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Revista Brasileira de Ciências Sociais ISSN: 0102-6909 [email protected] Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil Correa Weffort, Francisco As escritas de Deus e as profanas: notas para uma história das idéias no Brasil Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 20, núm. 57, fevereiro, 2005, pp. 5-25 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10705701 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Revista Brasileira de Ciências Sociais

ISSN: 0102-6909

[email protected]

Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Ciências Sociais

Brasil

Correa Weffort, Francisco

As escritas de Deus e as profanas: notas para uma história das idéias no Brasil

Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 20, núm. 57, fevereiro, 2005, pp. 5-25

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10705701

Como citar este artigo

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Sistema de Informação Científica

Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

[...] não podemos ser entendidos sem esta cons-ciência intensa do momento em que fomos conce-bidos, filhos de uma mãe anônima, nós própriosdesprovidos de nome, mas com inteira consciên-

cia do nome dos nossos pais.Carlos Fuentes, O espelho enterrado

Em um belo livro sobre a formação culturaldos Estados Unidos, o historiador Daniel Boorstindiz que os norte-americanos sempre andarampela história com a consciência de que estavam nocaminho certo. A história americana teria começa-do com os “peregrinos” e com a segurança de queimplantavam no Novo Mundo um espaço para aliberdade humana. “A Nova Inglaterra puritana”,diz Boorstin, “foi um nobre experimento em teo-logia aplicada”. Mais do que em uma doutrina, ahistória norte-americana teria sido antecipada emuma ortodoxia. Como nestas palavras de FrancisHigginson: “O nosso maior conforto [...] é que te-mos aqui a verdadeira Religião e os santos Man-damentos de Deus Todo Poderoso, e se Deus estáconosco, quem pode estar contra nós?”1

Registrando os ecos de uma visão do valorda fé para a salvação, no espírito da Reforma pro-testante, até hoje dominante na cultura norte-americana, essas frases recolhidas por Boorstin me

AS ESCRITAS DE DEUS E AS PROFANAS:notas para uma história das idéias no Brasil*

Francisco Correa Weffort

RBCS Vol. 20 nº. 57 fevereiro/2005

* Este ensaio é o primeiro capítulo de um livro queestou escrevendo sobre a história das idéias noBrasil. A pesquisa para este capítulo, que contémum programa dos temas do livro, foi realizada naUniversidade de Notre Dame, Indiana, com apoiodo CNPq, no primeiro semestre de 2003. Agradeçoa Neyde Theml e Conceição de Goes, do Programade História Comparada da UFRJ, e a Helena Seve-ro, Helio Jaguaribe e Everardo Moreira Lima, do Ie-pes, os minuciosos comentários que me ajudarama dar forma ao texto.

Artigo recebido em novembro/2005Aprovado em janeiro/2005

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surpreenderam quando as li e, creio, surpreendema qualquer leitor ibero-americano.2 Escrevendo so-bre as origens do seu país, o historiador anglo-ame-ricano oferece-nos o esboço de uma compreensãomuito diversa daquela a que estaríamos obrigadosem relação a nós mesmos. Se eu tivesse que bus-car, numa só frase, uma imagem da cultura brasi-leira, acompanharia o dito popular “Deus escrevedireito por linhas tortas”, registrado por OliveiraMartins sobre a cultura lusa.

Pode-se reconhecer na cultura brasileira estetraço da cultura portuguesa que, nas palavras deOliveira Martins, está em sua capacidade de reco-nhecer que as ações dos homens obedecem a“leis idealmente sublimes” embora eventualmente“maculadas de defeitos e vícios”. Vale para ambaso exemplo de Camões que “sente e exprime agrandeza histórica do império das Índias, que naprópria opinião particular do poeta são uma Ba-bilônia, um poço de ignomínias” (Oliveira Mar-tins, 1991, p. 9). É da mesma tradição luso-brasi-leira o reconhecimento de que a grandeza dasações históricas convive com o da fragilidade doshomens e com a precariedade das circunstânciasem que devem atuar. É uma tradição cultural ca-paz de reconhecer-se a si própria como umacomplexa mescla do bem e do mal, do certo e doerrado, assim como de uma grande insegurançaquanto à correção das suas escolhas nos cami-nhos do mundo. Com todos os problemas queacarreta esta especial permeabilidade (adaptabili-dade ou porosidade) para as circunstâncias davida, registre-se, pelo lado positivo, que esta éuma tradição cultural avessa à ortodoxia, como sedispensasse o sentimento da certeza de estar sem-pre no caminho certo. Como disse um poeta es-panhol, expressando essa mesma disponibilidadepara o que venha do mundo: não há caminho, oque faz o caminho é o caminhar. Uma expressãoevidentemente radical do mesmo sentimento,como os espanhóis fazem quase sempre e a pro-pósito de quase tudo.

Já que vamos continuar falando, em bloco,de países e povos ibero-americanos, uma distin-ção se impõe, desde logo, entre a herança lusa ea castelhana. O espanhol Miguel de Unamuno(1864-1936), acompanhando o português Antero

de Quental, para quem a cultura lusa se distingui-ria pela preeminência do sentimento sobre a ra-zão, diz que, de fato, os portugueses sempre sedistinguiram por “cierta pedantería sentimental.”Um “pedantismo sentimental” de que o filósofoespanhol não excluiria os seus compatriotas, poissuas baterias se voltam não contra Portugal mascontra a Inglaterra. Provavelmente como muitosportugueses da sua época, Unamuno se vê comoum homem de “alma medieval”. Mas carrega nascores muito mais do que os portugueses fariam. Éque diferente da imagem que atribui aos lusosmais do que sobrepor o sentimento à razão, Una-muno não aceita conciliar a razão e a fé. Define aEspanha com um país de raiz medieval que “ca-minhou, à força, pelo Renascimento, pela Refor-ma e pela Revolução, aprendendo, sim, delas,mas sem deixar que lhe tocassem a alma [...]”. Édaí que vem o que chama de “sentimento trágicoda vida”, “a expressão de uma luta entre o que omundo é, segundo nos mostra a razão e a ciên-cia, e o que queremos que seja, segundo nos diza fé de nossa religião”. Daí também, diz o filóso-fo, que Quixote tenha sido um desesperado,como Pizarro e como Loyola, porque “é do deses-pero e só dele que nasce a esperança heróica, aesperança absurda, a esperança louca. Spero quiaabsurdum” (Unamuno, 1983, pp. 343, 348 e 350).

As imagens lindas e poderosas de Unamunosão, com efeito, demasiado extremadas para servirà interpretação das culturas portuguesa e brasileira.Difícil saber o quanto nos aproximam da culturaespanhola e de suas descendentes hispano-ameri-canas. Em todo caso, não há de ser por acaso quenenhum pensador brasileiro ou português de finsdo século XIX e das primeiras décadas do XX, queconstituem o tempo de Unamuno, tenha chegadoa tais extremos, não pelo menos com a influênciaque alcançou o pensador espanhol. O que me pa-rece razão suficiente para que se reconheçam dife-renças entre as duas culturas ibéricas, assim comoentre as culturas ibero-americanas, embora partici-pem todas da mesma matriz religiosa e de um con-junto semelhante de circunstâncias históricas. Al-guns historiadores sugerem que as diferençasacentuadas por Unamuno nas relações entre a ra-zão e a fé, também se revelariam nas doses variá-

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veis de pragmatismo e de idealismo – mais portu-guês, o primeiro, mais espanhol, o segundo – quese transmitiram, em graus também variáveis, aospaíses ibero-americanos.

Depois deste parêntese, voltemos à compa-ração, aliás, clássica, entre ibéricos e anglo-sa-xões. Se a história norte-americana nasceu da Re-forma, da viagem dos peregrinos que formaramas colônias da Nova Inglaterra um século depoisque Lutero pregou sua mensagem na porta daIgreja de Wirtemberg, a história brasileira e a dospaíses hispano-americanos começaram dez ouvinte anos antes do protesto luterano, e se inspi-raram na mentalidade e nos motivos medievais queimpulsionavam os Descobrimentos. Tendo nascidoantes da Reforma, a história ibero-americana ha-veria que tomar algumas décadas até que chegas-sem aqui os ideais da Contra-Reforma, no caso doBrasil principalmente por intermédio da ação dosjesuítas. No caso de países ibero-americanos,como o México, esta presença católica é mesmoanterior ao Concílio de Trento, por intermédiodos franciscanos e dos dominicanos, chegando osjesuítas quase ao fim do século XVI.

No princípio das colônias da Nova Inglaterraestava a idéia da predestinação e da solidão dohomem diante de Deus. No princípio das colôniasibero-americanas estava a crença no Filho de Deusque se fez homem, uma crença cristã, como a dospuritanos, mas com a diferença de que entendidapor espanhóis e portugueses em termos de umaintimidade de Deus com a matéria e com o mun-do. De acordo com a tradição católica da últimaIdade Média, que seguia os ensinamentos de To-más de Aquino (1225-1274), “Deus não é o Atopuro de pensamento”, que nos chegou por meiodo platonismo de Santo Agostinho, mas “o Atopuro de existir que criou do nada o mundo cris-tão dos indivíduos realmente existentes” (Étienne,1952, p. 540). Uma tradição filosófica tomista que,convertida a partir do século XIII em tradição cul-tural por meio da escolástica e das ordens mendi-cantes, e do ativismo dos jesuítas a partir do sécu-lo XVI, tornou-se parte essencial das herançasculturais ibero-americanas. Deus está conosco nocipoal dos caminhos (e descaminhos) do mundo,cabendo a nós encontrar a Sua verdade.

Fique claro, desde logo, que não se trataaqui, nesta introdução e no livro que que deve se-gui-la, de questionar as convicções religiosas (ounão-religiosas) de quem quer que seja, mas de re-colher na história imagens da cultura. E já que dehistória se trata, acrescente-se que, especialmentepara as épocas que nos ocuparão mais adiante nes-te ensaio, a história não se pode descrever e me-nos ainda explicar em termos de uma só dimensão.Por isso que, nem só as opções religiosas, por im-portantes que sejam, fazem a cultura de um país.Se as tomo como ponto de partida não é porqueas considere as únicas possíveis, mas as mais segu-ras para dar início a um estudo da história dasidéias no Brasil. Uma história que deve começartambém reconhecendo que aos motivos religiososse juntam motivos materiais, mudanças de menta-lidade, ambições de riqueza e poder na surpreen-dente e explosiva mistura com a qual se abriram asportas do Novo Mundo e do mundo moderno.

