artº: janelas sobre mundos extintos : reflexões sobre comunicação em paleontologia (2014) -...

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associação portuguesa de geólogos 83 geonovas n.º 27: 83 a 94, 2014 Janelas sobre mundos extintos Reflexões sobre comunicação em Paleontologia J. M. Brandão 1,* , P. M. Callapez 2,3 , V. F. Santos 3,4 & N. P. C. Rodrigues 4 1 Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência, Universidade de Évora, Palácio do Vimioso, Largo Marquês do Marialva, 8, 7000-554 Évora / Rede HetSci; 2 Departamento de Ciências da Terra, Universidade de Coimbra; 3 Centro de Geofísica da Universidade de Coimbra; 4 Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Universidade de Lisboa; *[email protected]; autor correspondente. A exposição, composta de forma artística converte-se, em sentido estrito, numa criação cultural que actua não só através do seu conteúdo científico como também da sua eloquência estética. Swiecimski, 1987. Introdução Durante milénios, as petrificações naturais com formas de seres vivos foram associadas a crenças e lendas, servindo como ornamentos, fetiches ou ta- lismãs (Torrens, 1985) e só em meados do século XVIII, se consolidou a ideia da sua origem bioló- gica. Os “petrefactos” ou fósseis tal como hoje en- tendemos, constituem o único registo tangível da evolução dos organismos expressa em contexto es- tratigráfico e geográfico e são considerados como a mais simples e fundamental das ferramentas de investigação em Paleontologia, constituindo, para os cientistas e para os não especialistas, uma espécie de janela para os mundos extintos. Independentemente das interpretações de que fo- ram alvo estas “mineralizações de mundos defuntos”, como lhe chama Jacques Barrau (1985), pela grande curiosidade que despertavam, cedo se tornaram obje- tos colecionáveis; encontram-se desde as jazidas pré- -históricas às prateleiras da Naturalia dos gabinetes de curiosidades seiscentistas e setecentistas e, posterior- Resumo Pela curiosidade despertada, os fósseis cedo se tornaram objetos colecionáveis e motivo de discussões filosóficas so- bre a história da Terra e da vida. A importância naturalística crescente desencadeou, sobretudo a partir do século XVIII, a formação de grandes coleções que serviram de base aos trabalhos que impulsionaram a Paleontologia e a Estratigrafia, durante o século seguinte. A sua representação figurativa, tornada ferramenta nas obras impressas de História Natural, foi também adotada nas exposições a partir de finais do século XIX. Este contributo conduziu a alterações substanciais no discurso museológico tradicional, até então centrado na observação massiva de exemplares dispostos segundo cri- térios taxonómicos ou estratigráficos, adicionando aos espécimes a sua representação pictórica em contexto paleoam- biental. Através desta contextualização, os fósseis emergiram como verdadeiras “janelas de Magritte” sobre os mundos extintos, em cenários que a Paleontologia procura recriar numa aceção científica e iconográfica. Palavras-chave: Paleontologia; fósseis; museus; coleções; transposição museográfica. Abstract As a subject of curiosity, fossils soon become collectibles and a motive of philosophical discussions about the history of Earth and life. Especially om the XVIII century onwards, their growing naturalistic importance resulted on the formation of large collections, which established a basis for the work that put forward the XIX century Palaeontology and Stratigraphy. Their figurative representation in printed works of Natural History was used as a resource and adopted in exhibitions since the end of that century. This contribution led to substantial changes in the customary museological discourse, previously focused on the massive observation of specimens arranged by taxonomic or stratigraphic criteria, and adding to them a pictorial representation of their paleoenvironmental context. Through these criteria fossils emerged as true “Magritte’s windows” over the extinct worlds, in scenarios for which Paleontology recreates a scientific and iconographic meaning. Keywords: Palaeontology; fossils; museums; collections; museographic transposition.

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Janelas sobre mundos extintos : Reflexões sobre comunicação em Paleontologia (2014) J.M.Brandão, P. M. Callapez, V. F. Santos, N. P. C. Rodrigues

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.ssoci.o vovruouvs. uv ovo:ooos 83 . 27: 83 a 94, 2014Janelas sobre mundos extintosReexes sobre comunicao em PaleontologiaJ. M. Brando1,*, P. M. Callapez2,3, V. F. Santos3,4 & N. P. C. Rodrigues41Centro de Estudos de Histria e Filosoa da Cincia, Universidade de vora, Palcio do Vimioso, Largo Marqus do Marialva, 8, 7000-554 vora / Rede HetSci; 2Departamento de Cincias da Terra, Universidade de Coimbra; 3Centro de Geofsica da Universidade de Coimbra; 4Museu Nacional de Histria Natural e da Cincia, Universidade de Lisboa; *[email protected]; autor correspondente.A exposio, composta de forma artstica converte-se, em sentido estrito, numa criao cultural que actua no s atravs do seu contedo cientco como tambm da sua eloquncia esttica.Swiecimski, 1987.IntroduoDurante milnios, as petricaes naturais com formasdeseresvivosforamassociadasacrenase lendas, servindo como ornamentos, fetiches ou ta-lisms(Torrens,1985)esemmeadosdosculo XVIII,seconsolidouaideiadasuaorigembiol-gica. Os petrefactos ou fsseis tal como hoje en-tendemos,constituemonicoregistotangvelda evoluo dos organismos expressa em contexto es-tratigrcoegeogrcoesoconsideradoscomo amaissimplesefundamentaldasferramentasde investigaoemPaleontologia,constituindo,para os cientistas e para os no especialistas, uma espcie