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As dificuldades em tomar decisões Apagão na política energética Continua na página 3 Norman Gall Felizmente, as chuvas chegaram. Graças a sua abundância no começo de 2002, o Brasil escapou da escassez de energia elétrica que trouxe a ameaça de apagões e forçou o racionamento que reduziu em 20% o consumo então considerado normal. O racionamento efetivo, aplicado pelo governo e apoiado pela população, produziu uma economia de consumo que maximizou o impacto dos novos aguaceiros. As chuvas inundaram de súbito os reservatórios brasileiros, alimentando um dos maiores sistemas de hidreletricidade do mundo, ao elevar o nível da água no período de escassez aguda (de 18% da capacidade das represas) para a média que se aproximou de 70%. No Nordeste seco, o nível dos reservatórios caiu para apenas cinco por cento. Os técnicos falam agora de um excedente de energia elétrica nos próximos anos, em lugar da escassez crônica que se temia há alguns meses. Mas também dizem que maior crescimento econômico, coincidindo com mais alguns anos de chuvas fracas, depois de 2003, repetiriam o desespero e a confusão da falta de eletricidade, causa do racionamento de 2001. Quando terminou o racionamento, este ano, o Comitê de Revitalização do Setor Elétrico do governo federal advertiu que “uma previsão equivocada de futura abundância poderia levar a umusoexcessivodosreservatórioseaoretardamento do programa de usinas térmicas, preparando o terreno para eclosão de nova crise, caso venha ocorrer outra estiagem grave no futuro”. Não obstante as enchentes do começo de 2002, os índices anuais de chuva ficaram 20% abaixo da média histórica. Os índices pluviométricos parecem se tornar cada vez mais irregulares a cada ano, tornando arriscados quaisquer prognósticos com séries históricas. O racionamento de energia do ano passado traz a dolorosa recordação de como o Brasil, na política de energia e em outras áreas, sofre por não ter fortalecido suas instituições de gestão e regulação do sistema elétrico. O problema não é novo. Por causa das disputas sobre tarifas de energia elétrica e as indecisões sobre o investimento na expansão da capacidade de geração, a longa estiagem de 1952 a 1954 provocou escassez de energia que se estendeu à década seguinte. Em todo o mundo no século XX, a eletricidade impregnou a vida moderna. Passou a ser considerada um bem tão essencial quanto o ar, a água e os alimentos, representando um pilar da sobrevivência humana. Esse pilar começou a vergar durante as ondas de inflação crônica da década de 1980 e começo de 1990, quando as empresas estatais sofreram colapso financeiro, sob o peso de demanda crescente de energia elétrica na presença de tarifas abaixo do custo real, fruto de interferência política que minou a sua capacidade de investir e operar. No período em que a expansão do sistema elétrico contribuiu de modo espetacular para o seu desenvolvimento econômico, o Brasil pôde crescer de forma acelerada, com mais estabilidade, sem as recorrentes incertezas do abastecimento de energia. O Brasil evitou que o racionamento de eletricidade de 2001 invadisse o período pré- eleitoral de 2002, depois do qual os políticos recém-eleitos enfrentarão problemas não resolvidos por seus predecessores. Os principais objetivos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) eram (1) pôr termo à inflação crônica; (2) obter o equilíbrio fiscal e (3) levar o Congresso a emendar a Constituição de 1988 para permitir, em 1998, sua reeleição para um segundo mandato de quatro anos. A realização desses objetivos gerou um clima de estabilidade política e de preços, que o Brasil não experimentara há décadas, produzindo elevação do padrão de vida da população. No entanto, cada medida necessária para estabilizar as finanças públicas e abrir a economia para o mundo exterior reclamava o apoio de uma volátil coalizão no Congresso, cujos membros exigiam influência nos ministérios-chave e nas empresas estatais, in- clusive no setor elétrico. Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado à Fundação Armando Álvares Penteado No. 32 2002 Norman Gall é diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel e editor de Braudel Papers. Este ensaio se apóia nos trabalhos de Peter Greiner, da Cadeira Roberto Campos de Política Energética do Instituto Braudel, que se encontram no site www.braudel.org.br. Algumas estatais de energia elétrica foram privatizadas, apesar da resistência da burocracia e de políticos que exigiram, em troca, a reestruturação de suas dívidas em bancos governamentais. A resistência política foi revivida na confusão que perdurou na recente falta de eletricidade. A privatização da geração e distribuição de eletricidade está paralisada há três anos. Muitas questões não resolvidas entorpecem esse vasto sistema de 64 empresas de distribuição (44 das quais no setor privado), 20 companhias de transmissão e 15 de geração, todas ligadas por uma rede de transmissão de proporções continentais e dependentes da água da chuva para atender a um consumo crescente. As empresas distribuidoras privadas cobrem, agora, 65% do mercado nacional, porém 80% da capacidade de geração ainda está nas mãos do Estado. O suprimento de gás, indispensável para a expansão da geração térmica pelo setor privado, está nas mãos da Petrobras, que há anos reluta em desenvolver e levar ao mercado Untitled-1 30/9/2002, 10:02 1

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As dificuldades em tomar decisões

Apagão na política energética

Continua na página 3

Norman Gall

Felizmente, as chuvas chegaram. Graças asua abundância no começo de 2002, o Brasilescapou da escassez de energia elétrica quetrouxe a ameaça de apagões e forçou oracionamento que reduziu em 20% oconsumo então considerado normal. Oracionamento efetivo, aplicado pelo governoe apoiado pela população, produziu umaeconomia de consumo que maximizou oimpacto dos novos aguaceiros. As chuvasinundaram de súbito os reservatóriosbrasileiros, alimentando um dos maioressistemas de hidreletricidade do mundo, aoelevar o nível da água no período de escassezaguda (de 18% da capacidade das represas)para a média que se aproximou de 70%. NoNordeste seco, o nível dos reservatórios caiupara apenas cinco por cento.

Os técnicos falam agora de um excedente deenergia elétrica nos próximos anos, em lugarda escassez crônica que se temia há algunsmeses. Mas também dizem que maiorcrescimento econômico, coincidindo com maisalguns anos de chuvas fracas, depois de 2003,repetiriam o desespero e a confusão da falta deeletricidade, causa do racionamento de 2001.

Quando terminou o racionamento, este ano,o Comitê de Revitalização do Setor Elétrico dogoverno federal advertiu que “uma previsãoequivocada de futura abundância poderia levar aum uso excessivo dos reservatórios e ao retardamentodo programa de usinas térmicas, preparando oterreno para eclosão de nova crise, caso venhaocorrer outra estiagem grave no futuro”.

Não obstante as enchentes do começo de2002, os índices anuais de chuva ficaram 20%abaixo da média histórica. Os índicespluviométricos parecem se tornar cada vezmais irregulares a cada ano, tornando arriscadosquaisquer prognósticos com séries históricas.

O racionamento de energia do ano passadotraz a dolorosa recordação de como o Brasil,na política de energia e em outras áreas, sofrepor não ter fortalecido suas instituições degestão e regulação do sistema elétrico. Oproblema não é novo. Por causa das disputassobre tarifas de energia elétrica e as indecisõessobre o investimento na expansão dacapacidade de geração, a longa estiagem de1952 a 1954 provocou escassez de energia quese estendeu à década seguinte.

Em todo o mundo no século XX, a eletricidadeimpregnou a vida moderna. Passou a serconsiderada um bem tão essencial quanto o ar,a água e os alimentos, representando um pilarda sobrevivência humana. Esse pilar começoua vergar durante as ondas de inflação crônicada década de 1980 e começo de 1990, quandoas empresas estatais sofreram colapso

financeiro, sob o peso de demanda crescentede energia elétrica na presença de tarifasabaixo do custo real, fruto de interferênciapolítica que minou a sua capacidade de investire operar. No período em que a expansão dosistema elétrico contribuiu de modo espetacularpara o seu desenvolvimento econômico, oBrasil pôde crescer de forma acelerada, commais estabilidade, sem as recorrentes incertezasdo abastecimento de energia.

O Brasil evitou que o racionamento deeletricidade de 2001 invadisse o período pré-eleitoral de 2002, depois do qual os políticosrecém-eleitos enfrentarão problemas nãoresolvidos por seus predecessores. Os principaisobjetivos do presidente Fernando HenriqueCardoso (1995-2003) eram (1) pôr termo àinflação crônica; (2) obter o equilíbrio fiscal e(3) levar o Congresso a emendar a Constituiçãode 1988 para permitir, em 1998, sua reeleiçãopara um segundo mandato de quatro anos.

A realização desses objetivos gerou um climade estabilidade política e de preços, que oBrasil não experimentara há décadas,produzindo elevação do padrão de vida dapopulação. No entanto, cada medida necessáriapara estabilizar as finanças públicas e abrir aeconomia para o mundo exterior reclamava oapoio de uma volátil coalizão no Congresso,cujos membros exigiam influência nosministérios-chave e nas empresas estatais, in-clusive no setor elétrico.

Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado à Fundação Armando Álvares Penteado No. 32 2002

Norman Gall é diretor-executivo do InstitutoFernand Braudel e editor de Braudel Papers.Este ensaio se apóia nos trabalhos de PeterGreiner, da Cadeira Roberto Campos de PolíticaEnergética do Instituto Braudel, que seencontram no site www.braudel.org.br.

Algumas estatais de energia elétrica foramprivatizadas, apesar da resistência daburocracia e de políticos que exigiram, emtroca, a reestruturação de suas dívidas embancos governamentais. A resistência políticafoi revivida na confusão que perdurou narecente falta de eletricidade. A privatizaçãoda geração e distribuição de eletricidadeestá paralisada há três anos. Muitas questõesnão resolvidas entorpecem esse vasto sistemade 64 empresas de distribuição (44 das quaisno setor privado), 20 companhias detransmissão e 15 de geração, todas ligadaspor uma rede de transmissão de proporçõescontinentais e dependentes da água dachuva para atender a um consumo crescente.

As empresas distribuidoras privadas cobrem,agora, 65% do mercado nacional, porém 80%da capacidade de geração ainda está nas mãosdo Estado. O suprimento de gás, indispensávelpara a expansão da geração térmica pelo setorprivado, está nas mãos da Petrobras, que háanos reluta em desenvolver e levar ao mercado

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2 BRAUDEL PAPERS

Soluções ao invés de mais confusãoPeter Greiner

Instituto Fernand Braudel deEconomia Mundial

Associado à Fundação ArmandoÁlvares Penteado (FAAP)Rua Ceará, 2 - 01243-010

São Paulo, SP Tel: (55 11) 3824-9633 Fax: 3825-2637

e-mail: [email protected]

www.braudel.org.br

Presidente Honorário: Rubens RicuperoConselho Diretor: Luís Carlos BresserPereira (presidente), Marcello ResendeAllain (vice-presidente), Roberto CamposNeto, Roberto Teixeira da Costa, EduardoGiannetti da Fonseca, Francisco Gros,Antônio Corrêa de Lacerda, Miguel Lafer,Arnim Lore, Luiz Alberto Machado, IdelMetzger, Charles B. Neilson, Mailson daNóbrega, Antônio Carlos Barbosa deOliveira, Maridite Cristóvão G. Oliveira,John Schulz, Beno Suchodolski, JoaquimElói Cirne de Toledo, Diego Theumann,Rick Waddell e Maarten Albert Waelkens.

Diretor executivo: Norman GallCoordenadores: Nilson Oliveira ePatricia Mota Guedes

Patrocinadores

AESBanco Lloyds

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AuditoresBradesco

Brascan BrasilBrascan Energia

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Icatu HoldingItaú

KlabinNatura

O Estado de S. PauloPhilipsPirelli

Safra - Projeto CulturalSiemens

Souza CruzVoith HydroVoith Paper

Votorantim (CBA)

Braudel PapersEditor: Norman GallEditores adjuntos: Nilson Oliveira eMarcones Macedo

Braudel Papers é uma publicaçãodo Instituto Fernand Braudel deEconomia Mundial com o especialapoio da Fundação Tinker,FutureBrand, KM .Distribuidora e OEstado de S. Paulo.

