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AS FACES N(O)/'O (E)/ESPELHO: SELEÇÃO LEXICAL E
CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE
FACES IN THE MIRROR: LEXICAL CHOICE AND IDENTITY CONSTRUCTION
Rosane S. M. Monnerat*
Resumo
A partir do conto "O espelho", de Machado de Assis, este trabalho – baseando-se em estudos sobre ethos
(em sua articulação com o pathos e o logos), identidades e faces, conforme Amossy (2005, 2000),
Charaudeau (2008, 2006a, 2006b) e Goffman (2002, 1999) – pretende apresentar de que forma se vai
delineando o perfil identitário do personagem Jacobina, articulando duas instâncias enunciativas: a do
narrador-personagem (conto interno) e a do narrador-autor implícito (conto externo). Nesse espaço de
representações, por meio da interseção entre o efetivamente dito (explícito) e o não dito (ou sugerido),
mas recuperável em função do recurso à metáfora, metonímia, ironia e, ainda, com apoio em seleção
lexical precisa e oportuna, vão-se discutindo questões filosóficas e morais, ao mesmo tempo em que se vão
revelando, por meio do "ethos mostrado", as faces desse personagem, no desenrolar da narrativa.
Palavras-chave: Ethos, Identidades, Faces, Seleção Lexical.
Abstract
Taking into consideration "The mirror" ("O espelho"), a short story by Machado de Assis, this paper –
based on studies of ethos (in relation to logos and pathos), identities and faces, according to Amossy (2005,
2000), Charaudeau (2008, 2006a, 2006b) and Goffman (2002, 1999) – intends to show how the
character's identity profile is being outlined. Two enunciative instances are focused: the narrator-character
(internal story) and that of the implicit narrator-author (outside story). In this representation space, by
means of the intersection between what is actually said (explicit) and that which is unspoken (or
suggested), but recoverable, depending on the use of metaphor, metonymy and irony, and also supported by
accurate lexical choice, philosophical and moral issues are being discussed, at the same time that
Jacobina's faces are being presented by means of "shown ethos" as the narrative process unfolds.
Key words: Ethos, Identities, Faces, Lexical Choice.
1 Preliminares: o contexto
Os adjetivos passam, e os substantivos ficam.
Machado de Assis, Balas de estalo, 16/5/1885.
A ideia de escrever este artigo tomou corpo no ano de 2008, ano em que se comemorou o
centenário de morte de Machado de Assis. Nesse contexto, também foram planejados muitos
seminários, espetáculos, livros, palestras e exposições inspiradas em Machado. O mais curioso de
tudo isso e que dá a dimensão da grandeza do autor é que quanto mais se fala a seu respeito, mais
resta ainda a ser dito, lido e pesquisado.
Podemos dizer que Machado fundou um mundo de palavras; seu estilo conciso, elíptico, ardiloso,
perpassado de ironia e ceticismo é a nota marcante de seus textos. Suas ideias paradoxais lembram
as de agora, daí a eterna atualidade de seus escritos. Sua extensa obra – nove romances, 200
contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e milhares de crônicas – está
"praticamente canonizada" e o torna indiscutivelmente merecedor do epíteto de "maior escritor
brasileiro", reconhecido por críticos nacionais e internacionais de alta reputação, como os
americanos Harold Bloom e Susan Sontag e o inglês John Glenson, que o elevaram ao patamar dos
gênios1.
Dentre a vasta obra machadiana, destacamos dois contos – "Teoria do medalhão" e "O espelho" –
e optamos por analisar o segundo, "O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana"2.
Cabe, no entanto, considerar o núcleo convergente entre esses dois contos, o que, seguramente,
motivou a seleção de ambos. Trata-se da "metáfora do medalhão". Segundo Riedel (1979), o espelho
realiza a metáfora do "medalhão". Em outras palavras, o "medalhão" é uma metáfora que se
concretiza no comportamento da maioria de personagens machadianos que alcançam prestígio
social, elevando-se acima da obscuridade comum. No conto "O espelho", ao tentar provar a sua
teoria das duas almas – a interior e a exterior –, o alferes Jacobina revela que o alferes eliminou o
homem.3 Com a finalidade de conferir um destaque maior, as expressões retiradas do conto
analisado serão apresentadas em itálico.
Na análise do conto, pretende-se observar – por meio da interseção entre o efetivamente dito e o
não dito (ou sugerido), mas recuperável por meio do recurso à ironia e à metáfora e com apoio
em seleção lexical oportuna e precisa – como se constrói a identidade do personagem e como se
evidencia o "ethos mostrado" não só do narrador-personagem (conto interno), como também do
narrador-autor implícito (conto externo) no desenrolar da narrativa, baseando-se em estudos
sobre ethos (em sua articulação com o pathos e o logos), identidades e faces, conforme Amossy
(2005, 2000), Charaudeau (2008, 2006a, 2006b), Maingueneau (2008, 2006) e Goffman (2002, 1999).
2 A Construção de Identidades: ethos e faces
Todo ato de tomar a palavra implica, para o locutor, a construção de uma imagem de si próprio. E é
inegável que a "maneira de dizer" induz a uma imagem que pode facilitar ou condicionar a boa
realização de um projeto, isto é, por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador.
Os episódios da história que cada um conta têm sua unidade a partir do pressuposto de que cada
indivíduo desenvolve um certo conceito de si, ou seja, "a imagem de si não é senão uma convenção
narrativa para unificar uma história"4 (Harré, 1999, p. 155).
