artigo5elsje.pdf

Upload: aquemdoequador

Post on 07-Mar-2016

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Antropologia e Arte: uma relao deamor e dio

    Elsje Maria LagrouPrograma de Ps-Graduao em Antropologia e Sociologia.

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    e-mail: [email protected] em: dezembro 2003

  • ResumoNos ltimos anos as relaes entre esttica, arte e antropologiavoltaram a ser assunto de acalorado debate. Ningum expres-sou melhor, em vida e obra, a relao ambgua existente, desdea origem, entre a antropologia e a arte moderna. Se Marcus eMyers chamam a ateno para suas semelhanas, ambas secaracterizam pela vocao e por seu fascnio pela alteridade,Gell afirma categoricamente que a antropologia social moder-na essencialmente, constitucionalmente, anti-arte. Por estarazo, ainda segundo Gell, o objetivo da antropologia da artedeveria ser sua dissoluo. Argumento similar foi sustentadopor Overing e Gow em debate sobre a viabilidade trans-cultu-ral do conceito de esttica. Mais tarde Gell propor, na ulti-ma obra de sua vida Art and Agency, uma sada para estedilema. Minha inteno neste paper de refletir tanto sobre oatual interesse terico desta ambigidade expressa, como so-bre a possvel sada do dilema proposto por Gell.

    Palavras-chaveAntropologia da arte, agncia, Gell

    AbstractIn recent years the relationships between aesthetics, art andanthropology have become once again the object of heateddebate. No one has expressed better the ambiguous relationship,present since the beginning, between anthropology and modernart, in life or work than Gell. While Marcus and Myers pointout their similarities both are characterized by their vocationfor and fascination with alterity Gell categorically statesthat modern social anthropology is essentially,constitutionally, anti-art. For this reason, according to Gell,the goal of anthropology of art should be its dissolution. Asimilar argument was proposed by Overing and Gow in adebate about the transcultural viability of the concept ofaesthetics. Later on, in his last work Art and Agency Gell proposes a solution for this dilemma. My intention in thispaper is to reflect on both the current theoretical interest of thisexpressed ambiguity, as well as Gells proposed possible solutionfor the dilemma.

    keywordsAnthropology of art, agency, Gell

  • iLHA - Flor ianpo l i s , v .5 , n .2 , d ez embro d e 2003, p . 93-113

    Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio *

    Elsje Maria Lagrou

    A contribuio de Alfred GellNos ltimos anos, as relaes entre esttica, arte e antropo-

    logia voltaram a ser assunto de acalorado debate. Ningum expres-sou melhor, em vida e obra, a relao ambgua existente desde asua origem entre a antropologia e a arte moderna do que AlfredGell. Se Marcus e Myers chamam a ateno para as suas semelhan-as, pois ambas, a arte moderna e a antropologia, se caracterizari-am pela vocao crtica e por seu fascnio pela alteridade, Gell afir-ma categoricamente em 1992, num artigo produzido especialmen-te para um livro dedicado a antropologia, arte e esttica, e editadopelos especialistas em antropologia da arte, Coote e Shelton, que aantropologia social moderna essencialmente, constitucionalmen-te, anti-arte. Com esta afirmao, Gell em estilo agonstico muitoapreciado pelos intelectuais ingleses no visava somente irritar osseus colegas ao subtrair-lhes o seu campo de pesquisa, decretandoa inexistncia deste ltimo; ele estava, sobretudo, preparando ocampo para o esboo de uma proposta de abordagem totalmentenova do tema, e para tanto as abordagens anteriores precisavamser derrubadas com veemncia.

    Esta nova proposta terica ser esboada em sua obrapstuma Art and Agency (1998), e visar uma abordagem an-tropolgica do tema, pois, segundo Gell, o que se fez antesdele no foi antropologia, pelo menos no a antropologia so-cial inglesa que ele defende, e sim uma antropologia culturalque sempre teria ido buscar inspirao em outras disciplinastais como a esttica, a semitica e a lingstica, a histria daarte ou a crtica literria. Mas entre a provocao citada aci-

  • 96 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    ma e a soluo proposta para o dilema em Art and Agency,Gell escreveu dois outros trabalhos: um livro sobre tatuagem,chamado Wrapping in Images (1993), e um artigo que foi tra-duzido para o portugus sob o ttulo A rede de Vogel, arma-dilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas(2001).

    Em cada um destes trabalhos que antecederam Art andAgency, Gell tenta olhar para o tema da arte sob uma ticadessacralisante, pondo sob suspeita a venerao quase religiosaque a nossa sociedade tem pela esttica e pelos objetos de arte. Notexto em que diagnostica o antagonismo entre os pontos de vistaantropolgico e esttico, prope uma aproximao entre magia earte, vendo em ambos os fenmenos uma manifestao do `encan-tamento da tecnologia. Ns estaramos inclinados a negar este as-pecto de ofuscamento tecnolgico presente na eficcia de certosobjetos decorados, como a proa da canoa usada em expedies dekula pelos Trobriandeses, porque ns estaramos inclinados a dimi-nuir a importncia da tecnologia na nossa cultura, apesar da nossagrande dependncia dela. A tcnica seria considerada um assuntochato e mecnico, diametralmente oposta verdadeira criatividadee aos valores autnticos que a arte supostamente representaria. Estaviso seria um subproduto do estatuto quase-religioso que a artedetm, como que substituindo a religio numa sociedade laicizadaps-iluminista.

