concepção de locomoção. “A convi-vência é, na maioria das vezes, tranqui-la, também porque há muitas regras detrânsito claras e punitivas. Os pedestrestêm total prioridade, seguido dos bon-des, ciclistas e, fi nalmente, os outrosveículos”, conta. Automóveis, segun-do ela, somente são usados para longasdistâncias. (AS)

Ciclistas cobram fi m da impunidade no trânsitoMOBILIDADE URBANA Manifestações em todo o Brasil lembraram a morte de pessoas que utilizavam a bicicleta como o principal meio de transporte

Bons exemplosBrasileiros contam como é a experiência de pedalar fora do Brasil

Theo acrescenta ainda que vê o poder público local tratando o ciclismo como uma opção de transporte, não simplesmente lazer

“A população de baixa renda é a que mais sente a inefi ciência das políticas públicas. As cidades estão preparadas para os carros e não para pessoas” A bicicleta é um instrumento que tem

algo de transgressor porque quebra tudo aquilo que se constrói em relação ao endeusamento do carro (…)

Em São Paulo, Kassab prometeu construir

100 Kmde ciclovias até 2012. Apenas

18 Kmforam entregues até agora, uma

média de

4,5 Kmpor ano

Brazil Photo Press/Folhapress

Bicicletada enfrenta o trânsito da Avenida Paulista, em São Paulo

brasilde 5 a 11 de abril de 201210

Leonardo Wexell Severo de Campo Grande (MS)

COM A PARTICIPAÇÃO de represen-tações indígenas, quilombolas, do Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da CUT e de inúmeras en-tidades do movimento social e sindical, o Tribunal da Terra do Mato Grosso do Sul encerrou no dia 1 de abril com uma enérgica conclamação em defesa da re-forma agrária, dos direitos humanos e da democratização da comunicação. Os “jurados” concluíram com uma denún-cia contundente do “aumento da partici-pação das corporações do agronegócio e de empresas transnacionais, que se apo-deram em ritmo acelerado de nosso ter-ritório e recursos naturais”.

De acordo com o secretário geral da CUT-MS, Alexandre Costa Júnior, com apoio dos mais expressivos setores do movimento popular do Estado, o Tribu-nal elevou o tom contra a extrema con-centração agrária, que tem vitaminado agressões e desmandos contra os traba-lhadores rurais sem terra e os indígenas. “É preciso denunciar a violência crimi-nosa do latifúndio e a violência silencio-sa da mídia, que atuam coordenados”, frisou o dirigente cutista.

Alexandre lembrou que no caso de Três Lagoas, a cultura da impunidade e os abusos se estendem até os operários da construção civil, com inúmeras práti-cas antissindicais das empresas respon-sáveis por erguer na cidade a “maior fá-brica de celulose do mundo”.

Conforme denúncias do Sindicato dos Trabalhadores da Montagem Industrial de Três Lagoas, estas “construtoras” têm contratado serviços de “segurança” – vin-culados a policiais locais – que se com-portam como jagunços para intimidar os dirigentes, a fi m de que pareça legítimo e calem frente à política de arrocho e pre-carização mantida nos canteiros.

Apesar de que o grosso das execuções acontece no campo – nos últimos nove

A violência do latifúndio e o silêncio da mídiaDIREITOS HUMANOS Tribunal Popular da Terra do MS denuncia violência contra indígenas, cobra reforma agrária e democratização da comunicação

anos, foram mais de 250 indígenas as-sassinados no Estado – as cidades aca-bam respirando o cadáver pestilento do crime e da impunidade. E inúmeros combatentes do movimento sindical e social também têm tombado.

CrimesNo dia 17 de novembro de 2011 foi as-

sassinado em frente aos fi lhos, o caci-que Nísio Gomes, líder kaiowá-guara-ni, no acampamento Tekoha Guaviry, na BR-386, entre Amambaí e Ponta Po-rã. O relato de um dos fi lhos ao Tribunal foi claro: morto, pois fi caram marcas da

de Campo Grande (MS)

Conforme a Comissão Pastoral da Ter-ra (CPT-MS), em Mato Grosso do Sul os pequenos estabelecimentos, com até 200 hectares, correspondem a 72,08% do conjunto, mas ocupam tão somen-te 5,01% da área. Já os estabelecimen-tos com mais de mil hectares são ape-nas 10,18% e ocupam 76,93% da área do Estado.

Esta enorme concentração de pro-priedade nas mãos de alguns poucos proprietários tem provocado um recru-descimento da violência contra os tra-balhadores sem terra e indígenas, além de intensa criminalização dos movi-mentos sociais pela mídia, que atua pa-ra encobrir os crimes do agronegócio, intimamente ligado ao capital estran-geiro, e turbinado com recursos públi-cos do BNDES.

Um dos graves problemas apontados pelo Tribunal foi precisamente o estabe-lecimento do agronegócio do eucalipto-celulose, o que transformou a região de Três Lagoas na “capital mundial da ce-

lulose”. Nesta cidade está sendo ergui-da, para entrar em operação ainda em 2012, a gigantesca fábrica de celulose que produzirá 1,5 milhão de toneladas por ano de celulose branqueada de eu-calipto. Para o investimento de R$ 5,1 bilhões, o BNDES liberou fi nanciamen-to de R$ 2,7 bilhões para a Eldorado Ce-lulose e Papel, controlada pela J&F Par-ticipações, holding que fatura anual-mente mais de R$ 55 bilhões e contro-la empresas como o JBS, o maior frigo-rífi co do mundo. Para não nos estender-mos sobre o naipe do negócio, vamos lembrar apenas que o ex-presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirel-les, assumiu recentemente a presidência do Conselho da J&F Participações. Con-forme o próprio site do BNDES, os des-comunais investimentos na nova planta criarão “mil empregos diretos e quatro mil indiretos”.

Ao mesmo tempo em que injeta mon-tanhas de dinheiro público, a pujança de uma produção voltada fundamental-mente para o mercado externo, toda a microrregião de Três Lagoas sofre com a ausência de políticas públicas e de in-vestimento do Estado nos assentamen-tos rurais. De forma específi ca, alerta a CPT-MS, os municípios de Brasilândia, Água Clara, Ribas do Rio Pardo e Três Lagoas, com grande presença de assen-tamentos rurais – são dez projetos, tota-lizando 1.188 famílias, resistem no cam-po, num território de pouco mais de 35 mil hectares. A consequência quase ime-diata desta expansão sem limite do “de-serto verde” das plantações de eucalipto tem sido a disputa territorial com a re-

forma agrária, “assediando, com a possi-bilidade de trabalho nos eucaliptais”, até mesmo os projetos de assentamento já conquistados, mais ainda não consolida-dos em virtude da precariedade das polí-ticas públicas.

“Em 2011 a Eldorado Florestal acessou junto ao BNDES R$ 2,7 bilhões, enquan-to o Programa de Aquisição de Alimen-tos da Agricultura Familiar (PAA) con-tou com orçamento anual de R$ 502,7 milhões”, aponta a CPT-MS, dando a di-mensão do descalabro.

Para o Tribunal da Terra, é evidente a existência de um conluiou entre o Esta-do, o latifúndio e o agronegócio das pa-peleiras, num negócio que se traduz em apropriação das terras indígenas e qui-lombolas, contaminação de recursos hí-dricos e desertifi cação. “Reiteramos que o Estado é culpado em suas três esferas: na federal, por meio das vantagens cre-ditícias concedidas pelo BNDES; na es-tadual via poder executivo, com a fl exi-bilização da legislação ambiental e isen-ção de impostos como o ICMS; e munici-pal por meio também da liberalização de impostos, doação de terrenos e demais incentivos”. (LWS)

Latifúndio Midiotade campo grande

Ao fi nal do evento, no lança-

mento do meu livro Latifúndio

Midiota, crimes, crises e trapa-

ças, falei que, para os jornais da

cidade, o evento que congregou

cerca de duas centenas de pes-

soas numa radiante manhã de

sol de domingo era não notícia.

No tempo que esperava a carona

do companheiro Alexandre, pu-

de ler todos os jornais de Cam-

po Grande. Em dois, uma maté-

ria em destaque se repetia: gran-

de empresário havia doado sua

Mercedes Benz para uma enti-

dade fi lantrópica. O título era o

mesmo em dois jornais. O tex-

to também. Mero release. Divul-

gação das mais medíocres. Ou-

tro falava sobre uma solenidade

da Fecomércio, a Federação dos

donos de lojas da cidade. E mais

um dizia que o dia da mentira

dividia opiniões. E o Tribunal?

Que Tribunal? (LWS)

Concentração fundiária no estadoPropriedade da terra nas mãos de alguns poucos proprietários tem recrudescido a violência contra os sem terra e indígenas

quantidade de sangue perdido, o corpo foi levado pelos jagunços. Dois dias an-tes, nada menos do que 40 homens ar-mados haviam invadido o local em suas Hilux e S-10 à procura do cacique. A as-sembleia máxima dos kaiowá-guarani, o Conselho Aty Guasu, denunciou o as-sassinato, mas após um saque do auxílio benefício de Nísio em Brasília, de forma ridícula, a polícia suspendeu as buscas e ainda indiciou o fi lho do cacique que de-nunciou o ataque por falso testemunho.