Todos os direitos de reproduçãoreservados ao Instituto Fernand

Braudel de Economia Mundial (2002)

I. Abortando uma razoável estratégia dereformaA reforma do setor elétrico brasileiro começou em 1995sem um modelo de mercado definido, que veio a serproposto no relatório da Coopers & Lybrand em 1997,envolvendo a participação de 200 técnicos do setor. Criou-se uma agência regulatória (ANEEL), um Operador Nacionaldo Sistema (ONS) e um Mercado Atacadista de Energia(MAE). Retomou-se a expansão em projetos paralisadosatravés de parcerias com o capital privado. Construiu-se ogasoduto Brasil-Bolívia visando o suprimento da demandadurante o período de transição.Sucessivas crises econômicas estimularam disputas políticasenfraquecendo o apoio da base política para as reformas. Apartir de 1999 um novo ministro de Energia passou apriorizar o PPT (Programa Prioritário de Termelétricas),negligenciando a reforma do setor, a privatização e odesenvolvimento de um mercado competitivo. Sem decididaliderança, a privatização e a desregulamentação não secompletaram, conforme ilustrado:1. O mercado atacadista (MAE) não foi implementado,estando pendente a liquidação de R$ 13 bilhões;2. Confusão e incertezas quanto às regras para aentrada de nova geração, em particular as térmicas,obrigadas a competir com hidrelétricas depreciadas, edependentes no gás de contratos de take-or-pay ecustos vinculados ao dólar;3. 80% da geração continua estatal, 30% de Itaipu e dasnucleares, e 50% de usinas amortizadas, quase todas abaixíssimo custo de produção;4. A competição com os baixos custos das instalaçõesestatais aliada a redução do consumo pelo racionamento efraca expansão econômica, afugentam os investimentosprivados nos projetos previstos;5. Total domínio da Petrobrás no mercado de gás, inibindoos investimentos privados, ainda que permitindo viabilizarprojetos no curto prazo;6. Incertezas e descontinuidade política levaram aoesvaziamento dos quadros profissionais do Ministério, comdemasiada concentração de funções na ANEEL, carente detécnicos qualificados.Essas deficiências vêem sendo amplificadas pela ausência deuma política energética e da redefinição e equilíbrio nasfunções das agências estatais.

II. A crise de suprimento em 2001 e complicaçõesadicionaisAo concentrar a atenção apenas no programa de geraçãotérmica, foram negligenciados importantes projetos emandamento como a Hidrelétrica Porto Primavera (1.800MW), a nuclear Angra II (1.360 MW), duas unidadesadicionais em Itaipu (1.500 MW) e transmissão deinterconexão que aumentaria a capacidade de intercâmbios.A extraordinária colaboração dos consumidores com oracionamento permitiu evitar apagões não programadoscomo os da Califórnia, com 20% de redução sobre oconsumo do ano de 2001. A crise terminou com a chegadado período das chuvas e, já em março de 2002, o sistemapassou a apresentar excedente. Os atuais níveis dosreservatórios garantem o fornecimento para 2002 e 2003.E, segundo a ANEEL e o ONS, os projetos autorizados emandamento cobrem as necessidades até 2006.Ainda assim continuam presentes fatores de confusão eincerteza, agravados pelas eleições.1. A queda na demanda criou graves problemas financeirospara as empresas concessionárias, enquanto as medidas decompensação adotadas pela Executivo e pelo Congressogeraram polêmica;2. Aumentou a resistência às reformas. Mesmo não sendocapaz de reverter o processo, a oposição está sendotentada a adotar modelo híbrido estatal-privado;3. Indefinições regulatórias e o excedente de energia em2002 inibem e retardam investimentos em projetos jálicitados, expondo o Brasil ao risco de novas crises energéticas;4. As dificuldades internas são agravadas pela desconfiançanos produtores estrangeiros como Enron e AES, pela falta

de credibilidade das economias emergentes após o colapsoda Argentina e o desencanto com os setores de tecnologia.

III. Diretrizes para evitar maior confusão, falhase uma crise mais séria de suprimentoDiagnósticos falaciosos insinuam o fracasso do modelo demercado e a falta de investimentos. Omitem acintosamenteque o modelo de mercado não foi implementado ecompletado e que o incremento médio anual da capacidadede geração, entre 1996 e 2001, foi três vezes maior que noqüinqüênio anterior (1990-1995), período de dominaçãoestatal. Diagnósticos falhos aumentam as incertezas eafligem investidores que hoje se questionam sobre apolítica setorial do próximo presidente.Propor um modelo híbrido de capital - estatal e privado -releva o fato que as estatais possam prejudicar a competiçãoao manipular os preços por seus custos amortizados.Dado que todos os candidatos defendem a retomada docrescimento econômico, é provável que o próximopresidente tente recorrer a investimentos estataisdispensando uma reforma sistêmica mais duradoura. Comochamariz, se oferece a possibilidade de obter receitasadicionais aumentando o preço da energia amortizada dasestatais e a capacidade de alavancagem da Petrobras emcima do diferencial do preço do petróleo sobre os US$11/barril que lhe custa o petróleo cru nacional - hoje 80% doconsumo.Essa estratégia teria curta duração: os capitais privados seretrairiam e a reforma pendente seria adiada, colocando opaís no risco de uma crise de energia ainda maisdramática.Assim, uma pauta responsável de ação no setorenergético deveria considerar as seguintes diretrizes:1. Conjugar a política energética com uma estratégia dedesenvolvimento econômico focado na segurança dofornecimento, racionalização do consumo e estabelecimentode um modelo de financiamento sustentável.2. Reservar à política energética um lugar permanente naagenda econômica do governo, com um papel chave parao Conselho Nacional de Política Energética, reformulado.3. Criar, no seio da Eletrobrás, um Instituto Nacional deEnergia, de forma que ela cumpra com duas funções básicas:(a) gerenciamento dos ativos estatais remanescentes epromoção de projetos estratégicos, e (b) consultoria aoministro das Minas e Energia na gestão e desenvolvimentode programas.4. Manter o papel da Petrobras na diversificação doacesso brasileiro às fontes primárias de petróleo e gás,tanto em território nacional quanto no exterior, massob condições de competição efetiva no mercadonacional, especialmente com relação ao refino,distribuição e gás natural.5. Diversificar a matriz energética para maximizar asegurança no fornecimento e reduzir os riscos de instabilidadee dependência, com estoques de reservas estratégicos eplanos de emergência.6. Promover intercâmbios de energia na América Latina,garantindo o maior acesso possível, direta ou indiretamente,às fontes primárias de energia, fortalecendo o mercadoregional e promovendo o desenvolvimento dos paísesparticipantes.

IV. Políticas energéticas e eficiência institucionalComo indicado nesta breve análise e nas diretrizes, aesfera da energia exige não apenas boas proposições eintenções, mas uma gestão competente, estável eduradoura, como inferido nas seguintes propostas.

Energia elétrica1. Instruir a ANEEL a delegar à Eletrobrás, funçõestécnicas não regulatórias como inventários e estudos.2. Estabelecer bancos de dados com atualizaçãosistemática de informações transparentes, auditadas, paraque governo, sociedade e consumidores possam terconhecimento real, sem viés político, da realidade daindústria de eletricidade.3. Retomar o planejamento de longo prazo.

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BRAUDEL PAPERS 3

Peter Greiner é ocupante da Cadeira RobertoCampos de Pesquisa em Política de Energia noInstituto Braudel. Foi secretário Nacional deEnergia de 1994 a 1999.

essa nova fonte de energia. A questão básicaneste ensaio é: Como construir uma estruturajurídica e política, com credibilidade, paramobilizar investimentos com vistas a atender ademanda de eletricidade nas décadas vindouras?

Colhendo das correntezas

O Brasil é um país de sorte. Tem três grandesbacias hidrográficas, a do Paraná, a do São Franciscoe a do Amazonas. Na segunda metade do séculoXX, os grandes rios foram represados em muitasquedas d’água, afunilando-se em turbinas gigantespara transformar a economia e a sociedade, comeletricidade barata e abundante, transmitida dasrepresas às cidades distantes. As hidrelétricas, audazesempreendimentos de uma nação atrasada,assumiram a feição dos maiores e mais complexosprojetos da história do Brasil, capacitando-o acolher o rápido progresso tecnológico que acelerouno mundo no século anterior.

Os gregos e romanos antigos podiam con-verter a força das correntezas em movimento derotação de pedras para moer o trigo. O uso dosrios como fonte de energia teve ampla difusão naEuropa medieval, não somente para a moagem,mas também para serrar madeira e fazer tecidos,ferro, seda, vasilhame de cobre e armas. Povoadose cidades cresceram em torno dessas indústriase mercados. Mas a mobilização da força dos riosnuma grande escala teria de esperar descobertase invenções mais recentes.

Um passo crítico foi a descoberta, em 1831, porMichael Faraday, que, movendo um circuitocondutor na presença de um magneto, pôdecriar uma corrente elétrica. Antes e depois dadescoberta de Faraday, explorações isoladasforam feitas por centenas de homens sem osrequisitos de cientista profissional no conceito dehoje. Depois de um dos mais célebres dessesexperimentos iniciais, ao atrair um raio a umachave pendente de um “papagaio” durante umatempestade, Benjamin Franklin anunciou em1751: “que o Fogo Elétrico é um elemento real,e diferente dos até aqui conhecidos e citados...”(E assim inventou o para-raios). A eletricidadeainda era, segundo o historiador econômicoDavid Landes, “uma curiosidade científica, umobjeto de experiência de laboratório”. Nas décadasapós a descoberta de Faraday, invenções emcascata reforçaram umas às outras: a primeira foio gerador eletromagnético auto-excitador; depois,o dínamo de anéis para gerar corrente direta deefeito comercial; alternadores e transformadorespara produzir e converter a corrente alternada dealta voltagem, e os progressos na fabricação dechapas metálicas de condensador elétrico, cabose isoladores. Joseph Swan (1828-1914), inventorda lâmpada incandescente, recordava:

Os dias de minha juventude eram umprolongamento da era da escuridão, poiseu nasci quando a luz fraca de uma velade sebo ou o reverberar da terra eram osmeios comuns de iluminar o interior dascasas, (quando) as pessoas simples,querendo ver mais cedo a luz do dia, iampara a cama logo depois do pôr do sol.

Em 1900, o Brasil ainda estava nessa “era deescuridão”. Seu consumo de energia comercialera quase nulo. Eram então 18 milhões debrasileiros, comparados com os 174 milhões dehoje. A esperança de vida ao nascer era deapenas 30 anos em 1900, comparada aos 68 anos

Continuação da página 1

4. Manter os princípios do novo modelo:competição, liberdade de escolha do consumidor,regulação visando a manter a eficiência do mercado,regras claras e estáveis e a preservação daindependência do regulador.5. Corrigir as falhas e omissões da legislação,focando entre outros: “serviço público”, “serviçopelo preço”, “equilíbrio econômico e financeiro” ea criação de companhias de transmissões regionaisao invés da pulverização do sistema via leilões.6. Consolidar um Código de Energia.7. Uniformizar o tratamento do preço da “velha”eletricidade gerada nas plantas amortizadas emconjunto com a nova capacidade agregada ao sistema.8. Harmonizar os atuais critérios de financiamentoeconômico (10 a 12 anos de amortização) com osprazos de concessão (30 anos) a fim de evitarelevados lucros excedentes e intervençõesregulatórias discricionárias.9. Estabelecer tar i fas de transmissãopromovendo melhor sinalização econômica egarantia de livre acesso.10. Realizar novo inventário hidrelétrico paraidentificar prioridades, incluindo benefícios delongo prazo não considerados atualmente, taiscomo vida úti l das instalações e menordependência de combustíveis importados.Estabelecer prioridades e critérios de alocaçãode recursos para os novos projetos.11. Estudar a opção de se construir a usina nuclearde Angra III para manter o desenvolvimentotecnológico nesse setor.

Petróleo e gás natural1. Criar um mercado de gás natural competitivoseparando a companhia transportadora de gás daPetrobras e eventual venda de parte de seus direitosde importação de gás da Bolívia.2. Promover a privatização parcial do parque derefino da Petrobras, vinculado ao aumento deinvestimentos na capacidade, de forma ajustada àscondições do mercado internacional, atualmenteofertado abaixo do custo de expansão.3. Proceder com à desregulamentação controladados preços exercidos pela Petrobras, em consonânciacom a evolução de sua efetiva competição no mercado.4. Facilitar a importação de petróleo cru, produtosrefinados e gás natural, enfatizando o livre acesso aotransporte e armazenagem.5. Harmonizar a regulação da produção deeletricidade e gás natural, bem como a distribuição, afim de viabilizar as termoelétricas.6. Construir gasodutos na Amazônia para transportargás natural das reservas de Urucú e Juruá até as cidadesde Manaus e Porto Velho. Produzir óleo diesel oumetanol em Coari para eletrificação de comunidadesnos sistemas hídricos da bacia Amazônica.