    Assim, Gell se afasta do critrio da fruio esttica para chamar aateno para a eficcia ritual de uma proa superdecorada: a decoraono se quer bonita, mas poderosa, visa uma eficcia, uma agncia, visaproduzir resultados prticos em vez de contemplao. A maestria deco-rativa cativa e terrifica os que olham, que param e pensam sobre os pode-res mgicos de quem produziu e possui tal canoa. Ou seja, a arte possuiuma funo nas relaes estabelecidas entre agentes sociais. Neste senti-do, o texto j antecipa o livro sobre agncia. S que fica ainda muito presoa uma idia que s identifica arte nos fenmenos extraordinrios, mgi-cos, que fogem compreenso humana e que demonstram um domniotcnico to excepcional que parecem no serem feitos por seres humanos.Isto j no supe uma viso nada universalizvel do campo abrangidopelos objetos de arte? Lembra a clssica separao entre objetos cotidia-nos e os extraordinrios, necessariamente extra-cotidianos. E os povosque no valorizam tal esttica do excesso, apreciando, pelo contrrio, umaesttica minimalista?

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 97

    i L H A

    Mais convincente, ou pelo menos muito mais inovador, otexto sobre a rede de Vogel, onde Gell prope um dilogo diretoentre arte conceitual e produes no-ocidentais. O que produziu areflexo foi uma exposio onde Suzan Vogel, antroploga ecuradora de uma exposio chamada Art/Artifact no Center forAfrican Art em Nova Iorque, expe uma rede de caa amarrada dosZande como se fosse uma obra de arte conceitual. A curadora plan-tou, desta maneira, uma verdadeira armadilha para o pblico, quese equivocou totalmente acerca do que viu, sem saber se se tratavade uma obra de arte conceitual ou no. O texto de Gell visa mostraro quanto a idia de armadilha e as engenhosas formas que assumeem diversas sociedades se aproxima do conjunto deintencionalidades complexas postas em operao em torno de umaobra de arte conceitual. Ou seja, melhor do que procurar aproxi-mar povos no-ocidentais da nossa arte atravs da apreciao est-tica de uma mscara ritual seria identificar o que tm em comummuitos artistas contemporneos que trabalham com o tema da ar-madilha como Daniel Hirsch, que colocou um tubaro numa pis-cina com formol e as armadilhas indgenas, que do mostra deum mesmo gro de inventividade, complexidade e dificuldade.

    Ou seja, aqui tambm Gell se afasta do critrio beleza, inclu-sive porque este tambm no mais o critrio atravs do qual a artecontempornea avaliada, para ver como se poderia melhor colo-car em ressonncia produes no ocidentais com o nosso campode produo artstica atualmente mais prestigiado, o conceitual.Na sua discusso com o filsofo de arte Arthur Danto, que defendeque a rede no uma obra de arte porque no foi feita com estainteno e mais ainda porque foi feita para um uso instrumental eno para a contemplao, Gell mostra como instrumentalidade earte no necessariamente precisam ser mutuamente exclusivos.Assim, uma armadilha feita especialmente para capturar enguias,por exemplo, poderia muito melhor representar o ancestral, donodas enguias, do que sua mscara, visto que no representa somentesua imagem, apesar da forma da armadilha ter a forma de umaenguia, mas presentifica, antes de mais nada, a ao do ancestral,sua eficcia tanto instrumental quanto sobrenatural e a relao com-plexa entre intencionalidades diversas postas em relao como aque-las da enguia, do pescador e do ancestral.

    Desta maneira, Gell supera a clssica oposio entre artefa-to e arte, introduzindo agncia e eficcia onde a definio clssica

  • 98 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    s permite contemplao. Mas o autor mantm, por outro lado, seufascnio pelo difcil, caracterstica que mais marcaria, segundoBourdieu (1979), a nossa concepo de arte desde Kant: onde ovalor dado quilo que distingue, ao gosto refinado e informadoque no se deixa levar pelo prazer fcil que satisfaz os sentidos. Odifcil requer esforo intelectual e/ou tcnico e se sobressai, distin-gue; ou seja, se para Gell a obra de arte teria alguma caractersticaque a distinguisse de outros objetos, esta passaria pelo seu carterde alguma maneira excepcional. Muitas produes analisadas comoarte no ocidental, no entanto, como a pintura corporal, a cermi-ca e a cestaria, todos de uso cotidiano, no se encaixariam nestacategoria. V-se assim como difcil dizer algo com validade uni-versal sobre um fenmeno que em muitas culturas sequer tem nome.