Outro caso chocante aconteceu no dia 3 de junho do ano passado, na Al-deia Cachoeirinha, onde cerca de oito

mil índios vivem em apenas dois milhectares, a oito quilômetros de Miran-da, a 203 quilômetros de Campo Gran-de. Eles reivindicam 36 mil hectarestomados por latifundiários da região. Aprópria aldeia virou uma ilha, cercadapelas fazendas.

Pois eram 22 horas e 40 minutosquando um ônibus escolar que retor-nava com 40 alunos indígenas para aaldeia foi alvejado por marginais quelançaram um coquetel molotov. Resul-tado: cinco alunos gravemente queima-dos, além do motorista. Uma das estu-dantes, Lurdesvoni Pires, de 28 anos,mãe de três fi lhas, faleceu com 97% docorpo queimado. Conversei com umadas sobreviventes, Naiara Francis-co Vitor, carinhosamente chamada deBinha. Hoje, com 19 anos, ela sonha-va com o curso de Direito e se empe-nhava trabalhando de dia e estudandoa noite para seguir em frente. “Aquelagarrafa cheia de gasolina foi o fi m paraa minha amiga e complicou ainda maisa vida de todos nós. Não consigo fi carem pé por muito tempo. As pernas do-em muito. São agulhadas fortes, pini-cam, não dá”. Binha teve queimadurasde primeiro e segundo graus do joelhopara baixo e numa das mãos. “Fiqueium mês e 20 dias no hospital e maisum mês em casa. Quando saí do hos-pital tinha um homem me encarando,que fi cou bem assustado. Ele estava nocelular e saiu correndo, como se tivessemedo que eu lhe reconhecesse”, relatouBinha, que por temer o retorno à cida-de, congelou o sonho.

Elvis Polidoro, um dos dirigentes in-dígenas da aldeia lamenta a morte deLurdesvoni, lembrando que ela fale-ceu e deixou as quatro fi lhas pequenas,que agora estão sendo criadas pela avó.Em busca de justiça, ele próprio estásob ameaça. “Os fazendeiros já manda-ram o recado: qualquer dia você tom-ba”. A polícia ainda não encontrou osculpados.

“É preciso denunciar a violência criminosa do latifúndio e a violência silenciosa da mídia, que atuam coordenados”

Nos últimos nove anos, foram mais de 250 indígenas assassinados no Estado

Hoje, com 19 anos, ela sonhava com o curso de Direito e se empenhava trabalhando de dia e estudando a noite para seguir em frente

Toda a microrregião de Três Lagoas sofre com a ausência de políticas públicas e de investimento do Estado nos assentamentos rurais

Fotos: Leonardo Severo

O Tribunal da Terra contou com a participação de representações indígenas, quilombolas e de entidades do movimento social e sindical

Naiara mostra as marcas das queimaduras sofridas em atentado no ano passado

brasil de 5 a 11 de abril de 2012 11

Cristiano Navarroda Reportagem

OS POLÍTICOS espalham a ideologia do medo. A polícia aterroriza a população com tortura e morte. Os empresários fi -nanciam o esquema. O espectador assiste, cala e consente sobre as mentiras publica-das. Grosso modo, caçavam-se “comunis-tas” durante a ditadura civil-militar, como hoje caçam os jovens de periferia.

Mas no dia da “Mentira” – dia também em que os militares comemoram o golpe de 1964–, um cordão formado por sam-bistas, movimentos sociais, militantes de partidos de esquerda, coletivos de teatro, ex-presos políticos, familiares mortos pe-la polícia no período da ditadura e duran-te a democracia foi às ruas de São Paulo para reclamar o restabelecimento da ver-dade e justiça sobre os crimes cometidos pelo Estado.

Nos cinco quilômetros percorridos pe-lo Cordão da Mentira foram apresenta-dos três sambas e um frevo especialmente compostos para o desfi le. O caminho es-colhido passou por pontos históricos da capital paulistana para a luta contra dita-dura civil-militar.

No cemitério da Consolação, onde se encontra o túmulo do ultra-direitista Plí-nio Corrêa; no prédio da universidade Mackenzie, onde o estudante secunda-rista, José Guimarães, foi morto pelo Co-mando de Caça aos Comunistas (CCC) em 1968; na Sede da Tradição Família e Pro-priedade; no prédio do jornal Folha de São Paulo; e no antigo prédio do Departa-mento de Ordem Política e Social (DOPS), grupos de teatros encenaram esquetes te-atrais. Além das esquetes, ruas e logra-douros foram rebatizados com nome de militantes mortos e placas contextuali-zando fatos acontecidos nos locais foram colocadas. A iniciativa do Cordão da Men-

Uma mentira repetida mil vezes... vira ditaduraMOBILIZAÇÃO Cordão leva protesto contra os crimes do Estado durante a ditadura e período democrático

Além das esquetes, ruas e logradouros foram rebatizados com nome de militantes mortos

da Reportagem

Giselia Barbosa Lima esteve presente no Cordão da Mentira para manifestar sua indignação carregando uma foto em uma das mãos e um fi lho de dez meses no outro braço. Na madrugada do dia 18 de março, seu fi lho, o estudante Henri-que Barbosa da Silva, foi executado pelos policiais militares Luiz Vianna Labella e Cássio Andrade Bigas com dois tiros na cabeça. Segundo o DHPP (Departamen-to de Homicídios e Proteção à Pessoa), os PMs tentaram simular uma resistên-cia para ocultar o assassinato do rapaz e foram presos em fl agrante por homicídio qualifi cado. Antes do fl agrante, não fo-ram poucas as emissoras de TV que com-praram a versão da polícia.

Eram 2 horas da manhã, quando Hen-rique, funcionário do Mc Donald´s, vol-tava do trabalho. No mesmo momento, o supermercado Ki Preço Baixo foi assal-tado. Uma das sócias do estabelecimento é mulher do cabo Labella. Depois de exe-cutar o estudante, os policiais transferi-ram o corpo do estudante de lugar e colo-caram uma arma em suas mãos.

“Meu fi lho nunca tinha visto uma ar-ma. Ele estava vestindo o uniforme do trabalho quando foi morto”, conta a mãe de Henrique presente no Cordão da Mentira. Para a dona de casa, que hoje se soma ao movimento das Mães de Maio a morte de seu fi lho tem o mesmo motivo da morte de centenas de jovens que mor-rem todos os anos assassinados pela po-lícia. “Mataram ele porque era negro po-bre e tava passando na hora errada. E ainda disseram que ele era um bandido. Os bandidos não estavam com uniforme do Mc Donald´s, estavam com unifor-

Cristiano Navarroda Reportagem

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), abriu ofi cial-mente um processo para investigar a não-punição dos responsáveis pelo assassina-to do jornalista Vladimir Herzog em 1975. As autoridades brasileiras foram notifi ca-das no último dia 26.

A denúncia foi apresentada pelo Cen-tro, pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), pela Fundação Interamerica-na de Defesa dos Direitos Humanos (FI-DDH), Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e Centro Santo Dias de Direitos Hu-manos da Arquidiocese de São Paulo.

Em um comunicado, as entidades afi r-mam que “até o presente momento, ape-sar das tentativas no âmbito da justiça in-terna, o Estado não cumpriu com seu de-ver de investigar, processar, e sancionar os responsáveis pelo assassinato de Vla-dimir Herzog”.

A denúncia afi rma que o jornalista foi executado depois de ter sido arbitraria-mente detido por agentes do DOI/CODI de São Paulo.

Em nota, o instituto Vladimir Herzog declarou que “a notifi cação é uma clara mensagem da Comissão Interamericana ao Supremo Tribunal Federal (STF) de que novos casos sobre a dívida histórica seguirão sendo analisados pelos órgãos do sistema interamericano -- Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Hu-manos – na expectativa de que o Poder

Judiciário se antecipe e cumpra a atri-buição que lhe compete de fazer o con-trole de convencionalidade, adequan-do as decisões judiciais internas à Con-venção Americana sobre Direitos Huma-nos, e consequentemente realize a jus-tiça conforme as obrigações internacio-nais que o Estado brasileiro se compro-meteu de boa-fé”.

A morte de Herzog foi apresentada à fa-mília e à sociedade como um suicídio, e a investigação foi realizada por meio de In-quérito Militar, que concluiu pela ocor-rência de suicídio. Entretanto, em 1978 a Justiça condenou a União pelo assassina-to do jornalista.

O Brasil terá, agora, cerca de dois me-ses para se defender. Se considerar in-sufi cientes as explicações do país, a Co-missão poderá remeter o processo para a Corte Interamericana de Direitos Huma-nos, onde o Brasil poderá ser condenado – como já ocorreu em dezembro de 2010, no caso da Guerrilha do Araguaia (1972-1975).

Em fevereiro deste ano, o fotógrafo que registrou a foto de Herzog morto numa cela do DOI-Codi, Silvaldo Leung Vieira, revelou que a cena do suicídio foi forjada pelos agentes.