de janela para os mundos extintos.Independentemente das interpretaes de que fo-ram alvo estas mineralizaes de mundos defuntos, como lhe chama Jacques Barrau (1985), pela grande curiosidade que despertavam, cedo se tornaram obje-tos colecionveis; encontram-se desde as jazidas pr--histricas s prateleiras da Naturalia dos gabinetes de curiosidades seiscentistas e setecentistas e, posterior-ResumoPela curiosidade despertada, os fsseis cedo se tornaram objetos colecionveis e motivo de discusses loscas so-bre a histria da Terra e da vida. A importncia naturalstica crescente desencadeou, sobretudo a partir do sculo XVIII, a formao de grandes colees que serviram de base aos trabalhos que impulsionaram a Paleontologia e a Estratigraa, durante o sculo seguinte. A sua representao gurativa, tornada ferramenta nas obras impressas de Histria Natural, foi tambm adotada nas exposies a partir de nais do sculo XIX. Este contributo conduziu a alteraes substanciais no discurso museolgico tradicional, at ento centrado na observao massiva de exemplares dispostos segundo cri-trios taxonmicos ou estratigrcos, adicionando aos espcimes a sua representao pictrica em contexto paleoam-biental. Atravs desta contextualizao, os fsseis emergiram como verdadeiras janelas de Magritte sobre os mundos extintos, em cenrios que a Paleontologia procura recriar numa aceo cientca e iconogrca.Palavras-chave: Paleontologia; fsseis; museus; colees; transposio museogrca.AbstractAs a subject of curiosity, fossils soon become collectibles and a motive of philosophical discussions about the history of Earth and life. Especially fom the XVIII century onwards, their growing naturalistic importance resulted on the formation of large collections, which established a basis for the work that put forward the XIX century Palaeontology and Stratigraphy. Their gurative representation in printed works of Natural History was used as aresource and adopted in exhibitions since the end of that century. This contribution led to substantial changes in the customary museological discourse, previously focusedonthemassiveobservationofspecimensarrangedbytaxonomicorstratigraphiccriteria,andaddingtothemapictorialrepresentationoftheir paleoenvironmental context. Through these criteria fossils emerged as true Magrittes windows over the extinct worlds, in scenarios for which Paleontology recreates a scientic and iconographic meaning.Keywords: Palaeontology; fossils; museums; collections; museographic transposition.84A interpretao mgica das petricaes perdeu importnciaduranteaRenascena,quandoaob-servaometdicaeadeduolgica,precursoras dopensamentocartesianosubstituram,poucoa pouco, um iderio secular baseado na crena. C-tico quanto a antigas teorias impostas pela doutrina vigente, Leonardo da Vinci (1452-1519), aquando da descoberta de conchas de moluscos marinhos na abertura de canais do rio P (Itlia), cerca de 1508, no hesitou em reconhecer queles restos petrica-dos uma natureza orgnica, dada a sua semelhana morfolgica com species mediterrnicas atuais, o que vindo de um dos mais reconhecidos espritos dedi-cadossartesecincia,mereceuamaiorcredi-bilidade.GeorgiusBauer[Agricola](1494-1555), especialista em Mineralogia e Arte de Minas, tam-bm admitia que os fsseis resultavam de seres vivos, embora postulasse que a sua formao resultaria da ao de um suco lapidicante (succus lapidescens), que emergia da terra e petricava os organismos.Nas dcadas seguintes, as ideias sobre a origem biolgica dos fsseis difundiram-se atravs da Eu-ropa, porm, enquanto se esbatia o seu carcter he-mente,organizadoscomnscientcosemacervos museolgicos. Estima-se que existam atualmente no mundo cerca de 275 milhes de exemplares conserva-dos em colees pblicas e privadas (Allmon, 1997)1, com ns cientcos, culturais ou mesmo ldicos.Considerandoaimportnciadestascolees paraadifusodoconhecimentoemPaleontolo-gia, os autores reetem, no presente texto, sobre a sua apresentao em contexto museolgico e sobre asuainterpretaomedianteilustraeserepre-sentaes pictricas.De curiosidade natural a documento cientcoOslsofosgregosterosidoosprimeirosa referirem-se aos fsseis como sendo restos de seres vivos que no tinham sobrevivido, falhas da gesta-onoventredameNatureza,admitindo-se, por ento, a tese de que a vida brotava espontanea-mente da Terra. Durante a Idade Mdia, grande parte do conhe-cimento que se possua sobre os objetos geolgicos era ainda a herdado das escolas helnicas de Aris-tteles(384-322a.C.)ePlnio(oVelho)(23-79 d.C.);noseefetuavaadistinoentreminerais, rochasefsseis,consideradoscomoprodutosna-turais e genericamente designados por fossilis (tudo o que est enterrado no solo). Propalada pelo via-jante e mdico islmico Avicena (980-1037) e ree-laboradaduranteosculoXIV,vingavaateoria- queperduroudurantevriossculos-dequeos fsseissedeviamaumavirtude(visplastica)ou uidopetricante(succuslapidicatus)queosfor-mariaacidentalmentenosolo.Narealidade,esta crena na gerao espontnea apenas foi refutada em denitivo graas s experimentaes cientcas de Louis Pasteur (1862).Apsarevoluodatipograaproporcionada pelainvenodeGutenberg(1398-1468),come-aramacircularnaEuropadiversostratadosco-nhecidosgenericamentecomolapidrios,dedi-cadosaosmineraisegemas,ondeseenfatizavam, sobretudo,aspropriedadesmgicasemedicinais que se supunha estes possurem. Das diversas obras de maior divulgao disponveis nas universidades europeias da poca, merece referncia particular a donaturalistasuoConradGesner(1516-1565), Dererumfossilium,lapidumetgemmarummaxime,fuguriset similitudinisliber2.Emboraasilustraesjfossem amplamenteusadasnoutrasreasdaHistriaNa-tural,estaobraapontadacomopioneiranouso dexilogravuraselaboradasporgravadoresapartir de desenhos e aguarelas (Fig. 1), para complemen-tar as