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Page 1: As Falsas Verdades Em Medicina Legal

IDOLA MEDICO LEGALIS As falsas verdades em Medicina Legal

Prof. Dr. Marcos de Almeida

"Todavia os mais mortais dos inimigos do conhecimento e que têm feito o maior mal à verdade têm sido a peremptória adesão a uma autoridade e, mais especialmente, o estabelecimento de nossa crença sobre os ditames da antigüidade".

Sir Thomas Browne, em Pseudodoxia Epidemica, 1646

INTRODUÇÃO

Sempre que focamos nosso juízo crítico sobre as grandes conquistas do conhecimento humano e, em particular, sobre as chamadas "teorias cientificamente comprovadas", verificamos que no fundo desse julgamento permanece um resíduo problemático. Na verdade, passado o período em que nos empolgamos com o êxito da nova proposição e suas perspectivas, vamos aos poucos percebendo que algumas perguntas quedam-se irrespondidas. Nem mesmo nas ditas ciências exatas existem verdades universais, absolutas e definitivas, mas sim princípios objetivamente válidos para o nível contingencial dos conhecimentos, dentro de um plano ou sistema considerado.

Foram aparentemente os físicos, como um grupo (Planck, Einstein, Maxwell, De Broglie, Dirac), os primeiros a reconhecer o fato, ao estudar em profundidade o macro e o microcosmo, e a assumir a coragem de introduzir dentro de seu campo de estudos o que é hoje conhecido por princípio da incerteza, proposto por Heisenberg, face à perplexidade oferecida pela ambigüidade de numerosos resultados na Física. Isso, de forma alguma, pode ser entendido como uma confissão de fracasso de seus métodos experimentais, porem a constatação honesta de que muitas coisas não podem ser simplesmente explicadas dentro do atual estágio de conhecimento e abordadas pelo prisma da investigação usual. Há que reformular certos conceitos enraizados em nossas mentes ao aceitar como unicamente válido um padrão de raciocínio lógico que nos foi legado por Aristóteles, há mais de dois mil anos. Ele tem, obrigatoriamente, de ser posto de lado em algumas instâncias como, por exemplo, ao tentar entender a teoria da relatividade sem o mecanicismo newtoniano, ou a compreender as atuais formulações dualísticas e de simultaneidade sobre energia eletromagnética e partículas subatômicas, para não falar na complexidade maior dos fenômenos biológicos ou entrar na esfera abstrata da ideação pura.

Após sair de um período de generalizada estagnação racional, ditada pela prevalente filosofia escolástica e reforçada pelos meios de persuasão inquisitorial, os homens aparentam retornar a um tipo similar de acomodação paquidérmica, só que revestida de nova indumentária. Passou-se da imposição dogmática das "verdades divinas", para a aceitação apriorística de outro tipo de verdade - as verdades técnico-científicas - algumas já seculares enquanto outras reluzentemente novas, sem a salutar precaução das verificações sérias e constantes. Houve apenas como que uma transfiguração, uma substituição do Deus tomista por um Deus tecnocrata autoritário, após breve passagem pelo pedestal de um desejável Deus cientista-filósofo-humanista.

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Nós, particularmente, adotamos uma atitude de expectativa e dúvida, quando tomamos conhecimento de que determinado fato foi "explicado em teoria" por reconhecida "autoridade no assunto", se ela não vem acompanhada da criteriosa análise das observações efetuadas e das provas estatisticamente reputadas necessárias para seu efetivo embasamento. A pergunta que sempre se impõe não é sobre quem chegou a tal conclusão e sim sobre como se chegou à conclusão. Certa feita assistimos a um debate na TV inglesa em que um dos componentes da mesa declarou enfaticamente, de modo absolutamente pertinente, que a ele não interessaria a opinião de outro debatedor, de obesa e nobre aparência, se ela fosse baseada somente no fato de que tal cidadão era bisneto de Lorde Fulano-Sicrano e atual membro da Câmara dos Lordes. Nossa disposição de ânimo é exatamente igual para com as verdades apregoadas e, supomos, tenha se consolidado em nosso espírito por orientação paterna, cuja preocupação, entre outras, foi a de uma tentativa permanente de desantolhamento racional, de um processo liberalizante de dogmas e pré-julgamentos, sem perder de vista o sentido moral . Além disso temos assistido com freqüência, à queda de muitas "verdades" e continuamos a assistir.