Fontes alternativas de energia1. Reativar o programa do álcool sob um formatoestável, objetivando maior eficiência com aumentosde escala de produção e o equilíbrio para a indústriasucro-alcooleira, garantindo, ao mesmo tempo, ofornecimento seguro do combustível.2. Estimular a co-geração com a queima do bagaçoda cana e o aumento dos veículos multi-combustíveispara expandir o mercado para o álcool.3. Promover a co-geração (eletricidade comprocesso de aquecimento ou refrigeração) comfinanciamentos adequados.4. Racionalizar e dar transparência aos subsídiosvinculando-os à amortização de créditos paradiferentes tecnologias e fontes alternativas de energia,inibindo sua perpetuação.

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em 2000. Mas o Brasil já começava a entrar noprogresso tecnológico mundial, capacitando estevasto país, preso ao analfabetismo e as endemias,a tornar-se uma das economias de mais rápidocrescimento do Século XX.

Em 1881, foi instalada na Inglaterra a primeiracentral elétrica para consumo do público. Já em1883, a primeira central elétrica municipalcomeçou a operar em Campos, no Estado doRio de Janeiro. Poucos anos depois as primeirashidrelétricas começaram a funcionar na Françae na Suíça, com uma tecnologia que se propagoucom rapidez. Em 1889, a primeira hidrelétricabrasileira começou a servir uma fábrica detecidos em Juiz de Fora, Minas Gerais, iluminandotambém a cidade.

Uma importadora alemã mandou seusvendedores ao interior do Estado de São Paulo,para oferecerem crédito fácil aos fazendeirospara instalar hidrelétricas, abastecendo suasfazendas, fábricas e cidades. Investidoresestrangeiros logo trouxeram novas tecnologiaspara a América Latina. “No Brasil, os principaisinvestidores eram a Brazilian Traction, Light andPower, com sede em Toronto, (a Light), e aAmerican and Foreign Power (AMFORP). Em1889, a Light começou a operar serviçospúblicos em São Paulo e Rio de Janeiro(empresas de bondes, gás e telefone).Instalou centrais elétricas hidráulicas etérmicas para apoiar essas operações esuprir a demanda urbana crescente. AAMFORP operou no interior de SãoPaulo e em várias capitais de estado.

Entre 1913 e 1929, a produção mundialhidroelétrica multiplicou-se 240 vezes,somando 40% de toda a eletricidadeproduzida. O Brasil acompanhou essatendência mundial. O incremento dademanda de energia elétrica excedeumuito o crescimento da economia. Em1928, a Light inverteu o curso do rioTietê, criando uma queda d’água de 720metros, na Serra do Mar, perto de SãoPaulo, alimentando um complexo sistemade represas, canais, estações de bombeamento ecentrais de energia elétrica, subterrâneas e desuperfície. Dessa forma, a montanha costeira foitransformada, de barreira ao desenvolvimentodo interior, numa grande fonte de eletricidadedurante os decênios de 1930 e 1940.

Em 1951, o Brasil ainda não possuía uma sódas 170 maiores usinas hidrelétricas (acima de75 MW de capacidade). Em 1997, o Brasiltornou-se o terceiro maior produtor hidrelétricomundial (depois do Canadá e dos EstadosUnidos) e o segundo do mundo na dependênciade hidreletricidade (depois da Noruega), com92% de seu abastecimento.

Em 1950, os Estados Unidos tinham a maiorconcentração mundial de hidrelétricas. Poucodepois, o Brasil absorvia a cultura das grandesbarragens, ao longo dos rios que cortam omaciço do Planalto Central. O primeiro dessesgrandes projetos foi Paulo Afonso I, no SãoFrancisco, concluído em 1962, seguido de Furnas(1963), Jupiá (1969), Funil (1969), Ilha Solteira(1973) e muitos outros. Em geral, os primeirosprojetos desse período foram elaborados eexecutados por empresas estrangeiras deengenharia e construção. Mas ao mesmo tempoos brasileiros iam ganhando experiência em lidarcom essas tecnologias. Engenheiros brasileirosvisitaram barragens nos Estados Unidos,

Escandinávia, Suíça, França, Egito, Rússia eChina, adquirindo conhecimento para organizargrandes projetos. Os engenheiros brasileirostradicionais eram cautelosos frente o desafío degrandes barragens. Mas Sebastião Camargo, queiniciou sua carreira de empreiteiro transportandoterra no lombo de burros na construção deestradas no interior de São Paulo, revelou audáciaao propor um projeto alternativo para construirJupiá quando já estava na rota de criar a maiorconstrutora do Brasil.

“Nós éramos um país pobre, vasto, vazio, quenão possuía estradas que levassem ao sítio dasquedas d’água”, lembra José Gelásio da Rocha,chefe da construção de Jupiá. “Nós mesmostínhamos de construir a infra-estrutura”. Pelaprimeira vez, a mobilização de materiais,maquinaria e trabalhadores concentrava recursosem lugares isolados no interior do país. Desviamosrios. Milhões de toneladas de concreto foramdespejado de misturadoras gigantes.Enormesguindastes encheram a estrutura de barragenscolossais, atravessando vales e cânions. Empresasestrangeiras e fabricantes de equipamento,

começaram a montar grandesgeradores, turbinas e

transformadores

no Brasil para atender à onda crescente depedidos das empresas estatais.

Essas realizações técnicas capacitaram o Brasil adesenvolver a monocultura hidrelétrica que nutriua rápida urbanização e a industrialização, assimcomo apoiaram melhoramentos nas redes decomunicações, distribuição e informação, noprocessamento de alimentos e nos progressos damedicina. Desde 1950, a produção de eletricidadepassou de apenas 5,5 bilhões de quilowatts-hora(kWh) para 332 bilhões, um incremento de 20vezes no consumo por habitante. Desde 1970, onúmero de residências com energia elétrica cresceude 35% para 95%, hoje, um grande salto namodernização da sociedade brasileira. A questãoposta pela recente escassez de energia elétricaconsiste em saber se essa modernização continua.

A crise desnecessária

A abundância de recursos naturais no Brasiltem sido minada pela fragilidade institucional.As questões técnicas da oferta e demanda deeletricidade se perdem em centros de decisãodispersos e negligentes. Havia um rosário deprojetos não concluídos que teriam adicionadocapacidade de geração e transmissão suficientepara compensar a falta de chuvas em 2001. OTribunal de Contas da União (TCU) julgou que

“demoras e falhas na implementação de projetoscontribuíram em 41% para o esvaziamento dosreservatórios e foram identificados como aprincipal causa da crise de energia”. Essesprojetos do setor público atrasaram por falta defundos, procedimentos burocráticos onerosos,disputas sobre meio ambiente e manipulaçãopolítica, tudo isso elevando enormemente oscustos. Eis alguns exemplos:

· Em 1980, o governador de São Paulo, PauloMaluf, assinou contratos para a construção dabarragem de Porto Primavera, com capacidadeprevista de 2.000 megawatts (MW), no pontoonde o rio Paraná forma a divisa entre os Estadosde São Paulo e Mato Grosso do Sul. PortoPrimavera era um dos cinco projetos hidrelétricoslançados por Maluf a pedido do Ministro doPlanejamento Antonio Delfim Netto para permitirque os créditos de fornecedores estrangeirosgerassem caixa às vésperas da crise da dívidaexterna latino-americana dos anos 80. Malufconcordou com entusiasmo, distribuindocontratos para os cinco projetos entre grandesempresas de construção, que costumam contribuiràs campanhas eleitorais. A condução simultâneade cinco projetos afogou a CESP, a empresaestadual paulista de energia elétrica, pesadamenteendividada. A CESP ficou sem dinheiro, causandodemoras de execução e acumulando encargosde juros à medida que a construção de PortoPrimavera se arrastava por duas décadas, antesde ser inaugurada em 2000, agora com novonome, em memória de Sérgio Mota, ministro dasComunicações. Não obstante, o reservatório sóficou cheio em 2001, na véspera do racionamento,por disputas com o governo de Mato Grosso doSul sobre o impacto no meio ambiente e a ofertade residências para desalojados. A produção dausina chega a apenas dois terços de sua capacidadeporque somente há pouco suas turbinascomeçaram a ser instaladas, em vez de durantea construção. O orçamento original estava fixadoem US$2 bilhões, mas o custo final do projetobateu em US$10 bilhões.

· O racionamento teria sido evitado se ogoverno tivesse construído linhas de transmissãopara transportar energia para as cidades doSudeste, a partir da central elétrica binacional deItaipu, de 12.600 MW, a maior do mundo, no rioParaná, na fronteira com o Paraguai. Umaterceira linha de transmissão de Itaipu atrasouaté 2002 porque, em concorrência públicainternacional, um fornecedor da Ucrânia propôso preço mais baixo para os transformadoreslicitados, os quais explodiram quando estavamsendo instalados. Novos transformadores tiveramde ser adquiridos. O governo falhou em construiruma linha de transmissão, de custo relativamentebaixo, entre Curitiba e São Paulo, que teriatransportado sobras de energia das hidrelétricasdo Sul, região com chuvas abundantes em 2001,durante a estiagem no Sudeste.

· A usina nuclear de Angra II (1.360 MW), aprimeira e única de oito usinas que seriaminstaladas segundo o acordo nuclear Brasil-Alemanha, assinado em 1975, esteve emconstrução durante 25 anos, acumulando juros ecustos em ascensão e aumentando as dívidas dosetor elétrico federal. Mesmo depois de concluídoo projeto, em 2000, Angra II teve de passar porum funil de aprovações de diferentes agênciaspúblicas antes de iniciar a produção de energia,em 2001. O atraso de Angra II, provocou ainadimplência de Furnas, estatal federal, nos seus

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contratos de fornecimento junto aos distribuidores,o que minou a credibilidade do governo juntoaos investidores privados.

· No momento em que a comunidade financeirainternacional exprimia sua preocupação dianteda escassez de eletricidade e em face da suacrescente dívida pública do Brasil, a Eletronortecompletava a segunda etapa da enormehidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, naAmazônia, ao custo de US$1,5 bilhão, instalando11 novas turbinas para adicionar 4.000 MW aos4.000 já em operação. Contudo, Tucuruífuncionará principalmente na estação chuvosa,utilizando apenas parte de sua capacidadeprevista, devido à falta de um reservatório, rioacima, para regular o fluxo de água do rio naestação de estiagem.

Em 2001-02, o Brasil conseguiu superar aescassez de modo criativo, evitando os apagõesque a Califórnia sofreu na mesma época. NoBrasil, contudo, o apagão ocorreu na políticaenergética, na incapacidade de o governo tomardecisões que estabilizaria o fluxo de recursospara o setor, em fase crítica de mudança. Àmedida que o racionamento abrandava em finsde 2001, dois renomados ex-ministros de Minase Energia e dois ex-presidentes da Eletrobrásescreveram no jornal O Estado de S. Paulo:

Nossas preocupações aumentam quandoobservamos que o país ainda não identificouos meios para garantir o êxito naimplementação de novo modelo (por causada) discórdia entre o Ministério da Fazendae o de Minas e Energia, entre a Eletrobrás eo BNDES, sobre objetivos em conflito e sobrea privatização de empresas governamentais.

Anteriormente, Francisco Gros, ex-presidentedo Instituto Fernand Braudel de EconomiaMundial, então presidente do BNDES e agorapresidente da Petrobras, declarou perante umaplateia de profissionais: “A confusão é tãogrande que parece ter sido imaginada porfuncionários do setor elétrico para garantir seusempregos por muitos e muitos anos”.

O que aprendemos?