Opções da modernidade

O historiador norte-americano Richard Morse,importante “brazilianista” dos anos de 1960, disse,certa vez, que o Novo Mundo são dois. O pequenolivro onde aparece essa idéia óbvia tem um títulocarregado de sugestões, O espelho de Próspero. Co-meçando com uma idéia aparentemente evidente,Morse conduz-nos a uma hipótese surpreendente:as colônias anglo-saxônicas e as ibéricas foram, emseu tempo, duas “opções” de entrada no caminhoda modernidade. A partir das interpretações do me-xicano Leopoldo Zea e do norte-americano LouisHartz, Morse afirma que as tradições ibérica e an-glo-saxônica surgiram “de uma matriz moral, inte-lectual e espiritual comum”, formada num longoperíodo que se estende do século XII ao XVII. É aesta matriz que devemos o que chamamos de “ci-vilização ocidental” (Morse, 1988, pp. 22ss.).3

Em suas raízes religiosas, assim como emsuas linhas culturais mais gerais, o historiador an-glo-americano convertido em estudioso da históriabrasileira sugere que as duas faces do Ocidentepoderiam ser entendidas a partir das relevantes di-ferenças históricas assinaladas por Max Weber. No

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mundo ibérico, católico, os atos humanos deviamser julgados em um “tribunal da consciência”, onde,porém, o confessor é o juiz do “foro íntimo”. Um“tribunal” que, poderíamos acrescentar, dependenão apenas do reconhecimento da existência deDeus por parte do fiel, mas também da Igreja, umainstituição terrena com a sua hierarquia. No mun-do protestante, desapareceu o “tribunal” e com eleo julgamento exterior da consciência, conduzindoa mudanças radicais na imagem do indivíduo. En-quanto o católico fala com Deus no âmbito daIgreja, o protestante se acha só diante de Deus,sem intermediários. Eis, segundo Max Weber, osentido do individualismo dos anglo-saxões, emparticular dos calvinistas. Na angústia dessa solidãoestaria a raiz para o poderoso impulso psicológicoda ação no mundo, base de uma ética protestanteque se acharia nas origens do capitalismo. Desne-cessário insistir nessa conhecida divergência entreprotestantes e católicos que, contudo, segundoMorse, não seria, porém, o bastante para significarum divórcio (Morse, 1988, p. 45).

Segundo o historiador norte-americano, se-ria ingenuidade indagar qual a mais adiantada equal a mais atrasada dentre estas duas opções quese ofereceram, quase ao mesmo tempo, ao mun-do europeu da última Idade Média. A questão re-levante não seria essa, mas a de saber como in-fluenciaram países e povos nos novos temposque se abriam a um mundo medieval em crise eem transição. Em todo caso, diz Morse, se a pes-quisa tivesse que ser feita talvez levasse à conclu-são de que a opção ibérica foi a primeira. Espa-nha e Portugal saíram para o Novo Mundo nadianteira da Holanda e da Inglaterra, assim comoas colônias ibéricas antes das inglesas.

Ao contrário do que muitos pensam à luzde critérios de uma modernidade mais recente (ede um certo anacronismo no exame da história),a vitalidade da revivescência do tomismo na “es-colástica tardia” nos países da península ibéricados séculos XV e XVI, não responderia a uma si-tuação de atraso, mas a uma situação de relativamodernidade. Responderia a circunstâncias pecu-liares que prepararam o caminho para os Desco-brimentos, das quais não são menos relevantes aguerra (e a convivência) com os mouros e uma

certa antecipação na formação dos Estados nacio-nais. Mais do que os outros povos da Europa, vi-veram por muito tempo Portugal e Espanha a ne-cessidade de adaptar os requisitos da vida cristã àtarefa de “incorporar” povos não-cristãos à civili-zação européia. A Summa contra gentiles de S.Tomás, que cumpriu a função de guia à conver-são dos mouros, expunha amplamente o caso desociedades “pagãs” ordenadas pela filosofia natu-ral, segundo uma visão para a qual os seres hu-manos podiam ser considerados dentro de umaperspectiva ao mesmo tempo cristã e “natural”. Sea Igreja, para Tomás, era um “corpo místico”, oEstado era a mais perfeita das associações huma-nas, um “corpo político e moral”. E também ospagãos e os infiéis eram capazes de associaçõespolíticas (Idem, p. 42).

Pragmatismo e comércio

Como já assinalamos, nem tudo é religiãonas origens dos países ibero-americanos. Funda-mentais como tenham sido, as convicções religio-sas não tiveram influência exclusiva na aberturados novos tempos e na formação das novas indivi-dualidades históricas que neles emergiram. A esserespeito, são necessárias duas observações, dasquais a primeira é a de uma necessária distinçãoentre religião e cultura. Se os países da penínsulaibérica merecem ser considerados países católicosem razão de sua proximidade ao Papado e ao cle-ro desde o século XIII em diante, merecem-nomais ainda por razões culturais. É que neles, apresença católica se expandiu, extravasando ocampo de ação da Igreja e atingindo segmentosnão-católicos e mesmo atividades de caráter não-religioso da sociedade. Desde a Reconquista, os“países católicos” tiveram a experiência de umalonga convivência (e muitos conflitos) com mu-çulmanos e judeus. Antes que se soubesse daexistência do Novo Mundo, já havia na penínsulaibérica a mestiçagem que depois se tornou tão ca-racterística dos países ibero-americanos, e quenestes haveria de ampliar-se no contato com os ín-dios e negros. Desse modo, não obstante os mo-mentos de obscurantismo, que não são poucos,

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especialmente nos séculos XVI e XVII, Espanha ePortugal nunca foram exclusivamente católicos.Se são chamados, corretamente, ainda hoje, de“países católicos” é porque a religião católica foineles forte o bastante para deixar nas suas cultu-ras nacionais marcas indeléveis, tanto nas metró-poles como nas suas ex-colônias americanas.

Uma segunda observação impõe-se. E estadiz respeito a uma disposição cultural que, emboraformulada inicialmente, como tudo o que concerniaao pensamento na Idade Média, por religiosos, in-depende, em princípio, de qualquer conotação re-ligiosa. Trata-se de um experimentalismo – uma“revolução da experiência”, dizem alguns historia-dores portugueses – que se reconhece mais nitida-mente na cultura lusa, mas que, em grau menor,caracterizaria também a cultura hispânica dos sé-culos XIV, XV e da primeira metade do séculoXVI. Tanto quanto os ingleses, os ibéricos tambémacolheram a reflexão de Roger Bacon (1214-1292),um monge franciscano inglês do século XIII, quedistinguia como fontes do saber entre a autorida-de, a razão e a experiência, entendendo esta últi-ma como a fonte mais sólida da certeza. Conside-rava as matemáticas “a porta e a chave para asciências” e dizia que “a verdade é filha do tempo,e não da autoridade” (Saraiva, 1962, p. 372). Em-bora no século XIII, e ainda à margem do pensa-mento medieval predominante, a valorização daexperiência (que em Bacon incluía também a ex-periência mística) era uma tendência que cresciatambém como fruto das mudanças sociais e eco-nômicas da última Idade Média européia. E que,nos países ibéricos, em especial no caso de Portu-gal, crescia com as exigências práticas dos proces-sos de centralização do poder.

Em Portugal, a partir do século XIV, a “revo-lução da experiência” vinculou-se à arte de nave-gar. Foi emergindo, em contraste, mas tambémlado a lado, com a tradição e com os ensinamen-tos dos clássicos, numa espécie de “duplo pensa-mento” que caracterizou boa parte dos séculosdas navegações (cf. Oliveira Marques, 1972, p.284). Na segunda metade do século XVI, o nave-gador Duarte Pacheco Pereira, autor do Esmeral-do de situ orbis, consagrou o experimentalismoportuguês em palavras célebres: “a experiência,

que é madre das cousas nos desengana e de todadúvida nos tira” (Couto, 1997, p. 151). Sabe-seque esse experimentalismo ibérico, em especialportuguês, não foi forte o bastante para estabele-cer, como na Inglaterra, as premissas de um de-senvolvimento científico mais amplo. Mas houveexceções e não foram irrelevantes no campo dageografia, da astronomia, da matemática e demaisciências ligadas à navegação, que nos permitemreconhecer nos séculos dos Descobrimentos umRenascimento português nos campos da ciência eda técnica, sem o qual os próprios descobrimentosnão seriam possíveis. Uma disposição cultural quese misturou com a religiosidade e, mesmo, com omisticismo, e que se transmitiu aos conquistado-res dos séculos seguintes.

De mistura com isso tudo, não há como ig-norar nesse alvorecer ibérico dos tempos moder-nos, uma cobiça por riqueza e poder, que de hámuito se reconhecia nas ações guerreiras da no-breza medieval que se espraiou na península daReconquista e em toda a Europa das Cruzadas.Esses motivos levaram ao comércio, no sentidoque tomou essa atividade desde o século XIII eque se distinguia disso que, depois, se chamariade capitalismo comercial. Nas Cruzadas, na Re-conquista e nos Descobrimentos, essas ambiçõesde riqueza e poder misturavam-se a uma antiganoção medieval de honra que incluía o botim e osaque, como direitos legítimos do vencedor tantoquanto a escravização do vencido na batalha. Ocapitalismo comercial virá depois, como uma dasconseqüências das aventuras ibéricas, a partir daHolanda do século XVII.

Caminhos tortos?

O fato de termos nascidos vinculados àcrença – religiosa e por extensão, cultural – dahumanização de um Deus que permanece conos-co nos caminhos (e descaminhos) do mundo ge-rou idéias e convicções que acompanham a histó-ria dos países ibero-americanos ao longo dostempos. Raízes religiosas certamente poderosas,mas às quais sempre faltou a segurança intrínse-

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ca, a rigidez de princípios própria das ortodoxias.Assim como na América anglo-saxônica, algo des-sas peculiaridades de origem permanece até hojena América ibérica. Enquanto as colônias da NovaInglaterra andaram por trilhas de um fundamenta-lismo até hoje perceptível na moderna sociedadenorte-americana, as colônias ibéricas, que passa-ram por influências de momentos diversos e àsvezes contraditórios, perderam, na diversidade enos conflitos de origem, a possibilidade de umfundamentalismo, desde o início contestado.

No caso do Brasil, além da religião e das am-bições de riqueza e poder, nascemos também deuma Renascença portuguesa de vida curta, frágil,mas, no seu tempo, de uma prodigiosa eficiência.Mais do que na literatura e nas artes, a opera mag-na do Renascimento português foi a de superaros limites do Mediterrâneo, conquistar o Atlânticoe o Índico. A grande obra da Renascença portu-guesa estava no mar e sua glória nas conquistasde além mar. Se do que se fala é do Renascimen-to, digamos que os Descobrimentos não forampouca coisa. Os portugueses realizaram, com osespanhóis, a descoberta do mundo como o co-nhecemos hoje. Mas no modo como a realizaramestava também o começo da sua perdição.

