as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o ... · as ‘estÉticas da existÊncia’...

10
AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O NASCIMENTO DO PODER DO BISPO NAS COMUNIDADES PAULINAS NO PRIMEIRO SÉCULO ALEXANDRINA SILVA, Roberta Da Antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente procura de uma ética pessoal a uma moral como obediência a um sistema de regras (Foucault, 1994). É na Antigüidade clássica, que Foucault encontra morais onde se evidenciam outros modos de constituição da subjetividade, - as “estéticas” ou “artes da existência” -, estilos de vida em que a preocupação maior é da ordem da ética e da liberdade. Contudo, foi no cristianismo, segundo o autor, que houve o processo de uma formação sistemática de regras, no qual ocasionou com uma moral que valorizava uma renuncia de si. Portanto, a partir disto, compreendo o cristianismo, melhor cristianismos, como um movimento no qual se convergiam normas advindas do judaísmo e práticas de cultos religiosos greco-romanos. Sem dúvida, a conclusão que se tem é, curiosamente, a dificuldade em afirmar com exatidão o que era novo em relação à moralidade cristã, ou traçar limites. A linguagem missionária de Paulo dentro das comunidades não teriam parecido tão distintivamente religiosas a seus contemporâneos no Império Romano. O termo que ele usa para o movimento como um todo, assim como para comunidades particulares, ekklēsía, era primordialmente político, designação semelhante à ekklēsía (assembléia) de cidadãos da pólis grega. As assembléias de Paulo eram tanto político como religiosas, um tanto à maneira como o era a pólis grega. A compreensão de alguns códigos morais e a própria estrutura da Igreja durante período inicial parte, em especial, da análise de alguns elementos imbricados na pólis. Para tanto é necessário definir, o que significava uma polis? A palavra pólis, muitas vezes, é traduzida ou até mesmo, na denominação clássica do termo, “cidade-estado”. O estudioso Moses Finley nos dá uma definição clara do que seria: Por muito frouxo que, às vezes, tenha sido o uso, nunca ultrapassou

Upload: vandiep

Post on 08-Nov-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O

NASCIMENTO DO PODER DO BISPO NAS COMUNIDADES

PAULINAS NO PRIMEIRO SÉCULO

ALEXANDRINA SILVA, Roberta

Da Antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era

essencialmente procura de uma ética pessoal a uma moral como

obediência a um sistema de regras (Foucault, 1994).

É na Antigüidade clássica, que Foucault encontra morais onde se evidenciam outros

modos de constituição da subjetividade, - as “estéticas” ou “artes da existência” -, estilos de

vida em que a preocupação maior é da ordem da ética e da liberdade. Contudo, foi no

cristianismo, segundo o autor, que houve o processo de uma formação sistemática de regras,

no qual ocasionou com uma moral que valorizava uma renuncia de si.

Portanto, a partir disto, compreendo o cristianismo, melhor cristianismos, como um

movimento no qual se convergiam normas advindas do judaísmo e práticas de cultos

religiosos greco-romanos. Sem dúvida, a conclusão que se tem é, curiosamente, a dificuldade

em afirmar com exatidão o que era novo em relação à moralidade cristã, ou traçar limites.

A linguagem missionária de Paulo dentro das comunidades não teriam parecido tão

distintivamente religiosas a seus contemporâneos no Império Romano. O termo que ele usa

para o movimento como um todo, assim como para comunidades particulares, ekklēsía, era

primordialmente político, designação semelhante à ekklēsía (assembléia) de cidadãos da pólis

grega. As assembléias de Paulo eram tanto político como religiosas, um tanto à maneira como

o era a pólis grega. A compreensão de alguns códigos morais e a própria estrutura da Igreja

durante período inicial parte, em especial, da análise de alguns elementos imbricados na pólis.

Para tanto é necessário definir, o que significava uma polis?