Tendo diante de si a ameaça de repetição daescassez, o Governo Federal tomou importantesiniciativas ao concentrar as principais decisõesna Câmara de Gestão da Crise de Energia, paraelevar as tarifas de energia elétrica a níveiscapazes de atrair investimentos; concederconcessões de novas linhas de transmissão;montar uma realista base jurídica e econômicapara os contratos de fornecimento de longoprazo; reorganizar o mercado de venda deenergia por atacado e dirimir conflitos entre osfornecedores públicos e privados e as empresasgeradoras e distribuidoras. No entanto, muitasdecisões de natureza política caíram no cipoalda guerra de trincheiras entre interessesburocráticos e comerciais, em leis e regulamentoscontraditórios e em disputas judiciais eregulatórias que pareciam infindáveis. O governoressente-se da falta de mecanismo político paratomar decisões, segundo linhas economicamenteracionais, e pôr em vigor as decisões.

1. O vácuo do processo decisórioNão se criou autoridade institucional para

estabelecer prioridades e tomar decisões em

substituição às gigantescas empresas estatais, cujotamanho e poderes foram reduzidos pelaprivatização. As novas leis aprovadas de 1995 a1998 puseram fim aos monopólios públicos emgeração de eletricidade e transferiram para o setorprivado a administração e a propriedade da infra-estrutura. Definiu-se a estratégia básica para (1)criar a Agência Nacional de Energia Elétrica(ANEEL), como órgão regulador principal; (2)subdividir empresas estatais integradasverticalmente em unidades independentes degeração, transmissão e distribuição; (3) criarmecanismos e instituições de mercado competitivo,oferecendo aos produtores independentes livreacesso às redes de transmissão e distribuição; e, (4)passar gradualmente da fase de transição depreços administrados para a de preços competitivosà medida que o novo mercado de energia elétricasaía dos 98% de propriedade estatal para aparticipação privada. Nos primeiros quatro anosdo governo FHC mais do que dobrou o ritmo deincremento anual de geração. Foram construídosnovas linhas de transmissão e gasodutos parainterligar regiões e alcançar áreas remotas. Foramconcluídos 23 projetos paralisados. Revogaram-seconcessões para muitos projetos que nunca saíramdo papel. Não obstante, o legado de negligênciacobrou a sua parte.

Ninguém foi capaz de implementar de modoefetivo a nova estratégia, depois de uma mudançade titular no Ministério de Minas e Energia, em1995, sob pressão da coalizão partidária. Técnicose executivos do setor público foram recrutadospara regular um sistema novo com o qualpouco simpatizavam, enquanto se fazianecessária competência técnica para operarnum ambiente regulatório novo. A complexidadedo sistema era pouco conhecida dos políticosque faziam as leis e nomeavam essesfuncionários. As novas agências regulatórias eas velhas empresas estatais, como a Eletrobráse a Petrobras com suas muitas subsidiárias,vieram a operar por conta própria, num mundoflutuante, tendo pouca orientação e supervisão.

O setor de energia subsistiu como um campode clientelismo e rivalidades políticas, entrelíderes parlamentares, chefes regionais e senhoresde domínios burocráticos, mesmo depois que osníveis médios dos reservatórios começaram adeclinar de modo constante nos anos 90. Du-rante décadas, todas as fações políticas

sucumbiram à tentação de usar as empresaselétricas estatais como “vacas leiteiras” para sugarorçamentos, financiar campanhas eleitorais ouganhar votos por meio de subsídios ao consumocom a instauração de “tarifas sociais”.

O Ministério de Minas e Energia perdeupoder, deixando as grandes decisões numvácuo de responsabilidade política. Emergiamdisputas insolúveis sobre normas e preços entreinteresses diametralmente opostos de empresasgeradoras e distribuidoras, enquanto 80% dageração ficava nas mãos de administradoresestatais pouco interessados na reestruturaçãodo setor. Para obter apoio no Congresso, FHCcedeu o controle do setor elétrico ao Partido daFrente Liberal (PFL), quando a indústria deeletricidade exigia nível elevado de capital econhecimento técnico. O programa deestabilização monetária impediu o governo deusar a inflação para financiar o investimentopúblico, como no passado.

Entre maio de 1999 e janeiro de 2001, o nívelda água acumulada nos reservatórios do Sudeste,o principal mercado de energia elétrica do país,caiu de 70% para 18%. Alguns técnicos insistiramna urgência de uma redução do consumo daordem de 10%, em começos de 2000, semesperar que a escassez se agravasse, mas nãoforam ouvidos. “A ocorrência de severoracionamento, poucos meses depois que altosfuncionários disseram que não haveriaproblemas”, o Comitê de Revitalização observou,“significa que devem ser introduzidos meiosna operação do sistema de modo a se evitaresse risco”.

Com a instauração do racionamento de 20%,em meados de 2001, FHC nomeou PedroParente, Ministro-Chefe da Casa Civil, paradirigir a Câmara da Crise de Energia, depois dedeclarar que a burocracia tradicional do sistemaelétrico não o advertiu da escassez. ComoParente não tinha experiência anterior no setorelétrico, seguiu-se um frenético período deaprendizado, no segundo semestre de 2001, atéque as chuvas chegaram. O racionamento noBrasil, com generalizadas economias deconsumo e um mercado secundário de quotasde energia entre os usuários industriais, foiadministrado com mais prudência que naCalifórnia, onde os súbitos apagões e surtos depreços geraram pânico. Foi então suspenso o

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bem sucedido esforço de racionamento,deixando sem solução muitas incertezasinstitucionais e regulatórias.

O Comitê de Revitalização formou grupos deespecialistas que trabalharam intensamente en-tre junho de 2001 e junho de 2002, publicando43 recomendações para aperfeiçoar o modelodo setor. Poucas das 43 propostas foramimplementadas, até que o novo ministro daEnergia, Francisco Gomide reduziu-as a apenasseis, na esperança de ver alguma coisa feita nosmeses que restam do governo FHC. Nomeadoem meados de 2002, Gomide é o primeiroprofissional do setor elétrico a tornar-se ministrodesde que Cardoso tomou posse em 1995.

As principais questões que o próximo governoterá de enfrentar incluem o prosseguimento doprograma de privatização; a conversão do novomercado de venda de energia por atacadodentro de uma realidade comercial; acabar coma integração vertical da nova indústria do gásnatural, ora sob controle da Petrobras, com aabertura do mercado à concorrência;compensação para as flutuações de preço e decâmbio; definição dos papéis da geração deeletricidade hidráulica, térmica e nuclear, e dasfontes alternativas de energia. A verdadeiracrise da eletricidade é de natureza estrutural,agravada pela paralisação do processo dereforma. Várias medidas pendentes aguardamação por parte do presidente e do Congressoque tomarão posse em janeiro de 2003.

2. Preços da energia: diálogo de surdosA história das tarifas de energia elétrica, na

maior parte do século XX, está ligada à inflaçãocrônica, suportada por empréstimos oficiais,externos e internos, e pela erosão do poder decompra de sucessivas moedas brasileiras. Emborao Brasil tenha conseguido dar um grande salto noconsumo de eletricidade em décadas recentes, amoral desta história, no fim das contas, é que secolhe o que se planta. Mesmo que os preços daeletricidade de consumo sejam mantidosartificialmente baixos, os altos custos reais,incluindo o serviço da dívida, serão eventualmentepagos por meio de impostos.

A manipulação política das tarifas de energiafoi inaugurada pelo Código de Águas de 1934,sancionado pelo presidente Getúlio Vargas,que deu poderes ao governo federal para fixartarifas. O Código limitou os lucros dos serviçosde utilidade pública a 10% sobre o valorhistórico nominal do investimento, sem reajustepara compensar a inflação de 18% ao ano, de1946 a 1961, pulverizando o valor real tanto dopatrimônio quanto da renda.

Demorou em se fazer sentir o impacto doCódigo de Águas sobre o abastecimento deenergia elétrica, porque a capacidade de geraçãodas empresas estrangeiras permaneceu acimada demanda de pico até depois da II GuerraMundial. No entanto, como o crescimentorápido da economia e da demanda deeletricidade absorveu o excesso de capacidadegeradora, houve períodos de racionamentodurante as duas décadas seguintes, mesmo emanos de chuvas abundantes. Em 1954, observoua Comissão Mista Brasil-Estados Unidos deAssuntos Econômicos:

Em tempos de grave sobrecarga do sistema,a empresa de energia elétrica não tem opçãosenão desligar determinados circuitos... semdar aviso aos consumidores de energia da

área... Os fabricantes de pneus perdem umdia de produção quando ocorrem tais cortese mais um dia para a necessária limpeza doequipamento. A suspensão do fornecimentode energia para os fornos de vidro suspendea circulação do ar usado para resfriar asparedes dos fornos, pondo em perigo adurabilidade e a resistência dessas paredes.

As concessionárias estrangeiras de energiaelétrica receberam apenas um reajuste de tarifasem duas décadas após a aprovação do Código deÁguas de 1934. Mas o governo conseguiu mantê-las em atividade concedendo-lhes taxas de câmbiopreferenciais e permitindo a cobrança de adicionalsobre a tarifa no caso de incremento de custosespecíficos. Não obstante, esse tipo deimprovisação não conseguiu persuadir asempresas a investir em nova capacidade degeração, passando elas a comprar energia dasnovas empresas estatais que construiram novasbarragens. O investimento público em geraçãode eletricidade era tão intenso que, segundo oantigo ministro de Energia, Antônio Dias Leite,durante o Programa de Metas do PresidenteJuscelino Kubitschek (1956-1961), “o setor deenergia absorveu quase metade do orçamentototal desse plano, e a geração de energia elétricametade dessa metade. Na execução do Programa,a eletricidade teve prioridade”.

Travou-se batalha entre os defensores daenergia elétrica desenvolvida pelo setor públicoou pelo setor privado. Em 1960, John Cotrim,então presidente de Furnas, favorável a tarifasaltas, lançou um desafio:“Ou decidimos de umavez por todas oferecer à iniciativa privada ascondições de sobrevivência e expansão, ou opaís terá de enfrentar a absorção desses serviçospelo governo”. Em 1962 foi criada a Eletrobrás,empresa holding estatal que ofereceu a basejurídica para o controle governamental do setor,embora permitindo que as companhias Lightcontinuassem com a distribuição no Rio deJaneiro e em São Paulo. Em 1964, o Ministro deMinas e Energia do novo governo militar,Mauro Thibau, persuadiu o ministro da Fazenda,Octavio Bulhões, a decretar o reajuste automáticodas tarifas de eletricidade e do valor ao ativo dasempresas, segundo o índice de inflação.“Preocupava Bulhões o impacto das tarifas deenergia sobre a taxa de inflação”, disse Thibaumais adiante, “mas eu o convenci de que ascoisas seriam muito piores se houvesse escassezde eletricidade”.

Por todo o mundo, os grandes projetoshidrelétricos tendem a ser executados porempresas estatais, as quais, de súbito, aumentamde modo considerável a oferta de energia.Houve exceções, naturalmente. A grande Pa-cific Gas & Electric Co.(PG&E), que entrou emfalência na recente crise da Califórnia, erapioneira das hidrelétricas. Porém, em 1949, nosEstados Unidos, quatro quintos de todas asusinas hidrelétricas, já instaladas ou emconstrução, pertenciam ao setor público. Houveexcessões, naturalmente. A grande Pacific Gas& Electric Co. (PG&E), que foi a falência na criseda Califórnia, foi pioneira na engenhariahidroelétrica no último século.Durante aDepressão, investidores privados atacaram osprojetos das grandes barragens construídaspelo New Deal, temendo que a entrada dogoverno no negócio da geração de energiaviesse a produzir um excesso inadministrável

de eletricidade. No entanto, nos primeiros anosdo pós-guerra predominou o receio de escassez.Num artigo intitulado “A Grande Escassez deEnergia Elétrica”, a revista Fortune, censurou oCongresso, em 1948, pelos cortes de verbaspara projetos de barragens federais.

Por volta de 1970, as empresas estataisbrasileiras estavam executando um dosprogramas hidrelétricas mais ambiciosos domundo, com tarifas mais elevadas, queasseguraram a sua viabilidade financeira. Essastarifas deram origem à credibilidade internacionalque permitiu ao Brasil tomar grandesempréstimos e investir cerca de US$70 bilhões(a preços de 2000), de 1974 a 1986. Foram assimconstruídas barragens e usinas nucleares àsombra da onda de liquidez dos primeiros anosda década de 70 e da reciclagem dos petrodólares,depois da Guerra do Yom Kippur, de 1973.