Brasil é denunciado na OEA por assassinato de HerzogPaís terá cerca de dois meses para se defender

Se considerar insufi cientes as explicações do país, a Comissão poderá remeter o processo para a Corte Interamericana de Direitos Humanos

Mortos como comunistasPolícia alega resistência para justifi car extermínio

me de militares. Isso é ditadura dos ricos contra os pobres”.

Segundo levantamento da Corregedo-ria, em 2011, a polícia militar foi respon-sável por um em cada cinco homicídios na cidade de São Paulo. Dados apontam que 290 pessoas foram vítimas de casos de resistência seguida de morte ou homi-cídios dolosos cometidos por policias fo-ra do trabalho.

O número de vítimas nessas circuns-tâncias representa 22,3% do total. Ao to-do, 1.229 pessoas foram mortas no perí-odo analisado.

Solidária, a militante ex-exilada política Angela Mendes de Almeida pontua forta-lecendo a denúncia de Giselia, “É impor-tante esclarecer os crimes da ditadura. Mas estamos falando também dos crimes de hoje, das torturas e execuções sumárias. Dos mortos nas periferias, dos mortos nos crimes de Maio. Quer dizer, a impunidade dos crimes de ontem é o que facilidade a continuidades dos crimes”. (CN)

tira se soma a uma semana de protestos realizados em todo Brasil contra os crimes da ditadura-civil e militar. Angela Mendes de Almeida ex companheira do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, tortura-do e assassinado aos 23 anos, em São Pau-lo, em 19 de julho de 1971, nas dependên-cias do DOI-Codi, considera “extrema-mente importante ver a juventude falan-do contra a impunidade dos crimes da di-tadura, que não é só a comissão da verda-de. É um capítulo que tem que levar pos-teriormente a investigação e punição”.

No dia 29 de março, cerca de trezen-tas pessoas reuniram-se na frente da se-de do Clube Militar para protestar contra as comemorações dos 48 anos do golpe de 1964 e da ditadura. O protesto foi encer-rado com a repressão policial.

Para Marcelo Zelic do grupo Tortura Nunca Mais, a onda de protestos marca a posição da sociedade civil organizada so-bre o assunto.

“É importante a sociedade dizer que não aceita a história de que a violência era dos dois lados. Hoje esses militares de pi-jama já não têm toda essa força, que que-rem fazer parecer. Estamos perceben-do que o poder é apenas uma sombra do passado”. O militante do Tortura Nunca Mais entende que a punição dos crimino-sos pode mudar a postura da polícia. “É

preciso punir os militares para que os cri-mes não se repitam. Para que se entenda que esta não é uma forma errada de resol-ver as questões. Na Baixada Santista, por exemplo, os grupos de extermínio [poli-cial] continuam atuando. Somente punin-do estes militares é que a polícia vai rever sua relação com protestos e manifestantes e parar de usar armas de choque ou ba-las de borracha”. Além dos cerca de mil“foliões” presentes ao cordão, policiaisà paisana se misturavam ao grupo comcâmeras fotográfi cas.

“É preciso punir os militares para que os crimes não se repitam”, Marcelo Zelic

Além dos cerca de mil “foliões” presentes ao cordão, policiais à paisana se misturavam ao grupo com câmeras fotográfi cas

Fotos: Cristiano Navarro

O Cordão da Mentira foi às ruas de São Paulo para reclamar o restabelecimento da verdade e justiça

Para Angela Mendes, é “extremamente importante ver a juventude falando contra a impunidade dos crimes da ditadura”

Giselia Barbosa mostra a foto do fi lho Henrique, executado por PMs

JUSTIÇA

culturade 5 a 11 de abril de 201212

Horizontais – 1.“Sábio”, em inglês – “Bicicleta”, em inglês – Órgão brasileiro responsável por cobrar direitos autorais das

músicas. 2.Associação brasileira que padroniza as normas técnicas para trabalhos acadêmicos – Forma coloquial para

“estou”. 3. Palavra em inglês usada tanto para “gorjeta” quanto para “dica” – Alvo de protesto no Rio de Janeiro onde

militares comemoraram o Golpe de 64 na semana passada. 4. (?) Vargas, nome que se dá ao período que Getúlio go-

vernou o Brasil por 15 anos (de 1930 a 1945) - (?) Brandão, sambista que apoia o MST – Normalmente possui 365 dias.

5.(?) Seixas, músico baiano conhecido como “maluco-beleza” - (?) de Carvalho, militante brasileiro que completaria 100

anos este ano, se estivesse vivo – Exclamação que damos quando nos apercebemos de algo. 6.Uma das formas do ar-

tigo “o”, em espanhol – Interjeição que exprime opostos como dor e alegria – Movimento da esquerda cristã da década

de 60. 7.Um dos fundadores do jornal “O Pasquim” morto na semana passada, reconhecido por seu papel de oposição

ao regime militar. 8.Do latim, “pulvis” – Impulso, sentimento de energia e entusiasmo – “Lei”, em espanhol - (?) Krishna,

associação religiosa derivada do hinduísmo vaishnava. 9.Forma de saudar alguém ou indicar surpresa – Esforço para

vomitar – Criatura; o que existe ou julgamos existente. 10.Bairro de São Paulo conhecido por suas lojas de roupas ba-

ratas – Grito de dor – “Dar nome aos (?)”, expressão que signifi ca informar os nomes dos envolvidos. 11.Movimento de

jovens que acaba de realizar “escrachos” contra torturadores simultaneamente em sete estados.

Verticais – 1.Roger (?), ex-líder da banda inglesa Pink Floyd que há anos endossa a campanha palestina de boicote

a produtos de Israel – O (?) brasileiro acaba de chegar ao seu nível mensal mais baixo desde dezembro de 2008.

2.Árvore, madeira; em tupi – Forma coloquial de dizer “maior”. 3.Time de futebol alemão reverenciado por ser de “es-

querda” e unir o rock com o esporte – Salar de Uyuni, na Bolívia, maior deserto de (?) do planeta. 4.“Em”, em espanhol

– Equivalente em inglês ao “kkkkk” usado na internet, algo como “rindo muito alto” – Abreviatura de Sedes Episcopa-

lis, associada à catedral. 5.Apelido de “Leonardo”. 6.(?) papal, documento selado com o timbre do papa – Romance em

língua inglesa do escritor russo Vladimir Nabokov que causou furor por mostrar o relacionamento de um professor

com uma certa idade e uma menina de doze anos. 7.Sua larva chama-se girino. 8.Convidado por Kassab, dois dos

irmãos desse grupo musical saíram candidatos pelo DEM nas últimas eleições. 9.“(?) Perdido”, série de TV dos anos

1970 – Feminino de “ele”. 10.(?) de jataí, é chamado assim por causa da abelha sem ferrão de mesmo nome – Rede

Nacional de Advogados e Advogadas Populares. 11. Um dos maiores humoristas brasileiros, falecido recentemente.

12.“(?) de Passe”, fi lme de Walter Salles que enfoca o universo das “peneiras” do futebol. 13.Gravadora britânica dona

dos estúdios Abbey Road, onde os Beatles costumavam gravar – Forma reduzida de senhora, sinhá. 14.Som de mui-

tos tiros, tiroteio, barulho forte de trovão. 15.Sigla, em basco, para “Pátria Basca e Liberdade”, grupo que procura a in-

dependência do País Basco, de Espanha e França - “Ferida”, em tupi. 16. Livro sagrado do Islã – “Senhor”, em espanhol.

17.Jornal que circulou entre 1963 e 2001, com a fama de que “se espremesse saía sangue” – Pronome oblíquo tônico.

18.(?) Torres, senador do DEM, de Goiás, fl agrado em escutas telefônicas com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e com o

diretor da sucursal de Brasília da Veja, Policarpo Júnior.

Horizontais – 1.wise – bike – Ecad. 2.ABTN – tô. 3.tip – Clube Militar. 4.Era – Leci – ano. 5.Raul – Apolonio – ops. 6.lo – ah – AP. 7.Millôr Fernandes. 8.pó – elã – ley – Hare. 9.oi – ânsia – ente. 10. Brás – ai – bois. 11.Levante Popular.

Verticais – 1.Waters – PIB. 2.ibira – mó. 3.St. Pauli – Sal. 4.en – lol – Sé. 5.Léo. 6.Bula – Lolita. 7.rã. 8.KLB. 9.elo – ela. 10.mel – Renap. 11.Chico Anysio. 12.linha. 13.EMI – nhá. 14.troada. 15.ETA – pe-reba. 16.Corão – señor. 17.NP – ti. 18.Demóstenes.

PALAVRAS CRUZADAS

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Josefi na Mastropaolo

OS COMETAS, esses que gostam de se fazer de estrelas, mas que não são es-trelas, que parece que ter longos cabe-los brilhantes como se fossem cabelos de estrelas. Os cometas (enquanto existem), sempre estão. No percurso da sua órbita, de tempo em tempo aparecem no cenário celeste que nossos olhos conseguem en-xergar (e que nós pelo simples fato de en-xergarmos pouco chamamos, “o céu”), os cometas passam e voltam a passar, mas pode acontecer que numa dessas voltas alguma coisa se atravesse no caminho e o desvie, mude sua órbita, e o cometa não apareça no ”nosso céu” nunca mais.