    Ainda assim, podemos dizer, resumindo a discusso dos doistextos citados, que estes atacam principalmente a definio do ob-jeto de arte em termos de esttica, mostrando como esta, por seressencialmente avaliativa, no combina com uma abordagem com-parativa do tema. Tambm no livro sobre tatuagem (Gell 1993),nada de esttica. O autor provoca inclusive os amantes da tatua-gem, afirmando que assim como o fenmeno era sinnimo de maugosto para o burgus vitoriano do sculo XIX na Inglaterra, ele con-tinua mantendo uma ligao com a marginalidade e o mau gostopara os intelectuais de hoje. claro que o autor no visitou as prai-as cariocas e florianopolitanas! Aqui tambm a idia a de analisaro fenmeno como fenmeno social, mais especificamente naPolinsia, e de ver quais poderiam ser as relaes entre um tipo deorganizao social, com alta competitividade e pouca hierarquiaestvel, e a arte guerreira da tatuagem, que florescia, por exemplo,nas ilhas marquesas, onde a tatuagem funcionava como se fosseum escudo, uma segunda pele.

    Em Art and Agency (1998), o mais visado no mais a estti-ca. Veremos inclusive que a esttica entrar, disfarada sob o man-to da anlise formal, pela porta de trs no captulo 8 sobre estilo.No existe preocupao com o estilo de uma obra ou de um con-junto de artefatos possvel sem um mnimo de ateno s qualida-des da forma, simetria etc.; e Gell acaba dando muita ateno forma e s vrias relaes de transformao entre as formas. Se-gundo Nicholas Thomas, que escreve a introduo da obra, estaseria a parte menos revolucionria ou inovadora do trabalho (1998:x). A mim me parece, por outro lado, ser tambm o momento em

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 99

    i L H A

    que Gell faz as pazes com um assunto ao qual dedicou os ltimosdez anos da sua vida com tanta paixo, o de entender o ser da arteem termos comparativos.

    Mas as razes para deixar a esttica relativamente em pazso tambm outras. Na abertura do trabalho, onde prope a suanova teoria, Gell no revoga seus pontos de vista anteriores sim-plesmente os reitera. Tambm tinha ocorrido, em 1993, um debatepromovido pela Universidade de Manchester a respeito daaplicabilidade trans-cultural do conceito esttica, onde Overing eGow defenderam uma idia similar de Gell, a de abolir o conceitode esttica como conceito com aplicabilidade trans-cultural (Ingold1996: 249-293). O uso do conceito com fins comparativos foi defen-dido por antroplogos da arte como Morphy e Coote, com o argu-mento de que a apreciao qualitativa de estmulos sensoriais umacapacidade humana universal, e que a sua negao seria equiva-lente a excluir parte da humanidade de uma dimenso essencial dacondio humana. Overing e Gow, por outro lado, argumentaramcontra o uso do mesmo, apontando para as origens histricas e cul-turais do conceito esttica.

    Gow invoca A Distino de Bourdieu (1979), que localizaa origem da esttica ocidental na Crtica do Juzo de Kant, e queexplica por que a aplicao do julgamento esttico no pode senorepresentar o pice do exerccio da distino social atravs da de-monstrao de capacidades de discriminao, que no seriam ina-tas e universais como queria Kant, mas aprendidas e incorporadasatravs de longo processo de exposio e aquisio do habitus espe-cfico da sociedade em questo. Overing, por sua vez, tomando comoexemplo a sociedade Piaroa, demonstra como em contextos no-ocidentais a apreciao do belo e da criatividade no recai sobreuma rea especfica da atividade humana, mas engloba todas asreas de produo da sociabilidade, desde a procriao at aos pro-cessos produtivos da vida cotidiana. Em votao da platia, que sesegue a um longo debate no qual o prprio Gell participa, o concei-to esttica derrotado enquanto instrumento de anlise trans-cul-tural e os defensores da esttica, ctedras da antropologia da arte,voltam para casa de mos vazias, com seu objeto de pesquisa de-clarado inexistente.

    No era mais preciso, portanto, continuar anatematizandoa esttica, e Gell dedica agora toda a sua fora a outro obstculo danova antropologia da arte: a abordagem lingstica, semitica e/

  • 100 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    ou simblica. A sua recusa em tratar a arte como uma linguagemou como um sistema de comunicao muito veemente. Recusototalmente a idia de que qualquer coisa, exceto a prpria lngua,tem sentido no sentido proposto (1998: 6; tradues do autor).No lugar da comunicao simblica, ponho a nfase em agncia,inteno, causao, resultado e transformao. Vejo a arte como umsistema de ao, com a inteno de mudar o mundo em vez decodificar proposies simblicas a respeito dele (1998: 6). Esta abor-dagem centrada na ao seria mais antropolgica do que a aborda-gem semitica porque est preocupada com o papel prtico demediao dos objetos de arte no processo social, mais do que com ainterpretao dos objetos como se fossem textos.