A palavra pólis, muitas vezes, é traduzida ou até mesmo, na denominação clássica do

termo, “cidade-estado”. O estudioso Moses Finley nos dá uma definição clara do que seria:

Por muito frouxo que, às vezes, tenha sido o uso, nunca ultrapassou

Page 2: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

certos limites [...] A pólis não era um local, embora ocupasse um

território definido; eram as pessoas actuando concertadamente e que,

portanto, tinham de reunir-se e tratar de problemas face a face. Era

uma condição necessária, embora não a única, de autogoverno

(1977:48-49).

Em suma, o importante na acepção da palavra, basicamente, era uma invenção grega

que adquiriu uma força estrondosa ao longo dos séculos e influenciou todo o pensamento

ocidental.

Historicamente a pólis, no sentido clássico, foi um ideal transmitido como uma

realidade política que teve uma vida curta e circunscrita, em especial, à Atenas Clássica.

Representou um tipo original de Estado, de sociedade politicamente organizada, que apareceu

no VIII° século a.e.c, tendo a sua estrutura acabada no século V° a.e.c. e sua desagregação

com a invasão macedônica.

Segundo John B. Morrall a distinção dos gregos para as demais culturas seria o

elemento da participação individual, como fora ressaltado acima no texto, na vida da

comunidade da pólis (1981:05). Por ser uma sociedade politicamente organizada, construiu o

sentido de público, tó Koinón.

A dicotomia entre o público e o privado no espaço da pólis grega suplantava os

interesses pessoais na comunidade e perpassava pelo exercício da eleuthería. A esfera do

público era designada pelo acirramento em que cada homem tinha constantemente que se

distinguir do outro (aien aristeuein) e que no privado, espaço depreciativo, não era atingido a

excelência (areté). E, como afirmara Hannah Arendt, na obra A Condição Humana:

Pois a polis era para os gregos, como a res publica para os romanos, em

primeiro lugar a garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço

protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à

imortalidade, dos mortais.[1989:66]

Nos textos antigos, do VII° ao IV° séculos a.e.c. explicitam a predominância dos

interesses públicos em detrimentos aos pessoais, e, isso é perceptível nas poesias, tragédias e

tratados, como, por exemplo, de Sófocles e Aristóteles (THEML, 1988:19).

Page 3: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

Na tragédia de Sófocles, Antígona, em que a heroína desafia o decreto de Creonte, o

tio tirano de Tebas, ao enterrar o irmão, estabelece um confronto entre a lei do clã, no caso

individual, contra a moral da polis. É explicito a resposta de Creonte acerca do problema da

desobediência de Antígona:

Mas quem cruza a lei, ou a violenta,

Ou espera por os governantes sob si,

Jamais terá palavra de louvor de mim.

Não há maior erro que a desobediência.

Ela arruína cidades, e desmorona nossas casas;

Ela rompe com a frente de batalha, pondo-a em debandada.

Assim eu devo proteger os homens que cedem à ordem,

E não me deixar vencer por uma mulher. [663-667]

É impressionante a sensibilidade de Sófocles ao retratar na tragédia, de maneira clara,

problemas que corroborariam a estrutura da pólis, quando um anseio individual ou do clã

suplantasse as leis do espaço cívico e da comunidade. Sófocles escrevia no momento em que

a pólis estava no seu auge.

No caso de Aristóteles, na obra denominada de A Política, uma das concepções que

forjou para da pólis consistia no ideal do bem desta (eudaimonia) (I,1,125a 1-5 e II,1,1260b

27). O ideal aristotélico se identifica com o bem da comunidade e a ciência que tentava

determinar este fim era a politéia.

Segundo a análise aristotélica a pólis visa o bem maior, pois abrange outras

comunidades menores e possui uma auto-suficiência que as comunidades maiores não

alcançam. O componente inicial é a família (oíkos), com as relações entre marido e esposa,

pais e filhos, senhores e servos.