Infelizmente a humanidade , em que pese a afirmativa de que a memória é um dos principais traços que a distingue dos animais inferiores, dá mostras de tê-la em dose abaixo daquela que seria recomendável. A excessiva reverência às "autoridades" embota a memória do homem e reduz seu senso crítico. Provavelmente não são muitos os que se lembram do que foi acenado por alguns precursores do Renascimento e dito com todas as letras por Francis Bacon em algumas de suas obras, embora de modo mais claro e ordenado no seu "Novum Organum". Em síntese Bacon preconizava o estabelecimento de uma nova ordem de verdades tendo como ponto basilar a investigação refletida da natureza sem interferência de qualquer idéia preconcebida. Para isso, no entanto, seria preciso erradicar, como etapa prévia, os conceitos falhos e errôneos tidos e havidos, até então como verdades irrefutadas. A etapa inicial foi denominada "pars destruans" e a posterior, que não significa necessariamente um recomeço do nada, foi chamada "pars construans".

Tendo estabelecido suas bases, Bacon dividiu os erros e idéias falhas existentes em quatro tipos ou categorias, aos quais deu o nome de "idola" ou ídolos, em latim, língua em que foi escrita a obra: 1) os "idola tribus", idéias inerentes à tribo, ou melhor, as idéias inerentes à própria espécie humana e, portanto, conceitos vinculados à espécie como um todo, de caráter nitidamente atávico; 2) os "idola specus", também chamados de ídolos das cavernas, e que tinham o significado de idéias deformadas peculiares a cada ser humano individual, a cada pessoa em particular e que se acrescentavam aos conceitos da espécie; 3) os "idola fori", aos quais foi dada a conotação de concepções errôneas transmitidas pelas pessoas através de conversas, de informações, de discursos públicos, em suma, a fixação das idéias e tradições por intermédio da verbalização das teorias em voga "no mercado"; e finalmente 4) os " idola theatri", ou idéias que se consubstanciavam pelo sistema filosófico, pela palavra dos doutos, por intermédio e racionalizações que procuravam encaixar os fatos observados no bojo de suas teorias e que Bacon entrevia como meras "encenações" de verdades não comprovadas.

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Alguns comentadores da obra de Bacon alegam que ele teria esquecido de fazer menção às idéias de verdade aprendidas na escola e impostas pelos mestres, propondo, inclusive, o título de "idola achademiae" para a categoria omitida. Quer nos parecer, todavia, que considerando a época, Bacon incluiu de modo implícito esse tipo de "idola" entre os que ele denominou de "theatri" e, de certa maneira, entre os "fori". De qualquer forma torna-se irrelevante o reparo se atentarmos para que a filosofia de Francis Bacon tinha por princípio geral a abolição de quaisquer teorias firmadas em idéias preconceituosas e que não fossem abordadas através de metodologia adequada, seguida de exaustivas avaliações. Em resumo a proposição final incentivava uma abertura mental que permitisse ao homem abstrair-se de aspectos conceituais pré-impregnados e a ajuizar criticamente os fatos observados com limpidez total, através do enfoque convenientemente não distorcido, ao tipo, ao plano ou ao sistema dos fenômenos em questão.

O propósito do presente trabalho é por em evidência o fato alarmante da presença de ilusórias "verdades", de representantes autênticos dos "idola" baconianos no campo da Medicina Legal. Essas teorias são tranqüilamente aceitas como métodos indisputados, quer por terem passado de livro para livro, sem serem verificadas suas autenticidades, quer pela honorabilidade conferida pelo tempo ou pelo nome do autor da afirmação, quer pelo entusiasmo precoce de um investigador face ao sucesso de nova técnica extrapolada de experiências laboratoriais, quer por erro de perspectiva nas observações. O que assusta em tudo isso não são os erros primeiros, provavelmente não intencionais, mas a perpetuidade dos mesmos pela aceitação pacífica e, muito especialmente, as decisões judiciais nelas assentes e que continuarão a ocorrer, caso não sejam eles apontados.

Convém igualmente assinalar que nosso escopo no momento é apenas destacar alguns dos equívocos mais perpetrados e que tiveram como referência, além de trinta anos de prática forense, de informações pessoais e de trabalhos de investigadores criteriosos, os enganos cometidos por nós próprios, que são uma das maneiras mais profícuas de aprendizagem, quando honestamente reconhecidos e corrigidos.