    Um dos autores visados pela crtica de Gell, sem no entantoser citado, , evidentemente, Geertz (1983), o ltimo a propor antesde Gell um mtodo geral de abordagem antropolgica da arte. Po-deramos dizer, em defesa de Geertz, que para este autor os smbo-los, e as artes enquanto sistemas simblicos, agem tanto como mo-delos de ao quanto para a ao; ou seja, Geertz seria o primeiro aafirmar que smbolos no somente representam mas transformamo mundo. Tambm para Lvi-Strauss, que trabalha com o modelolingstico e enfatiza a qualidade comunicativa da arte, atos falame palavras agem, sendo impossvel separar ao, percepo e senti-do (1958; 1993; Charbonnier, 1961).

    O uso restritivo que Gell faz da idia de sentido foi recente-mente criticado por Robert Layton (2003) em artigo muito instiganteda Revista do Royal Anthropological Institute que revela o quantoGell faz de fato uso da semitica de Peirce para definir seu modelopara a agncia especfica atribuda arte. Layton mostra tambmque existe um problema no uso indiscriminado feito por Gell deconceitos peirceanos distintos, como cone e ndice. Por no quererpensar ou falar em cultura ou quadros de referncia que guiam apercepo, Gell acaba chamando todos os objetos artsticos de ndi-ces inseridos em redes de ao; mas claro que estes ndices sfuncionam desta maneira porque so de fato de alguma maneiracones e que requerem um certo tipo de interpretao informada econtextualizada para desencadearem a rede de interaes nas quaisGell est interessado.

    A vantagem da proposta de Gell, por outro lado, est nasignificativa ampliao da categoria de objetos que podem ser tra-tados a partir desta nova definio: a natureza do objeto de arte

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 101

    i L H A

    uma funo da matriz scio-relacional na qual est inserido... Masna verdade qualquer coisa poderia ser pensada como objeto de artede um ponto de vista antropolgico, a se incluindo pessoas vivas,porque uma teoria antropolgica da arte (que podemos definir emgrandes linhas como as relaes sociais na vizinhana de objetosque mediam agncia social) se funde sem problemas com a antro-pologia social das pessoas e seus corpos (Gell 1998: 7).

    A proposta , portanto, de tratar objetos como pessoas, pro-posta que quando percebida do ponto de vista das cosmologias dospovos sob estudo, no caso de Gell os povos melansios, no nossocaso os amerndios, parece ser convincente. A aproximao dosconceitos de artefato e pessoa se torna ainda menos estranho aoesforo terico da antropologia se lembrarmos que esta se debrua,desde os seus primrdios, sobre discusses acerca do animismo (aatribuio de sensibilidade a coisas inanimadas, plantas, animais,etc.) de Taylor at aos dias de hoje sobre as relaes peculiaresentre pessoas e coisas que de alguma maneira se parecem como,ou funcionam como, pessoas. A proposta deve ser lida em termosmaussianos, adverte Gell, onde substituiramos prestaes porobjetos de arte (Gell, 1998: 9).

    Ou seja, interessa ver o que estes objetos e seus variados usosnos ensinam sobre as interaes humanas e a projeo da suasocialidade sobre o mundo envolvente; na sua relao com seres ecorpos humanos que mscaras, dolos, banquinhos, pinturas, ador-nos plumrios e pulseiras tm de ser compreendidas. Assim como oalargamento do conceito de pessoa est na base da teoria antropo-lgica desde Mauss (1934), com especial relevncia para a discus-so amaznica (Viveiros de Castro, Matta & Seeger 1979) emelansia, os diferentes sentidos que a relao entre objeto e pessoapode adquirir se constitui em problemtica legitimamente antropo-lgica. Conceitos de pessoa podem ser unitrios (como no Ociden-te) ou mltiplos; a Melansia cunhou o conceito de dividual(Strathern 1988) ou distributed person (Gell 1998), a pessoa que seespalha pelos traos que deixa, pelas partes de si que distribui entreoutras pessoas; assim tambm, ainda segundo Gell, existemdistributed objects e o extended mind que se espalha atravs de umgrupo de objetos relacionados entre si como se fossem membros deuma mesma famlia.

    A relao entre objetos e pessoas tal como descrita, relativa-mente ao caso da Melansia, por Gell e Strathern, entra muito bem

  • 102 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    em ressonncia com o material amaznico em geral e Kaxinawem particular. na relao entre o esquema conceitual de um povo,suas interaes sociais e a materializao destes em artefatos que seencontra a fertilidade do novo mtodo proposto. E se relativizarmosos excessos cometidos pelo autor com relao ao sentido dado aosentido, a proposta de inserir o assunto da arte no cerne da discus-so terica da disciplina evidentemente muito bem vinda. Umautor que pode nos ajudar a pensar de modo diferente o sentidodos objetos Daniel Miller (1994); ele mostra como muito maisprodutivo procurar entender a significao (significance) do objeto,seu valor, do que tentar encontrar o significado do objeto em umsentido simblico, denotativo, explcito. este ltimo tipo de senti-do ou meaning que Gell critica; no o outro, pois impossvel sus-tentar que preciso eliminar todo e qualquer sentido, coisa que ali-s no tenta fazer na prtica.