Portanto, a pólis compreendia tudo, desde o ato de governar dentro do oíkos (casa), a

relação do marido e da esposa, filhos e escravos, até o governo dos cidadãos. Não é à toa que

na epígrafe Aristóteles definiu o homem grego com a famosa expressão

(o homem é um animal por natureza político). E, com

Page 4: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

esta expressão, pretendeu afirmar a distinção do grego em relação aos outros homens pelo

fato de viverem no seio dessa forma superior de organização que é a pólis.

Contudo, o ideal da pólis grega, também desempenhou o papel de propaganda

imperialista. Alexandre Magno, um discípulo de Aristóteles, fez deste ideal um veículo para

a sua nova visão cultural: a urbanização dos impérios conquistados, que ficou denominado de

Helenização; propaganda, levada às últimas conseqüências pelos reis diacódos, sucessores de

Alexandre (MEEKS, 1992:25).

A política da homonoia, a unidade, que Alexandre e seus sucessores imaginaram

como união do Império conquistado, da Grécia até o sudoeste da Índia, foi realizado pelo

Império Romano, que utilizava a imagem de Roma como a Grande pólis, mas, como veremos

a seguir, plenamente alcançada com o cristianismo, em especial, na figura dos epískopos..

Para Wayne Meeks devemos nos remeter á Aristóteles para analisar alguns elementos

da estruturação comunal cristã nos séculos iniciais (1996:12). A pretensão de Aristóteles em

escrever a Ética de Nicômaco era direcionar ás pessoas virtuosas (aristoí), com o intuito de

auxiliá-las em refletir sobre sua experiência moral comum que partilhavam com seus iguais.

O impressionante na leitura da Ética é a freqüência do uso do verbo dokei, que significa “é

opinião comum...”, em que a função educativa da prática comunitária na formação da virtude

(arete). Por isso, para desenvolver um ethos que fosse virtuoso, uma criança deveria crescer

numa comunidade moral e educativa. A máxima moral grega de que o ethos (hábito) faz o

ethos (caráter), se restringi na importância da vida comunal e esta para a gerência de códigos

morais.

Porém, é evidente que nos toca aqui ao analisar de forma rápida os pressupostos da

Ética e da Política, seria, de certa forma, uma genealogia dos princípios morais cristãos que

foram influenciados em demasia pelo pensamento filosófico grego, e que freqüentemente é

aludido como algo novo trazido pelo cristianismo. Contudo, ao observar os textos

aristotélicos, o debate consiste na questão de que os indivíduos não se tornam agentes morais

senão pelas relações, transações, hábitos e reforços, usos especiais de linguagem e gestos que,

juntos, constituem a vida em comunidade. Mas, Aristóteles fala para um público grego e, em

especial, centrado no espaço da pólis. Não é muito difícil argüir que Aristóteles não tivesse

compartilhado dos sonhos de uma monarquia mundial de seu pupilo, Alexandre, Magno.

Wayne Meeks na obra de 1986, The Moral World of the First Christians, argumenta, a

partir de uma análise sociológica, que uma das características deste mundo tanto helenístico

Page 5: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

quanto romano seria a não uniformidade da vida nas cidades do Mediterrâneo, a mistura -

sincretismo- provocada pelo encontro entre as culturas locais e a helênica no processo da

helenização. Esta “mistura” foi o palco para o desenvolvimento das comunidades cristãs,

quatro séculos após Aristóteles e Alexandre, onde o cristianismo se enraizou num mundo

bastante distante da vida na idade áurea da Atenas Clássica de Péricles.

O mundo do século I e.c. era do imperialismo Romano no qual havia a sobreposição

do poder romano e os elos com as aristocracias locais; e, além de tudo, um mundo mais

“globalizado”, com o grande fluxo de viajantes e comerciantes para várias áreas do Império, a

tão denominada nos livros de História como a Pax Romana de Augusto. O Império Romano

tinha como pretensão unir o mundo a partir de uma unidade política surgida pela conquista -

não é difícil de entender que a efígie que ornava o selo de Augusto fosse a imagem de

Alexandre (GILSON, 1965:21) e não seria incômodo para os ideais almejados de unicidade,

divinizar o imperador. Para Ettienne Gilson, a noção de um imperador pacificador aparece no

império romano e sob o reinado de Augusto, que teria o intuito de fundar uma sociedade

universal, sendo decisivo para a História do mundo (Idem, 23).