Essa imagem de si, projetada pelo locutor por meio de seu discurso, é designada, na Retórica
tradicional, como ethos. Está mais em jogo a capacidade de transmitir credibilidade, de persuadir o
alocutário, do que o caráter propriamente dito do locutor. Um dos segredos da persuasão tal
como é analisada a partir de Aristóteles é, para o orador, dar de si mesmo uma imagem favorável,
imagem que seduzirá o ouvinte e captará a sua benevolência.
Aristóteles, quando trata do discurso na Retórica, propõe dividir os meios discursivos que
influenciam o auditório em três categorias: de um lado, o logos, que pertence ao domínio da razão
e que concerne à argumentação ou ao conteúdo em si dos argumentos, o que torna possível
convencer; de outro, o ethos e o pathos, que pertencem ao domínio da emoção e tornam possível
emocionar. O pathos é voltado para o auditório, quando a persuasão ocorre a partir da disposição
dos ouvintes e concerne ao afeto e à paixão; já o ethos é voltado para o orador, relacionando-se à
virtude e ao caráter. Em outras palavras, o pathos diz respeito ao auditório, ou seja, aos atributos
do público-alvo, às emoções vividas pelo auditório, e o ethos, por sua vez, refere-se aos atributos
do orador, isto é, aos traços de caráter que o orador mostra ao público, ou às paixões que suscita
no auditório. Enquanto o ethos e o pathos estão sempre vinculados a uma situação específica de
comunicação e aos indivíduos nela implicados, o logos convence em si e por si mesmo e independe
da situação comunicativa.
Segundo Auchlin (2001), "o pathos designa as emoções vividas pelo auditório, mas o ethos também
mobiliza as disposições afetivas do auditório" (p. 204). O ethos não se constrói naquilo que se diz,
mas na maneira de dizer, no que o orador transmite, ou seja, trata-se do que ele apresenta e não
do que representa, já que se firma nas marcas da enunciação.
O homem, segundo Aristóteles, é um animal (pathos) político (ethos) capaz de falar e pensar (logos).
Sua maneira de atuar, apoiando-se nessas três dimensões de seu ser, constitui, de acordo com Eggs
(2005), seu ethos. Assim, "todo ethos constitui uma condensação específica dessas três dimensões"
(p. 42).
Aristóteles vai mais além, dizendo que há três formas principais de se apresentar o ethos, isto é, há
três ares cujo conjunto constitui a autoridade pessoal do orador: 1º) a phrónesis – o ethos da
ponderação, sabedoria, racionalidade (centra-se no logos); 2º) o ethos do tipo areté – a ostentação
de uma franqueza que não teme possíveis consequências advindas de uma sinceridade manifesta, o
ethos do destemido, do homem simples e sincero e, finalmente, 3º) o ethos da eunóia – o ethos do
populista, daquele que deseja apresentar uma imagem agradável de si, o ethos da simpatia, que trata
de não chocar, não provocar, entrar em cumplicidade complacente com o auditório (identifica-se
com o pathos). Dito de outra forma, o ethos permite ao orador parecer digno de fé, mostrar-se
fidedigno ao fazer prova de ponderação (a phrónesis), de simplicidade sincera (a areté) e de
amabilidade (a eunóia).
Essas categorias da Retórica foram abandonadas por um certo tempo e sobrelevadas, a partir do
século XVIII, por uma crítica literária que substituiu a Retórica pela Estilística. Reapareceram
recentemente, sobretudo, com o desenvolvimento dos estudos relativos à argumentação. A noção
de ethos foi, então, retomada e redefinida por alguns pesquisadores da Análise do Discurso, dentre
os quais se pode citar Ducrot, Amossy, Maingueneau, Plantin, Adam e Kerbrat-Orecchioni, entre
outros.
Convém não perder de vista, contudo, que, se quisermos explorar a noção de ethos, é necessário
inscrevê-la numa problemática precisa, levando em consideração o corpus que nos propomos
analisar, os objetivos não só da pesquisa que estamos realizando, como também da disciplina, ou
seja, da corrente teórica no interior da disciplina em que a pesquisa se insere. No dizer de
Maingueneau (2008), "o importante, quando somos confrontados com essa noção, é definir por
qual disciplina ela é mobilizada, no interior de que rede conceitual e com que olhar" (p. 12).
Assim, a noção de ethos passa a ser trabalhada em direções que ultrapassam o quadro da
argumentação na tradição retórica, permitindo refletir sobre o processo mais geral da adesão de
sujeitos a uma certa posição discursiva. Maingueneau (2008) assim caracteriza o ethos:
. o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói por meio do discurso, não é uma "imagem" do locutor exterior à sua fala; . o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; . é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica (p. 17).
Nesse sentido, a noção de ethos se aproxima da noção de "representação de si mesmo", postulada
por Goffman (1999), segundo a qual, em cada circunstância da vida cotidiana, o indivíduo apresenta
uma imagem de si (voluntária ou involuntariamente) em função do objetivo da interação. Utiliza-se
o autor de uma metáfora, tomando, do teatro, o termo representação. A representação seria, então,
a totalidade da atividade desempenhada por um sujeito, em uma dada ocasião, para influenciar o
outro, o que implicaria a definição de uma posição social a ser ocupada por esse sujeito. A isso,
Goffman denomina "fachada". A caracterização da "fachada" pode ser visualizada tanto do ponto de
vista do que se considera como "fachada social" – para especificar o que é comum aos sujeitos
pertencentes a um mesmo grupo específico, representando o que é permitido e o que é obrigado
a todos ("representação coletiva") – quanto do ponto de vista do que é considerado como
"fachada pessoal" – para referir-se a tudo o que, de maneira mais íntima, identifica o próprio sujeito,
ou seja, as formas egocêntricas da territorialidade.