    Pessoas e artefatos na AmazniaNas pginas que se seguem, abordarei a questo da relao

    entre artefato e pessoa a partir da minha pesquisa com os Kaxinaw,mas apenas para deixar mais claro o tipo de reflexo que o temasuscita a partir do ngulo da etnologia amerndia. Uma primeiracoisa que salta aos olhos que pensar sobre arte entre os amerndiosequivale a pensar a noo de pessoa e de corpo. Porque objetos,pinturas e corpos so assuntos ligados no universo indgena, noqual a pintura feita para aderir a corpos e objetos so feitos paracompletar a ao dos corpos.

    Tenho-me dedicado h algum tempo ao estudo das expres-ses artsticas presentes no rito de passagem Kaxinaw. Este oritual que mais condensa as noes-chave deste povo sobre a fabri-cao do corpo. Na produo do corpo da criana, que considera-do o mais importante dos artefatos produzidos pelos Kaxinaw,aparecem outros tantos objetos que com este mantm relaometonmica e metafrica. Assim, os adereos e instrumentos aju-dam na transformao da pessoa e se cristalizam como modelos re-duzidos de determinadas caractersticas e de futuros desempenhos(performances) do corpo. O acesso ao imaginrio condensado nosobjetos significativos como o banquinho de iniciao se d apartir da traduo e exegese dos cantos rituais do rito de passagem.

    A vida dos objetos deriva diretamente do universo imagina-tivo que so capazes de invocar e condensar. Assim, durante a mi-

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 103

    i L H A

    nha pesquisa, a natureza conceitual do banco ritual no surgiu comtoda a sua nitidez da observao de sua produo, da decorao,nem do seu uso e circulao, como quer Gell mas da traduo eexegese dos cantos que acompanhavam cada um dos atos ligadosao objeto. A se explicitou de forma clara a sua natureza de modeloreduzido do nefito. A letra do canto mostra a maneira pela qual obanco sofre um processo de produo, decorao e, posteriormen-te, maturao, paralelo ao corpo dos meninos e meninas prestes aingressarem na categoria de jovens. Outros objetos, como o pen-dente dorsal feito com as penas do gavio real , sofreram o mes-mo processo de transformao do significado atravs do canto. Alio metodolgica tirada desta constatao a de que impossvelisolar a forma do sentido, assim como impossvel isolar ao esentido. O sentido muda conforme o contexto no qual o objeto seinsere. E os contextos podem mudar de forma radical, como acon-tece quando objetos e artefatos entram no circuito comercialintertnico, quando se tornam emblemas de identidade tnica, pe-as de museus ou obras de arte.

    No contexto nativo, o sentido nativo atribudo forma podeno encontrar na perfeio visual, nem na excelncia da sua execu-o, o seu sentido mais relevante. Assim, por exemplo, o que carac-teriza a pintura ritualmente mais eficaz no rito de passagemKaxinaw a sua qualidade de ser malfeita: as linhas grossas soaplicadas nas crianas com os dedos ou sabugos de milho, com ra-pidez e pouca preciso, e permitem uma permeabilidade maior dapele ao ritual do que as pinturas delicadas dos adultos no mes-mo ritual, aplicadas com finos palitos enrolados em algodo. Estasltimas pinturas so, no entanto, consideradas bem-feitas e esteti-camente mais agradveis. As pinturas dos adultos representariama roupa do cotidiano ou das festas, e contrastam com a roupagemliminar dos nefitos por causa da sua menor suscetibilidade a pro-cessos de transformao.

    A apreciao valorativa no est, portanto, necessariamen-te nos aspectos comumente considerados como padres estticosnativos; pode estar condensada, pelo contrrio, na sua temporriadistoro. Assim, as criaturas mais decoradas e admiradas no ritu-al so as crianas que ostentam, como dizem os Kaxinaw, a pintu-ra mal-feita. Fica claro neste exemplo que tanto quanto expressam,tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de maneiras muitoespecficas, que precisam ser analisadas no contexto.

  • 104 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    A qualidade de agncia do grafismo Kaxinaw fica em evi-dncia tambm em outros contextos. Levando em conta a nfasefundamental da concepo do mundo Kaxinaw em particular, eamaznica em geral, na constante transformao de um ser emoutro, somos obrigados a reinterpretar a relao entre, por um lado,percepo e criao (com a percepo sendo, de alguma maneira,uma criao) e, por outro, entre aparncia, iluso e realidade. Umexemplo desta dinmica relao entre percepo imaginativa e ima-ginao perceptiva pode ser encontrado em uma das caractersti-cas estilsticas mais marcantes do tecido desenhado feito pelasKaxinaw: considerando que os padres so interrompidos imedi-atamente depois de terem comeado a ser reconhecveis no panotecido, precisa-se da capacidade imaginativa para se perceber a con-tinuao do padro atravs de uma viso mental.