A idéia de uma sociedade humana universal, tão almejada pelos conquistadores

macedônicos ou romanos, não era de formar uma única sociedade, mas manter os povos

dominados numa submissão (Horsley: 2004:30; Gilson, 1965:60).

Nem tão diferente dos conquistadores, o movimento cristão, ou o cristianismo,

posteriormente, já atrelava o ideal de unicidade como um projeto de sociedade universal e seu

rei pacificador que, posteriormente, obteve grande êxito. Mas, a grande chave para

compreender esta noção de um rei pacificador, em especial, se confunde com a história do

povo e tradição judaica.

E um dos papéis importantes nesta empreitada de unir a sociedade seria Paulo de

Tarso, que conectou dois elementos culturais essenciais para o cristianismo: sua tradição

familiar israelita e o mundo greco-romano que vivia.

As comunidades nas cidades da Ásia Menor, Grécia e Roma estão na geografia do

missionarismo de Paulo, e, por isso, é necessária a utilização de textos como as Epístolas

Paulinas e os Atos dos Apóstolos, para a compreensão do ideal de união.

A leitura dos Atos dos Apóstolos nos dá a impressão de que o autor conduz a narrativa

para uma explicitação que o anúncio foi emitido, primeiro, para os judeus, em seguida, para

os gentios; e que o restabelecimento da realeza de Israel não era temporal. Jerusalém seria

Page 6: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

somente o ponto de partida (Lc 24,47-52; At 1,4-8), segundo Lucas, iniciado no dia de

Pentecostes.

Na comunidade cristã, percebe-se uma pluralidade de correntes que não se enquadra

num movimento homogêneo (Brown, 1990:26). Atos dos Apóstolos assinala para algumas

divergências, como as descritas no capítulo 6, entre o grupo que defendiam a observância da

Lei e da “Tradição dos Antigos” (Mc 7,5; Gl 1,14), daqueles representados por Estevão,

ligados aos judeus da Diáspora, que buscavam a inculturação da mensagem no mundo

helenista.

A situação deste grupo de cristãos, os helenistas, que viviam nas cidades da Diáspora

consistia numa reunião de numerosas e pequenas células em várias casas particulares, onde os

cristãos logravam encontrar um convertido (conversio) ou simpatizantes que lhes

proporcionassem uma casa mais espaçosa. Em várias passagens de suas Epístolas Paulo envia

saudações à ekklēsía de alguém.

O termo chave utilizado por Paulo para as casas particulares era o da ekklēsía, e que

erroneamente muito traduzem por Igreja. O mesmo termo usado na reunião dos eleutheroí da

polis consistia como algo bem mais abrangente e totalitarista em seu propósito comuns, e, ao

mesmo tempo exclusivistas com respeito à sociedade dominante (Meeks, 1992:77-80).

De certa forma, compartilho da argumentação de Richard Horsley e James Dunn, ao

abordarem que o emprego de Paulo para as suas comunidades como ekklēsía, tinha

características políticas e atividades semelhantes da pólis grega como louvor, aclamação e

discussão de interesses (Dunn, 2000:180-250; Horsley, 2005:15). Uma outra característica se

encerra no caráter exclusivista das comunidades paulinas como o da própria pólis, que se

inseriam numa forma social alternativa e de solidariedade mútua, em oposição à sociedade

dominante. A comunidade paulina tinha em si características unificadoras e excludentes.

É explicito a afirmação de Paulo na Mensagem enviada à Comunidade da Galácia, em

que diz:

Porque vós sois todos filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos, com

efeito, que tendes sido batizados em Cristo, tendes revestido Cristo. Não há

mais judeu nem grego; não há mais escravo e homem livre; nem homem

nem mulher; porque não sois senão uma pessoa em Cristo Jesus. E se vós

sois no Cristo, vós sois, pois descendestes de Abraão, herdeiro segundo a

promessa [Gl 3,26-30].