Dessa forma, nesse modelo, considera-se que todo indivíduo possui duas faces: uma face positiva,
que corresponde à "fachada" social, à nossa própria imagem valorizada, que pretendemos
apresentar aos outros; e uma face negativa, que corresponde ao "território" de cada um – seu
corpo, sua intimidade (Goffman, 1980). Numa acepção goffmaniana, portanto, todo ser humano,
apreendido como sujeito, vive em um mundo social, no qual se encontra em contato com outros
sujeitos. Por meio desses contatos, é levado a exteriorizar, por representações, uma imagem de si.
Observa-se, assim, que as noções de face e de ethos se aproximam; não coincidem, no entanto, pelo
fato de a primeira preocupar-se com o comportamento social global, valorizando a interação
social.
Vale destacar, ainda, que, por meio da linguagem utilizada, pode-se ter acesso à linha de conduta
seguida pelo sujeito na situação de comunicação. E mais, os "meios discursivos", com auxílio dos
quais a imagem desse sujeito é construída, ou seja, o seu ethos, a sua imagem, resultam
precisamente da intencionalidade desse sujeito que fala e que os emprega de maneira mais ou
menos consciente.
São numerosos os procedimentos discursivos que contribuem para a construção do ethos.
Faremos referência aos enunciativos. Os procedimentos enunciativos não se limitam à palavra oral,
embora tenham inicialmente sido analisados com relação a ela (Charaudeau, 2006a, p. 174). Tais
procedimentos permitem ao enunciador colocar-se em cena (enunciação elocutiva), implicar seu
interlocutor no mesmo ato de linguagem (enunciação alocutiva) e apresentar o que é dito como se
não houvesse implicação de ninguém (enunciação delocutiva).
A enunciação elocutiva se expressa por meio dos pronomes pessoais de primeira pessoa
acompanhados de verbos modais, de advérbios e de qualificativos que revelam a implicação do
orador, descrevendo seu ponto de vista pessoal. Quando expressa com a ajuda do pronome "nós",
esse tipo de enunciação contribui para a construção de um ethos de solidariedade.
A enunciação alocutiva é expressa com o auxílio de pronomes pessoais de segunda pessoa,
acompanhados, também, de verbos modais, de qualificativos e de várias denominações que revelam
a implicação do interlocutor, o lugar que o locutor lhe designa e a relação estabelecida entre eles.
A enunciação delocutiva se expressa por meio de frases que apagam qualquer traço dos
interlocutores, isto é, apresenta o que é dito como se a palavra colocada não fosse de
responsabilidade de nenhum dos interlocutores e dependesse do ponto de vista de uma terceira
voz – a voz da verdade. Assim, o auditório passa a fazer parte de um "mundo de evidência".
É imprescindível destacar, também, paralelamente aos procedimentos discursivos, os procedimentos
linguísticos, pelos quais o locutor imprime sua marca no enunciado, inscreve-se na mensagem
(implícita ou explicitamente) e se situa com relação a esse enunciado. Cabe lembrar, ainda, que as
representações sociais constroem-se não só por meio de estruturas formais e sintáticas de línguas
faladas e escritas, mas também por meio da organização semântica de seus léxicos. A propósito do
léxico, vale assinalar a importância do "vocabulário das emoções" (Harré, 1999, p. 150) na
construção dos imaginários sociais, a partir das relações existentes entre o vocabulário individual e
o repertório de emoções nas interações coletivas e sociais. As representações sociais tornam-se,
então, parte integrante das crenças e das práticas partilhadas pelos indivíduos.
Assim, vão-se construindo as identidades dos parceiros da troca comunicativa, com papéis mais ou
menos delineados, e é sob essa perspectiva que pretendemos analisar os sujeitos envolvidos no
contrato comunicativo do conto "O espelho".
3 Significar o Mundo/Significar no Conto: seres, atributos e processos
... o adjetivo é a alma do idioma,
a sua porção idealista e metafísica.
O substantivo é a realidade nua e crua,
é o naturalismo do vocabulário.
Machado de Assis, Teoria do medalhão.
Os sentidos são construídos na interação do homem com o mundo, ou melhor, na interação entre
as pessoas e com o mundo que as cerca. Esses sentidos resultam, contudo, de nossa capacidade de
atribuir aos dados do mundo uma função ou um lugar determinado no espaço físico, social e
cultural em que nos inserimos. Assim, o mundo humano se nos apresenta como um universo de
valores e conceitos que interiorizamos em nossa relação com o outro. E, dessa forma,
representamos os referentes do mundo real por meio de sistemas simbólicos. É pela linguagem
que temos acesso à História produzida antes e depois de nós, a todos os conhecimentos
acumulados por nossos antepassados e isso certamente é uma maneira de afetar nossas
experiências mediadas pelas experiências dos outros. Por conseguinte, o mundo comunicado é
sempre fruto de um agir comunicativo construtivo e imaginativo e, no caso específico dos textos,
podemos observar como passar, por meio da língua, de um mundo real a um mundo representado,
ou seja, de um mundo a significar a um mundo significado.