descries de fsseis (Rudwick, 1987)3. Figura 1 Pgina ilustrada da obra de Conrad Gesner publicada em 1565. Rep. de Fejfar, 1989.Figure 1 Illustrated page of the work of Conrad Gesner published in 1565. Rep. fom Fejfars, 1989.Janelas sobre mundos extintos. Reexes sobre comunicao em Paleontologia.ssoci.o vovruouvs. uv ovo:ooos 85 J. M. Brando, P. M. Callapez, V. F. Santos & N. P. C. Rodriguestes ossos de gigantes fsseis ver-se-iam transfor-mados em restos de quadrpedes desconhecidos, medida que se desenvolvia a anatomia comparada. OstrabalhosdomdicoeanatomistaNiels Stensen [Nicolaus Steno] (1638-1686) resultaram noutro impulso considervel para este progresso de saberes relativos aos fsseis e aos processos de fos-silizao.Comefeito,aodissecaracabeadeum grandetubarobranco,constataraqueosdentes desseanimaleramanlogosaosglossopetrae,desig-nao atribuda aos dentes fsseis isolados, que at entosepensavaseremlnguasdeserpentepetri-rtico,acentuava-seaconvicodequeosfsseis representavam restos de organismos transportados e depositados com os sedimentos ao tempo do ca-taclismo diluviano, salvaguardando-se assim a cro-nologia bblica numa perspetiva criacionista.DuranteosculoXVIIovalordosfsseisen-quanto documento cientco sofeu novo impulso, dada a necessidade de se reinterpretar convincen-temente a descoberta de ossadas de grandes dimen-ses,atentoatribudasacolossosmitolgicos (Fig. 2)4. Laicizados [e] desumanizados no sculo XVIII, como sublinha Margaret Lopes (2005), es-Figura 2 Interpretaes das ossadas fsseis de grandes mamferos, representadas pelo jesuta Athanasius Kircher (1601-1680), no seu Mundus subterraneus (1664-1678). Sublinhe-se que Kircher manifestava srias reservas sobre as propores dos supostos gigantes (Butaut, 1991; Lopes, 2005). Acessvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:MundusSubterraneus.jpg, 20/09/2013.Figure 2 Interpretations of the fossil bones of large mammals gured by the Jesuit Athanasius Kircher (1601-1680) in his Mundus subterra-neus (1664-1678). It should add up that Kircher had many doubts about the proportions of these giants. Available in: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:MundusSubterraneus.jpg, 20/09/2013.86NodomniomaisrestritodaPaleontologia, incontornvelarefernciaobradeJamesSo-werby (1757-1822), naturalista, autor, entre outros trabalhosporsiilustradosecoloridos,daMineral ConchologyofGreatBritain(1812)7,catlogoexaustivo emvriosvolumes,dosinvertebradosfsseisde Inglaterra,publicadoaolongodalongacarreirae continuado pelos lhos, tambm naturalistas. Esta obra ter sido certamente, um dos grandes suportes aostrabalhospioneirosdeWilliamSmith(1769-1839), no estabelecimento da correlao de estratos sedimentares com base no mesmo contedo fossi-lfero, pilar fundamental da Estratigraa.EmFrana,Jean-BaptistedeMonet[Cheva-lierdeLamarck](1744-1829)elevouaBotnica, aZoologiaeaPaleontologiaaoestatutodecin-ciasmodernas,preconizandootransformismona suaPhilosophieZoologique(1809)edescrevendoe-gurandocentenasdenovasespciesemtrabalhos monumentais, de que exemplo a Histoire naturelle des animaux sans vertbres (1815-1824). Por sua vez, Geor-Figura 3 Estampa do Litolcio do naturalista gals Edward Lhuyd (1660-1709). Figure 3 Plate fom Edward Lhuyds (1660-1709) Lithophylacii.Janelas sobre mundos extintos. Reexes sobre comunicao em Paleontologiacadas. Steno no s demonstrou assim, de forma convincente,aorigemorgnicadosfsseis,como tambmevidenciouqueosestratosondeestesse encontravam aprisionados se tinham formado pela deposiodosmateriaisemsuspensonasguas, retomando algumas das ideias j aventadas por Da Vinciaoadmitirqueaspedrasestraticadasdas montanhas eram todas camadas de argila, deposita-das umas sobre as outras pelas cheias dos rios. Esta eoutrasdassuasobservaesconstituemumaan-teviso do princpio da sobreposio das camadas que Leonardo ter ento compreendido.O Litolcio (Lithophylacii Britannici Ichnographia) de EdwardLhuyd(1660-1709),colecionadordefs-seis e curador do Ashmolean Museum em Oxford5, porventura menos divulgado, considerado como o mais antigo catlogo de fsseis do Reino Unido. Pu-blicado em 1699 graas ao suporte nanceiro de um grupo de amigos do naturalista, entre os quais Isaac Newton (1643-1727) e Hans Sloane (1660-1753), o Litolcio cumpria a dupla funo de catlogo das colees reunidas sobretudo graas ao seu empenho pessoal, e de guia de campo destinado aos natura-listasamadoresquequisessemdeterminarrapida-menteosseusachados(Hellyer,1996).Paraisso, lado a lado com as descries, Lhuyd disponibilizou umelevadonmerodeestampas,emquegurou um vasto lote de exemplares de fsseis animais e ve-getais incorporados no acervo do museu (Fig. 3).ApartirdosculoXVIII,numapocaemque as primeiras tabelas cronostratigrcas ainda se en-contravam por denir e a gnese dos fsseis era lida escalahumanaereportadaaoDilvio,comeou nalmenteasercompreendidaasuaimportncia paraahistriadaTerraedavida,apesardesub-sistiralgumarelutnciaematribuirumanature-zaorgnicaaformasmuitodiferentesdasatuais. Emparalelo,ganhavaconsistnciaocolecionismo cientco,alargadonocontextodoIluminismoe doEnciclopedismopelorecursocrescenteacor-respondentes,viajantesemarchandsespecializados, assimcomopeloacessoapublicaesdegrande impacto,profusamenteilustradas,quetestemu-nhamosesforosdosnaturalistasdaaltura,na descrioeclassicaodasproduesnaturais. Destacam-seapenas,deentremuitasoutrasobras emquesefundamentaoedifcioepistemolgico daHistriaNatural,oSystemaNaturaedeCarlvon Linn[Lineu](1707-1778)6,editadodesde1735, eaHistoireNaturelledeGeorgesLeclerc[Condede Buon] (1707-1788), publicada entre 1749 e 1788. Esteltimo,contrariandoadoutrinavigente,es-peculou sobre a idade da Terra, a que atribua mais do que os 6.000 anos sugeridos pela Bblia. .ssoci.o vovruouvs. uv ovo:ooos 