Page 7: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

Contudo, um elemento importante incidiu na noção de unicidade cristã foi a utilização,

por parte do Movimento de Jesus e de Paulo, da expressão tensiva, ή βασιλεία τοϋ Θεοϋ

(Reino de Deus). A mensagem acerca do Reino de Deus, núcleo central da pregação de Jesus

se reencontra em Paulo e se tornou indispensável na pregação missionária da Igreja primitiva

(VVAA, 1997:23), contudo, com diferenciações.

A diferenciação tanto da parte do movimento de Jesus, iniciado na Palestina e

conhecido como pré-pascal, e o outro no mundo greco-romano, fora da Palestina e nas

cidades do Império romano, não cai na definição em termos de contexto ou background

(judeu/helenista ou situações rural/urbana), mas antes em termos de funcionalidade. Ao passo

que o movimento de Jesus na Palestina se caracterizava por uma atitude de renovação

profética alternativa – como os movimentos dos Zelotas, dos sicários, dos apocalípticos e

outros – dentro de Israel, o movimento cristão, no caso o grupo liderado por Paulo e iniciado

em Antioquia, era um movimento religioso missionário dentro do mundo greco-romano, em

que pregava uma visão alternativa e práticas dentro da vida comunal contra-cultural (Horsley,

2005:50-90).

Contudo, segundo Elisabeth S. Fiorenza, o que aproximou ambos os movimentos era a

tensão que provocaram ao ethos cultural dominante, porém na medida em que Jesus e seu

grupo poderiam apelar para tradições de Israel como sua tradição religiosa muito própria

contra certas práticas dentro de Israel; o movimento cristão Paulino era um grupo religioso

intruso e com pretensões de ser alheio no contexto cultural-religioso dominante do mundo

greco-romano (Fiorenza, 1992:118; Meeks, 1996:91). E, com isso, até mesmo a noção de

Basiléia (Reino) se diferenciou nos dois movimentos.

Se, por um lado, o discurso acerca do Reino promulgado por Jesus, nos Evangelhos,

não se dirigia apenas aos indivíduos, contudo, segundo Charlesworth, à sociedade israelita,

com o intuito de uma renovação cultural (1993:33); por outro, um outro conceito de Reino,

no qual adquire a expressão de politheuma (comunidade) a partir da noção que Paulo tinha da

ekklēsía, estabeleceu uma noção de identidade que se centrava no conceito de nova criatura.

Para Peter Brown a entrada na comunidade, o anseio de ser uma nova criatura,

começaria com o rito do batismo do qual o convertido se despojava das marcas distintivas da

antiga sociedade. Despojado desses traços, o fiel supostamente teria “resgatado” uma unidade

Page 8: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

original e indiferenciada (1990:52) (2 Cor 5,17), do qual com a promulgação da Basileia, que

futuramente para os primeiros cristãos, não haveria mais identidade, onde não há judeu nem

grego (Gl 3,28).

O efeito produzido por esta nova politheuma, promulgada pelo movimento Paulino nas

várias cidades do Império Romano, era de marcar no crédulo a sensação de desnacionalização

e o alheamento a res publica (coisa pública). Tertuliano, no século II, foi bem claro na sua

declaração: “Nobis nulla magis res aliena est quam publica. Unam omnium rem publicam agnostimus

mundum”.

Hannah Arendt aludiu que a postura de alheamento dos cristãos sobre sua participação

política se inseria na questão da liberdade, por incidi numa atitude de se posicionar fora do

domínio da sociedade secular como um todo. E, essa é a razão que as Igrejas cristãs puderam

permanecer tão indiferentes à questão da escravidão, ao mesmo tempo em que se apegava à

doutrina da igualdade entre os homens diante de Deus (1993:60). Pois, como Paulo insiste: “

Nossa politheuma está no céu, e é dele que esperamos um sōtēr [Fl 3,20]”.