De 1965 a 1979 a capacidade geradora foimultiplicada por cinco vezes, enquanto oconsumo crescia a 12% ao ano. Contudo, emmeados de 1970 o governo começou a manipu-lar as tarifas de energia elétrica num esforçoinútil para controlar a inflação. Em 1986, a tarifaresidencial caiu para 22% do nível de 1974, deUS$120 por MW/hora para US$26, enquanto atarifa industrial, já pesadamente subsidiada,reduziu-se de 20% a 30%. Em 1999, a tarifa deenergia residencial havia perdido 90% de seuvalor de 1975, em moeda de valor constante,enquanto a tarifa industrial caía 75%. A perda derenda real, agravada pela brusca elevação dastaxas de juros no mercado externo, conduziu aocolapso financeiro das empresas estatais,bloqueando a sua capacidade de investimento.O valor anual do investimento caiu de cerca deUS$15 bilhões em 1980 para US$4,5 bilhões em1990. O envelhecimento sem renovaçãodeteriorou o equipamento e as instalações. Essetipo de deterioração na subestação de Baurú,no interior de São Paulo, provocou um apagãoem 13 estados, em 1999. Uma espiral deinadimplências sufocou as empresasdistribuidoras e geradoras, compelindofinalmente o governo federal a absorver seusdébitos, causados pela má aplicação de tarifas.Essa ajuda de emergência, da ordem de US$26bilhões, foi concedida em 1993, após o que asempresas estatais iniciaram um novo ciclo deinadimplências até que foram privatizadas.

O Brasil ainda luta com as conseqüências docolapso financeiro do sistema estatal. Duranteos anos 90, o consumo excessivo de energia,juntamente com a sua incapacidade financeirapara investir em nova capacidade de geração,conduziu a um declínio dos níveis de seusreservatórios. Sucessivos governos ignoraramas advertências dos técnicos. Há dez anos oInstituto Fernand Braudel de Economia Mundialpublicou um estudo, Energia Elétrica e InflaçãoCrônica no Brasil: A Descapitalização dasEmpresas Estatais, que dizia:

As empresas de energia elétrica no Brasilencontram-se descapitalizadas e incapazesde expandir a produção de energia parasatisfazer a crescente demanda,artificialmente estimulada por tarifas baixas.Os déficits dessas e de outras empresas deserviços público intensificam a inflaçãocrônica obrigando o governo a imprimirmoeda para mantê-las em operação. Aoabrir mão, a partir de 1975, de umaestrutura de preços das mais altas do mundo,

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o governo quebrou o principal mecanismode formação de capital, e viu-se obrigado arecorrer, primeiro, a empréstimos externose internos, e, depois, à inflação. Ao mesmotempo tem-se criado um desestímulo natu-ral ao controle de custos, uma vez que atarifa, que é a fonte principal de receitas,vem sendo fixada na mesa como carta debaralho em manga de mágico.

Há dez anos, quando foi escrito o nosso texto,novas tecnologias estavam modificando aeconomia da eletricidade, como resultado dodesenvolvimento intensivo dos motores a jato,nos anos 80, e do fim das restrições políticas aouso do gás natural na produção de eletricidade.O desenvolvimento do ciclo combinado deturbinas a gás (CCGT) estava reduzindo o custoda energia térmica, enquanto os sítios dasquedas d’água, que permitiam o baixo custopor quilowatt instalado das centrais hidrelétricas,estavam ficando cada vez mais distantes, noBrasil e no resto do mundo. Os CCGTs aumentama flexibilidade porque as usinas podem serconstruídas nas proximidades dos centros deconsumo de energia, reduzindo a necessidadede investimento em linhas de transmissão delonga distância. A Agência Internacional deEnergia (IEA) espera que a geração de energiacom o emprego do gás, a custos em regime deconstante declínio, tenha baixado em 350% donível atual até o ano 2020, fazendo dobrar a suaparticipação na produção de energia elétrica.Nesse período, a demanda de energia cresceráà elevada taxa de 4,6% ao ano nos países emdesenvolvimento, incidindo esse aumento deforma mais dramática no consumo residenciale comercial. No Brasil, o custo por quilowattinstalado em usina a gás cairá para US$600 aUS$800 na escala projetada pela IEA para o ano2020, ficando abaixo do custo de US$1.000 aUS$1.500/KW aqui instalado em usinashidrelétricas.

Mas o investimento em usinas a gás foiparalisado, porque a política nacional de tarifaçãode energia não se revelou capaz de resolver oproblema do hiato entre o custo extremamentebaixo da eletricidade das hidrelétricas, jáamortizadas, porém ainda produzindo, e ocusto muito mais alto do combustível dastérmicas movidas a gás. O investimento nessasusinas deve ter um retorno mais rápido paracobrir o custo do capital nos empréstimos ejustificar o custo de oportunidade doinvestimento privado.

Como diz o Comite de Revitalização: “Naequivocada previsão de excesso de oferta deenergia, as estimativas de preços futuroscolocariam a tarifa em nível demasiado baixo,orientando as empresas distribuidoras a tomaremdecisão também equivocada quanto à assinaturade contratos futuros para atendimento de partede sua demanda. Desse modo, haveria poucoincentivo em expandir a capacidade de geração,que depende de contratos de longo prazo paramobilizar recursos financeiros destinados aosprojetos”. De acordo com essas palavras o Brasilenfrenta um bloqueio na questão da energia,pois tanto o seu programa de privatizaçãoquanto o programa de construção de usinastérmicas ficam paralisados, no clima de alíviopassageiro da pressão sobre o abastecimentode energia, advindo das recentes chuvas.

O dilema do cálculo do “preço justo” da

eletricidade tem muitas facetas. Segundo oscálculos de Peter Greiner, o preço baixo daenergia elétrica para a indústria em anos recentestem piorado as desigualdades econômicas pelavia dos subsídios irracionais numa escala deUS$10 a US$20 bilhões por ano, contandovários de seus impactos. Tais subsídios forçaramas empresas estatais de energia a fazereminvestimentos de baixo retorno para atenderemao acréscimo artificial da demanda, enquanto ocapital privado ficava livre para investimentosem atividades mais lucrativas. O custo dosubpreço da eletricidade para os grandesconsumidores juntava-se à ineficiência dosinvestimentos das empresas estatais, cujosprojetos têm execução muito mais demoradado que os das empresas privadas e pagam de30% a 40% a mais por equipamento, construçãoe serviços.

Os políticos têm provocado ainda maioresdistorções de preço ao defenderem apenasinteresses próprios. O Congresso emendou anova lei que pretendia compensar as empresas

distribuidoras pelas perdas sofridas durante oracionamento, acrescentando uma cláusulasegundo a qual as residências que consumissematé 80 KWh por mês teriam reduzido o valor desuas contas por força de uma “tarifa social”, demodo que 70% dos consumidores residenciaisdo Nordeste pagariam quase nada. Retarda-seum acordo com as distribuidoras devido aolitígio que resulta da tentativa para se anular anova “tarifa social”. Nesse labirinto de confusafixação de preços, não é fácil saber quem pagao que para sustentar o sistema. Não existemtaxas realistas de depreciação dos ativos. A tarifaresidencial custa 40% apenas em impostos.

A rentabilidade da rede de eletricidade devarejo está limitada por sua baixa densidade,tanto em número de consumidores que pagamnuma área quanto à intensidade do consumo.O consumo per capita de eletricidade no Brasil(2.000 KWh) é um terço do que se verifica naGrã-Bretanha, França e Alemanha e um quintodos Estados Unidos. Na transmissão as perdassão aqui três vezes maiores. Por motivo daregulação incerta e da estrutura distorcida depreços , as distribuidoras tiveram lucros líquidossobre o patrimônio de só 0,7% em 2000, antesde sofrerem as grandes perdas operacionais de2001, causadas pelo

racionamento.Comparemos isso ao retorno de15% sobre o patrimônio da Chilectra privatizadado Chile e de 10% do padrão da indústria nomundo.

Mais importante parece ser a pouca atençãoquanto ao fluxo de caixa de todo o sistema. Seráo sistema solvente do ponto de vista financeiro?Quem paga pelo que? O sistema ganha obastante para fazer face às suas despesas einvestir para satisfazer à demanda futura? Ouum sistema elétrico de financiamento insuficienteresvalará para os apagões, a inflação crônica ea dívida pública espiralada?

3. Os problemas da transmissãoA rede de transmissão do Brasil é um

empreendimento complexo e de logísticadelicadamente equilibrada, operando em escalacontinental. Uma das maravilhas da eletricidadeé que as pessoas podem ativar os sistemas querealçam e enriquecem a vida com um simplestoque no interruptor, tendo escassa noção dasredes complexas que mantêm o sistema. Muitas

redes nacionais surgem espontaneamente deempresas geradoras e distribuidoras,alcançando flexibilidade operacional medianteligação com sistemas vizinhos. O Brasil ganhouextraordinárias economias de escala aodesenvolver uma vasta rede de transmissão queliga distantes fontes geradoras de hidreletricidadeaos centros de consumo. À semelhança dasgrandes cidades, as redes nacionais deeletricidade podem surgir de modo espontâneo,mas também elas exigem administraçãocuidadosa e investimento para evitar adegradação. O Professor Paul Joskow, doMassachusets Institute of Technology (MIT)explicou o desafio tanto do sistema continentaldos Estados Unidos quanto o do Brasil:

O sistema de transmissão não é apenasuma rede de transporte que movimenta aenergia de usinas geradoras individuaispara atender a demanda dos grandescentros, mas um complexo sistema de“coordenação” que integra um grandenúmero de instalações de geração, dispersassobre amplas áreas geográficas, paramanter um fluxo confiável de eletricidadea nódulos dispersos de consumo, ao mesmotempo em que atende a rigorosas exigênciasde caráter físico para assegurar a

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freqüência, a voltagem e a estabilidade darede... A falha de uma peça importante doequipamento em uma parte da rede podeafetar a estabilidade de todo o sistema.Medidas eficientes e efetivas para remediaras falhas do equipamento podem envolverreações de múltiplos geradores situados agrande distância do lugar em que semanifestou a falha. Finalmente, em geral,não há significativa relação física diretaentre força elétrica produzida por umgerador específico, conectado à rede, e umconsumidor específico que tira energia darede... (Dentro de regiões) deve haver umúnico operador de rede responsável pelocontrole da operação física de uma área decontrole, coordenando os horários dogerador, equilibrando a demanda e aoferta das instalações de geração quesuprem a rede, de modo simultâneo, ecoordenando as áreas de controle davizinhança.

O Brasil adotou medidas para eliminar as falhasde sua rede de transmissão que se agravaramcom a escassez de eletricidade em 2000-01. Nãoobstante, alguns problemas-chave continuaramà espera de solução. Conforme o projeto originalde reestruturação elaborado em 1994, atransmissão na rede nacional deveria constituirum bem regulado monopólio natural, oracontrolado por empresas estatais, mas oferecendolivre acesso a fornecedores e compradores deenergia, enquanto a geração e a distribuiçãodeveriam ficar em mãos do setor privado.

O Operador Nacional do Sistema (ONS), umaempresa privada sem fins lucrativos, sujeita acontrole público, despacha energia entre pontosda grade, tendo suas decisões baseadas emfluxos simultâneos de informação, controladospor computadores centrais para coordenar eotimizar o fluxos de energia através da rede.Contudo, a Lei de Concessões, aprovada peloCongresso em 1995, permitiu que licitantesprivados obtivessem concessões a retalho, juntoà rede de transmissão, criando assim tendênciaà balcanização do sistema e privando-o de gerarpadrões de gerenciamento e de equipamento,providência que tornaria mais fácil detectar ascausas das interrupções do fornecimento deenergia. Essa balcanização foi intensificada como leilão patrocinado pela ANEEL, em agosto de2002, de várias seções locais da rede detransmissão. A Comissão Federal Reguladora deEnergia, dos Estados Unidos, caminha em direçãooposta em seu novo Projeto de Mercado Padrão,

aplicando lições aprendidas da recente crise deenergia da Califórnia e da Costa Oeste, para evitaro congestionamento e súbitos surtos de tráfego.Pretende-se atingir esse objetivo aumentando aeficiência e tornando mais integrada a transmissãoentre os operadores regionais da rede nacional.