    A tcnica sugere que a beleza a ser percebida no exteri-or est tanto presente no mundo invisvel ou no mundo dasimagens quanto na beleza externalizada pela produo arts-tica1, ou at mais. Este dispositivo estilstico revela um elementoimportante do significado do desenho na ontologia Kaxinaw:o papel desempenhado pelo desenho na transio entre per-cepo imaginativa e imaginao perceptiva, ou a transiode imagens percebidas pelos olhos no cotidiano, para as ima-gens perceptveis somente para o esprito do olho nos sonhos.O desenho, me disse uma velha interlocutora Kaxinaw, a lngua dos espritos (kene yuxinin hantxaki).

    Outro aspecto recorrente nas artes decorativas da Amaz-nia, tanto na cestaria quanto na pintura corporal e, entre osKaxinaw, na tecelagem a dinmica relao entre figura e fundo,uma qualidade cintica da imagem que no permite ao olho decidirsobre qual perspectiva adotar. O jogo entre imagem e contra-ima-gem expressa a idia de duplicidade e co-presena das imagens re-veladas e no-reveladas no mundo. Neste sentido, a ontologiaKaxinaw totalmente dependente e ligada ao real processoperceptivo em que um agente particular esteja engajado. Vemosdesta maneira que as imagens no somente falam, mas tambmagem. Visto que o principal esprito (yuxin) do ser humano entre osKaxinaw o bedu yuxin (esprito do olho) e que os desenhos teci-dos nas redes funcionam para este como caminhos (bai), o desenhopode acabar interagindo com o estado de agonia de um doente,levando-o para o caminho dos mortos.

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 105

    i L H A

    A qualidade de agente pode ser encontrada no apenas nosadornos grficos pintados e tecidos nos objetos e corpos Kaxinaw, mas tambm nos prprios artefatos, como vimos acima com oexemplo do banco ritual, que sofre um processo de fabricao pa-ralelo ao da criana (Lagrou 1998). Novos materiais resultantes depesquisas recentes no contexto amerndio (Guss 1989; Van Velthem1995; Barcelos 2002) ressaltam o fato de objetos serem imbudos deagncia e serem pensados como pessoas de maneira parecida aoque foi notado para o contexto melansio (Strathern 1988; Munn1986; Gell 1998).

    Assim, entre os Waur do Alto Xingu, mscaras e panelasencarnam poderosos seres, chamados de apapaatai. As mscarasso as roupas e instrumentos destes apapaatai, que precisam delaspara se presentificar e danar no mundo. O prprio ritual que ospe em cena uma resposta doena por estes provocados. O xamidentifica o causador da doena ao v-lo em miniatura no corpo dodoente, que se torna dono de uma festa em homenagem ao seuagressor. Ao dar-lhe a chance de se visualizar com toda presenateatral que uma performance ritual xinguana permite, o apapaataicausador da doena se torna o aliado de sua vtima, e anfitrio.

    Entre os Wayana, Lcia van Velthem (1995) descreve comoos artefatos tm um tempo e um ritmo de vida iguais aos de umapessoa, com direito a descanso nas vigas das casas durante a vida,e com a morte anunciada quando perdem a sua funcionalidade erazo de ser. Os motivos da cestaria tm uma iconografia precisa,que no omite nem a alimentao dos seres sobrenaturais ali captu-rados. A arte, para os Wayana e outros grupos Karib das Giuanas, a captura e a domesticao dos predadores do cosmos atravs daminiatura.

    Mais importante do que a maneira com que o conhecimento estocado em objetos externos o modo como as pessoas incorpo-ram o conhecimento. Para os Kaxinaw, arte , como memria econhecimento, incorporada e objetos no so seno extenses docorpo. Esta prioridade explica por que as expresses estticas maiselaboradas dos grupos indgenas so ligadas decorao corporal:pintura corporal, arte plumria, colares e enfeites feitos de mianga,roupas e redes tecidas com elaborados motivos decorativos. OsKaxinaw no estocam suas produes artsticas, como outros po-vos amerndios; esto convictos de que objetos rituais perdem o seusentido e a sua beleza, a sua vida, depois de terem sido usados.

  • 106 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    Assim, se durante o ritual o banco belamente pintado e pode so-mente ser usado pelo(a) iniciando(a), depois ele se torna um sim-ples banco, com a decorao desaparecendo lentamente, podendoser usado por qualquer homem (no cotidiano mulheres no se sen-tam em bancos, mas em esteiras).

    A etnografia sobre objetos na Melansia interessante paraa etnografia amerndia, no somente pelas questes que sugere, mastambm pelas grandes diferenas entre a vida dos objetos l e aqui.Vimos que entre os Kaxinaw e muitos outros povos amerndios, oimportante na vida de um objeto no que sobreviva ao seu produ-tor ou usurio, mas que desaparea junto com ele: assim como pes-soas e outros seres vivos, o objeto tem o seu processo de vida, queacaba com o envelhecimento e com a sua destruio. s vezes, esteprocesso ocorre pouco tempo depois da sua fabricao, outras ve-zes no. Mas um objeto certamente no sobreviver morte do seudono. Os objetos morrem, e na floresta amaznica costumam cum-prir este destino com uma velocidade muito maior do que em ou-tros contextos etnogrficos. Quando o corpo se desintegra e as al-mas tm de partir, tudo o que lembra o dono e que pode provocar oseu apego precisa se dissolver ou ser destrudo.