Não é por isso que o cometa deixará de existir, é só que nós, e, pior, nossos astrô-nomos, perdemos todas as possibilida-des de voltar a avistá-lo. É por isso que os momentos em que um cometa passa perto da terra e o sol o ilumina e conse-guimos vê-lo, se é que a gente quer co-nhecê-lo, devem ser aproveitados como momentos únicos, porque há uma série de combinações que foram produzidas e que poderiam não se repetir.

As memórias se parecem em algumas coisas aos cometas. As memórias exis-tem sempre, mas não sempre estão dis-poníveis. Uma série de fatores tem que se combinar para que elas se façam pre-sentes para nós, para que possamos vê-las, e se a gente perde o tempo da me-moria às vezes temos que esperar uma geração inteira para que as possamos recuperar. E pode ocorrer que isso não mais aconteça.

Mundialito é um documentário uru-guaio estreado em 2010. Faz a promes-sa de contar uma história, mas engana a gente, porque conta duas histórias que bem poderiam contar mais uma, o que numa soma simples, acabaria dando três. E talvez nesse sentido seja uma aposta.

Conta a história da Copa de Ouro, um evento esportivo organizado pela FIFA em 1980 para celebrar os 50 anos da primeira Copa do Mundo. Nesse evento iriam participar todas as equipes cam-peãs desde 1930. Conta a história da or-

Chutar nos tempos da memória

CRÔNICA Documentário conta a história e os bastidores da Copa de Ouro, de 1980, e possibilita novas narrativas

O mundialito não é muito lembrado, fazê-lo seria lembrar da ditadura, e talvez por isso, estrear Mundialito em 2010 seja

como aproveitar o tempo do cometa

ganização, detalhes por trás dos basti-dores, a visão dos jogadores, dos organi-zadores e de outros atores. A outra his-tória que conta é a do Uruguai em 1980, a história do plebiscito que os milicos perderam um mês antes do evento e que deixou demonstrada a falta de legitimi-dade que a ditadura tinha na frente da maioria da sociedade, o grau de legiti-midade que tinha para alguns outros, as formas da resistência popular, a vida dos presos políticos na época, as paixões e as solidariedades que se constroem em

torno do futebol. Apresenta refl exões sobre como os eventos esportivos desta natureza funcionam como uma espécie de medidas compensatórias dentro de regimes ditatoriais altamente repressi-vos. Mostra como os megaeventos des-tas características operam uma moder-nização compulsiva em formações na-cionais que não estão, mas que mere-cem estar ou é necessário que estejam à altura do desenvolvimento.

O Uruguai foi o campeão da Copa de Ouro numa fi nal 2-1 contra o Brasil, es-

pécie de segundo maracanaço, mas des-sa vez em casa. E, apesar de que na épo-ca, segundo se diz, aquilo foi uma gran-de alegria, o Mundialito parece não seralgo que os uruguaios tenham carrega-do na memória. No fi nal do jogo, no que seria, digamos, a volta olímpica, o po-vo indo à loucura começou a cantar “vaiacabar, vai acabar a ditadura militar”. Diferentemente do Mundialito a ditadu-ra não parece ser uma experiência sobrea qual os uruguaios não tenham reser-vado um lugar na memória, entretanto, durante muitos anos não pareceram ter tido, de modo geral, assuntos pendentes com esse processo.

Nos últimos anos, e pouco a pouco, e olha que isso é dito por gente que olha de fora do país, parecia que algumas coisas haviam se movimentado. Parecia que al-guns assuntos pendentes existiam e que é agora que se tem condições de projetar tênues raios de luz sobre eles.

Nestes últimos anos, também aconte-ceu que o Uruguai voltou a jogar fute-bol em primeira divisão. Saibam as no-vas gerações! Só passaram um tempi-nho nos boxes. Não têm direito a prê-mio revelação. São, para os outros, par-te do futebol das estrelas e, para elesmesmos, parte das estrelas do futebol.O futebol é, para os uruguaios, o gran-de cenário de construção de mitos, as-sinala no documentário Gerardo Cae-tano. Ou seja, um cenário de constru-ção de histórias que os explicam, lhesdão sentido, dizem quem eles são, deonde vêm, etc.

O Mundialito não é muito lembra-do, fazê-lo seria lembrar da ditadura, e talvez por isso, estrear Mundialito em 2010 seja como aproveitar o tempo docometa. Então, talvez a terceira história possa ser contada, porque lembrar, pro-duzir memória, é sempre construir uma narrativa sobre o presente e talvez sejaessa a sensível aposta dos realizadores.

Josefi na Mastropaolo é educadora na Escola Nacional Florestan Fernandes (Enff) e doutoranda da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Reprodução

de 5 a 11 de abril de 2012 13cultura

Eduardo Campos Limade São Paulo (SP)

A CIA. ANTROPOFÁGICA assumiu co-mo projeto, ao conceber a trilogia Li-berdade em Pindorama, em 2008, re-contar a história social do Brasil a partir das relações de poder estabelecidas na Colônia, no Império e na República. A intenção era não apenas refl etir sobre o passado, mas relacioná-lo, a todo o mo-mento, com seus desdobramentos pre-sentes, de modo a levantar questões a respeito da conformação atual da socie-dade brasileira. A abordagem que prio-riza o processo e não o produto fi nal marcou também o trabalho de criação do grupo: a terceira parte da trilogia, que deve estrear em outubro, será base-ada em numerosas intervenções de rua e junto a movimentos sociais – algo que faz parte do dia-a-dia do coletivo.

Tratando da história das lutas sociais brasileiras do século 16 até hoje, cada parte da trilogia é marcada por uma de-terminada confi guração do embate po-lítico. “O período do Brasil Império, do qual tratamos na peça anterior, apresen-ta como tática política a revolta, como a Cabanagem e a Sabinada. No período re-publicano, a greve é, talvez, a forma de luta mais praticada, principalmente a partir da Grande Greve de 1917”, afi rma Thiago Vasconcelos, diretor da Antro-pofágica. Dessa forma, a fi gura da greve permeará toda a montagem, aparecendo já nas intervenções cênicas que o grupo tem planejado com outros coletivos tea-trais e em diversas frentes de luta.

Semana de Arte ModernaUma delas ocorrerá no domingo, 8 de

abril, no Theatro Municipal, para cele-brar os 90 anos da Semana de Arte Mo-derna de 1922. A intervenção cênica planejada coloca como foco principal as lutas sociais. “Toda vez que se estudam os antecedentes da Semana, conta-se a história das reuniões de pesquisa estéti-ca promovidas por seus organizadores. Para nós, o antecedente, de fato, é a gre-ve de 1917, que dá o chacoalhão neces-sário para se pensar criticamente sobre a realidade no Brasil. Procuramos des-montar, assim, a ideologia dos ‘sábios artistas’ e apontar para o movimento concreto de luta”, diz o diretor.

A cena começará como um programa de coluna social televisiva, no qual os modernistas são entrevistados como se fossem celebridades. “A encenação re-laciona-se com a avaliação que Oswald de Andrade faz, em um dado momen-to, dizendo que, durante muito tempo, fora um palhaço da burguesia”, expli-ca Vasconcelos. Um coro de proletários surge no palco e alerta os modernistas sobre esse papel que eles estão desem-penhando, convocando-os a saírem da-li. “Então, a intervenção dentro do Mu-nicipal estoura e nos retiramos, dando início a um cortejo, formado por outros coletivos de teatro de grupo de São Pau-lo”, afi rma.

Tribuna Popular Nos dias 20, 21 e 22 de abril, a Cia.

Antropofágica, juntamente com outros coletivos teatrais, fará intervenção es-tético-política no Tribunal Popular da Terra, que será realizado no Sacolão das Artes, no Parque Santo Antônio, zona sul de São Paulo. Os debates so-bre temas como o massacre em Pinhei-rinho, o caso Cutrale, em Iaras, a cons-trução da Usina de Belo Monte, a remo-ção de populações por causa das obras da Copa do Mundo e a violência contra os Guarani Kaiowá serão acompanha-dos pela encenação, que tratará do as-sassinato de militantes.

“Haverá um coro entusiasta, que es-tá sempre procurando algo para com-prar. O contraponto é o Militante, que denuncia mortes de lutadores do povo, problemas com a demarcação de terras indígenas, a expulsão dos moradores do Pinheirinho. A cena se desenvolve nes-se confronto”, conta Vasconcelos. Toda vez que o Militante faz uma denúncia, o coro acaba sendo distraído por uma notícia espetacularizada de tragédia. “A ideia é mostrar como a imprensa rela-tiviza notícias importantes, envolvendo perseguição política e econômica, com manchetes sensacionalistas, que aca-bam se tornando o debate”, explica.