Sob o regime de preço fixo por quilômetro detransmissão de energia, os concessionáriosprivados podem ser tentados a aumentar seuslucros usando, no lançamento de novas linhas,materiais e equipamento de baixa qualidade. AANEEL realizou licitações para concessõesprivadas cobrindo 5.700 quilômetros de linhasde transmissão, que fariam a interligação dediferentes regiões , onde predominam diferentesregimes de chuvas, na suposição de que umarede integrada conduziria as empresas a poupar20% do custo de novos investimentos. Mas oComitê de Revitalização observou que “hágrandes dificuldades (em se obter) informaçãoanalítica e computacional para o planejamentoeficiente das linhas de transmissão e,especialmente, de interligações entre regiõesde meios ambientes díspares”.

Tradicionalmente, essa tarefa era cumpridapelo setor de planejamento da Eletrobrás. O setorfoi transferido para o Ministério de Minas eEnergia quando o seu chefe, Benedito Carraroocupou por pouco tempo o cargo de Secretáriode Energia, em 1999, mas foi dissolvido depoisque Carraro deixou o posto numa disputa como ministro do dia, Rodolfo Tourinho. Em começosde 1999, Tourinho rejeitou um empréstimo deUS$500 milhões do Banco Mundial, que teriadado apoio à expansão das linhas de transmissãoe teria ajudado na consolidação do ONS. Oempréstimo teria também contribuído para criaro novo Mercado Atacado de Energia (MAE)assim como para fortalecer o corpo técnico doMinistério. Desde 1999, os três secretários deEnergia ficaram cada um menos de um ano noposto, sob os quatro ministros de Minas e Energiaque se sucederam no segundo mandato de quatroanos de FHC. O ONS foi culpado por não tercolocado a energia das usinas térmicas na redenacional, o que teria contido o rápido esvaziamentodos reservatórios, na estiagem recente, ao fazercálculos baseados nos custos operacionais daenergia de fonte hidráulica, ao invés dos custoseconômicos da escassez de eletricidade.

4. Regulação confusa e arbitráriaNo sistema antigo, as empresas estatais de

eletricidade eram reguladas pelo Departamentode Águas e Energia Elétrica (DNAEE), um órgãofederal que fixava tarifas, autorizava o uso de

recursos hídricos e garantia e supervisionava asconcessões segundo padrões de desempenhoestabelecidos por ele próprio. Na prática, eramlimitados os poderes do DNAEE para influir naadministração das estaduais, cujas diretoriasfaziam uso de recursos dessas empresas, a títulode “arrecadação antecipada de receita”, pois osgovernadores controlavam grupos deparlamentares no Congresso de cujo apoiolegislativo dependiam as autoridades federais.Na prática, o Brasil tinha pouca experiência naregulação, quando surgiam novas demandas àmedida que se expandia a privatização, depoisde 1995.

Depois de muitos meses de debate deburocratas e parlamentares, foi criada a ANEEL,em 1997, dois anos depois de lançado oprograma de privatização, incorporando amaioria das funções do DNAEE e do Ministériode Minas e Energia. O corpo de funcionários daANEEL, um acrônimo às vezes ironicamenteidentificado como “Associação Nacional deEmpregados da Eletronorte”, foi em maioriaorganizado com funcionários brasilienses dasede da Eletronorte, a menos eficiente dasempresas estatais, sob a influência de chefespolíticos da Amazônia e do Nordeste. Essesfuncionários também incluíam advogados eeconomistas sem experiência anterior no setorelétrico. Por outro lado, sabe-se que osparlamentares não contam com apoio técnicoe revelam pouco interesse nas implicaçõeseconômicas de seus atos legislativos. O Governodelegou à ANEEL, além de seu papel deregulador e supervisor, poderes especiais para“preparar licitações públicas e firmar contratosde concessão para geração, transmissão edistribuição de energia elétrica... regular tarifase estabelecer condições de acesso aos sistemasde transmissão e distribuição”. Entre as numerosasfunções da ANEEL figura a de dirigir e autorizaras atividades do ONS e aprovar normas para onovo mercado de atacado.

Tendo seus diretores mandatos fixos aprovadospelo Senado e suas nomeações sujeitas a barganhapolítica, a ANEEL acumula 43 diferentes funções.Um indício de sua ineficiência como regulador esupervisor foi o seu fracasso em advertir asdemais autoridades para a escassez de energiaelétrica em 2000-01. Apesar da ameaça deracionamento e apagões, a ANEEL retardou aaprovação da produção de eletricidade em duasusinas térmicas privadas, sob o pretexto de quepretendia evitar alta do custo de combustíveis, deque decorreria elevação de tarifas, mas teriacontribuído para conservar os reservatórios diante

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da iminente falta de água.Esse fato deu fundamento à advertência do

Comitê Revitalização: “Como as empresas estataiscontrolam a maior parte do mercado de geração,os novos investidores privados poderiam ficarinibidos pelo receio das empresas públicasadotarem um misto de energia antiga comenergia nova, a ser vendida ao mercado apreços mais baixos do que o custo marginal deprodução das usinas novas”.

Das 287 novas usinas autorizadas pela ANEEL,179 estão com cronograma atrasado. O TCUatribuiu “os escassos investimentos privadosem novos projetos de geração” às“ambiguidades no marco regulatório e à faltade consolidação e estabilidade”.

5. Privatização paradaDe acordo com a Agência Internacional de

Energia (IEA), a maior parte dos três milhões demegawatts de nova capacidade de geração, aserem instalados em todo o mundo durante asduas próximas décadas, atenderiam à demandaprojetada dos países mais pobres, onde osinvestimentos em novas usinas teria o custototal de US$1,7 trilhão. Nas duas últimas décadas,o Brasil conseguiu de forma espetacular dobrarsua capacidade hidroelétrica, alcançando ototal atual de 65.000 MW, distribuídos entremais de 140 quedas d’água, apesar da inflaçãocrônica e da crise da dívida externa. É evidente

que o Governo não dispõe nem de crédito nemde poupança para dar continuidade a essesinvestimentos, que crescem na escala em que seamplia o sistema. O debate público se revelafalho pois não focaliza o modo pelo qual seráfinanciada a futura expansão do sistema elétrico.

A fragilidade institucional, agravada pordisputas ideológicas, aumenta o perigo de faltade resposta do mercado e de malogro regulatório,assim como do custo e do risco percebido doinvestimento privado.

Como cresceu com uma monoculturahidrelétrica, o Brasil não soube diversificar osriscos do abastecimento de energia. À medidaque cresce a demanda, essa monocultura tendea limitar o abastecimento, em particular nosperíodos de seca e nos momentos de pico, edisso podem resultar o racionamento e violentasflutuações de preços. O Banco Interamericanode Desenvolvimento adverte:

Um mercado em expansão e adependência de recursos hidrelétricosfazem do sistema de restrição do consumode energia muito mais uma regra do que

uma exceção, exacerbando avolatilidade de preços. A falta de recursoshumanos, a fragilidade ou inexistênciade instituições para fiscalizar e regulara competição, mais o papel ambíguo dojudiciário, tornam difícil supervisionara competição e pôr em prática outrasmedidas regulatórias.

Esses riscos da monocultura hidrelétricapodem ser reduzidos por meio da criação desuficiente capacidade geradora de reserva, apar da contribuição parcial da geração de fontetérmica, contanto que haja regras bem definidaspara evitar as flutuações de preços. Por outrolado, os investimentos em energia de fontehidráulica, que é renovável, oferecem vantagensconsideráveis, devido à sua vida útil mais longae aos baixos custos operacionais, sem a poluiçãodo ar causada pelo petróleo, o carvão e o gás.

Na última década, a América Latina esteve àfrente do mundo na privatização de seussistemas de energia. Nos anos 90, a AméricaLatina absorveu 40% dos US$193 bilhõesinvestidos em projetos privados de eletricidadenos países em desenvolvimento, tanto emcompras de empresas públicas como emcriação de nova capacidade. No Brasil, aprivatização se concentrou nas empresasdistribuidoras. Os principais compradorespagaram preços elevados durante o boom

financeiro dos anos 90, o que foi justificadocom a alta margem de lucro embutida nastarifas de distribuição. Mas agora enfrentamdificuldades na amortização dos empréstimosque financiaram essas compras.

Segundo ABRADEE, a associação dasdistribuidoras, as tarifas reguladas de eletricidadeaumentaram 141% entre 1994 e 2002, enquantopreços de serviços de telefone e gás de cozinhasubiram respectivamente 445% e 400% e o realdesvalorizou frente ao dólar em 242%. Porenquanto, os preços da geração de energiaelétrica (US$25-US$28/MWh) estão muitoabaixo dos custos de expansão da capacidade,oferecendo lucro futuro reduzido aos possíveiscompradores das empresas geradoras estataisa serem privatizadas. Hoje, muitas indústriasestão sendo subsidiadas, principalmente osconsumidores de alta-voltagem, como as dealumínio e química pesada. Elas começarão asofrer perda gradual dos subsídios, a partir de2003, pois a geração contratada anteriormenteentrará em ritmo de liberação anual paralicitação pública, com vistas a incrementos

anuais de 25%, até 2006. Os grandesconsumidores industriais estão fazendo pressãopolítica para evitar a perda dos subsídios.

O programa brasileiro de privatização estáparalisado, depois da onda de privatizações naEuropa e América Latina na década de 90. Aindanão chegou ao fim o debate sobre propriedadepública versus propriedade privada na produçãoe distribuição de energia, que iniciou nodecênio de 1950. Esse debate se suavizoudurantes as décadas de controle governamental(1965-1995) para ser reanimado só durante ozprocesso de privatização. Há consenso quantoà necessidade de capital privado, pois falta aogoverno capacidade para investir em largaescala em projetos de energia elétrica tendo emvista a demanda futura. Mas os investidoresprivados relutam em aplicar capital quando ospreços da energia não assegurem retornoadequado do capital e não há regras jurídicas eregulatórias bem claras que ofereçam condiçõesestáveis à atividade empresarial.

As empresas públicas de geração edistribuição foram vendidas a investidoresprivados, rendendo US$21 bilhões usadospara pagar a dívida pública. Desse total,US$17,5 bilhões provieram da venda deempresas dos governos estaduais e apenasUS$3,5 bilhões de companhias federais. Aprivatização surgiu mesmo antes de umaestrutura regulatória ser organizada e

estabelecida por lei. Enquanto 65%da rede de distribuição foiprivatizada, com exceção dasempresas estaduais de Minas Gerais,Paraná e Santa Catarina, somentecerca de 15% da capacidade degeração foi vendida ao setor privado.Desde 1999, quase nenhumprogresso se fez na definição donovo papel da Eletrobrás e naelaboração e aplicação de regulaçãopara o novo modelo orientado paraas leis do mercado.

No pânico e na confusão daescassez de energia, agravados porinadimplências por parte defornecedores do setor público, osdistribuidores pagaram preços spot,no mercado de energia por atacado,

que esteve sujeito a flutuações selvagens, desdeR$5/MWh até R$684/MWh, antes dos negócios“spot” entrarem em colapso, durante oracionamento. A confusão no mercado de energiacoincidiu com a súbita depreciação do Realdurante o pânico financeiro pré-eleitoral de julhode 2002, quando a cotação do Real em dólarescaiu para 38% de seu valor em 1998. O Real maisbarato tornou muito mais cara em dólar aeletricidade importada. As distribuidoras perderamdinheiro na compra da energia, paga em dólares,da Binacional Itaipú e da energia previamentecontratada e importada da Argentina, para a qualfora construída recente linha de transmissão.

Os investidores privados reduziram suasaplicações de capital. Alguns procuram retirar-sedo Brasil, por causa do baixo retorno de seusinvestimentos e da confusão do processo decisóriobrasileiro. Os distribuidores privados sofreramgrandes perdas cambiais, em conseqüência detrês movimentos de alta da cotação do dólar,após a desvalorização de 1999, e de grandesperdas de renda causadas pelo racionamento de2001, enquanto a demanda ficou muito abaixo

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de seus níveis históricos, em 2002. Tantoa Enron quanto a AES pagaram preçosmuito altos por distribuidoras brasileiras,mas agora, em suas tentativas para vendê-las,sem êxito, só podem esperar preços muito maisbaixos do que os pagos em sua compra. AEnron tentava vender suas propriedades noBrasil já março de 2000, quase dois anos antesde sua falência escandalosa, com fraudescontábeis e comerciais, que abalaram osmercados financeiros de todo o mundo eespecialmente o setor elétrico. O colapsoda Enron veio poucas semanas antes dodesastre político e econômico da Argen-tina, com reflexos sobre os que investiramtambém no Brasil.