    A vida dos artefatos tende, desta maneira, a seguir na Ama-znia um ritmo diferente do ritmo que segue na Melansia, onde oscolares e braceletes do kula, por exemplo, sobrevivem por muitotempo morte biolgica dos seus donos, tornando-se extenses doseu corpo e da sua pessoa, mantendo a sua lembrana viva (Gell1998). O processo de vida de um objeto ganha uma relevncia todaespecial, como j assinalava Malinowski (1976) com relao aosobjetos de valor que circulavam no kula: o objeto incorpora umahistria que faz falar e lembrar, e se torna uma extenso do seudono original, aquele que o fez comear a circular.

    Assim como a pessoa pode ser concebida como uma entida-de distribuda,2 como sugere Gell, transcendendo o espao-tempode seu corpo biolgico atravs dos atos, produtos e lembranas queproduz, o objeto pode se tornar igualmente uma entidade distribu-da, na medida em que o campo da sua ao se amplia em termosde tempo e espao. Deste modo, uma canoa usada no crculo dokula continuava ligada ao seu dono, mesmo depois de ter sido tro-cado por objetos de valor, e acabava representando toda a rede deinteraes e transformaes que vinha sofrendo no decorrer de suavida enquanto objeto (Munn 1977). Deixava, assim, de ser um mero

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 107

    i L H A

    objeto material, agregando em torno de si uma rede densa de rela-es entre ilhas, pessoas e objetos (Gell 1992).

    E igualmente porque objetos no so meros objetos na Ama-znia que, em vez de incorporarem a lembrana do falecido produ-tor ou possuidor possibilitando que ele continue vivendo entre osvivos atravs das suas extenses materializadas, precisam ser des-feitos para ajudar vivos e mortos a aceitarem a profunda e inegveltransformao significada pela morte. Nada continua igual depoisda destruio dos corpos.

    Consideraes finais: inserindo o debate europeu numcontexto mais amplo

    Concluindo, podemos notar na teoria antropolgica contem-pornea um renovado interesse pela vida dos objetos nos seus res-pectivos contextos de significao. Uma abordagem da chamadacultura material, considerada como excessivamente classificatria,tcnica e formal, tinha desviado a ateno da antropologia socialpor muito tempo dos artefatos para os sistemas de pensamento eorganizao social negligenciando o fato de sistemas de pensa-mento poderem ser sintetizados e expressos, de maneira exemplar,nos objetos produzidos pelos grupos em questo.

    Ilustres excees com relao ao descrdito intelectual emque se encontrava o estudo da produo material nativa so as re-flexes clssicas a ela dedicadas por Boas, Bateson, Geertz e Lvi-Strauss, onde cada um usou a arte como campo privilegiado paraexplicitar suas propostas tericas e metodolgicas mais gerais. As-sim, para Boas os temas da arte e da esttica foram peas-chave nasua argio contra um evolucionismo reducionista ou umdifusionismo que negava a criatividade maior parte das culturas.E Lvi-Strauss (1958) usou a recorrncia da representao desdo-brada em tradies artsticas sem contato histrico demonstrvelpara ilustrar o mtodo estruturalista. Geertz (1983), por sua vez,prope para o estudo da arte uma etnografia do gosto. A arte comomaterializao no do que se pensa, mas de como se pensa. O gostocompartilhado por um povo supe capacidades de interpretaode elementos visuais, para distinguir certos tipos de formas e derelaes de formas.

    Mas em geral, os antroplogos da arte no participavamdas principais discusses tericas da disciplina; esta situao come-ou agora a mudar. Como acabamos de mostrar, a obra de Gell se

  • 108 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    situa no contexto de um grupo expressivo de estudos etnogrficosdedicados ao Pacfico (como o de Nancy Munn, Strathern, Gell emuitos outros) que deu novo impulso reflexo sobre o potencialde renovao terica contido no estudo dos objetos; objetos pensa-dos como extenses de pessoas e com papel crucial na interaosocial (Munn 1977 e 1986; Gell 1993 e 1998).

    At recentemente, no entanto, alm de ser associada a umaabordagem excessivamente museolgica, resqucio de uma heran-a evolucionista da qual a moderna antropologia queria se livrar, otema da arte ou produo material nativa sofria de outro inc-modo, que era o de se encontrar parcialmente no campo de compe-tncia de outra disciplina acadmica, totalmente oposta em seusvalores e critrios antropologia: a da esttica. Se a antropologia sedefine como disciplina no valorativa por excelncia, desconfiandode qualquer juzo de valor com pretenses universalistas, a estticalida por definio com valores e distino desde o momento em quedefine seu objeto: arte aquele objeto que responde a determinadoscritrios mnimos que permitem que ele seja distinguido de outrosobjetos no produzidos com este fim. E esta foi a razo pela qual aabordagem esttica na antropologia da arte foi atacada de formato veemente por defensores de uma nova antropologia da arte,como Gell.