Teatro de rua e cabaréUm dos fundamentos do processo de

trabalho da Cia. Antropofágica é a Kar-roça, forma de teatro de rua criada pe-lo coletivo e que acontece uma vez por mês. “A Karroça tem uma estrutura de teatro de estações, em que um corte-jo carnavalizado se desloca, convidan-do as pessoas a acompanhá-la por meio de canções, e em determinados pontos para e apresenta uma cena”, conta Vas-concelos. Já foram feitas Karroças em lugares como o Minhocão e a estação de

trem da Lapa. Na rua, são usados expe-dientes do teatro de agitação e propa-ganda (agitprop), como a sátira e a pa-ródia de elementos da historiografi a ofi -cial e da indústria cultural. “No último domingo de cada mês, temos um en-contro chamado Pyndorama em Revis-ta, em que fazemos o estudo de um de-terminado período histórico e uma ava-liação crítica sobre ele. Durante o mês seguinte, construímos a Karroça, na qual fazemos uma espécie de teatro de revista sobre aquele período”, afi rma.

Ao longo das apresentações, a tro-ca de ideias com o público e com ato-res de outros coletivos acaba por gerar uma série de mudanças nas cenas. To-do esse material é recolhido e processa-do pela Cia. Antropofágica. “Nossa pe-ça, a ser apresentada em um espaço cê-nico fechado, será produto de todo esse processo”, analisa o diretor.

Uma das cenas sobre o período repu-blicano já apresentadas pelos atores na Karroça trata do episódio da Sabina das Laranjas, ocorrido alguns meses antes da proclamação da República, em 1889. Pouco conhecido, o caso se deu no Rio de Janeiro, em frente à Faculdade de Medicina, onde uma mulher, durante muitos anos, vendeu laranjas em uma banquinha. Certo dia, um subdelegado recolheu o tabuleiro de Sabina e proi-biu-a de continuar trabalhando ali. “O motivo foi o protesto que estudantes re-publicanos haviam feito no local, contra uma comitiva de membros do Império que passara ali”, narra Vasconcelos.

Diante da expulsão de Sabina, os estu-dantes organizaram uma grande passe-

ata, portando pedaços de madeira com laranjas e outras frutas espetadas. “Foi uma das primeiras passeatas, talvez,com estética de combate. Ou seja, tra-ta-se de uma manifestação política que já trazia, também, uma ideia estética – o que é muito parecido com o que temosfeito hoje em dia”, analisa o diretor.

O episódio foi recontado, na cenacriada pelo grupo, de forma a se estabe-lecerem vínculos com o período atual.Entram em cena alguns atores exibin-do fi guras de “mulheres-frutas” – ter-mo que se refere principalmente a dan-çarinas de funk – atadas a palitinhosde madeira. Surge um coro de atrizesque joga laranjas nos fãs das dançari-nas, expulsando-os de cena para con-tar a história de outra mulher-fruta – aSabina das Laranjas. “Ao mesmo tempoem que procura criar politização, a cenaconta essa história importante e total-mente desconhecida, que tem a ver coma história dos movimentos de luta pelaRepública”, analisa.

A música é um elemento fundamen-tal nas Karroças. Uma outra cena já ela-borada pelo grupo, que trata da tro-ca de presidentes, faz paródia de Ila-riê, da Xuxa, para gerar efeito cômicoe, ao mesmo tempo, favorecer a refl e-xão. “Tocamos Ilariê e cantamos: Tá nahora, tá na hora/ de trocar de presiden-te/ Floriano vem com a gente/ Deodoronão vem mais/ Quando um rico vai prafrente/ Muito pobre vai pra trás/ Podetrocar de presidente/ Mas só governaquem tem mais/ E o pobre, e o pobre/se ferrou”, conta Vasconcelos.

Também no Kabaré Antropofágico osnúmeros musicais têm destaque. O for-mato concebido pelo grupo une a expe-riência do cabaré anterior à Revoluçãode 1917 ao teatro jornal, gênero de te-atro militante em que notícias são en-cenadas e criticadas pelos atores, commuito humor. “Nosso Kabaré Antropo-fágico reúne o repertório de música epoesia criado durante os 10 anos da Cia.Antropofágica, que serão completadosem abril de 2012”, explica o diretor.

Processo Essa rotina de apresentações na rua,

militância em frentes políticas e articu-lação com outros coletivos teatrais deSão Paulo extrapola a atuação de artis-tas de teatro convencional. “O material com que trabalhamos vai sendo levanta-do ao longo do processo, com produção e apresentação na rua, de forma contí-nua. Isso é mais interessante do que fi -car trancado em uma sala e anunciar abela peça que sairá meses depois – um procedimento típico da produção demercadorias, em que se esconde o pro-cesso e se apresenta apenas o produto”, defi ne Thiago Vasconcelos.

A inserção na luta política mais am-pla, para a Cia. Antropofágica, surge,dessa forma, como necessidade paraquem quer continuar produzindo umaarte minimamente séria. “É preciso teruma transformação em outros setorespara que a cultura volte a ter importân-cia. O teatro que fazemos está no limitedo que o Estado burguês pode oferecer.Então, em vez de discussões puramentecategoriais, é importante ter uma uniãocom as lutas travadas em outras fren-tes”, conclui Vasconcelos.

As lutas políticas e a produção do teatro

TEATRO A Cia. Antropofágica assumiu como projeto, ao conceber a trilogia Liberdade em Pindorama, em 2008, recontar a história social do Brasil a partir das relações de poder estabelecidas na Colônia, no Império e na República

ServiçoIntervenção – 90 Anos da Semana de Arte ModernaDia 8 de abril, às 18hPraça Ramos de Azevedo, s/nº

Tribunal PopularDias 20, 21 e 22 de abrilSacolão das Artes – Av. Cândido José Xavier, 577 – Pq. Santo Antônio

Kabaré AntropofágicoDia 13 de abril, às 20hEspaço Cultural Tendal da LapaRua Guaicurus, 1100 – Lapa

Ofi cina de Teatro – O Ator AntropofágicoOfi cinas de teatro gratuitas para jovens acima de 14 anosMais informações: Espaço Pyndorama (rua Turiassu, 481 – Barra Funda. Tel. 3871-0373)

Tratando da história das lutas sociais brasileiras do século 16 até hoje, cada parte da trilogia é marcada por uma determinada confi guração do embate político

Um coro de proletários surge no palco e alerta os modernistas sobre esse

papel que eles estão desempenhando, convocando-os a saírem dali

Toda vez que o Militante faz uma denúncia, o coro acaba sendo distraído por uma notícia espetacularizada de tragédia

Fotos: Divulgação

Ensaio antropofágico: refl etindo sobre o passado para relacioná-lo com seus desdobramentos presentes

A Cia. Antropofágica leva A Karroça para as ruas

de 5 a 11 de abril de 201214 américa latina

Olga Fernández

É O VOTO QUE a alma pronuncia* A primeira vez foi em 1989. A profun-

da tradição democrática e o enraizamen-to da esquerda e das organizações sociais no povo uruguaio não deixavam dúvidas de que o voto popular ofereceria uma al-ternativa à impunidade que o Parlamen-to havia regulamentado.

Depois do restabelecimento da de-mocracia uruguaia em 1985, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquéri-to (CPI) sobre a situação de pessoas de-saparecidas e sobre os fatos que motiva-ram estes desaparecimentos. O resul-tado dessa comissão, junto com os de-poimentos coletados pelas organizações de direitos humanos como o SERPAJ – Serviço de Paz e Justiça – e o IELSUR – Instituto de Estudos Legais e Sociais do Uruguai, permitiram que os militares fossem intimados a depor à Justiça pela primeira vez.

Entretanto, o discurso do governo es-tigmatizava as organizações de direitos humanos. Julio M. Sanguinetti, o pri-meiro presidente constitucional, acu-sou-as de ter os “olhos na nuca”, e incor-porou elas dentro da “teoria dos dois de-mônios” – segundo a qual o terror de Es-tado seria simétrico ao das organizações guerrilheiras.

Desde a direita parlamentar preten-deu-se construir uma “saída à uruguaia” e em 22 de dezembro de 1986 o parla-mento aprovou por maioria a Lei 15.848 da Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado, uma lei tristemente conhecida como Lei de Impunidade. A lei 15.848 estabelecia a renúncia por parte do Es-tado das suas faculdades de julgar e pu-nir os policiais e militares pelos delitos cometidos até o 1º de março de 1985 e dava o poder ao Executivo de avaliar e decidir se os casos que se apresentavam deviam ser julgados ou arquivados pe-lo Judiciário.

As organizações sociais rejeitaram a Lei de Impunidade desde sua sansão e cria-ram uma comissão nacional que, patro-cinada por atores do mundo da política e da cultura, submeteu a lei a plebiscito em 1989. Nele o povo uruguaio teve que se manifestar a favor ou contra tal lei.

Durante esse processo, de 1986 a 1989, as pesquisas e procedimentos judiciais foram interrompidos. Em nenhum ní-vel do Estado se atuou mais do que o Ju-diciário com o objetivo de impor os mes-mos mecanismos de medo e censura da ditadura. Assim foi que, chegado o dia do plebiscito, os votos para acabar com a Lei de Impunidade foram insufi cientes.

O esquecimento esta cheio de memoria**

A Lei nº 15.848, em seu artigo 4º, es-tabelecia que o Estado deveria investigar o destino dos desaparecidos, o que du-rante os anos de 1990, motivou a orga-nização “Madres y Familiares de Dete-nidos Desaparecidos”, junto com as en-tidades de trabalhadores e estudantes, como o PIT-CNT (Plenário Intersindical e Convenção Nacional dos Trabalhado-res) e a FEUU (Federação de Estudantes Universitários do Uruguai), a fazer in-clusive um abaixo assinado dirigido ao Presidente da República para a efetiva-ção de tal artigo.