Para que se realize essa construção de sentidos, ou melhor, a semiotização do mundo, são, então,
necessários dois processos: o processo de transformação, que, sob a ação de um agente, efetiva a
passagem do mundo a significar ao mundo significado, e o processo de transação, que faz desse mundo
significado um objeto de intercâmbio entre os interlocutores (Charaudeau, 1995).
Das quatro operações constitutivas do processo de transformação – a identificação, a qualificação, a
ação e a causação –, interessam-nos, neste momento, sobretudo, as três primeiras. Na identificação,
para que os seres do mundo sejam transformados em "identidades nominais", é preciso nomeá-los;
na qualificação, transformam-se os seres do mundo em "identidades descritivas", em função das
propriedades e características que os especificam e, na ação, os seres do mundo são transformados
em "identidades narrativas", agem, ou são levados a agir, inscrevendo-se em esquemas de ação. As
identidades nominais, as identidades descritivas e as identidades narrativas são codificadas
linguisticamente, respectivamente, por meio de substantivos, de adjetivos e de verbos.
Ao designar os seres do mundo, o falante faz uma seleção que, semanticamente, pode ser
representada por realidades concretas ou abstratas, individuais ou coletivas, humanas ou não
humanas. Cabe destacar, porém, que os nomes não nomeiam apenas. Podem ultrapassar sua
simples função de nomeação e sugerir significações outras, relacionadas às atitudes,
comportamentos e aparências dos nomeados, significações essas muitas vezes inferíveis do
contexto e (sub-repticiamente) passíveis de demonstrar o ponto de vista pessoal do sujeito
enunciador, podendo-se, portanto, qualificar também por meio de substantivos, já que qualificar um
ser ou objeto é apresentar um julgamento sobre ele.
A qualificação pode, assim, estar no terreno objetivo – quando se têm as informações (dados do
conhecimento do autor do texto) e as caracterizações (dados que estão no objeto) – ou no
terreno subjetivo – quando se têm as qualificações (impressões subjetivas sobre o ser e o objeto).
Vale ratificar que as qualificações não se realizam apenas por meio de adjetivos qualificativos;
podem-se concretizar por outras evidências linguísticas, tais como: advérbio qualificativo, locução
adjetiva, oração adjetiva, entoação da frase, substantivo, analogia – uma forma de qualificação muito
comum, que pode apresentar-se como comparação ou como metáfora.
Quanto aos processos, codificados pelos verbos, pode-se dizer que uma maneira de caracterizá-los
com relação aos nomes é defini-los como uma significação em trânsito por determinadas
categorias: modo, aspecto, tempo, voz, número e pessoa. A análise que pretendemos empreender
poderá partir dessa base categórica, mas será centrada, sobretudo, numa perspectiva enunciativa,
em que se consideram classificações axiológicas – verbos intrinsecamente subjetivos e verbos
ocasionalmente subjetivos (Kerbrat-Orecchioni, 1980) –, que, via de regra, revelam uma tomada de
posição do sujeito face ao que enuncia.
Na análise das qualificações, dos atributos e das ações (processos), tomaremos, portanto, como
base os estudos de Kerbrat-Orecchioni (1980) sobre a subjetividade na linguagem. Para a autora,
toda unidade léxica é, de certo modo, subjetiva, visto que as "palavras" da língua não passam de
símbolos substitutivos e interpretativos das "coisas". Dessa forma, a subjetividade é impressa nas
palavras por meio de traços de afetividade, de modalização e de axiologia.
Nesse percurso de análise, não se pode deixar de considerar, ainda, a recategorização dos objetos-
de-discurso que representam as entidades nomeadas, no desvelamento das cadeias lexicais, sob a
ótica da referenciação. Nessa perspectiva, a referenciação como atividade discursiva, implica uma
visão não-referencial da língua e da linguagem, contrastando com a noção pura e simples de
referência, por ir além da simples representação extensional dos referentes do mundo extramental
e por designá-los como objetos-de-discurso, e não como objetos-de-mundo. Por conseguinte, esses
objetos-de-discurso não podem ser tratados como estruturas invariantes, fixadas a priori e capazes de
"realisticamente" agrupar o mundo, mas devem ser considerados construtos culturais,
representações constantemente alimentadas pelas atividades linguísticas, de acordo com nossas
crenças, atitudes e propósitos comunicativos. Introduzidos linguisticamente, os objetos-de-discurso
não se esgotam nesse aspecto, mas se desenvolvem discursivamente categorizando ou
recategorizando objetos, como versões sociais do mundo ou posições enunciativas, que intervêm
na estruturação do discurso e na construção de sua coerência (Mondada e Dubois, 1995). E isso
porque a maneira como dizemos aos outros as coisas é muito mais uma decorrência de nossa
atuação discursiva sobre o mundo e de nossa inserção sociocognitiva no mundo pelo uso de nossa
imaginação do que simplesmente fruto de procedimentos formais de categorização linguística.