87dacriaoeocatastrosmoassociadoaoDilvio acabaramporserrefutadospelageneralidadeda comunidadecientcaedestronados,passandoos fsseis a ser denitivamente encarados como teste-munhos da evoluo e com elevado valor cientco. OconhecimentoemPaleontologiaprogrediu, tambm,deformanotvel,comostrabalhosme-tdicos de Alcide dOrbigny (1802-1857) sobre os fsseisdeFrana,descritoseagrupadosemobras notveisedegrandedifusointernacional,como o foram, entre outras, a Palontologie Franaise (publi-cada desde 1840, em parte pstuma), o Prodrome de PalontologieStratigraphique(1850)eoCourslmentaire [dePalontologie](1849),publicadoaquandoda sua nomeao para o Museu de Histria Natural de Paris. Verdadeiro repositrio da Paleontologia sis-temticaeestratigrca,aSalledOrbignydoMuseu de Histria Natural de Paris ainda hoje conserva as suas colees, naquele que um dos locais de culto para esta rea da cincia.Da abundncia relevnciaOestudoeoensinodaFilosoaNaturalfo-ramdesdesempreapoiadospelamanipulaode coleesdeexemplaresnaturalizados,herbriose amostrasgeolgicas,constitudasnoseiodosga-binetes universitrios e museus que se multiplica-ram por todo o mundo durante a segunda metade do sculo XIX. O principal objetivo desses museus era,porconseguinte,arepresentaoexaustivada diversidade das produes dos trs Reinos lineanos da Natureza, evidenciando ligaes e dissemelhan-as,tpicosqueconstituamemparalelocoma problemtica da origem dos fsseis uma das prin-cipaispreocupaesdosnaturalistas,aguadape-lasviagensdeexploraonosnovosmundos.Tais propsitos levaram constituio de enormes cole-es, sem as quais, sublinhe-se, seria difcil imagi-nar a construo do conhecimento em Taxonomia e Sistemtica, domnios aos quais a abundncia de espcimeseradeimportnciacrucial.Estepro-psitopersistiuaolongodetodoosculoXIX, medida que a descoberta geogrca e subsequente colonizaodasilhasdaOceaniaedointeriorde fica e da Austrlia prosseguia.EmboradesdeosGabinetesdeCuriosidades seiscentistas,asproduesnaturaisfossemjme-recedorasdeseesprprias,aapresentaodos exemplaresfazia-se,emregra,semqueseprocu-rasseumprincpionaturalorientador,seguindo apenas as preferncias pessoais estticas ou de ou-tra ordem dos seus organizadores, ou os condi-cionalismos de espao e mobilirio. A organizao gesCuvier(1769-1832)eAlexandreBrongniart (1770-1847),adeptosdadoutrinadoimutabilis-mo das espcies, cujo desaparecimento explicavam como consequncia de grandes catstrofes geolgi-cas, contribuam para os fundamentos da Zoologia ePaleontologiadevertebradosesuaimportncia estratigrca. Cuvier destacou-se por ter demons-trado a possibilidade de reconstituio de animais completosapartirdoachadodepeasesquelti-cas isoladas, atravs da comparao funcional com oobservadoemespciessimilaresecontempor-neas. Este um processo de suma importncia para o estudo dos fsseis, que lanou as bases da anato-miacomparadaeomtododeguraoilustrada erecriaodosachadosfsseis.Sublinhe-se,por exemplo,acontribuionadeterminaodeum fagmentocranialdescobertoemMaastricht,em 1764, atribudo a um crocodilo, mas pertencente, anal, a nova espcie de grande lagarto marinho, posteriormentedesignadoporMosasaurus(Fig.4). Tambmcoufamosooestudodoesqueletodo emblemticoanimaldoParaguai(megatrio), descoberto em 1788 nos arredores de Buenos Aires e enviado para Espanha, onde foi incorporado nas colees do Real Gabinete de Historia Natural, em Madrid8. Este esqueleto, alvo da ateno de diver-sosnaturalistasataoestudodeCuvier,tersido um dos primeiros a ser montado na posio que se supunha ter podido ter em vida (Buetaut, 1991).Aaproximaosmodernasinterpretaesda histria geolgica chegou com Charles Lyell (1797-1875), ao universalizar o Uniformitarismo de James Hutton(1726-1797)nosPrinciplesofGeology(1832-1834). Com a publicao, em 1859, dos fundamen-tos basilares do evolucionismo em A origem das es-pcies, de Charles Darwin (1809-1882), a ordem J. M. Brando, P. M. Callapez, V. F. Santos & N. P. C. RodriguesFigura 4 Descoberta do crnio de Mosassauro na pedreira St. Pietersberg (Maastritch). Acessvel em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:MosasaurDiscovery.jpg, 20/09/2013.Figure 4 Discovery of the Mosasaur skull in St. Pietersberg quarry (Maastritch). Available in: http://en.wikipedia.org/wiki/File:MosasaurDiscovery.jpg, 20/09/2013.88&Press,2001).Outrosnaturalistasousavampro-por a separao das colees destinadas investiga-o,dasdestinadasinstruodopbliconoes-pecialista, devendo estas reunir apenas um nmero restrito de espcimes para que cada objeto pudesse ser claramente visto, em expositores cienticamente corretos, atrativos e fceis de entender (id. ibid.).A generalidade dos museus contemporneos as-sumeintencionalmenteestadualidadefuncional, por razes que se prendem, por um lado, com a sua funosocialedemediadorcultural,questocen-tralligadaacessibilidadeintelectualdosmateriais disponibilizados e, por outro, com o papel de repo-sitrio cientco destinado a um grupo especco de utentes11.Orecursoareconstituiesdesenhadase amodeloselaboradosapartirdainterpretaodos achadospaleontolgicos,processoque,emregra, acompanhaainvestigao,teveomelhoracolhi-mento por parte de alguns artistas que contriburam paraarealizaodasgrandesexposiesuniversais iniciadas em Londres, em 185112 (Fig. 5). Nos mu-seus em que as preocupaes educativas se acentua-ram de forma mais vincada, foi sentida a necessidade deproporcionaroutrosdocumentosilustrativosda Natureza capazes de captar e prender a ateno dos visitantes, ao mesmo tempo que, de forma sublimi-nar, pudessem condicionar e dirigir os modos de ver e apreender. Proporcionava-se, ento, a observao de esqueletos montados de dinossauros, mamferos e outros animais extintos, na posio anatmica que dosexemplaressegundolgicascientcasdecor-reu dos trabalhos de Lineu e subsequentes, os quais permitiram