Enquanto os partidos de direita gover-naram, desde 1985 até 2005, o artigo 4º não se cumpriu. Mais ainda, através da história ofi cial, esses governos lograram consolidar a teoria dos dois demônios para sua reprodução na sociedade, jun-to com um discurso que sustentava a ine-xistência de desaparecidos no Uruguai.

No entanto, desde o 20 de maio de 1996, a sociedade vem sendo convoca-da para as Marchas do Silêncio. Gran-des marchas organizadas pelos familia-res de desaparecidos, que ininterrup-tamente tem dado força às reivindica-ções de verdade, memória, justiça e, ao “nunca mais”. A participação dos uru-guaios nas Marchas do Silêncio não pa-raram de crescer.

As lutas contra a impunidade no UruguaiDITADURA Omissões e negligências do Estado não fi zeram com que as organizações de direitos humanos do Uruguai desistissem das suas buscas

No ano 2000, Jorge Batlle, do Parti-do Colorado, assumiu o governo nacio-nal reconhecendo que a luta dos fami-liares de desaparecidos mostrava que o tema não estava resolvido. Propôs uma “reconciliação nacional”, na qual os uruguaios deveríamos chegar, mas par-tindo do que ele chamou de um “esta-do da alma”.

Batle, retomando o discurso da teoria dos dois demônios, criou uma “Comissão para a Paz”. Ela elaborou um informe que só fez reconhecer a existência de de-saparecidos durante a ditadura militar e a constatação de morte de alguns deles.

O fato de o Estado ter se omitido e co-metido diversas negligências, não fez as organizações de direitos humanos do país desistirem das suas buscas. Foi as-sim que a colaboração entre as organiza-ções e alguns jornalistas comprometidos permitiu encontrar Macarena Gelman e Simon Riquelo, fi lhos de desaparecidos e sequestrados pela ditadura. Ao serem encontrados, não só lhes foi restituída sua verdadeira identidade, como tam-bém veio a público, e de forma explíci-ta, que a ditadura uruguaia tinha partici-pado do Plano Condor, responsável pelo desaparecimento de cidadãos e pelo se-questro de crianças.

Em 2006, foram recuperados os pri-meiros restos mortais de desaparecidos, os de Ubagesner Chávez Sosa e Fernan-do Miranda. Abriu-se então um novo ce-nário político, e as organizações sociais junto com os partidos de esquerda pro-moveram um novo plebiscito em 2009 para anular a Lei de Impunidade.

Em 2009, o objetivo do plebiscito não foi alcançado. Contudo em 2010 Maca-rena Gelman apresentou uma demanda contra o Estado uruguaio perante a Co-missão Interamericana de Direitos Hu-

manos (CIDH) da Organização dos Es-tados Americanos (OEA). A CIDH emi-tiu sentença em favor dela e exigiu ao Es-tado o cumprimento da investigação dos delitos contra a humanidade que come-teu durante a ditadura.

Quais são as tradições?*** Por mais de duas décadas, os uru-

guaios crescemos e nos desenvolvemos na desvalorização do coletivo, na desí-dia e na dor.

A memória implica voltar a revolver as dores e perdas que, para muito pou-cos uruguaios, poderia retornar a uma construção reparadora ou sanadora. Pa-ra a maioria, esse voltar a revolver resul-taria numa impudicícia, algo incontro-lável que implicaria numa abertura de portas que conduziam a lugares insus-peitados e, portanto, fi nais carregados de incertezas.

Para os uruguaios, a memória também não foi bem-sucedida como fator aglu-tinante. Nem sequer quando, durante a maior parte do período democrático pós-ditadura, a necessidade de sua recons-trução e permanência era um importan-te espaço de debate e luta ideológica.

A esquerda política ainda custava a abordar a desconstrução dos conceitos que impõe a história ofi cial e, até ho-je, tem sido os familiares de desapare-cidos praticamente os únicos a assumir essa tarefa.

Desde há vinte anos que os familiares diretos dos desaparecidos são a referên-cia social da memória. Por isso, por mui-tos anos, o desaparecimento forçado foi o foco principal de denúncia do terror. O caráter permanente do desaparecimen-to forçado é difícil de ser provado e com-preendido. Isso poderia explicar a insufi -ciente empatia, evidenciada nos resulta-dos das duas instâncias em que a impu-nidade foi submetida a consulta popular.

No ano de 2011 houve fortes demons-trações contra a Lei de Impunidade. Em novembro prescreveriam os crimes da ditadura, pelos quais, novamente, as or-ganizações sociais insistiram para que o parlamento retomasse o debate. Com os votos do “Frente Amplio”, em 29 de outubro, o parlamento aprovou uma lei que reconhece a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e restitui ao Estado sua pretensão punitiva. Com essa lei, a Justiça fi cou liberada para atuar se-gundo o necessário. Apesar do fracasso do plebiscito de 2009, o cenário de luta mudou e agora não são só as vítimas ou seus familiares que realizam as denún-cias. Porque, a partir de 2010, gerou-se um movimento de cidadãos que está apresentando denúncias perante a jus-tiça e que faz pressão permanentemen-te para que o Estado investigue.

Poucos dias após o parlamento se po-sicionar a favor da restituição à justiça, os restos mortais de um professor, que não fora nem comunista nem guerri-lheiro, foram encontrados num prédio militar. A constatação de que estes res-tos pertencem ao professor Julio Castro e de que, portanto, tinha sido assassina-do, obrigou o Comandante do Exército, Pedro Aguerre a reconhecer a existência de criminosos em seu grupo e exigir aos seus subalternos o fornecimento de toda informação possível a respeito.

Poucos dias atrás apareceram novosrestos humanos no mesmo prédio mi-litar que os de Julio Castro. Enquantoos resultados da análise de DNA são es-perados e as buscas continuam, o Pre-sidente da República – dando cumpri-mento à sentença da CIDH – reconhe-ceu os crimes cometidos como terroris-mo de Estado a partir dos crimes leva-dos a cabo contra Macarena Gelman esua família.

De muitas maneiras, a sentença da CIDH signifi cou um importante respal-do para a luta das organizações de direi-tos humanos. Por um lado, através de di-ferentes coletivos, muitas vítimas come-çaram a se encontrar e reencontrar, a re-compor sua identidade e se organizar. Por outro lado, começaram a ser apre-sentadas novas denúncias por torturas, violência de gênero, assassinatos, apro-priação ilegítima de bens materiais, exí-lio, privação ilegítima da liberdade e nascimentos em cativeiro político que dezenas de uruguaios sofreram por cau-sa do terrorismo de Estado. Mas tam-bém, a sentença da CIDH propiciou a re-consideração do debate parlamentar so-bre a Lei de Impunidade.

No Uruguai, os caminhos de aproxi-mação para a construção da memória estiveram sempre vinculados à ideia de acabar com a institucionalidade da im-punidade. Por isso, a sentença nos brin-da como um marco para a uma nova eta-pa, segundo a qual será importante com-preender coletivamente que a constru-ção de pontes de memória é o único ca-minho para o conhecimento da verdade.

A situação dos desaparecidos no Uru-guai ainda não foi esclarecida, comotambém não o foram as circunstânciasem que dezenas de pessoas foram tor-turadas e assassinadas. Hoje, contudo,a teoria dos dois demônios começa acambalear perante a sociedade e a per-der argumentadores.

Com certeza, os uruguaios ainda con-vivemos com aqueles que, entre nós, impedem a realização de uma constru-ção cabal de nossa memória. Porém, en-quanto as investigações avançam, nós também vamos nos aproximando da verdade e da oportunidade de justiça. Transitamos por esse caminho, dando-nos conta de que também é possível des-construir a história ofi cial desde o dis-curso ofi cial e que dessa maneira tam-bém se escreve a história.

*trecho do hino uruguaio.**É um verso de “Ese gran simulacro”,

poema de M. Benedetti.***Verso de “Las raíces desteñidas”,

canção de La Tabaré Riverock Banda.

Olga Fernández é militante dos direitos humanos no Uruguai e jornalista do semanário El Popular, daquele pais.

Durante esse processo, de 1986 a 1989, as pesquisas e procedimentos judiciais foram interrompidos

Desde há vinte anos que os familiares diretos dos desaparecidos são a referência social da memória

Poucos dias atrás apareceram novos restos humanos no mesmo prédio

militar que os de Julio Castro

O professor Julio Castro, cujos restos mortais foram encontrados em prédio militar

O comandante do Exército uruguaio, Pedro Aguerre, reconheceu a presença de criminosos em seu grupo

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Governo do Uruguai

américa latina de 5 a 11 de abril de 2012 15

Márcio Zonta de Lima (Peru)

O ASSUNTO “drogas” influencia dire-tamente a soberania do país andino. Os mais afetados são os camponeses coca-leiros que veem sua produção ancestral ser dia pós dia mais atrelada ao narco-tráfi co no país.