1. O Ponto Crioscópico nas Mortes por Afogamento

Grande número de legistas na rotina pericial continua a atribuir valor à determinação do ponto crioscópico do plasma no diagnóstico da morte por afogamento. Baseiam-se no que ainda hoje repetem vários autores inspirados na experiência pioneira de Carrara, em 1990, que afogou cães em laboratórios após fixar a média de -0°60C como ponto de congelamento do plasma normal dos mesmos. As oscilações significantes para mais ou para menos desse ponto, indicariam morte por afogamento em água doce e salgada respectivamente. Essas oscilações, embora possam fornecer dados de valia a partir de sangue de indivíduos recém-afogados, carecem de utilidade prática na maioria dos casos de necroscopia, onde a regra não é a precocidade no achado do corpo e, menos ainda, a realização imediata da necroscopia. Nestas condições as tentativas efetuadas por vários pesquisadores não revelaram a pretendida relação entre o tipo de afogamento e o ponto crioscópico, ou sequer entre este a realidade do afogamento.

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A falha principal do método reside na premissa de uma constante eletrolítica para a parte sérica do sangue dos indivíduos vivos e na oscilação de sua concentração molecular nos afogados, o que acarretaria conseqüente modificação do ponto crioscópico, sabidamente dependente dessa concentração. Ocorre que a medida direta do teor de eletrólitos em casos concretos mostrou resultados erráticos e desapontadores que não podiam servir de apoio ao método.

Por outro lado, a considerável hemólise nos casos de afogamento em água doce, acrescida da hemólise espontânea pós-mortal, a par dos eletrólitos liberados pelos tecidos e daqueles inevitavelmente existentes nas lagoas, rios e córregos onde acontecem os eventos (e que não são constituídos de límpida água destilada), contribuem para resultados totalmente diversos dos obtidos sob condições experimentais. Isso sem se falar no abaixamento significativo do plasma de cadáveres autopsiados muitas horas após a morte e cuja causa nata tinha a haver com afogamento.

De toda a investigação sobre o método proposto no limiar do século resultou a conclusão de sua validade apenas nos poucos casos de necroscopia precoce.

2. Diagnóstico Racial Antropométrico de Restos Humanos Esqueletizados

Outros elementos periciais que se nos afiguram como de utilidade duvidosa são os referentes ao diagnóstico racial a partir de restos humanos esqueletizados, particularmente no Brasil, onde a miscigenação e a má nutrição são quase a regra. Até agora ainda não nos foi convenientemente esclarecido o porquê da fixação de 3 faixas tão precisamente limitadas para os vários índices e ângulos medidos, quando teria sido mais sensato deixar entre as faixas uma margem incaracterizada, na qual os valores pertencessem a ambos os grupos étnicos limítrofes. Quando as condições permitissem que somente poucas mensurações pudessem ser efetivadas, esse critério propiciaria uma conclusão menos susceptível a erros. Nos casos em que apenas 5 a 7 índices e ângulos podem ser medidos e todos os valores incidem, por exemplo, na faixa atribuída a melanodermos, porém quase no limite da faixa dos leucodermos, estaremos nos arriscando à forte possibilidade de alguns deles pertencerem efetivamente a leucodermos. Aliás Arbenz, em brilhante e recente exposição demonstrou a necessidade de alentado número de medidas dos diversos índices e ângulos disponíveis para que se possa estimar, não a raça, mas a origem étnica e, ainda assim, em termos de probabilidade.

No mundo atual e no Brasil em especial, pela diversidade dos tipos cranianos, notada inclusive entre os negros da África, e pelos incontáveis erros cometidos, muitos deles por nós próprios, julgamos o diagnóstico racial baseado nos dados antropométricos, um inútil e trabalhoso exercício de ficção científica.

3. As Manchas de Tardieu no Diagnóstico das Asfixias

Que as petéquias hemorrágicas descritas por Tardieu em relação às mortes por asfixia têm acentuado valor probabilístico é coisa que não duvidamos. Contudo, saltar daí para a conclusão de que representam, por si sós, sinal patagnomônico, é ultrapassar claramente a barreira do sensato.

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Dois mecanismos são citados como responsáveis pelo aparecimento das manchas. O primeiro representado pela permeação hemática de setores de pequenos capilares sangüíneos, em conseqüência de lesão anóxica de seus endotélios. O outro expresso pela rotura da parede capilar em decorrência da ação associada da hipertensão intravascular compensatória, com a acentuação da pressão negativa intratorácica pelo esforço inspiratório , acarretando sufusões a partir de vasos superficiais com pouca sustentação conjuntiva circundante. Entretanto, nenhuma das duas explicações é suficientemente satisfatória já que, se por um lado é fisiopatologicamente inaceitável lesão endotelial anóxica em tão curto espaço de tempo, pelo outro como poderia ser explicada a presença de petéquias em localizações tais como o septo tímico, o retro-peritôneo e até mesmo o testículo?