Os momentos supremos dos séculos XV eXVI deveriam fechar-se, no caso de Portugal, na“apagada e vil tristeza” de uma prolongada deca-dência que se iniciou bem antes do desapareci-mento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, em1578. Os Lusíadas, publicados em 1572, e queainda hoje nos comovem, são uma obra tardiado Renascimento português, que pôde ser lida, jáno seu tempo, como o epitáfio de um século emeio de glórias. A Espanha viverá ainda o seu“siglo de oro”, que, aliás, foi também um séculode decadência, não obstante o excepcional brilhode sua literatura e pintura. De Dom Quixote, publi-cado em 1595, diz o mexicano Carlos Fuentes que

[...] é o livro exemplar da decadência espanhola.[...] A era épica da Espanha terminara. [...] O so-nho da utopia havia fracassado no Novo Mundo.A ilusão da monarquia universal havia se dissipa-do. [...] depois de El Cid e Isabel, a Católica, de-pois de Colombo e Cortés, de santa Tereza e Lo-

yola, de Lepanto e a Armada, a festa havia termi-nado (Fuentes, 1992, p. 202).4

Que as imagens da decadência não nos le-vem, porém, a esquecer a época gloriosa em quesurgiram para a história moderna os países ibero-americanos. Entre estes o Brasil, nascido da mes-ma mistura histórica e cultural que inspirou D.Henrique e a nobreza portuguesa reunida emtorno da dinastia de Avis, assim como as lutas deséculos contra os mouros. O ano de 1492, dodescobrimento da América, foi também o da re-tomada de Granada, último baluarte dos mourosna península, aliás, tomado com a ajuda portu-guesa. O ano de 1497 foi o da viagem de Vascoda Gama para as Índias, seguindo trilha abertapor Bartolomeu Dias em 1488 ao cruzar o cabodas Tormentas, ou da Boa Esperança, como que-ria o rei e como ficou na memória histórica. Dé-cadas depois, já em pleno século XVI, começavaa decadência, embora ainda permanecessem mui-tos dos impulsos culturais da expansão. Já passa-do o breve clarão humanista português e espa-nhol, permanecia a mesma mistura de misticismoe de espírito aventureiro medieval, de pragmatis-mo e de centralização de poder, embora na sub-missão às regras do Concílio de Trento (1546), im-pulsionadas, no caso do Brasil e de Portugal, pelainfluência dos jesuítas, duradoura de dois séculos.

Admitidas as distinções de ênfase entre por-tugueses e espanhóis, a entrada dos países ibéri-cos nos tempos modernos não teve, portanto, origor ortodoxo dos puritanos nem, depois deles, aclareza e a distinção que pedia a lógica cartesia-na. Para torná-la mais complexa teve ainda a cir-cunstância de que não obstante as aparências deregressão, as orientações da Contra-Reforma fo-ram também uma forma de adaptação da Igreja aostempos da Reforma. Daí que embora se possaconsiderar que os jesuítas eram inspirados numaética medievalista, não há exagero em se reco-nhecer que, pelo menos no caso do Brasil, foramtambém agentes da nossa primeira modernidade,na educação e em algumas das propostas econô-micas de Antonio Vieira. Em todo caso, parececerto que a entrada no mundo dos países nasci-

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dos das aventuras ibéricas, as que abriram a épo-ca moderna da história do Ocidente, deu-se acontrapelo daquilo que se veio a consagrar comoa modernidade. Dir-se-ia que entramos no mun-do por caminhos tortos?

Comércio, religião e poder

Excepcional entre as grandes aventuras hu-manas, a época dos Descobrimentos foi tambémum dos períodos mais brilhantes e complexos dahistória, nessa última Idade Média, que mudavaem todos os campos da atividade humana. Já a par-tir do século XII, assistia-se em geral na Europa aum ressurgimento das cidades e do comércio. Fe-chada a saída ao Oriente pelo monopólio das ci-dades italianas sobre o Mediterrâneo, os ibéricosestavam obrigados a buscar outros caminhos. Des-de meados do século XIII, os portugueses bus-cavam comércio ao norte da Europa – Flandres,Normandia, Inglaterra, Bretanha e, até, a Norue-ga – por meio da navegação de cabotagem (Sa-raiva, 1962, p. 391). Nesse quadro de mudançaseuropéias, Espanha e Portugal tiveram de pecu-liar as lutas da Reconquista, que aproximaramos ibéricos da Igreja muito mais do que erausual na época.

Quaisquer tenham sido as suas complexascombinações na marcha do tempo, os motivos re-ligiosos, econômicos e políticos estavam todospresentes não obstante os vícios e os momentosde paroxismo, dos quais esteve repleta a tentativafrustrada de Portugal nas Índias e as violênciasdos conquistadores espanhóis no México e noPeru. Um exemplo desses vícios e paroxismos estánas conveniências das famílias reais da Ibéria –conveniências religiosas, econômicas e políticas –que obrigaram os judeus, na passagem do séculoXV para o XVI, a sair da Espanha e a adotar à for-ça, em Portugal, o catolicismo. Num dos momen-tos mais brilhantes de abertura da Idade Moder-na, quando Colombo negociava com Isabel seusplanos de viagem para a América, havia autos-de-fé queimando seres humanos em ruas e praças deEspanha. Quanto a Portugal, quase no mesmomomento, a Coroa aplicava contra os judeus a

fórmula absurda do “crê ou morre”, que os cris-tãos sempre criticaram nos mouros.

Foi assim que surgiu em Portugal, a figurado “cristão-novo”, como efeito de uma técnica depoder, por meio da qual a Coroa portuguesa visa-va a manter os judeus e suas riquezas no país, aomesmo tempo em que lhes negava o direito de pra-ticar sua religião. Conciliava seus interesses depoder e dinheiro enquanto tentava apaziguar oanti-semitismo dos reis da Espanha, que pressio-nava sobre a Coroa portuguesa, bem como o daplebe das ruas de Lisboa. Embora de graves con-seqüências para a cultura (e a economia) de Por-tugal, a manobra não impediu a participação decapitalistas judeus nas incursões lusas ao mar. Osjudeus estarão presentes na criação do Brasil, comofinanciadores de viagens, técnicos ou povoadores(degredados), do mesmo modo que, em época an-terior, e sem que deles se exigisse uma falsa esco-lha religiosa, já haviam estado com D. Henrique emsuas empreitadas navegadoras. Não serviu, porém,a farsa da criação dos “cristãos-novos” para impediras perseguições, pois os judeus, depois de obriga-dos a renegar sua religião em público, foram acu-sados de praticá-la às escondidas. Em uma trágicamanhã de abril de 1506 foram chacinados mais dequinhentos judeus, nas praças e vielas de Lisboa.

Por esta e outras razões, em Portugal, a figu-ra do empresário, sobre a qual podiam semprepesar suspeitas de heresia como “cristão-novo”, e,embora participante, acabou enfraquecida e su-bordinada à Coroa, que detinha o controle dosDescobrimentos. Além da intolerância religiosa,havia também a ganância aventureira de riquezase poder por parte da nobreza e uma mentalidademedieval incapaz de entender a iniciativa que visaao lucro. Junte-se a isso que, nas Índias e tambémno Brasil, “o desdém pelo trabalho manual [cons-tituiu] o ideal até dos vilãos, com os quais, aliás,se confundiam pela miséria econômica os fidal-gos pobres, reduzidos a ínfimos patrimônios ou auma vida de expedientes”. Desse modo, as ativi-dades capitalistas e artesanais tendiam a ser mo-nopolizadas por grupos relativamente fechados –além dos “cristãos-novos”, os estrangeiros, sobre-tudo ingleses, franceses e holandeses – que legalou ilegalmente faziam de Lisboa ou de Sevilha

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boa parte do comércio externo peninsular (Idem,p. 11). Foram colocados sob suspeição os indi-víduos e as atividades que em Portugal pode-riam constituir o germe de uma verdadeira bur-guesia comercial. Boa parte desses indivíduos,especialmente os judeus, transferiu-se para a Ho-landa, onde havia liberdade para que pudessematuar. Só nos séculos XVII e XVIII, a Coroa portu-guesa buscou atraí-los, primeiro por meio de ini-ciativas de Antonio Vieira, e depois do Marquêsde Pombal, arquiinimigo dos jesuítas. Mas já eratarde. Portugal, como depois a Espanha, que ha-viam inaugurado o Novo Mundo, estavam conde-nados a permanecer à margem, países menores,entrepostos da nova etapa comercial do desenvol-vimento europeu.

A grandeza ibérica vinha, pois, acompanha-da dos vícios que haveriam de perdê-la. E nospaíses ibero-americanos algo desses vícios de ori-gem permaneceriam por muito tempo como umentrave cultural para o desenvolvimento, mesmodepois de desaparecido, ou bastante atenuado, omotivo religioso inicial. Mas foi essa mescla decobiça, espírito guerreiro, misticismo e impulsosde centralização do poder que impulsionou osDescobrimentos e a colonização da América ibé-rica. Para o bem e para o mal, foi essa mistura ex-plosiva e contraditória que levou Portugal e Espa-nha a uma fase de ressonância universal e, comseus vícios e virtudes, impulsionou a construçãodos países ibéricos como individualidades cultu-rais e, séculos depois, como nações.

Olhares de fora: o religioso e o profano

Os europeus chegaram, portanto, ao NovoMundo com uma mistura de visões religiosas eprofanas. Chegaram com o olhar dividido entre odeslumbramento com as novas gentes e as novasterras e a preparação da conquista. Desde o pri-meiro momento, um olhar dividido entre a con-quista do mundo para Deus e a das terras e dasgentes para o comércio e para o poder. Enquan-to, por religião, buscavam a conquista das gentes,traziam projetos que, em sentido lato, se pode-

riam dizer de “incorporação social” (Morse, 1988),os quais, aliás, permanecerão, ao longo dos sécu-los vindouros, como base dos temas formadoresda cultura dos países que serão capazes de for-mar. Não é surpreendente, portanto, que estives-sem desde o inicio preocupados em compreen-der, bem ou mal, as sociedades que encontravam.Em alguns casos mais mal do que bem, porquemuitas das sociedades que encontraram foram sim-plesmente destruídas, como ocorreu com algumaspopulações indígenas do Caribe e, em ampla me-dida, com os astecas e os incas.

Já que com este olhar, religioso e profano, di-vidido e distante, não podiam reconhecer como taisos povos que encontravam pelo caminho, preocu-param-se também em criar povos, como no casodo Brasil. A imagem de tanta voga no século XIXde que o Brasil era “um país sem povo” vinha dosprimeiros tempos da colônia. Algo dessa imagempermaneceu na história das idéias brasileiras mes-mo no século XX, na idéia da sociedade “criada”pelo Estado, ou, posteriormente, na idéia do “paísamorfo”, cuja sociedade caberia ao Estado organi-zar. Religioso e profano, o olhar europeu dos pri-meiros tempos era o de homens que chegavampara a conquista, e que se preparavam tambémpara uma violência, sem a qual, no fim das con-tas, nenhuma conquista seria possível. Algo desteolhar, cada vez mais profano, permanece até hojenos seus herdeiros ibero-americanos em face deuma obra que se pretendia civilizadora e que, emalguns países, como no caso do Brasil, ainda nãose completou. Uma destruição em relação às cul-turas indígenas dos primeiros tempos, no Brasil eem outros países ibero-americanos, a história to-mou o caráter de uma permanente construção,em muitos aspectos inacabada.