sistematizar os espcimes segundo ma-trizesbaseadasnasubordinaodascaractersticas anatmicasinternaseexternas,padresdeorga-nizao revistos na sequncia da difuso das teorias evolucionistas. Reetia-se assim a nova concepo do mundo natural (Alberch 1995). Ofulcrodasapresentaesdebasetaxonmica residianotestemunhoindividualizadodoespci-me,acompanhadoapenasporumaetiquetacom onomecientco,algumasvezestambmcoma procedncia ou a unidade estratigrca correspon-dente no caso dos fsseis, transmitindo assim uma visomuitolimitadadomundonatural(Hernn-dez,1998),consonante,porm,comosparadig-mas cientcos vigentes.Emconsequnciadestesmodelosdeorgani-zao,profundamentevinculadosinvestigao eaoensinodaHistriaNaturalquevingaramat meadosdasegundametadedosculoXX,muitos museusmantiveram,athpoucosanos,exposi-es muito densas e estticas, por assim dizer, ver-dadeirosdepsitosdemateriaisetiquetados,onde a abundncia superava quaisquer outros desgnios. Miles et al, 1982) referiam-se-lhes dizendo que enquantooespecialistadeviadeliciar-secomesta abundncia, o leigo [] incapaz de apreciar dema-siadasdiferenassubtisentreumarazovelmassa de objetos semelhantes, acharia a exposio perple-xaevisualmentemontona.Contudo,desde-nais de setecentos que se esboavam tentativas para conferir um papel educativo s exposies; rera--se,comopassoimportantenesse(novo)enten-dimento, a exposio das colees de Hans Sloane emMontaguHouse,Bloomsbury,Gr-Bretanha, desde17599;noentanto,aconsolidaodaideia demuseusaoserviodainstruopblicasse armaria na esteira da criao do Museu de Hist-ria Natural de Paris (1793) e do Conservatoire des ArtsetMtiersdeParis(1794)10,nocontextoda democratizao republicana.ParaRichardOwen(1802-1892),oeminente anatomista e paleontlogo britnico que orientou a instalao das colees de Histria Natural do Bri-tishnoedifciodeSouthKensington,afuno pblica do museu cumpria-se com um grande es-tabelecimentoondetodasasespciesevariedades estivessemreunidaseasuacomparaofossepos-svel, atravs do treino da observao de exemplares expostos e convenientemente identicados; contu-do, esta postura, de resto comum a outros naturalis-tas contemporneos, fez emergir a discusso sobre a utilidade de expor, ou no, toda a coleo (Thackray Figura 5 Gravura da poca com uma vista do ateli do escultor Benjamin Waterhouse Hawkins (1807-1894), aquando da preparao das rplicas de dinossauros exi-bidas no Palcio de Cristal, na exposio universal de Londres (1851). Acessvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Central_Park_studio.jpg, 20/09/2013.Figure 5 Contemporary engraving with a view fom the studio of the sculptor Benjamin Waterhouse Hawkins (1807-1894) dur-ing the preparation of dinosaur replicas displayed in the Crystal Palace at the Universal Exhibition of London in 1851. Available in: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Central_Park_studio.jpg, 20/09/2013.Janelas sobre mundos extintos. Reexes sobre comunicao em Paleontologia.ssoci.o vovruouvs. uv ovo:ooos 89se assumia ser correta (Fig. 6), ou de reconstituies de cenas vivas, mediante o recurso a representaes pictricas, atividade que tem vindo, desde h alguns anos,aconsolidar-seeserdesignadaporpaleoar-te13eque,decertaforma,culminaainvestigao (Correia, 2012). Sublinhe-se que estas reconstitui-essupemumaresponsabilidadepartilhadaen-trecientistaseartistas,tendoosfsseiscomobase estruturaleoconhecimentocientcoenquanto elemento modelador da realidade passada (id. ibid.).O sentido esttico do grasmo foi sendo apura-do pouco a pouco, tendo em vista a potenciao do discursomuseolgico,tendendonalgunscasos,se bemquenumapartilhaderesponsabilidadesen-tre os prossionais da rea da Cincia e os designers eilustradores,paraumacertaespciedecriao artstica (Strnski, 1978). Esta tendncia foi par-ticularmentesentidanailustraodedivulgao, representandoambinciasecomunidadespaleo-biolgicas.Contudo,umaleituradiacrnicades-tasreconstituies,bemcomodasrepresentaes gurativasconcebidasparaexposies,permite concluirquemuitasvocandodesatualizadasao longo do tempo, ao ritmo das (novas) descobertas; J. M. Brando, P. M. Callapez, V. F. Santos & N. P. C. RodriguesFigura 6 Reconstituio do esqueleto da tartaruga gigante Archelon ischyros descoberta em 1895 na formao de Pierre Shale (South Dakota, E.U.A.). Yale Peabody Museum. Acessvel em: http://www.oceansofkansas.com/Turtles/ArchelonYPM3000.jpg, 20/09/2012.Figure 6 Skeleton reconstitution of the giant turtle Archelon Ischyros discovered in 1895, in the Pierre Shale Formation (South Dakota, USA). Yale Peabody Museum. Available in: http://www.oceansofkansas.com/Turtles/ArchelonYPM3000.jpg, 20/09/2012.so disso inmeros testemunhos, sobretudo no que respeita aos vertebrados14.Neste contexto, delineado o discurso expositivo, so em regra selecionados por entre os exemplares bempreservadosesemproblemasdeconservao, aquelesqueconciliemsimultaneamenteosneces-srios requisitos taxonmicos, estratigrcos ou de relevncia histrica, e possam contribuir, de alguma forma, para o desenvolvimento da linguagem plsti-ca da exposio (Hernndez, 1998) ou, como refe-re Bergeron (1994), sem que certas peas, embora mostradasenquantoobjetoscientcossejampri-vadas das suas caractersticas de beleza ou raridade.Aobservaodocomportamentodospblicos naexposiesmostraque,apesardetudo,oque acabaporsobressairsoaspeasquesedestacam pelassuaspeculiaridadesecujopoderdeatrao, no raras vezes, constitui, por si s, a justicao da visita. Esto nestas circunstncias certos grupos fa-ris, como os dinossauros, os grandes mamferos e os homindeos, potenciados pela mediatizao de que tm sido objeto. Este fenmeno fora j cons-tatado em nais do sculo XIX por Francisco Mo-reno(1852-1919),naturalista,exploradoredire-tor do Museu de La Plata (Buenos Aires) j ento detentordeumconsidervelacervodamegafauna