Essa discordância ainda prevalente quanto ao mecanismo formador das manchas de Tardieu não autoriza porisso, uma ligação tão peremptória e exclusiva das mesmas às asfixias. Além do que não são poucas as ocasiões em que a ocorrência de petéquias hemorrágicas na serosa dos órgãos torácicos, acha-se dissociada do fenômeno asfíxico. Vários casos de infarto do miocárdio, toxemias endógenas, fenômenos alérgicos, discrasias sangüíneas, septicemias e outras entidades mórbidas, são alguns exemplos. Em contra partida existem numerosas casos documentados, dezenas por nós necropsiados, com toda uma comprovação circunstancial e factual (macroscópica e laboratorial) de indubitável morte asfíxica, sem a presença de uma única mancha de Tardieu.

O fato da possibilidade de petéquias hemorrágicas situadas em locais equivalentes aos das manchas de Tardieu em mortes não asfíxicas, parece já ser de aceitação de boa parte dos legistas. Há todavia, a necessidade imperiosa de compreensão do inverso, isto é, a conscientização de que a ausência de petéquias não é sinal excludente de morte tipicamente asfíxica.

4. A Seqüência do Fenômeno de Rigidez Cadavérica

Outra verdade perpetuada inexplicadamente nos livros de texto é a de que o fenômeno cadavérico conhecido como "rigor mortis" apresenta, invariavelmente, uma seqüência cronológica de instalação que obedece com fidelidade o sentido céfalo-podálico. É incrível que ainda seja ignorado o mecanismo da rigidez cadavérica ligado intimamente à incapacidade de ressíntese de ATP, parcialmente suprida pela reserva existente e pelo teor de glicogênio muscular que se converte em ácido lático. Considerando esse fato bioquímico, pode-se afirmar sem receio que a ocasião do início do processo é bem variável, na dependência principalmente da reserva de glicogênio do músculo e que a rigidez cadavérica é fenômeno que se instala simultaneamente em toda a musculatura. O que sugere a ordem seqüencial alegada, nada mais é senão a óbvia percepção do fenômeno em primeiro lugar nos grupos musculares de menor porte, os de maior volume requerendo inevitavelmente, maior margem de tempo para serem englobados por completo pelo processo. Imaginar uma outra razão é um total desatino biológico. Para não nos alongarmos em demasia é suficiente dizer, para invalidar o critério céfalo-podálico baseado na pura observação macroscópica, que em todos os cadáveres por nós examinados em fase de enrijecimento, as articulações do tornozelo apresentaram "rigor mortis" sem exceção antes da articulação coxo-femural, fato que pode ser constatado por qualquer necroscopista.

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5. A Fluidez do Sangue nas Mortes Asfíxicas ou Súbitas

A tão mencionada fluidez do sangue ou sua incoagulabilidade por período inusualmente longo nos casos de morte por asfixia, geralmente atribuída, entre outros fatores, à concentração de CO2 ,tem sido repetida com freqüência. A simples verificação de que não há diferença da coagulabilidade entre o sangue arterial e o sangue venoso de indivíduos normais vivos, já deveria servir de alerta contra a validade de tal afirmativa. Ademais, a observação de casos de morte claramente não asfíxica com sangue apresentando acentuado grau de coagulação em autópsias relativamente precoces, autoriza-nos a por em suspeição tal alegação. De outra parte, simplesmente dissociar o fenômeno fluidez do fator asfixia, para associa-lo às mortes causadas por choque primário ou secundário, que produziriam um hipotético elemento fibrinolítico, como proposto por Mole, parece-nos igualmente inadequado. O número de casos reduzidos, a correlação estatisticamente não estabelecida, a não identificação até aqui de tal elemento, tornam a proposição alternativa mera especulação teórica. Em resumo pode-se dizer que o mais comumente observado é que, dentro do período usual após a morte em que são realizados os atos necroscópicos (em torno de 10 horas) a intensidade do fenômeno de coagulação intravascular guarda, em regra, proporção direta com o tempo agônico pré-mortal.