Algumas das idéias que inspiraram estaconstrução, ou pelo menos algumas das disposi-ções de espírito que haveriam de lhes dar origem,foram antecipadas nesta espécie de certidão denascimento do Brasil que é a Carta de Pero Vazde Caminha (1500). Nada de surpreendente, por-que vêm essas idéias de antes do Descobrimento,da colonização das Ilhas do Atlântico – a Madeirae os Açores – nas quais, por sua vez, os portugue-

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ses copiavam e adaptavam experiências das cida-des italianas em suas saídas ao mar. As experiên-cias nas Ilhas do Atlântico envolviam, como no Bra-sil, as capitanias hereditárias, o trabalho escravo e aprodução de açúcar. Funcionaram então como umaespécie de ensaio do que se haveria de realizarno Brasil: a colonização das Ilhas antecipa atémesmo a atração inicial exercida pela extração damadeira. Aliás, no tocante à divisão da terra, oBrasil repete, além da Madeira e demais ilhas doAtlântico, também experiências de séculos antes,no Algarve, em terras retomadas pelos portugue-ses aos mouros.

A Carta é o nosso primeiro documento so-bre o encontro, e também o choque, das culturas.Em Pero Vaz de Caminha e, depois dele, em Amé-rico Vespuccio, na Relação a Lourenço di Pier-francesco de Médici (1503), e depois na Lettera aSolderini, temos as primeiras anotações de umfascínio europeu pelos antigos habitantes da ter-ra,5 que alimentou a Utopia de Thomas Morus eum célebre capítulo dos Ensaios de Montaigne,e a partir desses toda uma poderosa linhagem dopensamento europeu.6 Um fascínio que foi tam-bém levado ao ridículo nas críticas de Rabelais,em 1567, debochando das histórias, algumas de-las aumentadas e outras simplesmente inventadas,que os aventureiros contavam na Europa, em suasviagens de volta ao Novo Mundo.

No fenômeno da formação dos países ibéri-cos, da qual o Brasil é parte, os casos do Méxicoe do Peru são extremos. Por isso mesmo, suasorigens ajudam a entender as origens do Brasil. Aperspectiva espanhola da pronta localização daprata e do ouro antecipou o choque das cultu-ras.7 Expressivas desse choque no México sãoduas figuras do século XVI, nítidas e, cada qualem seu campo, exemplares: Hernán Cortez, oconquistador, e Bartolomé de las Casas, o domi-nicano, que defendeu os astecas que o outro fi-zera por dominar a qualquer preço. No Peru, oconquistador Pizarro, que derrotou Atahualpa edestruiu Cuzco, a capital Inca, e construiu Lima,a “cidade dos reis”. E pouco depois dele, no tem-po, mas contemporâneo nos temas, Garcilazo de laVega, filho de um conquistador com uma princesa

inca, talvez o primeiro intelectual latino-america-no a descobrir o sentido da mestiçagem. Nessespaíses da América espanhola, os choques da cul-tura européia com as populações indígenas fo-ram mais nítidos, se não de maiores proporçõesdo que os da América portuguesa. Nesta, umtempo histórico dilatado e mais lento estendeu aconquista em meio à colonização já iniciada, eprosseguiu, para além da faixa litorânea, pelo in-terior adentro.

No Brasil, ao longo de um período de doisséculos, teremos a plêiade (ou a turba, se quise-rem) dos bandeirantes Fernão Dias, Raposos Ta-vares, Domingos Jorge Velho, entre muitos outros.E, em conflito com estes, desde o início, os jesuí-tas, entre os quais Manoel da Nóbrega e José deAnchieta, nem sempre fascinados com as bonda-des dos índios, mas sempre preocupados com asua evangelização. Os conflitos iniciais anteci-pam o que serão, um século depois, aqueles en-tre os quais se destaca a figura extraordinária doPadre Antonio Vieira. Os sacerdotes empenhadosem conquistar almas, mas acusados pelos povoa-dores de explorar os índios em beneficio próprio,e os bandeirantes empenhados em apresar índios,conquistar terras e descobrir as fontes dos metaispreciosos – os dois grupos foram, de algummodo, apoiados por facções do poder instaladona metrópole e na colônia.

Em meio a essas turbulências que denunciamas ambigüidades (e debilidades) da Coroa portu-guesa se formou, na colônia dos séculos XVI eXVII, o que chamamos hoje de território nacional.Um território que Pombal haveria de consolidarno século XVIII e que os diplomatas do Império eda Primeira República haveriam de formalizar umséculo depois. Foi também neste longo períodoque deitou raízes a cultura brasileira, a começarpela época de ouro do barroco, primeiramentesob a influência dos jesuítas, suas igrejas e con-ventos, que aos poucos se adaptou às circunstân-cias do país e se estendeu até o século XIX. Umbarroco de formas exuberantes e, em muitos ca-sos, de toques mestiços, que, desde o início do sé-culo XX, foi reconhecido pelos intelectuais do paísindependente como uma das formas preferenciaisde expressão da cultura nacional.

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História como construção

Os olhares religiosos e profanos mesclam-setambém em outro ponto fundamental. Com as ex-colônias da Inglaterra, as da Ibéria têm em co-mum não apenas uma origem religiosa, mas tam-bém o fato de serem “países novos”. Todas, emconjunto, foram no século XVI a novidade da his-tória do mundo, um aspecto de novidade que aspolêmicas religiosas ajudaram a acentuar pormeio do tema fundamental da conquista da hu-manidade para Deus. Esse aspecto religioso acen-tua ainda outro, este no mais das vezes profano,o de que os “países novos” teriam de peculiar oterem nascido de uma intenção. Ou seja, seriampaíses que não estão aí “desde sempre”, como sepretendem alguns países do Velho Mundo, nasce-ram de uma intenção, ou de intenções.

Anoto, desde logo, à margem, que se temdado demasiada importância no caso do Brasil adiferentes formas de se diminuir o sentido dessasintenções iniciais. Por exemplo, a questão, hojepouco lembrada entre os historiadores, mas aindaem voga nos compêndios escolares, de saber se oBrasil foi descoberto “por acaso”. Se os portugue-ses buscavam o caminho das Índias, no Oriente,como entender, senão por força dos acasos cria-dos pelos ventos e pelas calmarias, que tenhamchegado por aqui? E, contudo, os historiadoresmodernos sabem que os cuidados da velha histo-riografia com os “acasos” têm menos a ver comas realidades dos Descobrimentos do que com ashabilidades da Coroa portuguesa, que inflavammitos que dificultassem a percepção européia dosseus tesouros ou daquilo que acreditavam seremos seus tesouros. Hoje se sabe que a viagem deCabral em 1500 foi, como a chamam os historia-dores portugueses modernos, a do “achamentooficial do Brasil”, que já havia sido descoberto, evisitado, em momentos diferentes por VicentePinzon e Duarte Pacheco Pereira.8 Os debates emtorno do “acaso” nasceram dos truques diplomá-ticos de um pequeno país, que tomou muito tem-po para assegurar em Roma seus direitos de con-quista, em especial diante do forte vizinhoespanhol e de seus questionamentos sobre a linhadas Tordesilhas.9

Assim como as colônias inglesas, as ibéricasnasceram, em qualquer hipótese, de um olhareuropeu que se equivocou muitas vezes, a come-çar por Colombo que imaginava haver chegadoàs Índias. Nos muitos equívocos desse olhar, so-bram motivos de deslumbramento com a nature-za e com os índios, tanto quanto os excessos deviolência contra a mesma natureza e os mesmosíndios. Mas, pelo menos quando se fala de Portu-gal e Espanha, nunca foram equívocos bastantes,pelo menos a partir de meados do XVI, para im-pedir os países da península de tentar construirnovos países nesta parte do mundo. Com mais ra-pidez do que se pensa, Portugal e Espanha pas-saram rapidamente pela fase das feitorias na Amé-rica, e adotaram a estratégia da colonização. Nocaso de Portugal, uma estratégia que se tornouobrigatória em face das dúvidas com a Espanhaem torno das Tordesilhas. Diante também da co-biça da França e, depois da Holanda, e dos cor-sários de variada origem.

Assim, se a história é sempre uma constru-ção, nos países novos o é mais do que em qual-quer parte. Esses países devem sua existência aum projeto – algum projeto – que tanto pode virdo Estado como da Igreja, no caso do Brasil espe-cialmente a Companhia de Jesus. Ou que, no casodos Estados Unidos, pode vir de movimentos re-ligiosos dissidentes que buscavam novos territó-rios para pregar a sua fé. Quaisquer que tenhamsido – e devemos tratar de alguns deles maisadiante – esses projetos servem para testemunharque esses países nasceram com a história moder-na, da qual são parte essencial. O que significaque sua construção, por caminhos “certos” ou“tortos”, tem um compromisso permanente com amodernidade.

Temas formadores da cultura

Tomou muito tempo para que o olhar de fora,dividido e arrogante, religioso e guerreiro, se enrai-zasse nas novas terras. No caso do Brasil, se ao lon-go de trezentos anos de colônia e de cem anos deImpério, adotamos projetos, no mais das vezes fo-mos adotados por eles. Sabemos todos que os

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conquistadores e os bandeirantes não eram os“peregrinos”. Embora haja muito exagero quandose fala do desinteresse dos conquistadores e ban-deirantes pelas questões religiosas, assim comoquando se fala do desinteresse dos “peregrinos”pelos aspectos materiais da vida, é certo queaqueles eram, sobretudo, guerreiros que abriramespaço para os povoadores, assim tornando a co-lonização possível. Quanto aos jesuítas que oscombatiam, o ensinamento religioso era uma con-vicção dos discípulos de Inácio de Loyola, elepróprio um guerreiro dirigindo um exército decombatentes da fé. Em todo caso, o certo é queos índios eram objeto de uma evangelização daqual, evidentemente, não podiam ser sujeito.

Os dois grupos de combatentes dos dois pri-meiros séculos – de um lado os jesuítas, de outroos bandeirantes – tinham algo de comum no idealda conquista. “Dilatar a fé e o império” – o proje-to, embora sempre suscetível de conflitos inter-nos, enfim, era o mesmo. Os jesuítas, diz João Lú-cio de Azevedo, “eram colonizadores; a obra quehaviam empreendido tinha caráter temporal, e,nessa qualidade, somente com os meios tempo-rais se poderia realizar”. O que é confirmado peloPadre Serafim Leite: “Os jesuítas, pelas condiçõesparticulares da América, não puderam ser o queeram na Ásia, apenas missionários: foram tambémcolonizadores” (Azevedo, 1922, p. 105).