Tanto uma constituição ou uma forma de governo alternativo como um imperador

alternativo para uma sociedade alternativa. Mesmo assim, a retórica política utilizada por

Paulo para a sua definição de comunidade alternativa persistia nos ideais e a estruturação da

pólis grega, com um elemento integrante, a noção de uma Basiléia, forma de comunidade

atemporal.

Bibliografia

Fontes Antigas

ARISTÓTELES. Politics. Estabelecido por H. Rackham. Cambridge: Loeb Classical Library,

1977.

A BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1994.

IRINEU DE LIÃO, Contra as Heresias: Denúncia e Refutação da Falsa Gnose. 2ª Edição.

Coleção Patrística nº4. Introdução, Notas e Comentários de Helcion Ribeiro; organização das

Page 9: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

notas bíblicas de Roque Frangiotti; tradução de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus, 1995.

JUSTINO DE ROMA, I e II Apologias e Diálogo com Trifão. Coleção Patrística nº 3.

Introdução e notas explicativas de Roque Frangiotti; tradução de Ivo Storniolo e Euclides M.

Balancin. São Paulo: Paulus, 1995.

NESTLE-ALAND Novum Testamentum Graece. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993.

PADRES APOLOGISTAS: Cartas a Diogneto, Aristides de Atenas, Taciano, Atenágoras de

Atenas, Teófilo de Antioquia, Hérmias. Coleção Patrística nº 2. Introdução e notas

explicativas de Roque Frangiotti; tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. São

Paulo: Paulus, 1995.

PADRES APOSTÓLICOS: Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna,

Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Pápias e Didaqué, Coleção Patrística nº 1. Introdução

e notas explicativas de Roque Frangiotti; tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin.

São Paulo: Paulus, 1995.

ROBINSON, J. M., A Biblioteca de Nag Hammadi. Tradução de Teodoro Lorent. São Paulo:

Madras, 2006.

Dicionários

HAWTHORNE, G.F., MARTIN, R.P & REID, D.G. editors (1993) Dictionary of Paul and

His Letters: A Compendium of Contemporary Biblical Scholarship. Illinois: Intervarsity

Press, 1993.

LIDDELL, H.G. and SCOTT, R., Greek-English Lexicon: With a Revised Supplement.

Oxford: Clarendon Press, 1996.

MARTIN, R.P. & DAVIDS, P.H. editors, Dictionary of the Later New Testament & Its

Developments: A Compendium of Contemporary Biblical Scholarship. Illinois: Intervarsity

Press, 1997.

Page 10: AS ‘ESTÉTICAS DA EXISTÊNCIA’ DE MICHEL FOUCAULT E O ... · as ‘estÉticas da existÊncia’ de michel foucault e o nascimento do poder do bispo nas comunidades paulinas no

Referências Teóricas

FOUCAULT, M., História da sexualidade, 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,

1980.

__________. História da sexualidade, 3: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

__________., Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

___________., A Verdade e a Formas Jurídicas. Tradução de Roberto Machado e Eduardo J.

Morais. Rio Janeiro: Nau Editora, 1996.

MEEKS, W. A., Os primeiros cristãos Urbanos: O Mundo Social do Apóstolo Paulo.

Coleção Bíblia e Sociologia. Tradução de I. F. L. Ferreira. São Paulo: Editora Paulinas, 1992.

____________., O Mundo Moral dos Primeiros Cristãos. Coleção Bíblia e Sociologia.

Tradução de João Rezende Costa. São Paulo: Editora Paulinas, 1996.

____________., As Origens da Moralidade Cristã: Os dois Primeiros Séculos. Coleção

Bíblia e Sociologia. Tradução de Adaury Fiorotti. São Paulo: Editora Paulus, 1997.

PAGELS, E., Os Evangelhos Gnósticos. Tradução de Carlos Afonso Malferrari.São Paulo:

Editora Cultrix, 1979.

________., Adão, Eva e a Serpente. Tradução de Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora

Rocco, 1988.