plistocnica das pampas argentinas , que chegou a defender que o poder de atraco de certos objetos deveriaserumcritrioprioritrionaorganizao das exposies, alm de que a sua disposio nas sa-las deveria realizar-se de forma a poderem ser ple-namente apreciados pelo pblico (Francisco More-no, 1891, apud. Lopes & Murriello, 2005).Apresentao e transposioNageneralidade,osmuseuslidamcomobje-tos retirados do seu contexto original, aos quais se procura dar um novo sentido e signicado, aliando aoseuvalormaterialecientco,umvalorima-terial que permita a sua transposio para os con-textosoriginais,ouseja,situ-losnodomnioda interpretao do mundo natural. O veculo para tal desiderato a apresentao das colees - a expo-sio -, que embora no esgote a comunicao em ambientemuseal,continuaaser,comoenfatizava GeorgesHenriRivire(1897-1985),amaisade-quada via para estabelecer o dilogo entre o museu e o pblico (Rivire, 1989). A exposio um processo criativo que recorre a uma linguagem multimodal, cujo objectivo a pro-duodeumanarrativaoudiscursomuseolgico, que comunica uma ou mais mensagens (cognitivas, afetivas ou ambas) em torno de objetos, realidades 90Enquantodispositivomuseogrco,odiorama conseguereunirefundirvisualmentearepresen-taogrca(ilustraodoambienteeilustrao analticadetaxa)comaguraodimensional (modelaodetaxaedosubstrato),reforando--seamediaodainterpretaopelaapresentao dosespcimesemcontextodeintegraosinerg-tica, recorrendo a uma gama alargada de emissores sensoriais,depercepotctileauditiva.Porm, tenha-se em boa nota que o propsito da transpo-sio museogrca no propriamente o de apre-sentararealidadenassuasmltiplasdimenses, massim,comoreferiaJean-FranoisLyotard(L. apud.Thomson,2002)odeinventaralusesre-presentativas do que no pode ser apresentado. Noobstanteestaslimitaes,existesempre umafundamentaocientcasubjacenteaoacto de recriar janelas de Magritte16 sobre um passado tornado irreversvel pela dimenso tempo. Esta ad-vmdaaplicaodoparadigmadouniformitaris-mo, assim como de critrios prprios da analogia e da convergncia morfolgica, entre outros. Monstros, interpretao e (geo)conservaoApardeoutrasproduesnaturais,osfsseis tiveram,desdecedo,lugarderelevonosmuseus constitudosemPortugalapartirdasegundame-tade do sculo XVIII, na esfera do errio pblico e eclesistico. Atestam-no, por exemplo, as remessas de restos de grandes vertebrados destinados ao Real GabinetedeHistriaNaturaleJardimBotnico ou conceitos. Os objetos podem ser parte da narra-tiva ou desempenharem o papel de semiforos i.e., o papel de intermedirios entre os utentes dos mu-seus e um mundo invisvel (Pomian, 1997). Isto signica que o valor das colees decorre do facto de representarem mundos inexistentes no momen-to e no lugar onde podem ser contempladas, e onde se destinam a estabelecer uma comunicao entre o mundoreal,comomundodondevmosobjetos que as preenchem, pertencentes a um espao e a um tempo diferentes, invisvel no presente. Deste modo, objetos reais ou rplicas, ou combi-naesdeambos,associadosssuasrepresentaes gurativas(ilustraes,fotograasouanimaes multimdia)asseguramoestabelecimentodeuma ligao visvel e tangvel com mundos desconhecidos, recriandoosseusespaoseecossistemas,povoados de seres extintos h milhes de anos (Fig. 7)15.Passos decisivos no sentido de aumentar a ec-ciadacomunicaoforamtrilhadosnasprimeiras dcadasdosculoXX,pelorecursoaosdioramas, tcnicaquerapidamentesealargoudaZoologia, odomniotradicional,Paleontologia.Consistia narepresentaoourecriaodepeaseambien-tesnaturais,cujoselementos,exemplaresreaise/ou rplicas, eram apresentados em posio de vida econexoecolgica,numcontextopaleoambien-tal. Esta forma de apresentao que marcou o in-cio da rotura com as exposies exaustivas, baseadas na sistemtica e na evoluo, predominantemente um fenmeno do sculo XIX (Mason, 1994), con-tinua a utilizar-se com grande aceitao.Janelas sobre mundos extintos. Reexes sobre comunicao em PaleontologiaFigura 7. A Montagem didtica combinando peas esquelticas de dinossauro Iguanodontdeo (Museu do Instituto Real de Cincias Naturais da Blgica, Bruxelas). Foto dos autores, 2011; B Rplica do esqueleto do dinossauro Miragaia lon-gicollum, pea emblemtica da exposio de longa durao do Museu da Lourinh. Foto O. Mateus / Museu da Lourinh.Figure 7. A Didactic assemblage combining skeleton parts of an Iguanodontid dinossaur (Museum of the Royal Belgium Institute of Natural Sciences, Brussels). Authors photo, 2011; B Skeleton replica of the dinossaur Miragaia longicollum, emblematic part of long-term exhibition of the Museum of Lourinh. Photo by O. Mateus / Museum of Lourinh..ssoci.o vovruouvs. uv ovo:ooos 91e impressas por tcnicos ao servio da Comisso ou por estdios europeus de referncia (Fig. 8).Fsseis,materiaisconchiolgicoseminerais faziamigualmentepartedascoleesdecuriosi-dadesnaturaisreunidasporFreiManueldoCe-nculo(1724-1814),bispodeBeja,apresentadas noseuMuseuSisenandoCenaculanoPacence,aberto aos is da Diocese sob o mote O estudo do Museo he huma disposio para qualquer homem ser completamente Sabio (Vasconcelos, 1898) 17.Seriainjustonoreferir,mesmoquedemodo fugaz,ascoleesqueatualmenteseencontramna esfera dos museus universitrios, as quais conciliam muitascentenasdeexemplaresestrangeirosadqui-ridoscomnalidadesdidticasedecomparaoa marchands de referncia, sobretudo nas ltimas dca-das do sculo XIX (Dr. Auguste Krantz e sucessores, Louis Smann, mile Deyrolle e tantos outros). Es-tas, embora sem perderem valor enquanto referentes taxonmicos (mesmo carentes de reviso), so hoje em dia passveis de novos olhares enquanto contri-butos para a Histria das Geocincias, em contexto nacionaleinternacional.Estesacervosuniversit-rios so tambm repositrios de espcimes recolhi-dosemformaesportuguesas,nodecursodetra-balhos de investigao centrados nessas instituies.Parte destas colees permanece exposta no pre-sente em condies que procuram romper com os daAjuda,emLisboa(fundadoca.de1768),en-tre as quais a de diversos pedaos de ossos mons-truosos,testemunhosdamegafaunaplistocnica doCearenviadospelocapito-morCoutinhode Amaury(?