Tomou muito tempo para que este olhar defora se tornasse, com as modificações impostas pe-las circunstâncias, um olhar de dentro. Embora su-bestimado pela historiografia, e em grande parte es-quecido pelas elites, o debate que se estendeu pordois séculos sobre a questão indígena, e só concluí-do por decisão de Pombal na segunda metade doséculo XVIII, teve para a formação da cultura brasi-leira uma importância que será dificilmente exage-rada. Quase tão antiga quanto o debate portuguêssobre a questão dos judeus, a questão indígena ali-nha-se entre os temas formadores da cultura dopaís. Mais lembrado e também de enorme relevân-cia, o tema do negro atravessa o período colonial ese estende por todo o século XIX.

Veremos mais adiante que em face desses te-mas fundamentais se buscou, em mais de uma cir-cunstância, a orientação dos Evangelhos. Assim

como os “peregrinos”, nas colônias americanas,também nos países ibéricos, os missionários – noBrasil, em especial os jesuítas – buscaram sobreeles a palavra de Deus. Mas esses temas formado-res, além das escritas de Deus, dependerão cadavez mais das escritas profanas.

Os conflitos políticos e ideológicos em tornodo índio, do judeu e do negro acham-se entre osprimeiros temas formadores da cultura do Brasil.Ao dizer que aqueles grupos humanos se ligamaos primeiros temas formadores da cultura brasi-leira, não pretendo afirmar que apenas eles te-nham presença cultural entre nós. Pretendo sus-tentar, porém, que foi em torno desses grupos –mais precisamente em torno de sua incorporaçãocultural – que surgiram os conflitos maiores – so-ciais, culturais, religiosos e econômicos – do paísem formação. E que foi em torno das soluções en-contradas pela história para a sua integração quesurgiram os perfis culturais conhecidos hoje nacultura brasileira, com sua capacidade de abran-gência e tolerância e também de sua característi-ca ambigüidade.

Pode-se afirmar que essa dialética de confli-to e integração tem amplos e profundos prece-dentes na península ibérica, sobretudo em relaçãoaos judeus e aos árabes, ambos os grupos deenorme influência cultural em Portugal e Espanhado período da Reconquista. Gilberto Freyre chegaa dizer que as populações moçárabes, as popula-ções cristãs da Ibéria que viveram sob domíniomuçulmano e que sofreram forte influência cultu-ral árabe, “se constituíram no fundo e no nervo danacionalidade portuguesa” (Freyre, 2002, p. 231),sobretudo no meio popular mas também, comoos judeus, misturadas em meio aos fidalgos e ànobreza. Mantidas, porém, por razões religiosas eeconômicas, as restrições aos judeus, predomina-ram o sangue e as tradições árabes na formaçãonacional portuguesa, por meio de uma miscige-nação racial e cultural remanescente de séculosde conflitos e relações de integração. Quando osportugueses começaram a colonizar o Brasil, acha-vam-se já diluídos muitos desses velhos conflitosda Reconquista; muitos descendentes dos mourosencontravam-se amplamente integrados à naçãoportuguesa. É assim que a presença dos árabes,

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que vem desde a colônia e se estende ao longoda história brasileira, jamais alcançou o caráterconflituoso que assumiram em momentos diver-sos as questões em torno de índios, negros e ju-deus. Encontrando no Brasil o terreno preparadopor uma antiga miscigenação e pelas tradições lu-sas de antigas misturas mouriscas, as influênciasculturais árabes cresceram a partir das imigraçõesdos séculos mais recentes, cujos descendentes sãohoje estimados em cerca de dez milhões de bra-sileiros. Os árabes de imigração moderna foramabsorvidos na cultura brasileira, com poucos cho-ques, ao modo de outras imigrações recentes,como a dos italianos, alemães, russos, polonesesetc., ou recentíssimas, como a dos japoneses e co-reanos. Além da presença mais antiga e de suasinfluências peninsulares, encontraram, como es-ses grupos mais recentes, uma cultura brasileiramais aberta. E pelo menos parte dessa abertura sedeve às soluções (ou meias-soluções) criadas emtorno dos conflitos, estes especificamente brasilei-ros, criados à volta do índio, do negro e do judeu.

É de fins do século XIX o tema da pobreza,também de caráter conflituoso, até hoje presentena cultura e na política brasileiras. Assim comome refiro àqueles temas – do índio, do negro, dojudeu – haveria que falar aqui também do temado pobre. Com o acréscimo de que me refiro sem-pre ao tema, ou seja, à tomada de consciência deuma realidade por parte das elites, pois a realida-de da pobreza como tal, e possivelmente a suaconsciência por parte dos pobres, existem desdeo início, desde as origens do país. Emergindo nomeio das elites em fins do século XIX e tornando-se dominante no Brasil do século XX, o tema dopobre, mais modernamente o tema da desigualda-de social, tornou-se obrigatório neste país de ex-tremas desigualdades.

Costuma-se pensar que esses temas forma-dores se sucedem de modo cronológico, comosão habitualmente apresentados nos livros didáti-cos de história. Somos levados a pensar que seapresentam na história real um em seguida ao ou-tro, e que seriam resolvidos na seqüência linearda formação do país e da cultura nacional. Naverdade da história real, porém, nem se apresen-tam em sucessão, nem se resolvem da maneira li-

near. Estão aí desde os primeiros tempos e se en-trelaçam como os grandes temas da nossa constru-ção nacional. A única seqüência da qual se podelegitimamente falar é a da referência a este ouàquele tema como dominante no cenário políticodeste ou daquele período. O dos judeus, na pas-sagem do século XV para o XVI. O dos índios, noséculo XVI até o XVII. O dos negros no séculoXIX. O da desigualdade, dominante a partir dasprimeiras décadas do século XX.

Além disso, a passagem do debate de umtema ao seguinte não significa que este seja real-mente novo nem que o anterior tenha sido intei-ramente resolvido. Não é demais acrescentar que,em face das questões de como incorporar (ou ex-cluir) o judeu, o índio e o negro, a cultura lusados primeiros séculos nos legou uma ambigüida-de em torno do tema da legitimidade da iniciati-va que visa ao lucro (ou também ao êxito), comoem torno do valor do trabalho físico, prejudican-do a valorização do trabalho em geral, até hojepersistentes na cultura brasileira. Não obstante atremenda capacidade de trabalho físico eviden-ciada pelos negros no decorrer dos séculos, a va-lorização do trabalho só encontrará lugar em nos-sa cultura depois das migrações européias de finsdo século XIX.

A questão do tráfico e da escravização dosnegros é, se nos prendermos aos limites de umahistória cujas preliminares estão no século XIV,quase tão antiga quanto a dos judeus. Começa an-tes do tema indígena, antes mesmo que se sou-besse da existência deste Novo Mundo, antes quese soubesse que havia índios nesta parte do mun-do. A desigualdade, se é um tema da passagemdo século XIX ao século XX, nesse sentido o mais“moderno”, remete também a um passado distan-te. Se o assunto referente aos pobres é recente, ospobres são muito antigos. Não se pode deixar demencionar, embora tenha que ser feito de passa-gem, a “questão protestante”, ausente na Espanhae em Portugal como em suas colônias, diferente-mente da França e da Inglaterra e suas colônias.É que nos países ibéricos, os protestantes nuncaforam numericamente significativos. Nos paísesibero-americanos, apenas nas últimas décadas do

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século XX adquiriram importância, com o cresci-mento das diversas denominações evangélicas.

Como são de certo modo coetâneos, os te-mas formadores que mencionei se tornaram deci-sivos para esclarecer os horizontes culturais quecontribuíram para definir a cultura ibero-america-na. Daí a necessidade de mencioná-los nessas pá-ginas. Por exemplo, é motivo de espanto para oleitor atual, saber que a Igreja, que tanto se em-penhou pela libertação dos índios, tenha aceitadoa escravização dos negros. Um espanto que cres-ce quando nos lembramos que acompanharam opensamento dominante na época mesmo figurasnotavelmente combativas como Bartolomé de lasCasas e, um século depois, Antonio Vieira. Não di-minui em muito a surpresa saber que Las Casas fi-xou, ao fim da vida, uma posição contra a escra-vidão dos negros e que Vieira tenha registradoseu protesto contra os excessos de violência con-tra os escravos, pois permanece em ambos a acei-tação dos critérios da época, que, aliás, são osmesmos dos humanistas. Empenhados como esta-vam em restabelecer a memória dos clássicos daAntigüidade, poderiam os humanistas ignorar queAristóteles considerava a escravidão um fenôme-no natural? O certo é que a primeira imagem damodernidade, tanto a da Igreja como a dos huma-nistas, não incluía os negros. Mesmo a Utopia, deThomas Morus, que criticava duramente as desi-gualdades da sociedade européia de seu tempo,permitia a escravidão.

Na Lisboa dos séculos XIV e XV, já havia ne-gros submetidos à escravidão, uma prática que,com referência aos negros, era admitida nos usosda Europa medieval, portanto de longas raízes atéassumir a forma da escravidão moderna, nos Es-tados Unidos, Brasil, Cuba etc. À parte os argu-mentos da Antigüidade resgatados pelo Renasci-mento, a prática de conquistar e fazer escravos eracontemporânea dos navegadores. E antes mesmodestes já se achava nos usos das guerras da Re-conquista, neste caso, porém, limitada aos mou-ros. Como sabemos, um dos motivos das guerrasmedievais era uma noção de honra, que não ex-cluía nem o saque nem a escravização dos venci-dos. Assim, o tráfico com escravos negros surgiu

muito cedo, quase ao mesmo tempo em que osportugueses começaram a abrir nos mares os ca-minhos para a África, e cedo se percebeu que erados mais lucrativos. Como diz um historiador por-tuguês, D. Henrique foi o “primeiro dos nossosnegreiros”.

Desigualdade natural

Foi assim que, inspirada nas interpretaçõesda Antigüidade e dos Evangelhos, e também nosusos e costumes da última Idade Média, a culturabrasileira nasceu apoiada na premissa de uma de-sigualdade que se entendia como natural. O ra-ciocínio, apoiado no caso do Brasil, pode se es-tender a países ibero-americanos, como Cuba, degrande importação de negros, sem excluir mesmopaíses como o México e o Peru, com a considera-ção particular de que são países de grandes po-pulações indígenas. Por razões diversas a desigual-dade, herdada do medievalismo ibérico, encontrounos ambientes da vida ibero-americana suas ra-zões para ser reconhecida como natural, intrínse-ca ao padrão de sociedade hierárquica que ospaíses ibero-americanos chegaram a ser. O casodo Brasil tem nisso, porém, algo de específico e,talvez, mais definido.