Longe de uma defi nição acerca de uma política antidroga, o advogado e pesqui-sador peruano Ricardo Saberón, mestre em Política Internacional e Estudos de Segurança Nacional pela Universidade Bradford, na Inglaterra, rechaça a atu-al política adotada pelo governo Ollan-ta Humala. “No Peru, o debate sobre as drogas ganhou um tom militar como se fosse assunto apenas dessa alçada, quan-do teria que ser apoderado pela socieda-de civil, pelas comunidades, associações e movimentos sociais”, defende.

Saberón recentemente pediu demissão do cargo de Presidente da Agência Peru-ana Antidrogas por não aceitar, entre outras questões, a forma como os pro-dutores da folha de coca vêm sendo tra-tados. “Desde 2008, vários líderes cam-poneses cocaleiros vêm sendo presos ar-bitrariamente acusados de envolvimen-to com o narcotráfi co e com o terroris-mo no país”.

Em entrevista, Saberón, também fun-dador do Centro de Investigação de Dro-gas e Direitos Humanos no Peru – CI-DDH, revela que a questão das drogas e o narcotráfi co no país perpassa por di-versos interesses, principalmente esta-dunidense. “Há uma manipulação nas informações sobre drogas e narcotráfi -co no Peru para fi ns políticos”.

Brasil de Fato – O que signifi ca a folha de coca para o camponês peruano? Ricardo Soberón – Estamos falando de 100 mil famílias camponesas perua-nas, o que dá em torno de 360 mil pes-soas que vivem na serra, próxima da sel-va, que tem uma parcela de cultivo da fo-lha de coca. O camponês peruano traba-lha com a diversidade de cultivos, o que lhe permite ganhos durante todo o ano. A folha de coca, sobretudo, proporcio-nou-lhe liquidez e dinheiro permanente para pagar suas despesas, além, claro, de ser um cultivo muito popular que passa de uma geração para outra.

E hoje? Qual a principal ameaça que sofre o camponês cocaleiro no Peru?

A Agência Internacional de Desenvol-vimento (AID) infl uencia o governo pe-ruano e ambos fazem um discurso que não existe desenvolvimento rural com a folha de coca, por isso teria que extinguir seu cultivo. E assim lançam uma série de projetos que dizem que o camponês tem que se converter em empresário, agroex-portador, utilizando suas terras de outra maneira. Não falam, por exemplo, que na Selva Alta no Peru, há muita chuva que pode prejudicar o solo e que somen-te há condições para determinado ti-po de cultivo, não em grande intensida-de, mas um sítio com várias plantações e uma delas é a folha de coca.

Fora que desde 2008 vários líderes camponeses cocaleiros vêm sendo pre-sos arbitrariamente acusados de envol-vimento com o narcotráfi co e com o ter-rorismo no país. Em San Martin, cidade próxima à Amazônia peruana, os coca-leiros ainda sofrem pressão das transna-cionais que querem suas terras para ou-tros cultivos, numa região que tem tes-temunhado o desenvolvimento da ativi-dade da agroexportação e os preços dos produtos agrícolas nessa região, que não a folha de coca, subiu muito. Principal-mente porque os estadunidenses inves-tiram muito dinheiro na produção de ar-roz e café, além de ser uma região que possui bastante água.

O que de fato é destinado da produção da folha de coca ao narcotráfi co no Peru? Como se dá esse processo?

Há um problema sério que na verda-de é político quando se fala das meto-dologias de conversão da folha de co-ca em cocaína, pois há um défi cit de in-formação sobre isso que gera polêmica, criminaliza os camponeses produtores e, sobretudo, possibilita uma interven-

ção dos Estados Unidos. Estima-se que nas zonas andinas da Colômbia existam 62 mil de hectares plantados de folha de coca. O Peru teria pouco menos, 61 mil hectares, produzindo aproximadamente 130 mil toneladas de folha de coca. A ca-da dois quilos de pasta-base lavada, sai um quilo de cloridrato de cocaína, que posteriormente é exportado via portos peruanos ou nas fronteiras com o Brasil; ou ainda é repassado para organizações internacionais.

Destes 61 mil hectares cultivados no Peru, dez mil são destinados a consu-mos tradicionais e o restante abaste-ce o mercado do narcotráfi co. Mas, veja bem, existem atravessadores neste pro-cesso dos dois lados, do formal e infor-mal. Do formal, a captura de parte dos dez mil hectares destinados ao consumo, digamos legal, é feito pela estatal Yano-ca, que recebe recursos internacionais de organizações antidrogas. Porém, a estatal repassa o que apanha geralmen-te apenas para o consumo de um contin-gente indígena na selva peruana, o que do meu ponto de vista é uma propagan-da nefasta, pois aponta como se somente os índios consumissem coca, mais nin-guém, gerando uma visão egocentrista, colonizadora.

E da maneira informal e que o Estado não “reconhece”, há o processo dos atra-vessadores da matéria-prima para trans-formação da cocaína. Assim, o mercado do narcotráfi co é abastecido principal-mente pela falta de políticas públicas e não da intervenção policial, que existe. O centro do problema não é o campo-nês, e sim uma gama de pessoas que lu-cra com isso.

E quem são essas pessoas que lucram com o narcotráfi co no Peru?

Temos mais ou menos 600 grupos de narcotráfi co no Peru. Lava-se 4 mi-lhões de dólares do dinheiro do narco-tráfi co no país em comércio, transporte e nas mais diversas redes sociais econô-micas. E como qualquer outra commo-dity, o preço da cocaína pode variar de 4 a 15 mil dólares, o quilo. Aliás, é mui-to mais que uma commodity, pois varia demais o preço. O tráfi co da cocaína está convertido num instrumento de sobrevi-vência econômica no mundo globalizado em muitas sociedades. Portanto, o com-portamento do Estado no Peru, da Polí-cia Nacional, do Ministério Público e de parte dos advogados, juízes, diplomatas e políticos, é de conivência, pois lucram com o narcotráfi co.

Geralmente os países produtores da folha de coca não são os grandes conversores da matéria-prima para a cocaína. No Peru isso é diferente?

Não é diferente, embora exista tam-bém a conversão no Peru. Não acredi-to que seja a quantidade que os infor-mes internacionais mencionam de 325 toneladas de cocaína. Porque no país se captura de onze a quinze toneladas mé-tricas anualmente da droga e os hecta-res que destinamos à plantação da fo-lha de coca no país não chegariam a es-sa quantidade.

Na Colômbia, por exemplo, se captu-ra bem mais, cerca de 130 toneladas de cocaína. Segundo estudos internacio-nais, no mundo se produz 1.200 tonela-das métrica de cocaína. Desse montan-te, as operações das polícias intercep-tam 700 mil, restando 500 mil tonela-das ao mercado, dando um rendimento de aproximadamente 80 milhões de dó-lares anuais.

No Peru, a questão das drogas tornou-se extremamente discutida num tom mi-litar, como se fosse responsabilidade apenas dessa alçada. Esse assunto te-ria que ser tomado pela sociedade civil, pelas comunidades, associações e movi-mentos sociais.

Você cita os Estados Unidos no começo da entrevista...

A satanização da folha da coca, e não é de hoje, sempre serviu como descul-pa para intervenções estadunidenses na América Latina. No Peru, em espe-cial, isso começou na década de 1950. Uma verdadeira esquizofrenia do Esta-do mirou os camponeses cocaleiros, o que deixou bem feliz os Estados Unidos na época, que ganhou campo em nosso país e pôde, a partir daí, avançar mui-to mais.

Avançar muito mais em que sentido?

Um dos sentidos é a presença de mili-tares. Eu não acredito em bases estadu-nidenses no Peru, mas sim em disposi-tivos móveis. Nos últimos anos, temos uma relevante frequência de ingressos de militares estadunidenses nas tropas de treinamento da Marinha, do Exérci-to e Força Aérea Peruana.

Para se ter uma ideia, até 2004, o Congresso da República tinha que au-torizar a entrada de militares estadu-nidenses no Peru. Isso acabou quando o presidente Alejandro Toledo Manri-que (2001-2006), grande amigo dos Es-tados Unidos, impôs uma lei que o mi-nistro de Defesa apenas precisa infor-mar ao Congresso sobre a entrada, mas não mais pedir permissão para os mili-tares estadunidenses treinarem nossas tropas. Por isso hoje a entrada é prati-camente livre.

Eles desenvolvem um treinamento específi co no trabalho de infantaria na selva peruana com a desculpa de ata-car grupos terroristas e o narcotráfi co, criando uma dependência de nossas for-ças armadas aos ditames militares esta-dunidenses. Essa situação leva o Peru ao encontro do Comando do Sul, que é uma tentativa de controle da região efetivado por tropas dos Estados Unidos. Sua ati-vidade é planejar as operações de segu-rança na América Latina, sendo respon-sável por toda segurança do Canal de Panamá, uma rota marítima por onde se exportam as principais matérias-primas da região. Estados Unidos e China são os principais usuários desse canal.

Daí também o interesse pela saída do mar, haja vista que o Peru se situa entre países

que ocupam grande parte da costa do Oceano Pacífi co e que já sofrem grande infl uência estadunidense, Chile e Colômbia, salvo o Equador...