-1810)aoSecretriodosNegciosda MarinhaeUltramarMartinhodeMelloeCastro (1716-1795),bemcomoosrestosesquelticosdo mticoMonstrodePrados,descobertoem1785 emMinasGerais,acompanhadopelorelatriodo naturalista brasileiro Simo Pires Sardinha (1751-1808), scio correspondente da Academia Real das CinciasdeLisboa(Fernandesetal.,2012,2013; Lopes, 2005). Lamentavelmente perdeu-se o ras-todestesmateriaisnastransfernciasdequefoi alvooacervodomuseudaAjuda,emparteexpe-didoporDomenicoVandelli(1735-1818)parao GabinetedeHistriaNaturaldaUniversidadede Coimbra (criado atravs da reforma pombalina de 1772), mas tambm espoliado durante a invaso de Junot(1807-1808)e,namaiorparte,conado Academia Real das Cincias de Lisboa, quando foi extintoem1836.Ascoleesreaisjuntaram-sea aos materiais reunidos por Frei Jos Mayne (1723-1792), nomeadamente inmeras peas de Histria Natural, bem como as doaes de acadmicos e de outros contributos para formar o Museu Nacional de Lisboa (Antunes, 1986), posteriormente trans-ferido para a Escola Politcnica de Lisboa (1858).No seio da Academia das Cincias, por inun-cia do Duque de Saldanha (1790-1876), viria a ser criada a 1 Comisso Geolgica (1848) que, refor-muladaesobaorientaocientcadePereirada Costa (1809-1889) e Carlos Ribeiro (1813-1882), haveriadeconstituir,apartirde1859,nosegun-do piso do edifcio da Academia, o museu onde se preservam as colees de paleontologia e estratigra-a portuguesas, reunidas durante os levantamentos para a Carta Geolgica de Portugal, desde a dcada de1860.Nelasestorepresentadososprincipais cortes histricos que permitiram denir e carac-terizarasprincipaisunidadesestratigrcaspre-sentesemterritrionacional,representadosatra-vsdasfaunasfsseisusadasnoseuordenamento cronolgico.Osgruposfsseismaisrepresentativosdeste acervoforamalvodeestudosmonogrcospu-blicadosdesde1865,assinadospelosmembrosda Comissoedosorganismosquelhesucederam,e pordiversoscolaboradoresgraciososestrangei-ros,convidadosdeentreosgrandesespecialistas dapoca(Brando,2008).Dopontodevistada ilustrao, deve sublinhar-se a grande preocupao e qualidade das litogravuras includas nestes traba-lhos, at ao uso generalizado da fotograa, gravadas Figura 8 Original de Angelino Castro, desenhador da Comisso Geolgica, com ilustraes de espcimes miocnicos da regio de Lisboa para as estampas da monograa de Pereira da Costa sobre os gastrpo-des fsseis portugueses. Ca. 1866. Arquivo Histrico Geolgico-Mineiro do LNEG.Figure 8 Original of Angelino Castro, designer of the Portuguese Geological Survey, showing illustrations of Miocenic specimens of Lis-bon region destined to the preparation of plates for Pereira da Costas monograph on Portuguese fossil gastropods. About 1866. Geological--Mining Historic Archive, LNEG.J. M. Brando, P. M. Callapez, V. F. Santos & N. P. C. Rodrigues92padres cientcos tradicionais, em nome de uma nova eccia comunicacional ao ritmo das dinmi-cas institucionais.Uma ltima palavra devida s diversas colees que tm vindo a constituir-se na esfera autrquica e do movimento associativo cientco, que renem atualmenteacervosdegrandeinteressecientco (citem-secomoexemplososdoMuseudaLou-rinhedaSociedadedeHistriaNatural,Torres Vedras)ourelevnciapedaggicacomoso,entre outros exemplos possveis, os do Museu de Hist-riaNaturaldeSintra,ondeseexibeumaparteda diversicada Coleo Miguel Barbosa (Brando, 2006), do Museu da Pedra (Cantanhede), ou o do Parque Paleozico de Valongo.Notas naisHenri Rivire (1989) referia a grande diversidade de formas que ao longo do tempo foram encontra-das para a apropriao e apresentao da Natureza, desde a mnagerie de Alexandria no antigo Egito, aos hortosbotnicoseGabinetesdeCuriosidades,dos jardins zoolgicos aos vivarium e aos parques naturais, sem omitir, claro, as galerias cientcas novecen-tistas. Para o grande vulto da Museologia contempo-rnea, as sucessivas e mltiplas frmulas de apresen-tao da Histria Natural conferiram aos respetivos museusumcarcterespectacularmenteevolutivo e at de avant-garde no universo dos museus (id. ibid.). Estasmodicaesencontramexplicaonas novasepermanentesdescobertasemtodososra-mosdaHistriaNatural,incluindoaPaleonto-logia,mastambmnainteriorizaodaneces-sidadedemodicarosdiscursosmuseolgicos, adequando-ossnovasrealidadeseaosinteresses deutentescadavezmaisexigenteseapetrechados culturalmente. notvel o esforo feito por muitos museusepelanovageraodecentrosdecin-cianosentidodesedistanciaremdatradicional abordagemontolgica,centradanosobjetos,para novas formas de comunicao em Cincia que in-corporam perspetivas histricas sobre a construo do conhecimento e a evoluo das metodologias de investigao, para chegar a outro nvel de aborda-gem,epistemolgica,centradanademonstraoe na experincia, envolvendo o utente no processo de descobertaeinterpretaocientcas(Montpetit, 1998).Estedesaotemdesersidoassumidoem paralelo com a melhoria do acesso da comunidade cientca s colees, de forma a garantir o desen-volvimentodatradicionalvocaocientcadeste grande grupo de museus. hoje consensual a aceitao de que a mudana na filosofia da apresentao passa pela constituio deequipasmultidisciplinaresqueconciliem cientistas e profissionais da comunicao e educao, repartindo entre si a responsabilidade da conceo, designedesenvolvimentodemdulosexpositivos, com recurso a novas tecnologias e materiais de su-porte.Pretende-sequeestesinterajamcomos utentes e promovam a reexo sobre as questes da paleoecologia,dapaleobiogeograa,daevoluoe da extino - objetivos que