Em termos gerais, quando falamos de “desi-gualdade” não queremos apenas dizer “diferen-ça”, mas uma diferença situada em alguma hierar-quia, de riqueza, de prestigio, ou de poder.Fazemos referência a uma relação de domínio (oude autoridade), relação de “superior” a “inferior”(ou vice-versa), qualquer que seja o sentido socialque lhe atribua. Assim, a igualdade não significanecessariamente uniformidade, pode comportardiferenças. É o que ocorre nas sociedades plura-listas, modernas e democráticas, onde se reconhe-cem diferenças entre indivíduos e cidadãos quesão, em princípio, iguais. De acordo com as mes-mas premissas, pode haver também uma igualdadede pessoas socialmente desiguais, por exemplo,nas sociedades medievais, a igualdade dos cris-tãos. Ou ainda uma igualdade diante de Deus –“a César o que é de César, a Deus o que é deDeus” – que, na decadência do império romano,

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permitiu reconhecer que os homens têm alma, eque são iguais diante de Deus.

Era fundamental às doutrinas da Igreja naépoca dos Descobrimentos reconhecer que os ín-dios, embora pagãos, tinham alma, devendo porisso ser conquistados para Deus. Do mesmo modoos negros. A diferença de tratamento nesses doiscasos, lutando a Igreja contra a escravização dosíndios ao mesmo tempo em que aceitava a dosnegros, não vinha das interpretações teológicas,mas dos usos e das tradições medievais que con-sideravam normal a escravidão dos negros, im-posta pela cobiça e pela violência com que omundo entrava na era moderna. “Os usos do rei-no, a tradição da Antigüidade consentiam na es-cravidão” (Azevedo, 1922, p. 129).

No impasse entre as doutrinas da Igreja e astradições da sociedade, os caminhos tornaram-sesinuosos e propensos ao sofisma. Não faltou emPortugal dos séculos XIV e XV, como no Brasil dosséculos seguintes, quem dissesse que a capturados negros na África para transportá-los à Europaou à América era um modo de salvar a sua alma.Argumento semelhante ocorreu também, em al-guns casos, diante do problema da escravizaçãodo índio. Na mesma época em que Las Casas com-batia no México, Nóbrega e Anchieta, no Brasil,embora também críticos dos povoadores, admi-tiam que a evangelização dos indígenas só seriapossível no quadro da expansão da colonização. Esabiam que naquele momento a colonização de-pendia do apresamento dos índios. Foi assim, porformas e caminhos diversos, que a desigualdadeherdada da cultura medieval ibérica encontrou naexperiência ibero-americana suas próprias razõespara se consolidar como algo natural.

Na cultura anglo-americana, o mesmo pro-blema da relação entre igualdade e desigualdadeaparece pela outra ponta. Nos Estados Unidos,desde a partida, assumiu-se a igualdade como na-tural. Se for assim, como entender a escravidão?Como entender, depois da escravidão, a virulênciado racismo norte-americano? Gunnar Myrdal(1944), em estudo clássico The negro problem andmodern democracy, diz que o igualitarismo (limi-tado aos brancos) é uma premissa do racismo nor-te-americano. Assim, ao contrário dos ibéricos

que, admitindo a desigualdade como natural, en-tendiam que os negros tinham alma embora con-tinuassem escravos, os brancos anglo-americanossó podiam admitir a escravidão se admitissem, aomesmo tempo, que o negro se achava fora da hu-manidade. Os negros podiam tornar-se escravosnão porque assim se salvaria a sua alma, mas, pre-cisamente ao contrário, porque não teriam alma e,portanto, não poderiam ser salvos. Podiam tornar-se escravos porque não eram homens. Se o cará-ter virulento do racismo anglo-americano tem umapremissa igualitária, as ambigüidades do racismoibero-americano – em especial, o brasileiro – seapóiam na premissa de uma desigualdade que anossa cultura admite como natural.

Para uma tradição como a nossa, de raiz me-dieval, todos os homens têm alma, pertencem àmesma humanidade criada por Deus e são reco-nhecidos como Seus filhos. Mas cumprem fun-ções diferentes na “sociedade cristã”. São iguaisdiante de Deus, mas desiguais no mundo dos ho-mens, no qual Deus lhes conferiu funções desi-guais, não apenas diferentes, em face dos bran-cos. Daí que a escravidão dos negros não apenasseria possível, mas até justificável: de outro modo,continuariam como pagãos, nas selvas africanas,perdidos para Deus. Trazê-los para a América,mesmo à custa de fazê-los escravos, seria ummodo de incorporá-los ao povo de Deus. Uma di-ferença de concepção que repercute sobre a na-tureza do racismo: porque são também filhos deDeus não devem os escravos ser tratados combrutalidade, um ponto de honra do combate dosjesuítas. Embora possam ser vistos como “coisa”no campo do direito, não devem ser tratadoscomo “coisa” no campo das relações humanas.Esta ambigüidade inibiu, no Império, a elabora-ção do Código Civil, que como tal exigiria o reco-nhecimento da universalidade dos direitos, o quenão era possível, pois havia escravos. De outraparte, não se quis elaborar um Código Negro,como nos Estados Unidos, uma legislação à partepara os escravos (Alonso, 2002, p. 58).

Numa sociedade que assim interioriza a de-sigualdade, o reconhecimento da igualdade nãopoderia vir da própria sociedade. Teria que virde fora – do Estado, da religião, ou da influênciade outros países. É assim que num primeiro mo-

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mento, o reconhecimento da igualdade dos índios(no sentido de que não poderiam ser escraviza-dos), veio em primeiro lugar da Igreja e da evan-gelização. A seguir, nos momentos mais decisivosda história de Portugal e do Brasil, tais influênciasde sentido igualitário vieram do Estado. Não poracaso um Estado em crescimento, como ocorreucom Pombal e, tempos depois, no Brasil, com Pe-dro II, e, ainda mais tarde, com Getúlio Vargas.Sempre em momentos em que o Estado que sedestacou da espontaneidade da vida social e a elase opôs, mesmo que por um curto período.

No estilo do despotismo ilustrado, Pombalimpôs a liberdade dos índios aos povoadores queos escravizavam, e também aos jesuítas, que osdefendiam, mas que ofereciam uma face de in-submissão ao Estado, com o apoio da velha no-breza portuguesa. Pombal incluiu a liberdade dosíndios na primeira grande tentativa de reforma in-telectual e cultural ocorrida nos tempos modernosem Portugal, com conseqüências sobre a unidadeterritorial do Brasil e sua independência. A aboli-ção da escravatura, no Brasil, teve que esperarmais de um século para que outras decisões co-meçassem a criar, lentamente, as premissas deuma sociedade de trabalho livre. Nos dois casos,a iniciativa coube ao Estado, que embora influen-ciado pela mentalidade cultural dominante conse-guiu agir como se estivesse fora da sociedade, in-troduzindo novos vetores que, no longo prazo,haveriam de modificá-la.

As idéias e as circunstâncias

Assim como as escritas de Deus se combina-ram (e, às vezes, se chocaram) com as escritasprofanas da tradição, também as idéias que orien-taram a construção do país não tinham como evi-tar as circunstâncias nas quais deveriam atuar. Fa-lar de uma história das idéias não supõe umaonipotência das idéias. Assim como Ortega yGasset ao falar do homem, também no caso dasidéias há que falar das suas circunstâncias. Asidéias formam a cultura de um país no mesmomovimento em que se deixam surpreender pelaspeculiaridades e imprevistos da sociedade emformação, buscando modos de se adaptar às rea-

lidades que encontram no caminho de sua pró-pria intervenção.

Por exemplo, em alguns dos textos de An-chieta e Nóbrega pode-se perceber a surpresa emface de uma realidade dos índios que a culturamedieval (e eclesiástica) desconhecia. Pode-seadmitir que os jesuítas conhecessem os povoado-res. Mas ainda assim não deixaram de se surpreen-der diante de comportamentos novos, às vezes es-drúxulos (“Não existe pecado abaixo do Equador”,registrou Barleus), impostos por circunstâncias no-vas para todos. É neste movimento que se multipli-ca, se amplia e se aprofunda ao longo da história,que o olhar de fora que está na origem dos novospaíses vai se tornando parte da sua realidade.

O que se diz das idéias e dos homens, se dizda própria sociedade. A eficácia das idéias quevêm do olhar de fora tem limites, que aparecemmais claramente na medida em que elas se reali-zam, contribuindo assim para a formação de umasociedade nova. Aliás, quase sempre de um modosurpreendente. Assim como o peruano Garcilazode la Vega descobriu, num certo momento, quenão era espanhol nem índio, mas um mestiço,também os portugueses João Ramalho ou DiogoÁlvares (o Caramuru), que foram deixados naspraias da recém-descoberta Terra de Santa Cruz eaqui formaram família, devem ter tido os seus mo-mentos de surpresa diante dos seus filhos mesti-ços, que não eram nem portugueses nem índios,mas iniciavam linhagens brasileiras. Do mesmomodo, e agora diretamente no campo dos proje-tos de colonização, deve ter havido um momentoem que, diante do êxito da economia açucareirade Pernambuco nos séculos XVI e XVII, o antigomodelo colonial da Madeira tornou-se mera remi-niscência. A propósito, no Brasil, começaram bemcedo, na primeira metade do século XVII, em Per-nambuco, nas circunstâncias da guerra contra osholandeses, os sinais de que uma nova nação co-meçava a nascer.

Um pensamento nacional

Nas revelações surpreendentes da história,foi aos poucos empalidecendo a imagem da cópiavinda de fora, embora o novo país houvesse que

20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

preservar nas suas raízes mais profundas algumasdas intenções e dos projetos externos que o torna-ram possível. O pensamento nacional surgiu, para-doxalmente, de uma reflexão sobre aquelas situa-ções e aqueles momentos históricos em que menostínhamos de propriamente nacionais. Os exem-plos são muitos, como no título do livro emblemá-tico da Caio Prado Jr., Formação do Brasil contem-porâneo – colônia. Ou, muito antes disso e emchave romântica, na mítica mistura do português edo índio no Guarani, de José de Alencar. Ou ain-da no barroco do período colonial introduzidopelos jesuítas em suas igrejas e que depois, noséculo XX, passa a ser entendido como uma dasformas preferenciais da cultura nacional. É queem todos esses exemplos se há de buscar o ele-mento de surpresa que as circunstâncias reser-vam no Novo Mundo para o conquistador e parao colonizador.