Não é a toa que a Marinha é a que teve sempre, entre as três forças armadas pe-ruanas, mais militares estadunidenses e se posiciona de maneira mais conserva-dora em diversos assuntos.

Fora as forças armadas, como esse domínio estadunidense se estende ainda com a desculpa do narcotráfi co no Peru?

Esse é menos despercebido aos olhos de todos, está infi ltrado em diversas re-lações sociais e econômicas. Porém per-passa a questão do narcotráfi co e visa defender todo interesse estadunidense na Amazônia peruana, principalmente pelo gás e contra a investida da esquer-da no Peru.

As ONGs peruanas, em sua maio-ria fi nanciadas pela AID com dinhei-ro dos Estados Unidos, alimentam fi -nanceiramente a imprensa, universi-dades, partidos políticos e congressis-tas. Exemplos: o maior grupo empre-sarial do país pertencente a uma famí-lia peruana, dona do jornal mais lido deLima, El Comércio, que impõe a visãoyankee. Possuem ainda televisão, rádioe jornais em todo país. Três analistasque escrevem para o jornal são pagospara fazerem artigos conforme a con-juntura política do país e da AméricaLatina. A Universidade Católica do Pe-ru tem um centro de estudo internacio-nal, assegurando discursos e fontes aosfavores estadunidenses. No congresso,para defender leis e formas de exporta-ção que benefi cie os Estados Unidos es-tá Luis Ibérico, do Partido Aliança parao Progresso. Todos são pagos por con-tratos de supostas consultorias presta-das à AID ou às ONG’s fi nanciadas porela e, assim, manipulam todas as suasestratégias de ação.

Para concluir, explique a preocupação dos Estados Unidos com a “... investida da esquerda no Peru”.

Ao meu ver Brasil e Argentina são os grandes países da região, se colocam co-mo uma sólida frente política com go-vernos progressistas e mais à esquerda.

Por conseguinte, vem o bloco da Alian-ça Bolivariana para os Povos das Amé-ricas (ALBA) com Venezuela, Equador, Bolívia e Cuba. Sobra nesse contexto, México, Chile, Colômbia e Peru. Imagi-ne se o presidente Ollanta Humala apli-casse seus discursos nacionalista e mais à esquerda que fez durante sua campa-nha para presidência da república? Se-ria um caos para os Estados Unidos, que hoje tratam de maneira muito cordial o presidente Humala. Portanto, o Peru é estratégico e preocupa muito os estadu-nidenses diante dessa confi guração polí-tica no continente.

No Peru, a guerra de informação sobre as drogasENTREVISTA Falácias sobre a produção da folha de coca são propagadas a fi m de garantir interesses estadunidenses e da elite política e econômica peruana

“As organizações não governamentais peruanas em sua maioria fi nanciada pela AID com dinheiro dos Estados Unidos alimentam fi nanceiramente a imprensa, universidades, partidos políticos e congressistas”

“Nos últimos anos temos uma relevante frequência de ingressos de militares estadunidenses nas tropas

de treinamento da Marinha, do Exército e Força Aérea Peruana”

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Policias destroem plantação de coca em Padre Abad, província localizada na região de Ucayali

de 5 a 11 de abril de 201216 áfrica

Mia Couto

TODOS OS DIAS centenas de chapas de caixa aberta** transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio le-ma “Maputo, cidade bela, próspera, lim-pa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com deze-nas de pessoas que se entrelaçam api-nhadas num equilíbrio inseguro e frá-gil. Aquilo parece um meio de transpor-te. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável.

Quem se transporta assim são ani-mais. Não são pessoas. Quem se trans-porta assim é gado. Para muitos de nós, esse atentado contra o respeito e a dig-nidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a fal-ta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos, aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação defi nitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçam-bicana.” Desse modo nos aceitamos pe-quenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.

O caso dos chapas é apenas um exem-plo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitá-vel”. E é simples: aos poucos, os passa-geiros do “chapa” deixam de ser visí-veis. Na nossa sociedade, essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jor-nal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um sim-ples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coi-sas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibili-dade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.

O assunto que quero abordar convos-co hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria ma-terial e moral. Esta vulgarização faz per-petuar a pobreza e faz paralisar a histó-ria. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza, mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.

Dumba-nengueVisitou-me um escritor amigo da Ni-

géria. Ele percorreu as cidades de Mo-çambique e ligou-me de Pemba, capital da Província de Cabo Delgado, também em Moçambique. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principal-mente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior pro-dutor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bom-bas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é ven-dida em garrafas e jerricans (galões para combustível) nos passeios públicos.

Para alguns esse é um processo na-tural na África. Mas não é. O que suce-deu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não fo-ram os mais desfavorecidos que lucra-ram mais. Foi uma parte da elite nigeria-na que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ain-da mais ricos. Mas não é a questão polí-tica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue ou mercado ambulante (do ron-

ga, confi a no teu pé), se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar nu-ma nação bem mais pobre como é Mo-çambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos pro-clamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe fa-zer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber.

É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida pa-ra fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o patrimônio públi-co. Quando o meu amigo nigeriano vol-tou a Maputo ele disse-me o seguinte: “A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria”.

O principal aliado dos tiranos é a cul-tura da aceitação. Talvez alguns de vo-cês sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia da Republica, nós não podíamos ima-ginar que alguns deputados se sentis-sem incomodados com a passagem da letra que diz: “Nenhum tirano nos irá escravizar”. É claro que a letra não fa-la do presente. Mas um hino é feito pa-ra durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de pre-venir esse risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de cons-trução do futuro. O que me interessa fa-lar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas peque-nas e grandes misérias.

A invocação da chamada “africani-dade” é uma das armadilhas mais usa-das pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples fato de andarem de calças. Mu-lheres de calças não é uma coisa africa-na – foi o que invocaram os agressores. Em nome da África, agrediram e mata-ram pessoas, apenas porque eram ho-mossexuais. Em nome da pureza africa-na, continua-se a impedir que, apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus estu-dos. Em nome da África, cometem-se os maiores crimes contra a África. O nos-so continente é feito de passado e tra-dição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança. Como todos os ou-tros continentes.

As dinâmicas de mudança confron-tam-se com uma identidade feita de pas-sado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibi-lidade. A acomodação tem várias face-tas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque

achamos que não tem a ver conosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silên-cio e da nossa cumplicidade.

Fenômenos Eu rabisquei uma lista de fenôme-

nos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem extensa. Mencionarei apenas de alguns.

O primeiro desses fenômenos é a vio-lência. Dizemos com frequência que so-mos um povo pacífi co. Isso é verdade. Mas os povos todos do mundo são pací-fi cos por natureza. O que muda é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífi co, mas também é verda-de que foi esse povo pacífi co que fez uma guerra civil que matou cerca de um mi-lhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais impor-tante da nossa história recente, depois da Independência Nacional.

Terminou o confl ito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas. Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em confl ito com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos em guerra com os po-bres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pe-lo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma defi nição de hierarquias.

Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimô-nia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Po-der. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu que-ria comprar. “Deixe que escolho um car-ro compatível com o seu estatuto”, dis-se ele.

MulherEstamos em guerra conosco mesmos e

o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçam-bique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percep-ções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os do-nos, e olham as mulheres como uma per-tença privada. As mulheres, por outro la-do, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que são objeto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal, acham na-tural. Ser agredida faz parte do seu des-tino, da sua imutável natureza.

E conto-vos três episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas úl-timas semanas: Em Cabo Delgado 17 ho-mens violaram uma mulher que se atre-veu a atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária

insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insufi ciente resposta.

Em Manica, dois jovens violam sexu-almente uma mulher no sétimo mês da gravidez. Em Tete, um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gra-vemente a mulher, porque, ao meio dia ele chegou à casa e a mulher se recusou a fazer sexo com ele. O jornalista da tele-visão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor devia estar necessi-tado não é verdade?”

Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agre-dida dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredi-da e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As esta-tísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70% dos atos de violência con-tra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60% dos assassinatos de mu-lheres são cometidos pelos seus compa-nheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afetado de modo particular. O que sucede é que pa-ra nós essa violência é legitimada por ra-zões que se dizem culturais.

E ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda acha-mos que este assunto não tem a ver co-nosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e fi lhas, achamos que isto não tem nada a ver conosco.

Eu disse que estávamos em guerra co-nosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violên-cia daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse: “O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.”

*Parte da aula inaugural a Escola de Comunicação e Artes da Universidade

Eduardo Mondlane (ECA/UEM), em 2012.**Transportes coletivos

Da cegueira coletiva à aprendizagem da insensibilidadeOPINIÃO Ou sobre o comodismo, a violência e o conservadorismo no cotidiano moçambicano e africano, no geral*

Quem é Mia Couto, ou Antônio Emílio Leite Couto nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. É fi lho de portugueses, e era militante da Frente de Libertação de Moçambique, lu-tando pela independência de seu país entre 1964 a 1974. Ajudou a compor o hino nacio-nal moçambicano.

Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza, mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança

O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação

Estamos em guerra conosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente

uma maioria: as mulheres

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Moçambicanos embarcam em “chapa” superlotada