6. A Equívoca Idéia sobre a Cicatriz Cutânea

O problema da cicatriz cutânea e sua avaliação em termos cronológicos mais se assemelha a um tabu em Medicina Legal. São raríssimos os trabalhos que se atrevem a uma abordagem do assunto e, mesmo assim, de forma muito sumária, enquanto a maioria simplesmente prefere ignorar a matéria. Os poucos a tocar no problema preferem seguir a linha ditada pelos patologistas limitando-se a mencionar que a cicatriz é a princípio avermelhada, passando depois a rósea e tornando-se com o correr do tempo cada vez mais pálida, branca e brilhante. Nas perícias ninguém se arrisca a ir além da afirmação vaga de que a cicatriz é recente ou não recente. Nem mesmo a expressão cicatriz antiga é utilizada. Em trabalho anterior, baseado em estudos de Breatnach e usando um espectrofotômetro de reflexão que permitia o registro galvanométrico de cicatrizes sob iluminação de 9 diferentes comprimentos de onda, demonstramos a factibilidade da estimativa, em termos numéricos, da idade das cicatrizes. A par disso confirmamos a expectativa de uma repopulação melanocitária da epiderme da área cicatricial, o que contraria a dita "progressiva palidez da cicatriz". Esta expressão, referida ainda hoje por respeitados livros de Medicina Legal e Patologia, é um mito perpetuado há séculos, sem qualquer tentativa de verificação ou análise que teria um caráter extremamente saudável.

Foi demonstrado pelo trabalho citado, além de qualquer dúvida razoável, a falácia da palavra impressa nos tratados mais atuais, bem como ficou clara a possibilidade de avaliar a idade das cicatrizes cutâneas, embora com margem de erro de cerca de dois anos. Isso ainda é bem melhor do que contentar-se com o enunciado simplista e capaz de ser feito por qualquer leigo, de que uma cicatriz é recente ou não recente, apoiado num subjetivo e pouco científico exame à vista desarmada. Estudos estão sendo feitos para maior estreitamento da margem de erro, com o auxílio da microscopia para contagem do número de melanócitos a fim de aumentar a confiabilidade da técnica.

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7. Sobre a Invalidade da Docimásia Hidrostática na Putrefação

Apesar da freqüência da utilização da docimásia pulmonar hidrostática nas perícias de infanticídio, as autoridades médico-legais continuam a enfatizar a necessidade de corroborar o teste através de outros exames, além da exclusão do mesmo nos casos em que existir putrefação. Entretanto, desde o século passado, Tamássia afirmava que o teste proposto por Galeno não era alterado pela putrefação, no que foi seguido por outros investigadores, dividindo as opiniões em duas correntes. Em 1960 encetamos uma série de experiências no sentido de verificar as razões de ambas as partes permitindo que se instalasse o fenômeno de putrefação em pulmões de crianças sabidamente natimortas. Os resultados dessa experiência, que totalizou 11 casos, não revelaram flutuação pulmonar em um caso sequer. Nos casos mais avançados chegou a ocorrer flutuação do coração e estruturas compactas do mediastino, permanecendo os pulmões sem flutuar, quer íntegros, quer fragmentados. Houve ocasiões em que as estruturas pulmonares entraram em lise e ainda assim permaneceram no fundo do vaso. A impressão que temos é, portanto a de que a putrefação, por si só, não invalida o teste, o que ficou reforçado por diversas tentativas posteriores, em número de 26, sem que obtivéssemos um caso sequer de flutuação decorrente da putrefação. Apesar do receio de parecermos dogmáticos, cremos que a não confiabilidade do teste hidrostático em conseqüência da ação do fenômeno putrefativo é outro conceito falso de verdade a ser escoimado da Medicina Legal, ou pelo menos a ser posto em dúvida, caso as quase 4 dezenas de casos por nós verificados, acrescidos dos 52 casos testados por Ogston não forem julgados suficientes.

CONCLUSÃO

É óbvio que nem todos os falsos critérios em que se apoiam muitos dos exames e assertivas ainda recobertos do "sagrado manto do tempo e da autoridade" foram abordados nessa exposição, por absoluta falta de espaço. Cremos todavia, que a intenção precípua de alertar para a efetiva existência de "idola" na prática da Medicina Legal deva ter sido alcançada. É preciso que não nos esqueçamos da permanente lição que Bacon nos ensina da longínqua distância de 3 séculos. E é sobretudo oportuna a palavra de outro ilustre investigador do século atual, Ramon y Cajal, que adverte que "o cientista deve preocupar-se menos com a doutrina ou credo filosófico e mais com os critérios de verdade e o aparelhamento crítico que compõem os princípios da filosofia, pois com o exercício desses princípios adquirirá flexibilidade e sagacidade, e aprenderá a desconfiar da aparente certeza dos mais subjugadores sistemas científicos".

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