No Brasil de após a Independência, esse ele-mento de surpresa apareceu de modo mais nítidonos choques (e às vezes nos desencantos) enfren-tados por uma mentalidade moderna que haveriade alcançar no Segundo Império (1842-1889) e naPrimeira República (1889-1930) os seus momen-tos de maior enraizamento no “país novo”. Sãoexemplos, no plano do pensamento e da ação,nomes como os de José Bonifácio, Joaquim Nabu-co e Euclides da Cunha. Também, embora comênfase que assumiu no plano da explicação histó-rica (embora não necessariamente na ação), umaconotação mais conservadora, os nomes deJosé de Alencar e, já na República, GilbertoFreyre e Oliveira Vianna. Todos tiveram em co-mum a preocupação em compreender as origens,a mesma preocupação dos historiadores comoCaio Prado Junior, quando escreveu sobre a colô-nia, e Sérgio Buarque de Holanda, em especialem Raízes do Brasil e Visão do paraíso. É a partirdessa linhagem de pensadores que se pode, comsegurança, afirmar que o olhar de fora se natura-lizou num olhar de dentro, reproduzindo, de ma-neira nova, os temas formadores de que falei an-tes. Maneiras inovadoras de se conceber o país,que inauguraram novos Descobrimentos do Bra-sil, embora continue este a carregar as imagensdo passado no qual se formou.

Tanto a renovação como a tradição são par-tes, sempre presentes, da realidade do país e dopensamento que busca interpretá-lo. O brilho e agenerosidade da obra política e intelectual de Joa-quim Nabuco em fins do século XIX levam-nos àsvezes a esquecer o passado das batalhas da Igre-ja contra a escravização do índio e de seu mal-es-tar em face da escravidão do negro. Levam-nos aesquecer ainda que a abolição da escravidão donegro, que só se tornou tema nacional nas últimasdécadas do século XIX, já fora proposta, no iníciodaquele século, por José Bonifácio, um cientistapombalino que as circunstâncias permitiram vies-se a ser o patriarca da Independência do Brasil.Herdeiras da Ilustração e repercutindo a nova at-mosfera criada no mundo pela Revolução France-sa, que ele, contudo, abominava, as idéias de JoséBonifácio levaram oito décadas para se realizar.Uma lentidão que nos obriga a voltar ainda maisatrás na história, às raízes da cultura (e da socie-dade) brasileira remanescentes dos critérios so-ciais e morais da última Idade Média.

Que dizer da cultura e da sociedade do Im-pério, sob um regime político liberal que durouquase um século e que, contudo, não conseguiuestabelecer, com a libertação dos negros, algunsdos pressupostos básicos de uma sociedade detrabalho livre? Ou talvez, em vez de sociedade ecultura, se deveria falar da férrea necessidadeeconômica que fazia ver na libertação dos negrosa crise da grande propriedade territorial? Contu-do, sabemos que a pressão política maior, no iní-cio contra o tráfico e a seguir contra a escravidão,vinha da Inglaterra, a grande potência econômicada época. De um modo ou de outro, o fato é quea abolição da escravatura só chegou depois deum prolongado processo de reformas graduais. E,como se sabe, não caiu o regime da propriedadeda terra, como se temia. Em vez disso, caiu o Im-pério liberal que, ao promover a abolição, deraseu último passo de separação da sociedade.Sabe-se, além disso, que depois da abolição oBrasil continuaria tão senhorial quanto antes, in-dicação segura de que algo havia de mais profun-do na realidade que se pretendia mudar.

Assim como a resistência da Igreja à escravi-zação dos índios e a decisão de Pombal, no sécu-

AS ESCRITAS DE DEUS E AS PROFANAS 21

lo XVIII, tornando-os livres, ao mesmo tempo emque acabava com a distinção entre “cristãos-no-vos” e “cristãos-velhos”, também as decisões doImpério determinando o fim do tráfico de escravosem 1850, e a abolição da escravatura em 1888, te-riam conseqüências na história da cultura e da so-ciedade brasileiras. Em nenhum desses casoshouve maiores conseqüências econômicas, maseles servirão para alargar os horizontes da tolerân-cia racial e cultural. Os vícios que vêm dos Des-cobrimentos e da colonização tendentes a reco-nhecer como vil o trabalho manual haviam sidoreforçados durante quase três séculos pelo regimeescravista. Pelas mesmas razões, os burguesesque se formaram na colônia e no Império foramincapazes de impor um novo estilo de vida, ab-sorvidos que foram pelo estilo dominante que as-sociava o poder e a riqueza à nobreza e aos fidal-gos. Foi assim que, na falta de uma nobrezabrasileira, criou-se uma por meio de ampla distri-buição de títulos no Império, especialmente no IIReinado. E, como já disse, a valorização do traba-lho livre só virá como conseqüência das migra-ções em massa de italianos e alemães, em fins doséculo XIX. Com referência aos valores, e comonão podia deixar de ser tratando-se de valores,são mudanças extremamente lentas, num proces-so que permanece em aberto até nos dias de hoje.

Na passagem do Império para a República,o mundo, que no dizer de Gilberto Freyre “o por-tuguês criou”, guardava surpresas maiores. Ex-pressão trágica destas – quase sempre em face derealidades muito antigas, mas, ao que parece, es-quecidas – se pode contemplar na guerra de Ca-nudos, que encontrou em Euclides da Cunha oseu melhor intérprete. Autêntico representante dopositivismo cientificista e do republicanismo dahora, Euclides da Cunha surpreendeu-se ao verque os mestiços, que no sertão guerreavam o po-der da República, não eram, ao contrário do quese supunha, monarquistas que reagiam ao novoregime republicano, nem tinham qualquer orien-tação política que se pudesse enquadrar em crité-rios contemporâneos. Eram apenas um povo po-bre que Euclides e os chefes militares presentesaos sucessivos combates aprenderam a admirarpela invulgar capacidade de resistência e de luta.

Com Euclides da Cunha, a inteligência brasileira eas cidades civilizadas mais ou menos civilizadasdo litoral começavam a descobrir um Brasil maisprofundo do que podiam imaginar, com raízesque pareciam perdidas no passado. Eram os po-bres do campo, dotados de uma religiosidadeprimitiva e embrutecida, que a colonização e amestiçagem haviam criado. Inspirada nos ideaismodernos, a inteligência brasileira começava adescobrir, separado dela, um país que não se po-dia compreender sem a história de um passadoque ainda vive.

É difícil exagerar a importância de Euclidese d’Os sertões, nesta descoberta. Na falta de umescritor de igual fôlego, uma outra grande guerrapopular de inícios da Primeira República, a doContestado (1912-1916), envolvendo massas po-bres do sul do país, de escala comparável à deCanudos, só nos últimos anos vem saindo do es-quecimento onde permaneceu durante décadas.E, contudo, nos dois casos, além da miséria dopovo do interior, o que nos surpreende é encon-trar de volta o misticismo que parecia perdido nosDescobrimentos e nos confrontos dos primeirosséculos. Esmaecido talvez nas elites influenciadasao longo do tempo pela Ilustração pombalina,pelo romantismo e pelo positivismo, o misticismodas origens parecia retornar nas primeiras déca-das do século XX. Agora, porém, no meio dasmassas pobres.

Identidade como desafio

Se o novo olhar, agora de dentro, passou aredescobrir um velho Brasil, com as suas antigasantinomias, revelou também a novidade de seconstituir numa indagação sobre a nossa identida-de, de modo mais definido do que teria sido pos-sível no passado, em especial na colônia. Tería-mos na tragédia de Canudos o velho contrasteentre civilização e barbárie de que falou Sarmien-to para a Argentina das primeiras décadas do sé-culo XIX? Creio que Euclides seria um Sarmientoquando partiu para o sertão, um intelectual repre-sentando a modernidade republicana contra o“atraso”, um convicto antagonista da “barbárie”

22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

sertaneja. O choque com os sertões mudou, po-rém, seus pontos de vista. Diferente do Facundo,Os sertões são a comovida descrição da grandetragédia brasileira da passagem do século XIXpara o XX: um país dividido entre o litoral e o in-terior, entre uns poucos ricos de umas poucasgrandes cidades e a inumerável e anônima pobre-za do interior. No campo do pensamento social,Euclides transmite ao leitor o sentimento nacionalda busca de uma síntese, como antes dele JoséBonifácio, José de Alencar e Joaquim Nabuco.

Teríamos, então, com este emergente pensa-mento nacional a reposição do velho tema da de-sigualdade natural? Sim, mas debaixo de olhosprofundamente críticos. O Brasil – a começar comos temas dos judeus, dos índios e dos negros – es-teve, desde sempre, às voltas com problemas de“incorporação social”, para uma vez mais tomaras sugestões de Richard Morse. A partir de Canu-dos, suas elites passaram a assumir a incorpora-ção do povo, isto é dos pobres, como o novo de-safio da sua própria construção nacional. Em quepese às muitas formas de manipulação das mas-sas rurais no “coronelismo” da Primeira República(1889-1930), como em todo o populismo da Se-gunda República (1930-1964), a questão de comoentender o povo pobre do interior e das cidadespassou a tomar lugar fundamental no pensamen-to nacional, ao lado do tema da construção dopróprio Estado nacional.

Sem poder resolver o tema da desigualdadeem termos práticos, o pensamento nacional foi aomenos capaz de começar a dissolver a legitimidadeda desigualdade “natural”; pelo menos no planopolítico, em que, como vimos, a emergência dospobres é fenômeno recentíssimo. A libertaçãodos escravos, ainda no Império, ocorreu algunsanos antes do episódio de Canudos. Embora hajaexperiências de imigração de trabalhadores euro-peus já no Primeiro Reinado (1822-1842), são defins do século XIX as migrações em massa de tra-balhadores europeus importadas para substituirnas fazendas a mão-de-obra escrava. Emboraanunciada de muitos antes, foi só no inicio do Im-pério que se começou a tomar consciência de queo Brasil era, para repetir a fórmula consagrada,um “pais sem povo”, passando-se a buscar os ca-

minhos para criá-lo.10 Mais adiante, onde se apre-sentava o caso, reconhecia-se dramaticamente asua existência. Criação e reconhecimento do povoque, como sempre, viriam dos intelectuais e doEstado, em qualquer caso de iniciativas de fora daprópria sociedade.

A era de Vargas, talvez o último desabrochardas influências pombalinas em nossa história, foitambém o último fruto desta grande seqüência his-tórica no decorrer da qual o Brasil conquistou suaproblemática identidade. Sob formas políticas di-versas, o que chamamos de era Vargas transcorreupor decênios, desde os anos de 1930 até os de1960, incluindo o esforço democratizante e moder-nizador de Juscelino Kubitschek (1955-1960) e agrande transição do Brasil rural para o país urbanoe industrial que conhecemos hoje. Um longo pe-ríodo histórico cujas fases iniciais envolveram, en-tre seus muitos intérpretes, figuras como GilbertoFreyre, com sua imagem da sociedade patriarcal eda mestiçagem, e Oliveira Vianna, que com a suateoria do amorfismo da sociedade oferecia ao Es-tado a justificativa para uma ação organizadora eautoritária, embora fosse o “autoritarismo instru-mental” (ou seja, instrumental para uma democra-cia futura), de que fala Wanderley Guilherme. Namesma linha de indagações sobre a identidade dopaís, tivemos na última etapa da era Vargas, comJuscelino Kubitschek, na virada da década de 1950para os anos de 1960, as concepções desenvolvi-mentistas de autores que se projetam a partir doInstituto de Estudos Superiores (Iseb), em especialHelio Jaguaribe e Celso Furtado.