Entre as vítimas dessas quebras estava a AES,com empresas de geração e distribuição deenergia em 33 países, proprietária da Eletropauloe outras empresas no Brasil. A AES ésobrecarregada de dívidas em dólares, assumidaspara financiar as suas agressivas aquisições queconcentraram metade de seus ativos mundiais naAmérica Latina, onde severas desvalorizaçõesmonetárias reduziram bruscamente os lucrosdesses investimentos. A AES viu o preço de suasações em Wall Street despencar de US$70, emoutubro de 2000, para US$1,77 em julho de 2002,e seus títulos de longo prazo desvalorizados.Comentando os esforços da AES para bater emretirada da América Latina, o Bear Steams, umbanco de investimento, observou que “não hácompradores para a maior parte dosempreendimentos de alto risco e péssimorendimento financeiro” da empresa na Argen-tina, Brasil, Venezuela e Colômbia. Acrescentaque “as possíveis vendas de bens da AES tendema agravar a situação do fornecimento de energiaa ponto de minar os programas de privatizaçãoem 2003 e nos anos seguintes”. A Eletropaulo/AES foi salva de declaração de moratória sobretítulos em circulação no mercado externo, novalor de US$120 milhões, fato que teria lançadoo Brasil ainda mais fundo na crise financeira pré-eleitoral, por um pagamento atrasado de últimahora, feito pelo BNDES, para compensar perdassofridas durante o racionamento. As oitodistribuidoras, com dívidas de US$4 bilhões ereceita anual de US$5,9 bilhões, estão todas àvenda. As empresas elétricas perderam US$800milhões no primeiro semestre de 2002, com dois-terços por conta da CESP, que agora deve US$1,8bilhões. A Eletricité de France (EDF), incapaz decobrar contas atrasadas de consumidores deUS$200 milhões, está tentando vender a Light, noRio de Janeiro. A Pennsylvania Power & Light

(PPL), quecomprou umadistribuidora

no Maranhão, estáabandonando um

investimento de US$300milhões com metade de suas contas

mensais não pagas e uma taxa de delinqüênciade 83% dos consumidores. A CompanhiaEnergética do Maranhão está sendo administradapor um interventor do ANEEL. Com tantasempresas privatizadas, agora à venda,compradores oportunistas tentam pescar os preçosde fundo de barril. A poderosa Petrobras andaem busca da carniça nos destroços do que foramas ambições de investimentos estrangeirosprivados no Brasil, Argentina e Bolívia. A maioriaaí do que pertenceu à Enron. Outras empresasprivatizadas poderão cair nas mãos do BNDESou de investidores privados brasileiros.

A newsletter Global Power Report, em maiode 2002, observou: “A retirada das companhiasdos mercados de ultramar virou um pânico”.Segundo Robert J. Munczinski, diretor-executivo do PNB Paribas: “É dificil financiarcom base em moeda forte transações quegeram receita em moeda local”. Carol Mates,advogada da International Finance Corpora-tion, do Banco Mundial, declarou: “Só nosúltimos dez anos nós como comunidadetemos financiado projetos privados nosmercados emergentes. Uma coisa que todosentendemos agora é que quando uma empresaprivada tem concessão de serviço público,nesses mercados, ela jamais poderá sairdaquele país. Os usuários finais pagam a vocêem moeda local e você assume o riscomacroeconômico de todo o país e de todo osistema. Num certo sentido, o investidorestrangeiro está preso. Poderá o país mantero valor de sua moeda? A questão é diferentedos negócios em seu país de origem”.

A confusão no Brasil tem sua contrapartida nosEUA. Em ambos a falta de energia elétrica de2001 virou excedente em 2002. As recentes

incertezas nos EstadosUnidos, com a dramáticasituação de emergênciana Califórnia,

demonstram quão súbitaspodem ser as rupturas e asmudanças. Com capacidadede geração de 700.000 MW,

10 vezes maior que a doBrasil, os Estados

U n i d o saumentouem 100.000MW de

capacidadenova desde

1997, porém outros125.000 MW de projetos

anunciados foramcancelados ou adiados

indefinidamente, dada a faltade financiamento, por causa

do fim da bolha do mercado deações e dos escândalos da Enron

e outras companhias de energiaelétrica. Muitas empresas estão

vendendo ativos. As agênciasreguladoras consideram congelar novas

medidas de liberalização. O governo federalinvestiga as práticas comerciais das empresas deeletricidade. A Califórnia tenta romper contratosde longo prazo assinados, durante a crise de 2001para garantir o abastecimento, a preços muitoelevados. De acordo com Vincent Duane ofMirant “a eletricidade é uma commodity volátil.Se tiver de ser comercializada num mercadoatacadista, há uma necessidade tremenda degerir risco. O mercado de eletricidade não é ummercado de liquidez e eficiência como nas outrascommodities, por causa de suas dimensõesfísicas. O clima político do momento favorece asforças que, tradicionalmente, não apoiaram amudança e a inovação. Estamos até assistindo aorenascimento das empresas públicas e demuncipalização em algumas áreas — comoNova Iorque, o que nãotemos visto há muitotempo”.

Assim, o Brasil vai ter que conviver com ainstabilidade e administrar suas conseqüências.Pode haver troca entre segurança e eficiênciano setor elétrico. Tanto sob a propriedadeprivada como a pública, a indústria elétricabrasileira sempre dependeu de financiamentosestrangeiros para se expandir e diversificar suacapacidade para assegurar o abastecimento.Falhas no mercado e no processo regulatórioestão forçando o Brasil a lutar com fraquezasinstitucionais que limitam a viabilidade deinvestimentos. Tanto com a propriedadepública como a privada, o Brasil precisa de umsistema legal estável e efetivo e de umaestrutura de tarifas elétricas que crie condiçõespara os mercados funcionarem e para níveisde investimento que assegurem abastecimentofuturo. A eletricidade é tão fundamental paraa civilização hoje que o preço de uma provisãoadequada é muito mais barato que o transtornoe a confusão produzidos por falhas crônicas.

O novo governo que assumirá o poder emjaneiro de 2003 terá que alocar tempo e espaçopolítico para a estabilização reguladora einstitucional que criaria condições para maioresinvestimentos privados e públicos. Investidoresprivados têm sido desmotivados por quebras

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arbitrárias de contrato por parte dos governosestaduais de Minas Gerais, Bahia e Pernambucodepois destes receberem pagamentos. Nospróximos anos, as empresas estatais existentesirão cumprir um papel-chave na expansão dacapacidade, elevando preços para a geração debaixo custo para financiar investimentos.

Companhias elétricas federais e estaduaisabarcam uma ampla gama de perfis corporativos.A excelência profissional da CEMIG em MinasGerais, COPEL no Paraná e Furnas, que foipioneira na geração de larga escala nos anos 60,e construiu Itaipu nos anos 70 e 80, contrasta como excesso de pessoal e a ineficiência dasdistribuidoras estatais em São Paulo, Rio Grandedo Sul, Mato Grosso e no Nordeste, sabotando aestrutura financeira do setor elétrico cominadimplência nos pagamentos às empresas degeração. Muitas companhias estatais, juntamentecom bancos estaduais, formaram um eixo decorrupção e financiamentos ilícitos de campanhaspolíticas que contribuíram para aumentar osdéficits fiscais e a dívida pública. Esses bancosestaduais e empresas foram privatizadas no quefoi essencialmente um processo de falênciaconduzido pelo Ministério da Fazenda e oBNDES no governo FHC para renegociar asdívidas estaduais. A ameaça de ainda mais falhasna privatização, como as do Cemar no Maranhão,representa uma recaída nos velhos hábitos degestão das companhias estatais.

6. A Petrobras e a economia do gás naturalNa desordem da política brasileira de energia,

a hábil e focalizada burocracia da Petrobras,com seu histórico monopólio legal, sempreconseguiu influenciar os políticos. Um exemplodessa influência é a capacidade da Petrobrasem transformar em vantagem os atrasos namodernização de suas refinarias, parte de seuprograma de investimento desde os anos 70.Em 1985, quando se encerravam as duasdécadas de governo militar, a Associação deEngenheiros da Petrobras mandava a seguintemensagem aos civis que reassumiam o poder:“Nossas refinarias estão ficando velhas e, emmuitos casos, obsoletas. Há tempos suamanutenção é precária... Diante de um maioruso do gás natural, grandes quantidades depetróleo (pesado) se tornarão um excedentesem uso, que nem sempre será possível venderno exterior, porque o mercado externo estáabarrotado desse produto, quase semprevendido a preços que estão abaixo do custo deprodução”. Em maio de 2002, o chefe daOrganização Nacional da Indústria do Petróleo(ONIP) advertiu sobre um “blecaute de refinaria”dentro de cinco anos, forçando o Brasil aimportar US$4 a US$5 bilhões por ano emprodutos refinados se pelo menos não foremconstruídas duas novas refinarias ao custo deUS$2 bilhões, cada. Contudo, um excedentemundial de capacidade de refino, com baixovalor adicionado, conduziu a Petrobras eoutras empresas petrolíferas a preferir a vendade seus produtos refinados a investir em novasrefinarias.

As 43 propostas de reforma formuladas pelogoverno deixaram de mencionar o monopólioda Petrobras no negócio de gás, produto quese tornará necessário como complemento degeração no regime da monocultura hidrelétrica.A Petrobras assumiu o controle de boa partedo gás da Bolívia, adquirindo campos de

produção, e construindo por dois bilhões dedólares um gasoduto que transporta o produtode Corumbá, na fronteira com a Bolívia, a SãoPaulo e Porto Alegre. No entanto, está sendosubutilizada a capacidade do empreendimentopor causa dos elevados encargos do transportee por falta de desenvolvimento do mercadobrasileiro de gás. A Petrobras bloqueou oacesso de outros produtores de gás ao gasoduto, desconsiderando uma condição prevista noacordo de empréstimo do Banco Mundial, quefinanciou o projeto.

No Brasil o gás natural, que é caro para ageração de eletricidade, poderia competir como óleo combustível nos fornos das usinastérmicas, no aquecimento e refrigeração deinstalações, nos fornos da indústria siderúrgicae da indústria do vidro, no ar condicionado dasresidências e nos chuveiros. Esse mercadopotencial de gás tem sido minado pelo baixopreço do óleo combustível produzido pelasrefinarias obsoletas da Petrobras, empresa quedesencorajou investimento em redesdistribuidoras de gás e em equipamento in-dustrial mais eficiente com o uso do gás.

Nos últimos anos, desde que se tornou omaior fornecedor de gás natural, a Petrobrasvem modernizando suas refinarias maisrapidamente para reduzir a produção de óleospesados. Mas o mercado para eletricidade dasusinas a gás encolheu de repente diante danova abundância da energia hidráulica, criadapelas chuvas que se seguiram à seca de 2000-01, conduzindo a Petrobras e investidoresprivados a cortar seus programas de construçãode usinas térmicas.

Precisamos de um ambiente institucionalestável para garantir o abastecimento de energiano longo prazo, de diferentes fontes, superandoos atuais riscos de investimento. Nas condiçõesde hoje, ninguém sabe como se farão osinvestimentos futuros em geração, transmissãoe distribuição de energia elétrica.

Uma disputa falsa e desnecessária persisteentre os que acham que a energia elétricadeve ser produzida pelo governo e os queacreditam que deve ser dominado pelo setorprivado. Precisamos é de regras operacionaismais claras, melhor regulação e de ummercado que funcione, independente deconstrangimentos ideológicos. O Brasil nãodispõe de poupanças para financiar porcontra própria a expansão de seu sistemaelétrico durante as próximas décadas. Alémdisso, as empresas públicas de energia elétricatêm pago muito mais do que o setor privado,nas últimas décadas, por equipamento,construção e serviços de apoio. Essesinvestimentos inflacionados têm reduzido oestoque de capital do país e acelerado ocrescimento da dívida pública. Os subsídiose as aposentadorias generosas, com fundosde pensão mal capitalizados por investimentosruins, tornam a empresa estatal de eletricidadeainda mais dispendiosa. Ainda mais, aresistência de políticos e burocratas e asincertezas reinantes nos mercados financeirostornam, por enquanto, improvável aprivatização de todo o setor elétrico estatal.