esto para alm dos pre-tendidosaquandodameradisponibilizaodein-formaotaxonmicanasexposiestradicionais. Trata-se, dir-se-ia, de desgnios que decorrem dos recentesesforosdeinterpretao,valorizaoe conservaodopatrimniogeolgicoemtodasas suasexpresses(geoconservao),metassupremas do paradigma ambiental. Se,comoarmamAntunes&Balbino(2010), a Paleontologia no cincia nem velha nem ob-soleta ao contrrio, com excelentes possibilidades de desenvolvimento, ento augura-se sua apre-sentao e divulgao, enquanto contributo para a elevaodosnveisdeliteraciacientcadasocie-dade, um longo (e paralelo) caminho, reinventan-dooprocessodetransposiomuseogrcacom recurso massivo s novas tecnologias de comunica-o e conceo de dispositivos interativos, de que carecem ainda os equipamentos atuais.BibliograaAlberch, P., 1995. Inventaires des muses, des collections et de la biodiversit. La Lettre de lOCIM, Dijon, 37: 9-14.Allmon, W. D., 1997. Collections in Paleontology. Pa-leontologyinthe21stCenturyWorkshop.InLane, H. R., Lipps, J., Steininger, F. & Ziegler, W. 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Reexes sobre comunicao em Paleontologia.ssoci.o vovruouvs. uv ovo:ooos 93Geolgicas.InCallapez,P.,Rocha,R.,Marques J.&Dinis,P.(edit.),ATerra:conitoseordem.Museu Min. Geol. da Universidade de Coimbra, 419-427. Butaut, E., 1991. Fsiles y hombres. Barcelona. RBA Edi-tores. 337 p.Correia, F., 2012. Paleoarte: fsseis que ganham vida. UTAD. 64 p.Fejfar, O., 1989. Zkamenel minulost. Praha. Albatros. 303 p.Fernandes,A.C.,Antunes,M.T.,Brando,J.M.& Ramos, R. C., 2012. O Monstro de Prados e Simo Pires Sardinha: consideraes sobre o primeiro re-latrioderegistrodeumfssilbrasileiro.Filosoae Histria da Biologia, 7(1): 1-22.Fernandes,A.C.,Ximenes,C.&Antunes,M.T., 2013. Na Ribeira do Acara: Joo Batista de Azevedo Coutinho de Montaury e a descoberta documentada de megafauna no Cear em 1784. Filosoa e Histria da Biologia, 8(1): 21-37.Hellyer, M., 1996. The pocket museum: Edward Lhwyds Lithophylacium. Archives of Natural History, 23(1): 43-60.Hernandez,F.,1998.Elmuseocomoespaciodecomunicacin. Gijn. 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Zurich: [Jacob Gesner].3Gesner no estava alheado nem do valor medicinal dos fsseis e tal como a maioria dos seus contemporneos, acreditava na exis-tncia do succus lapidicatus.4Tenha-setambmpresenteque,duranteestepero-do,eraconsidervelaquantidadedemarmfssil comercializadonaEuropa,provenientedejazidas siberianas, facto que, mais tarde, foi explorado por Buon na obra Les poques de la nature (1778).5OAshmoleanMuseum,inicialmentededicadosAr-tes e Arqueologia, considerado o mais antigo mu-seu pblico do Reino Unido e o mais antigo museu universitrio.Abriuem1683disponibilizandoas colees de Elias Ashmole (1617-1692), oferecidas Universidade de Oxford em 1677. 6Lineu, alm de autor da classicao binomial, foi um dos primeiros naturalistas a estabelecer um critrio deagrupamentodasproduesmineraisemPetrae (rochas), Minerae (minerais) e Fossilia (fsseis).7Sowerby, James; Sowerby, James de Carle; Farey, John.. The mineral conchology of Great Britain; or, Coloured gures and descriptionsofthoseremainsoftestaceousanimalsorshells,which have been preserved at various times and depths in the earth. Lon-don. Ed. B. Meredith. 1812, 1st edition.8Criado em 1771 por Carlos III, que muito se interessa-va pela Histria Natural e por isso apoiava as expe-dies e o colecionismo cientco, antecedeu o atual Museo Nacional de Ciencias Naturales.J. M. Brando, P. M. Callapez, V. F. Santos & N. P. C. Rodrigues94 Janelas sobre mundos extintos. Reexes sobre comunicao em Paleontologia9Estas colees constituram o ncleo fundador do Bri-tish Museum (Natural History), em Londres.10Atual Muse des Arts et Mtiers/ cnam.11Emboraascoleesdefsseissejamaprincipalfonte de informao em Paleontologia e por isso essenciais investigaonosvrios domniosdesta cinciae formao de novos investigadores, o seu valor cien-tco com fequncia questionado, pelo facto da-quelas terem sido constitudas sobretudo por razes ligadas aos estudos de Taxonomia e, por isso, serem formadasporexemplaresisolados,desprovidosdo seu contexto estratigrco e paleoecolgico.12Great Exhibition of the Works of Industry of all Nations, Palcio de Cristal, Londres, 1851.13APaleoarterecorreavriastcnicasdeexpresso plstica,obedecendoacritriosdenaturezainter-pretativa,tendoemvistaareconstruo,reconsti-tuio ou modelao gurativa de elementos esque-lticos ou outros restos orgnicos, bem como marcas deatividadedeserespretritos(icnofsseis)desig-nadamenteninhos,pegadas,perfuraes,coprli-tos, etc (Correia, 2012).14Nocasodosmuseusexistemalgumasrepresentaes queperduraropelaexcelnciadotrabalhoeen-quantodocumentohistrico,tendo-setornado, elasprprias,motivodeatrao.Demonstram-no, porexemplo,osmuraisdeCharlesRobertKnight (1874-1953) e de Rudolph Zallinger (1919-1995) no FieldMuseumofNaturalHistory,Chicago,EUAe Yale Peabody Museum of Natural History, New Ha-ven,EUA,respetivamente,importantesmarcosna interpretaoartsticadosprogressosdascincias da Terra e da Vida e, simultaneamente, imagens de marcadomuseu.Acessveisemlinhaem:http://www.charlesrknight.com/FMNH.htmehttp://pea-body.yale.edu/exhibits/age-reptiles-mural.15Deve enfatizar-se o valor destes suportes para a divulga-o em Paleontologia, atendendo a que em grande par-te dos casos a preservao e/ou o modo de fossilizao dos exemplares nem sempre propiciarem uma rpida compreenso da morfologia do original, nem to pou-co a sua extrapolao para o ser vivo de que resultaram.16Evocao do pintor belga Ren Magritte (1898-1967).17O remanescente das colees de Frei Manuel do Cen-culo reparte-se atualmente entre a Biblioteca Pbli-ca e o Museu de vora, cidade para onde o clrigo foi transferido em 1802, como arcebispo.