As promessas

Trazendo essas anotações até o século XX,observa-se que, não obstante as diferenças de cul-tura e de trajetória histórica, o Brasil tem em co-mum com os Estados Unidos o fato de serem paí-ses de dimensões quase-continentais, uma grandeheterogeneidade racial e cultural e um passado desociedades escravistas. Tendo em comum com ospaíses ibero-americanos as origens culturais, dis-tingue-se deles por haver alcançado, em que peseà heterogeneidade, aliás, comum a todos, uma

AS ESCRITAS DE DEUS E AS PROFANAS 23

unidade cultural de alcance nacional que fez doBrasil o único país de origem lusa da América. Éunido por uma formação cultural que, além deuma religião dominante e um idioma comum, es-teve sempre vinculada a um processo de cresci-mento do Estado que, como já assinalado por Rai-mundo Faoro em Donos do poder, vem de séculosna história portuguesa. No que se refere especifi-camente ao Brasil, essa unidade cultural e estataltem a sua história desde que, em meados do sé-culo XVII, o pequeno Portugal começou a se darconta de que sua grande riqueza era a colônia ame-ricana. Depois disso, resolvidas as últimas pendên-cias em torno da linha das Tordesilhas, Pombaltratou de unificá-la em meados do século XVIII.No século seguinte, a preservação da unidade dopaís, agora independente, passou às mãos de Pe-dro I e Pedro II.

As razões culturais e estatais cooperarampara tal unidade em mais de uma dimensão. Aconquista do território não teria sido possível sema ação dos bandeirantes e sua preservação teriasido ilusória sem sua ocupação e defesa pelos po-voadores, de que as guerras holandesas são oexemplo mais eloqüente. Já na colônia, a partir demeados do século XVII e especialmente no sécu-lo XVIII, os colonos reconheciam-se como brasilei-ros; em parte como resultado do que aprenderamdos jesuítas, em parte por causa das iniciativas dePombal. Tudo isso levou a que a unidade culturaldo país se antecipasse à sua independência polí-tica. O que significa dizer que os brasileiros che-garam a se reconhecer como tais antes mesmo depoderem se reconhecer como súditos (ou cida-dãos) de um país independente.

Assim como somente a história do passadopermite compreender como este país, tão grandee diverso, se manteve unido, só a história do pre-sente permitirá resolver as questões herdadas deseu processo de formação, as quais, em muitosaspectos, continuam em aberto. Assim como ahistória permite compreender como a cultura na-cional de um país tão espantosamente desigualfavoreceu, no correr do tempo, a formação deuma cultura aberta, com uma visão bastante tole-rante das diferenças raciais e culturais, caberá àhistória, que continua em aberto, diminuir as tre-

mendas desigualdades herdadas. É a mesma his-tória à qual se juntam idéias e projetos que sesucedem e se superpõem uns aos outros no cor-rer do tempo, acabando por se enraizarem naterra brasileira, no encontro (e no choque) comas circunstâncias sobre as quais deveriam atuar.Os temas da origem continuam presentes: a mis-cigenação, a tolerância (ou intolerância) racial, adialética da desigualdade e da igualdade, a “incor-poração social” à qual se acrescentou nas primei-ras décadas do século XX o tema da democracia.Na verdade, todos esses temas estão nas promes-sas da origem, nem completamente realizadas enem completamente esquecidas. São os compro-missos, ainda em curso, da formação nacional.

NOTAS

1 “Nunca houve um povo mais seguro de que esta-

va no caminho certo” (cf. Boorstin, 1958, p. 5).

2 Evidentemente, a referência aos “americanos” em

Boorstin é cultural, não geográfica. Assim também

neste ensaio, onde as referências a “americanos”,

“anglo-americanos” e “norte-americanos” são inter-

cambiáveis. Para os povos habitualmente chama-

dos “latino-americanos”, prefiro usar a expressão

“ibero-americano”, o que evidentemente inclui to-

dos os americanos de origem lusa e espanhola. E,

portanto, também o México, geograficamente nor-

te-americano, assim como as populações “hispâni-

cas” residindo nos Estados Unidos. A expressão

“latino-americano” seria demasiado abrangente

para os fins deste trabalho, por incluir povos ame-

ricanos de origem francesa que, contudo, não são

aqui estudados.

3 Não é demais enfatizar a importância do pequeno

livro de Morse, tão descuidado nos Estados Unidos,

onde não chegou a ser publicado, não obstante a

nacionalidade norte-americana do autor. Merecida-

mente festejado no Brasil, as hipóteses de Morse

têm tido entre nós fecunda aplicação em estudos

sobre a história das idéias e da cultura, como por

exemplo no brilhante ensaio de Luiz Jorge Werneck

Vianna, “Americanistas e iberistas: a polêmica de

Oliveira Vianna com Tavares Bastos”, 1993.

24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 57

4 Fuentes, nesta passagem, acompanha Ramiro de

Maeztu.

5 Publicada em italiano em 1503, no ano seguinte a

Relação saiu na versão latina com o título Mundus

Novus (Veneza, 1504). Cf. Couto, Jorge, 1997, p.

193. A Lettera (1504), dirigida a Pedro Soderini, foi

traduzida em latim pelo cosmógrafo Martim Wald-

seemuller, originando em 1597 o neologismo Amé-

rica, criado pelo alemão. Tomas Moro informou-se

da primeira feitoria portuguesa em Vespucio, men-

cionada na Utopia (Louvain, 1516).

6 Há uma vasta literatura sobre o tema. Quanto aos

autores brasileiros, são obrigatórios Melo Franco

(1976) e Buarque de Holanda (1969). O magnífico

livro de Sergio Buarque trata, sobretudo, dos moti-

vos edênicos que acompanharam os navegadores

e os conquistadores em suas empreitadas.

7 A história dos conflitos entre os missionários, em

especial Las Casas, e os conquistadores encontra

uma bela descrição em Brading (1991).

8 Diz-se “achamento” daquilo que se sabe existir,

mas cuja localização se desconhece. Depois da via-

gem de Colombo, já se sabia de terras que os por-

tugueses imaginavam estivessem a leste da linha

das Tordesilhas. Além disso, antes de Cabral essas

terras já teriam sido visitadas por Duarte Pacheco e

Pinzón. Cf. Jorge Couto (1997, p. 182).

9 “A investigação desenvolvida nas últimas décadas

pelo comandante Max Justo Guedes no sentido de

interpretar os textos quinhentistas à luz dos condi-

cionalismos físicos do Atlântico Sul [...], bem como

por outros pesquisadores sobre a topografia e a hi-

drografia do litoral cabralino, conferiu bases signi-

ficativamente mais sólidas à tese da intencionalida-

de do descobrimento do Brasil”. Cf. Jorge Couto

(1997, p. 182). Jaime Cortesão (1940) tece argu-

mentos em favor de uma “teoria do segredo” do

Estado português já na época de D. Henrique.

10 Um ano antes da Independência, em 1821, saía

pela Imprensa da Universidade de Coimbra a Me-

mória de João Severiano Maciel da Costa, futuro

Marquês de Queluz, sobre a necessidade de abolir

a introdução dos escravos africanos no Brasil: “No

Brasil, por efeito do maldito sistema de trabalho

por escravos, a população é composta de maneira

que não há uma classe que constitua verdadeira-

mente o que se chama povo”. Esta observação se-

ria repetida “por Louis Couty sessenta anos depois,

com a mesma verdade, mas sucesso consideravel-

mente maior entre os leitores brasileiros”. Cf. W.

Martins (1992, p. 105).

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 201

AS ESCRITAS DE DEUS E ASPROFANAS: NOTAS PARAUMA HISTÓRIA DAS IDÉIASNO BRASIL

Francisco Correa Weffort

Palavras-chaveDescobrimento; Colonização;Império; República; Nação.

Este artigo discute a formação da

cultura brasileira. Como outros paí-

ses ibero-americanos, o Brasil apre-

senta a peculiaridade de ser um

país nascido de idéias e de projetos.

Nasceu de um complexo medieval

de motivos que incluiu ganância de

riqueza e poder, além de impulsos

religiosos, precedendo o capitalis-

mo comercial. Uma sucessão de

projetos acompanha a história do

país desde os primeiros planos da

Coroa para a colonização, vindo de-

pois os dos jesuítas e de Pombal,

com a questão central dos índios;

no Império, os projetos da forma-

ção de um Estado e de um povo

(para o “país sem povo”); na Repu-

blica Velha se inicia, com Canudos,

a descoberta do povo que se reali-

za, finalmente, na “era de Vargas”.

As grandes idéias e os projetos de

sua história deixaram marcas em

sua cultura política.

THE WRITINGS OF GOD ANDTHE PROFANES: NOTES FOR AHISTORY OF IDEAS IN BRAZIL

Francisco Correa Weffort

Keywords:Discovery; Colonization; Empire;Republic; Nation.

This article discusses the formation of

the Brazilian culture. Just like other

Hispanic countries, Brazil presents

the peculiarity of being a country

born of ideas and projects. It was

brought out from a medieval reason

complex including greedy for money

and power, as well as religious im-

pulses, preceding the commercial ca-

pitalism. A succession of projects fol-

lows the history of the country, from

the first plans of the Portuguese

crown for the colonization followed

by first the Jesuits and then Pombal,

with the central motif of the Indians;

in the empire, the projects to form a

State and some citizenry (to the

“country without citizenry”); in the

Old Republic there is a start, with Ca-

nudos, of the discovery of citizenry,

which finally arises in the “Vargas

era.” The so called great ideas and

projects along history have definitely

left grooves in the political culture.

LES ÉCRITS DE DIEU ET LESPROFANES : NOTES POURUNE HISTOIRE DES IDÉES AUBRÉSIL

Francisco Correa Weffort

Mots-clésDécouverte; Colonisation; Empi-re; République; Nation.

Cet article aborde la formation de la

culture brésilienne. Le Brésil, ainsi

que d’autres pays ibéro-américains,

présente la particularité d’être un

pays né d’idées et de projets. Il est

né d’un ensemble complexe de mo-

tifs médiévaux, parmi lesquels la

soif de richesse et de pouvoir, et de

poussées religieuses qui ont précé-

dé le capitalisme commercial. Une

succession de projets accompagne

l’histoire du pays: tout d’abord, les

premiers plans de la Couronne pour

la colonisation, ceux des jésuites et

de Pombal, ayant les indiens comme

question centrale; à l’Empire, les

projets de formation d’un État et

d’un peuple (pour le “pays sans

peuple”); à l’Ancienne République,

avec Canudos, a lieu la découverte

du peuple, découverte qui se termi-

ne au cours de l’ “ère de Vargas”.

Les grandes idées et les projets de

son histoire ont laissé des marques

dans la culture politique.