O Brasil precisa de investimentos de fora masnão pode depender inteiramente de investidoresexternos para desenvolver e administrar oabastecimento firme de eletricidade. Com umafraca estrutura regulatória, o Brasil seria presa

fácil da espécie de manipulação de mercado e defraudes contábeis por parte de empresas privadasde eletricidade, tais como a Enron, Reliant, ElPaso, CMS e Dynegy, denunciadas durante arecente escassez de energia na Califórnia, adespeito da existência, durante várias décadas,da regulação industrial nos Estados Unidos.

Segundo uma pesquisa do Wall Street Journal:“Empresas de energia aproveitaram as brechasnas regras e faltas locais para cobrar preços cemvezes acima do normal. Fornecedores segurarameletricidade fora do mercado primário do estado,e as vezes desativaram usinas para induzir faltase subidas de preço. Empresas de gás manipulavamoferta e preços, encarecendo um ingredienteprincipal da eletricidade. Enron teve um papelmuito maior no mercado de Califórnia de energiaque foi antes entendido. Suas estratégias detrading afogaram às agências reguladoras evotaram os preços para cima".

A reformulação da política energética doBrasil surge num momento de recuo naprivatização em todo o mundo, especialmentenos setores de eletricidade e telecomunicações.São comuns hoje o engavetamento de projetos,falências e consolidação por meio defusões.Assim, investidores estrangeiros estãotentando vender suas empresas no Brasil porcausa de problemas regulatórios, políticos e defalhas de mercado no Brasil e também comoconseqüência de pressão financeira que sofremnos Estados Unidos.

O Brasil precisa de uma política equilibradapara as empresas elétricas, tanto privadas comopúblicas. Empresas estatais eficientes aindapoderiam absorver de 20% a 30% do mercado,tanto em geração como em distribuição, evitandoos monopólios regionais. Algumas empresaspúblicas deveriam ser organizadas comoentidades competitivas e profissionais,protegidas de manipulação política. Acompetição num mercado livre ajudaria asempresas estatais a ganharem eficiência.

O Brasil precisa aprender a viver em meio àsincertezas a que estão sujeitas empresaspúblicas e privadas de seu complexoenergético, enquanto se esforçam por garantiro abastecimento. Só se poderá alcançarprogresso conservando em mente o objetivoda segurança, adotando-se regras claras eaplicáveis, na presença de adequadosincentivos ao investimento e à produção. Asegurança do fornecimento de energia resideno preço, mas o custo de não pagar o preçojusto poderia ser muito maior, na forma deescassez crônica de eletricidade e dedegradação do tecido da economia brasileira.

As causas do apagão da política energéticanão estão na estiagem nem no rebaixamentodos reservatórios, mas na fragilidade dasinstituições públicas, incapazes de adotaremefetivas decisões estratégicas sobre o futurode uma complexa sociedade em evoluçãorápida . Em tudos países e em tudos tempos,as instituções tendem tendem a ficar atrás dodesenvolvimento tecnológico. O Brasilganhou estabilidade monetária e progrediuna década passada ao frear a inflação crônica.Nos anos vindouros temos que aproveitaresse progresso para organizar-nos melhor efortalecer as instituições públicas,especialmente nas áreas críticas de educação,segurança pública e eletricidade.

Tradução: Gilberto Paím

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Apresentamos a seguir algumas idéias para debate sobre como fortaleceras instituições públicas de modo a se ter maior segurança no abastecimentode energia elétrica:

1. Em última instância, a política de energia é uma responsabilidadepresidencial. O processo decisório deveria ser fortalecido mediante oaumento dos poderes do Ministro de Minas e Energia, sob supervisãopresidencial, e pela sua retirada da área das coalizões políticas. Os objetivossó poderão ser alcançados pela nomeação de profissionais qualificados paraos cargos mais elevados da hierarquia administrativa, inclusive o de ministro.

2. O Conselho Nacional da Política de Energia (CNPE), foi criado pela Leido Petróleo de 1997 e continuou inativo mesmo depois de ter sidoassinado o seu regulamento, em 2000. Há pouco ressuscitado pelo novoministro de Energia, o Conselho deveria contar com o apoio de um corpode funcionários qualificados, a fim de realizar planejamento para osmomentos de contingência e produzir análises gerais do fluxo de fundos dosetor de eletricidade, a cada dois anos, a serem submetidas ao Congressoe ao presidente da República. O Conselho deveria ter poderes para, sobpena de responsabilidade, obter informação dos participantes do mercado,inclusive a ANEEL

3. Com a informação produzida pelo Ministério e pelo ConselhoNacional de Energia, o governo deveria publicar um plano decenal deenergia, no segundo ano do mandato presidencial, a ser aprovado ourejeitado sem emendas pelo Congresso. O plano deveria especificar asnecessidades de investimento, identificar as fontes prospectivasde recursos financeiros e esboçar um conjunto de indicações eincentivos econômicos par a atrair investimentos.

4. O governo que tomar posse em 2003 deveria propor aoCongresso um novo Código de Energia para substituir oCódigo de Águas decretado por Getúlio Vagas em 1934. Onovo Código de Energia deveria ser elaborado por uma comissãode cinco especialistas de notório saber em assuntos de energia,apoiada num pequeno grupo de técnicos dotados de conhecimentoem aspectos econômicos e jurídicos da área de eletricidade, osquais realizariam consultas com produtores, distribuidores econsumidores. O novo Código deveria constituir um arcabouçojurídico sadio para regular a concorrência e esclarecer conceitosbásicos da legislação existente sobre serviços de utilidade pública,administração financeira e rentabilidade. O novo Código deveria tambémapresentar melhor definição dos papéis e responsabilidades das agênciaspúblicas, tais como o Ministério de Energia, a ANEEL, o Conselho Nacionalda Política de Energia (CNPE), a Agência Nacional do Petróleo (ANP) aEletrobrás e a Petrobrás.

5. O corpo de funcionários do setor de eletricidade e as suas agênciasreguladoras precisam de uma profunda renovação. Deveria ser criado umInstituto de Altos Estudos de Energia, com técnicos cujos currículosrevelassem bom nível de conhecimento em assuntos de engenharia eeconomia. Os diretores e funcionários de alto nível das agências reguladorase empresas estatais deveriam ser submetidos a concursos rigorosos,administrados pelo Instituto. Tal sistema de estudos e exames avançadosqualificaria os profissionais a obterem suplementos salariais, a fim de lhes sergarantida remuneração equivalente à de empregos do setor privado. Essesprofissionais deveriam também participar de programas de intercâmbiocom as agências reguladoras e empresas de serviços de utilidades públicaem outros países, envolvendo período de residência no exterior.

6. O Congresso deveria criar uma Comissão Mista de Política Energética,apoiada em um corpo de funcionários permanentes e de nível superior doInstituto de Altos Estudos de Energia, para preparar e revisar projetoslegislativos e monitorar a evolução dos assuntos nas áreas de planejamento,finanças e abastecimento das empresas de energia.

7. O prosseguimento da política de privatização de empresas geradoras deveriareduzir o poder de mercado dessas empresas, para criar uma concorrência efetivacom as empresas estatais, que permanecem no setor por se tornar necessária aregulação do fluxo de águas, como instrumento de política pública.

8. As empresas distribuidoras deveriam elevar os seus contratos deabastecimento de longo prazo doas atuais 85% para 95% das necessidadesestimadas, como foi proposto pela Comitê de Revitalização, deixandoassim garantida capacidade de reserva de 12% a ser contratada. Isso énecessária porque os mercados financeiros exigem compromissos firmespara apoiar os projetos.

O Brasil pode fazer melhor

BRAUDEL PAPERS 12

9. Ao invés de abrir licitação pública para cada novo segmento da redenacional interligada, deveria haver apenas uma empresa de transmissão,pública ou privada, para cada região geográfica. As empresas de transmissãodeveriam ser cuidadosamente reguladas, segundo padrões internacionaisque estabelecem a proporção de empregos por bloco de energiaproduzida, no quadro de uma estrutura suficiente para dar suportefinanceiro aos investimentos e manter as responsabilidades em suasrespectivas áreas.

10. Em 1995, todas as concessões de eletricidade foram renovadaspor 30 anos, com possível prorrogação em 2025 por mais 20 anos. Ogoverno ficará exposto a intensa pressão política, em 2025, pararenovar todas as concessões de uma só vez, incorrendo em enormesperdas econômicas, ao passo que as concessionárias colherão lucrosfantásticos depois de um curto período de restituição, no caso dosprojetos de financiamento por mais de 10 a 15 anos. O prazo máximodas futuras concessões deveria ser de 25 anos, renováveis a cadaintervalo decenal, sujeito a critérios de desempenho previamenteestabelecidos e a royalties aumentados após a renovação.

11. As tarifas para a geração de energia elétrica deveriam ser elevadaspara compensar a grande queda nos rendimentos reais das empresasgeradoras, durante décadas de inflação crônica. Esses aumentos tornariamfinanceiramente viáveis as centrais térmicas, o que viria facilitar as futurasprivatizações e eliminar os subsídios excessivos concedidos aos grandes

consumidores industriais.12. Para evitar a obtenção de lucros extraordinários por partedas empresas geradoras que há mais tempo se encontram ematividade, a grande lacuna entre os custos de geração decentrais hidrelétricas amortizadas e as novas centrais térmicasseria preenchida mediante um imposto de equalização. Esse

imposto deveria ser revisto a cada dez anos em linha com aevolução dos custos e das novas tecnologias, no caso da

eletricidade gerada por centrais de fonte hidráulica, construídas hámais de 10 anos. Além de tornar as novas centrais térmicas mais

competitivas, o imposto de equalização aumentaria a receita pública,permitindo reduções de impostos em outras áreas, e ajudaria a

tornar racionais os padrões de consumo.13. Um mercado de gás competitivo é peça importante para tornar

efetiva a concorrência na geração de eletricidade. Impõe-se o fim domonopólio que a Petrobrás exerce na produção, transporte e distribuiçãode gás extraído no Brasil e na Bolívia. A Petrobrás proíbe aos distribuidoresa revenda de gás, bloqueando, assim, o desenvolvimento de um mercadosecundário. Para permitir a competição, a Petrobrás deve ceder a terceirosa posição majoritária que tem no gasoduto Brasil-Bolívia e eventualmenteleiloar, em duas ou três partes, de 60% a 70% dos campos de gás da Bolívia,que lhe pertencem no todo ou em parte. O empréstimo do Banco Mundialque financiou o projeto do gasoduto estipula esse desinvestimento. Emlugar do controle que a Petrobrás detém, deveria ser constituída umaempresa independente para transportar gás com acesso oferecido a todosos produtores e consumidores, inclusive a Petrobrás. O preço do gás éinflado pelo custo financeiro de uma decisão de inspiração política eantieconômica que o governo adotou em meados do decênio de 1990,para estender o gasoduto Bolívia-Brasil até Porto Alegre. O TesouroFederal poderia reduzir o preço do gás ao assumir parte do serviço dadívida. A redução da carga da dívida também capacitaria a Petrobrás ouqualquer futuro dono do gasoduto a baixar o preço do gás modificandocláusula dos contratos, segundo a qual o comprador é obrigado atransportar ou a pagar. Os pagamentos pelo transporte compulsóriobaixariam de 95% do gás contratado para cerca de 75% nos negóciosatualmente feitos à base de “take or pay”.

14. As empresas distribuidoras devem contratar uma quantidadeadicional de energia para terem margem de segurança acima do picoprojetado do consumo, devendo provir esse suprimento adicional decentrais elétricas térmicas. Tornam-se indispensáveis os contratos de longoprazo, porque se exige pelo menos de dois a três anos para contratarfinanciamento, executar o projeto e ter energia térmica, cujos custosdevem ser recuperados em aproximadamente quinze anos.

15. A conservação de energia elétrica no Brasil ainda está em sua infânciae deverá ser intensificada. O racionamento de 2001-02, reduzindo ademanda em 20%, deu uma demonstração súbita da dimensão da economiaque se pode alcançar com a redução do desperdício.

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