4 Adentrando "O espelho"5
Nos textos de Machado de Assis, as identidades se constroem permeadas pelo fino senso de ironia
subjugado a uma certa visão pessimista do mundo, visão essa guiada por um conhecimento racional
da realidade (logos). Assim, os personagens se desvelam e se apresentam articulados, de um lado, à
imagem de si próprios que se descortina – ethos – e, de outro, às reações emotivas de seus
interlocutores (pathos). Além disso, convém não perder de vista que o discurso – o logos do orador
– é o lugar onde se origina o ethos, constituindo o resultado de opções feitas pelo orador, uma vez
que toda forma de expressão resulta de uma escolha entre várias possibilidades linguísticas e
estilísticas. E, desse modo, será de capital importância a seleção lexical acurada, que irá fornecer as
pistas, pelos meandros da subjetividade, na caracterização dos enunciadores deste contrato
comunicativo do gênero textual conto, o qual, neste caso específico ("O espelho") se apresenta
desdobrado em dois: o conto externo, que coloca em cena o primeiro narrador (autor explícito), e
o conto interno, encaixado no primeiro, que coloca em evidência o narrador-personagem,
movimentando-se esses narradores no mundo das palavras. Nesse mundo de palavras, seleção
lexical significa, portanto, escolhas. E escolhas se relacionam a estratégias discursivas. Para
Charaudeau (2006a):
Comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha de formas adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha dos efeitos de sentido para influenciar o outro, isto é, no fim de contas, escolha de estratégias discursivas (p. 39).
E isso porque o sentido não nos é dado antecipadamente, ou seja, não há um já sentido nas coisas,
ele se constrói, ou seus efeitos são construídos pela ação linguageira do sujeito ao entrar no jogo
discursivo. Assim, o sentido é percebido por meio das formas: "toda forma remete ao sentido, todo
sentido remete a uma forma, numa relação de solidariedade recíproca" (Charaudeau, 2006a, p. 41).
E é a partir dessa relação forma/sentido que adentramos "O espelho". É noite em uma casa no
morro de Santa Teresa. Numa sala pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o
luar que vinha de fora, um grupo de cavalheiros (quatro ou cinco) discutia questões de alta
transcendência.
A descrição da casa já deixa entrever a aura de certo mistério que envolve a cena, mistério esse
ratificado pela explicitação do próprio advérbio de modo ("misteriosamente") e pela renomeação
do tema da conversa – questões de alta transcendência, coisas metafísicas, os mais árduos problemas do
universo, devendo-se atentar, ainda, para o viés de fina ironia que recobre, sobretudo, a última
recategorização.
Dos cinco senhores, cuja idade variava entre quarenta e cinquenta anos, um se destacava pelo
silêncio: calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de
aprovação.
Nesse momento, já é possível delinear, por meio de seleção lexical nítida e oportuna, um perfil
psicológico desse senhor, que mais adiante será nomeado como Jacobina – "um casmurro" –, um
homem avesso a discussões, pois conforme ele mesmo dizia, valendo-se de um paradoxo, a
discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como herança bestial. Assim, nem
conjetura, nem opinião; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento.
A identidade do personagem narrador começa, então, a ser desenhada. Vale atentar, de acordo com
Charaudeau (2006c), para a questão da identidade do sujeito falante, desdobrada em duas
instâncias: na primeira, o sujeito mostra-se com sua identidade social de locutor, a qual lhe dá direito
à palavra e funda sua legitimidade como comunicante, em função do estatuto e do papel que a
sociedade lhe atribui em determinada situação de comunicação; e, na segunda, o sujeito constrói
para si uma identidade discursiva de enunciador, baseada em papéis, relativos às exigências da
situação de comunicação e às estratégias por ele escolhidas. Sendo assim, o sujeito aparece ao
olhar do outro com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída e, ao mesmo tempo,
mostra-se conforme a identidade discursiva que ele constrói para si no momento da fala. O ethos
constitui, portanto, o resultado dessa dupla identidade, a social e a discursiva, mas condensada em
uma única.
Vale observar que o ethos mostrado do personagem recobre a visão de mundo do próprio autor-
narrador. A obra de Machado organiza um mundo de aparência lógica e pode-se afirmar que, na
curva da frequência dos motivos mais enfocados, um lugar de realce é ocupado pelas contradições
e paradoxos. E isso pelo fato de que a oposição básica entre as situações no texto machadiano é
uma oposição de linguagens, que evidencia uma maneira diferente de ver o mundo.
Segue-se, então, a descrição do personagem sob a ótica do autor-narrador – implícito (Machado): a
mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente,
não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico.
Detenhamo-nos na série de atributos dirigidos ao personagem: os dois primeiros, por revelarem
dados objetivos – a idade e a origem – não apontam para o perfil psicológico, mas, sim, os últimos:
"inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico". Cabe, então, comentar os
efeitos de sentido derivados das últimas qualificações, sobretudo das duas últimas, introduzidas pela
expressão modalizadora "ao que parece" (que, de alguma forma, protege o enunciador de uma
possível acusação de estar fazendo afirmações precisas). Os atributos empregados, portanto, não
são neutros, mas, sim, subjetivos axiológicos, para Kerbrat-Orecchioni (1980), "carregados" – loaded
words –, no dizer de Mattoso Câmara Júnior (1977), o último, na série coordenada astuto e cáustico,
ainda mais "carregado" que o primeiro.
Nessa noite, incitado por um dos senhores, quando a conversa veio a recair sobre a temática da
natureza da alma, o casmurro usou da palavra para dizer que narraria um fato de sua vida, mas não
consentia réplica. Não se tratava de opinião ou conjectura; era apenas a demonstração da matéria-
alvo da discussão. Nesse momento, o narrador-personagem assume um ethos de phrónesis,
estimulado que está pela atitude responsiva e interessada de sua audiência.
Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
Em meio à perplexidade que se abate sobre todos, após a sua declaração, ele continua, reiterando
que existem duas almas: uma exterior; outra, interior. A alma exterior não é sempre a mesma,
modifica-se com as circunstâncias. As duas almas completam o homem, que é, então,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde a sua alma exterior vive incompletamente,
havendo casos de pessoas que, ao perderem a alma exterior, perdem a existência inteira.
Cabe comentar, na obra machadiana, o recurso constante ao emprego de metáforas não só na
organização de um mundo de aparência lógica, para explicar esse mesmo mundo, às vezes, por
meio de associações de cunho prosaico, que, fortalecidas na sua concretização, intensificam o
penetrar na alma, conforme ocorre em "homem / laranja", como também na caracterização da
alma exterior, identificada com uma sequência de denominações bastante originais: um simples
botão de camisa, a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor
etc. – tudo isso para dar a medida exata da exterioridade e concretude dessa alma, que, por outro
lado, pode ser também associada a elementos de outra natureza, menos concretos, como a
"pátria", o "poder" etc., lembrando, ainda, que esse estado de coisas pode evoluir no tempo, como
ocorreu, por exemplo, com a alma exterior de certos cavalheiros, que, na infância, pode ter sido
um "chocalho", ou um "cavalinho de pau" e, mais tarde, uma "provedoria de irmandade"...
Cientes de que o pensamento é imaginativo, compreendemos conceitos que não são associados
diretamente à nossa experiência física; daí, empregarmos metáforas e metonímias, que levam nossa
mente para além do que se pode ver ou sentir, numa interpretação das metáforas como
compactação denotativo/conotativa do evento comunicativo.
Ficamos, então, sabendo que a alma exterior se veste de múltiplas formas, conforme a marcha do
tempo e as influências do meio. Pode-se observar, nesse ponto, a tradicional crítica de Machado ao
materialismo e aos cultos vazios da sociedade do século XIX. Todas essas caracterizações da alma
exterior funcionam, assim, como sinais enunciativos de um jogo de ironia/humor, promovendo, no
plano da enunciação, uma espécie de cumplicidade entre enunciador e enunciatário.
Nesse sentido, vale comentar a relação assimétrica que se evidencia na interação entre o narrador-
personagem e seus interlocutores, que se submetem ao esquema interativo proposto por Jacobina:
não ser interrompido. Ao correr da narrativa, eles praticamente não se manifestam e, se o fazem, é
quase sempre exclusivamente por meio de monossílabos: Duas? Não? Diga? Isso pode levar a
pensar que mais do que o comprometimento com as regras do contrato comunicativo6 estabelecido
e aceito pelas duas partes (Jacobina e seus interlocutores), estaria em jogo o comprometimento
emotivo dessa audiência com relação ao discurso enunciado. Em outras palavras, as explicações de
Jacobina – sempre avesso a discussões, casmurro – têm peso argumentativo e tocam a audiência.
Daí se poder dizer que o pathos exerce a sua função no discurso argumentativo quando se
manifesta pelo logos para deflagrar a adesão do auditório. Para Amossy (2000), nesse aspecto, "la
raison n'est plus que le masque revêtu par la passion pour pouvoir arriver plus sûremente à ses
fins" (p. 322).
Valendo-se de linguagem figurada, o sujeito comunicante Machado de Assis (narrador-autor-implícito)
dirige-se ao sujeito interpretante (o leitor) (Charaudeau, 2008, p. 52), fazendo uma invocação: Santa
curiosidade! e renomeando metaforicamente a curiosidade: alma da civilização, pomo da discórdia,
fruta divina de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. Observa-se, portanto, que as metáforas,
no texto, encadeiam-se intra e intertextualmente, numa trama de dizeres que se vinculam a ecos e
reflexos de outros dizeres.
Mas vamos à história de Jacobina, personagem central do conto interno, uma história narrada em
primeira pessoa, o que evidencia o procedimento discursivo elocutivo, o qual abre espaço para a
manifestação da subjetividade na narrativa.
Nascido Joãozinho, quando jovem, Jacobina tornou-se alferes. Fora nomeado alferes da Guarda
Nacional e passou a ser o centro de atenção de sua humilde família, que, a partir de então,
identifica-o como Sr. Alferes. Ocorre, então, que uma tia, que morava a algumas léguas, num sítio
escuso e solitário, convidou-o a passar alguns dias em sua casa. Ele foi, com a farda, naturalmente. A
consolidação da imagem do Alferes em Jacobina vai ser acelerada na visita à casa da tia, quando
passa a ser adulado e elogiado por todos, inclusive pelos criados.
A tia admirava-o, achava-o um "rapagão bonito" e chegou a confessar que tinha inveja da moça que
houvesse de ser sua mulher. Jurava que, em toda a província, não havia outro que lhe pusesse o pé
adiante. Mas o mais interessante era o modo como a ele se dirigiam: era "o Senhor Alferes". E
sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora. Ele até pedia que o chamassem
Joãozinho, como dantes. Mas nada! Era o "Senhor Alferes".
A recorrência dessa denominação constitui um argumento importante que poderá justificar as
atitudes futuras de Jacobina. A família parecia, então, estar impregnada da importância do posto de
alferes e impregnava Jacobina dessa sensação, desse efeito. O entusiasmo da tia era tal que a grande
relíquia da casa, um espelho antigo, passado de geração a geração – "a melhor peça da casa" –, foi
colocado no quarto do alferes, como sinal de admiração e orgulho.
Introduz-se, nesse momento, o elemento assegurador do título do conto, a metáfora de
significância capital na narrativa, a partir da qual se desvelam os contrastes: alma exterior/alma
interior. Os cuidados exagerados da família (carinhos, atenções, obséquios), por sua vez, vão
tecendo os argumentos que asseguram a transformação que breve irá operar-se em Jacobina. A
seleção lexical cuidadosa, que se traduz em substantivos de cunho positivo, em sequência, ilustra o
comentário:
o que é certo que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação,...
E, então..., com tantos assédios e cortejos, a alma exterior de Jacobina cresce, avançando em
direção à alma interior e o alferes eliminou o homem. E, já no fim de três semanas era outro, totalmente
outro...
Vale observar, ao se descrever a transformação da alma exterior, o contraste entre o que a lógica
natural do mundo considera positivo (bom – o "antes") e o que considera negativo (mau – o
"depois") quando se opõe o "homem" ao "posto" (de alferes).
Nesse sentido, antes: o sol, o ar, o campo, os olhos das moças; depois, ao mudar de natureza: a cortesia
e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. Esse embate
entre o ser e a aparência do ser, sustentada pelo status social, traz à tona novamente a "metáfora
do medalhão", o qual, como as medalhas, também tem duas faces, assim como as duas faces das
duas almas – a exterior e a interior. Coloca-se em evidência, também, o pessimismo da lógica
invertida da sociedade, onde o natural, o espontâneo é suplantado pelo artificial, pelas aparências.
Aconteceu que tia Marcolina teve de se ausentar do sítio por uns dias. E Jacobina ficou só, com uns
poucos escravos. Começa a sentir, então, uma "grande opressão", como se estivesse dentro de um
cárcere. E o próprio narrador explica: era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a
alguns espíritos boçais. Importa assinalar a recategorização de "escravos" – por meio de escolha
lexical de cunho negativo – por "espíritos boçais".
E a situação se agrava com a fuga dos escravos, o que irá deixar o alferes na mais completa solidão
e, pior, no mais vasto silêncio – Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo
eterno tic-tac da pêndula. Não havia, portanto, mais vozes a adulá-lo. A solidão, já marcada
linguisticamente pela série em gradação sinonímica que amplia o silêncio (vasto, enorme, infinito),
tomou grandes proporções e o tempo marcado é o tempo psicológico: nunca os dias foram mais
compridos, (...). As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula feria-me a alma
interior.
Assim, a presença da ausência se introduz de forma brutal, avassaladora e, no silêncio vasto,
Jacobina torna-se um boneco que mal comia, seu corpo dominado de dor ou cansaço. Com a
ausência do outro, a "vida" do alferes se vai esvaindo, perdendo a substância... Atente-se não só
para a renomeação do personagem, que, sem a alma exterior, era como um defunto andando, um
sonâmbulo, um boneco mecânico, que só tinha algum alívio no sono, quando a alma interior não ficava
dependente da outra, que teimava em não tornar..., como também para a sequência de ações –
Estirava-me no canapé da sala tic-tac, tic- tac, levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas,
assobiava – que registram o estado de espírito em que se encontrava o nosso personagem –
nervoso e desesperado. (...) Na verdade, era de enlouquecer.
Vale interromper a análise para que se façam duas pertinentes observações com relação à seleção
lexical: a primeira, pela ordem da narrativa, refere-se à cadeia lexical responsável pela
recategorização do personagem-autor: defunto andando, sonâmbulo, boneco mecânico – sintagmas
nominais que implicam o desvelamento do estado psicológico em que se encontra o personagem.
Somando-se a essas informações outras dadas a conhecer no início do texto, já se pode traçar um
perfil do autor-personagem: capitalista, provinciano, inteligente, não sem instrução, astuto e cáustico.
Trata-se de caracterizações em que se mesclam traços objetivos e subjetivos axiológicos. A
segunda observação diz respeito aos verbos, apresentados em sequência, no pretérito imperfeito
do indicativo, portanto, no mundo narrado, os quais também denunciam o estado psicológico de alta
tensão do personagem. Assim, estirava-me, levantava, passeava, tamborilava, assoviava. Se forem
analisados de per si, ou seja, separadamente, não trarão a carga emotiva que conferem ao texto. É
justamente a análise do conjunto que irá compor um cenário emotivo da terrível situação moral em
que se encontrava. Feitas essas observações, continuemos a análise.
Durante muitos dias, não se olhou no espelho; era um receio de achar-se um e dois ao mesmo
tempo. No fim de oito dias, decidiu olhar-se no espelho, com o fim de encontrar-se dois, mas o que
viu foi uma figura vaga, dispersa, mutilada. Sabia que pelas leis físicas aquilo não era possível, mas sua
sensação era real – o espelho refletia uma decomposição de contornos, feições derramadas,
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas e informes. A imagem que se tem agora do personagem,
recriada pela devolução do espelho e construída por meio de cadeia lexical apoiada em sintagmas
nominais – [figura] vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra, difusão de linhas, decomposição de
contornos, feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes – dá a nítida
impressão, para o leitor do conto, da difusa imagem de si mesmo, captada pelo narrador-
personagem, como consequência da saturação emocional a que estava sendo submetido. Lembrou-
se de vestir a farda de alferes e o vidro reproduziu então a figura integral (...) era eu mesmo, o alferes,
que achava, enfim, a alma exterior.
Mais uma vez, a seleção lexical oportuna e precisa, centrada nas ações, pontua a narração: olhava
para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era
mais um autômato, era um ente animado. E recupera, com a farda, a plateia, repovoando o silêncio
com o ruído do mundo.
A sequência de ações continua revelando estados anímicos, mas, dessa feita, reproduzindo
sensações positivas. As ações, atribuídas ao personagem e que convergem para "sorrir", imprimem
marcas de subjetividade no texto, daí poderem tais verbos ser considerados como verbos subjetivos
(Kerbrat-Orecchioni, 1980).
O signo do espelho ganha aqui papel de destaque – o encontro do homem com sua alma exterior.
Segundo Lacan, o espelho é um fenômeno limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o
simbólico. A criança, até se perceber no espelho, é um ser fragmentado. É o que percebe ser, pois a
primeira consciência da completa individualidade vem do exterior. Espelhos comportam uma
ambiguidade simbólica, pois ao mesmo tempo em que podem ser vistos como instrumento de
devolução do eu, também podem ser vistos como representação da alteridade, da presença do
mundo.
Chegamos, então, à questão da identidade. Quem Machado coloca diante do espelho? Joãozinho,
Jacobina, o Alferes, o homem? Que faces se desvelam? Assim como o espelho fornece uma
duplicata do objeto cuja presença determina a sua emissão, assim como o medalhão tem duas
faces, pode-se pensar, com Goffman, nas duas almas – a interior e a exterior – como
representativas das duas faces, positiva e negativa, que compõem a identidade do ser humano.
5 Palavras Finais
Machado de Assis esboça uma nova teoria da alma humana, espelhando o homem em sua
ambiguidade de ser para si e ser para o outro. A metáfora do espelho, na sua polivalência, reflete
tanto a indefinição da alma interior quanto a nitidez da alma exterior do personagem; é o
instrumento por meio do qual o alferes olha e é olhado, contempla e é contemplado, como
homem dependente da opinião dos outros para o reconhecimento da própria identidade.
Os personagens machadianos se movem sob a direção de um mestre de "mise-en-scène". A
linguagem configura formas, gestos, elementos objetivos e subjetivos, a cargo de um manipulador
que é, ao mesmo tempo, autor e diretor de cena. É nesse saber manusear a língua que Machado se
projeta como um dos maiores escritores brasileiros. Com seu estilo característico, mesclando
ironia, humor e pessimismo, é um mestre na arte de escrever. Ao rigor da frase e à precisão na
seleção vocabular, consegue agregar um poder de criação de imagens, extraindo o máximo do
potencial semântico das palavras, por meio de uma linguagem inventiva, da qual retira todas as
possibilidades de expressão, todas as sutilezas. Assim, a seleção e a recategorização lexicais
assumem papel de destaque no texto, como fenômenos discursivos, construídos numa dimensão
enunciativa, na qual se movimentam os personagens com suas máscaras e faces.
O cuidado na elaboração de seus personagens se reflete nos enunciados meticulosamente
ajustados às situações de comunicação, o que quase sempre permite a inferência dos traços de
personalidade desses personagens (ethos sugerido, ou prévio). Assim, por meio da palavra justa e
oportuna, em fragmentos de texto em que o enunciador evoca a sua própria enunciação (ethos
dito), apresentam-se e representam-se os personagens (ethos mostrado).
O conto, como metáfora, sugere caminhos para apreensão de significados em tensão no sistema
que instaura, estruturando a narrativa num tecido denso, mas que abre espaço para o debate de
questões de alta transcendência.
Por fim, é interessante comentar, na narrativa do autor implícito, a introdução do conto interno (o
conto propriamente dito, encaixado no conto externo), que apresenta a narrativa de Jacobina. No
final, quando o conto externo se fecha, fechando também o conto interno, o autor implícito parece
sugerir a não necessidade de o autor explicar a sua obra, que se explica por si mesma. Assim,
quando os outros voltaram [os ouvintes] a si, o narrador já tinha descido as escadas...
Notas
1 Revista Época, n. 5411, 29 set. 2008, Sessão "Mente Aberta", p. 136-145.
2 Publicado em Obra completa. Contos, Papéis avulsos. 5. ed. ilust. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. v. 2, p.
345-352.
3 Com a finalidade de conferir um destaque maior, as expressões retiradas do conto analisado serão
apresentadas em itálico.
4 No original: "Le soi n'est qu'une convention narrative pour unifier une histoire".
5 Sugere-se a leitura do conto antes da análise.
6 Entenda-se por "contrato comunicativo" o conjunto das condições nas quais se realiza qualquer ato de
comunicação (qualquer que seja a sua forma, oral, escrita, monolocutiva ou interlocutiva). Nesse contrato de
comunicação que se instaura entre os sujeitos em interação, há sempre uma intencionalidade condicionada,
não só a um espaço de restrições, dado, por exemplo, pelos rituais linguageiros que regulam as práticas
sociais num dado espaço e tempo, como também e, ao mesmo tempo, a um espaço de estratégias,
configurado pelas escolhas de que os sujeitos dispõem para dar conta de seu projeto de fala (Charaudeau e
Maingueneau, 2004, p. 132).
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Dados da autora
*Rosane S. M. Monnerat
Doutora em Língua Portuguesa – UFRJ – Pós-Doutora em Estudos Linguísticos – UFMG – e
Professora Associada II – UFF
Endereço para contato:
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Letras
Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/nº
Campus do Gragoatá – São Domingos
24.210-201 Niterói/RJ – Brasil
Endereços eletrônicos:
Data de recebimento: 14 abr. 2009
Data de aprovação: 25 ago. 2009