    Ao acompanhar todo este debate, interessante notar quese por um lado a discusso europia, representada aqui pela obrade Gell e pelo debate de Manchester (Ingold 1996), se concentrasobre o direito diferena, o debate norte-americano, por outro lado,reclama o direito igualdade na diferena. Assim, autores comoClifford (1988) e Marcus e Myers (1995) chamam a ateno para asimultaneidade e a interdependncia do nascimento da arte mo-derna e da antropologia enquanto disciplina. A antropologia teriadado aos artistas a alteridade que procuravam para poder se oporao establishment. Na viso de Marcus e Myers, o dever da antropo-logia no seria o de se abster de qualquer julgamento, mas o de seunir vocao da arte moderna e contempornea de ser o motorde uma permanente crtica cultural.

    James Clifford, por sua vez, questiona o carter provocadore o potencial revolucionrio da exposio no Museu de Arte Mo-derna em Nova York em 1984, que celebrava a influncia da ArtePrimitiva sobre os Modernistas. O autor acusa a curadoria da ex-posio de tratar de maneira manifestamente convencional e desi-

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 109

    i L H A

    gual as artes primitiva e moderna, relegando a primeira ao anoni-mato e existncia a-histrica. Clifford aponta como a exposiocristalizou em torno de si as opinies antagnicas de crticos dearte, por um lado, e antroplogos por outro com relao ao modocomo a arte no-ocidental deve ser apresentada.

    Importante contribuio a este debate se encontra tambmem Primitive Art in Civilized Places, de Sally Price (2000). Price che-ga a concluses similares s de Clifford: h um equvoco nesta cele-brao pelos connoisseurs das qualidades supostamente inerentes euniversalmente reconhecveis que so encontradas nas Obras Pri-mas da Arte Primitiva, selecionadas entre a massa indistinta decuriosidades colecionadas pelos etnlogos. Este equvoco, segundoPrice, se resume na simples constatao de que os produtores des-tas obras primas no foram consultados a respeito nem de seus pr-prios critrios estticos, nem de sua prpria avaliao e percepo.Mais ainda, para que possam ser reconhecidas como Obras PrimasPrimitivas, os produtores das peas precisam ser esquecidos, envol-tos pela sombra do anonimato atemporal que os torna universais.Como soluo, Price defende a incluso da arte no-ocidental emexposies de arte, porm segundo os critrios dos prprios produ-tores e receptores originais da esttica local em questo e com omesmo tratamento que tradicionalmente dado aos artistas oci-dentais, ou seja, com uma circunstanciada identificao do artistae dos estilos locais utilizados, acompanhados de anlise histricados mesmos.

    A questo da aplicabilidade de nossos valores sobre a im-portncia da criatividade e da individualidade na produo artsti-ca, no entanto, permanece sem resposta, pois existe uma grandevariedade de concepes nativas tambm a este respeito. Ser quepoder esttico e capacidade de inovao sempre andam juntos?E o que fazer com o autor que v o valor da sua obra na superaoda criatividade individual por outras entidades consideradas cul-turalmente mais legtimas? A construo da pessoa do artista toespecfica quanto a esttica que produz.

    Vemos, portanto, que se o debate no meio europeu gira emtorno de uma questo conceitual e diz respeito nossa capacidadede conhecer o outro e as suas produes, no debate norte-ameri-cano entram preocupaes de natureza prtica e poltica, ou seja, aquesto para eles eminentemente relacional: pensa-se a relaons/outros e seus efeitos: como incorporar objetos provindos de

  • 110 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    outros contextos de produo no campo especfico da apreciaoesttica metropolitana.

    A questo muito atual, visto que a afirmao identitriade populaes nativas no mundo inteiro tende a passar cada vezmais pela visibilizao da cultura, de sua autenticidade e vitalida-de. Estas discusses tm influenciado curadores de museus3 e athoje permanece uma tenso entre dois caminhos possveis, o daincluso da arte no-ocidental em exposies de arte contempor-nea, ou seja, a exposio das peas como obras de arte nicas e nocomo objetos etnogrficos, ou uma exibio mais contextualizadaque tente dar conta da especificidade dos critrios dos prprios pro-dutores e receptores originais, que no necessariamente seguem osnossos critrios de originalidade e unicidade das peas.

    Vimos, no entanto, que o lugar que os objetos poderiam ocuparna escala valorativa instaurada pelo mercado das artes e pelos museusno necessariamente pertence ao universo das intenes e valores nati-vos, que podem visar objetivos muito diferentes daqueles ligados con-quista de visibilidade ou afirmao de identidade e autenticidade. As-sim, a fonte de inspirao criadora ou a legitimidade de motivos e formastradicionais costuma, no pensamento amerndio, ser vista como original-mente exterior ao mundo humano ou tnico, remetendo a conquistas so-bre o mundo desconhecido, de vizinhos inimigos ou seres naturais e so-brenaturais hostis e ameaadores. O artista, neste caso, seria mais ummediador do que um criador.

    A questo da fonte autoral parece ser to crucial para a nos-sa definio de arte que se ela for abandonada enquanto valor ficadifcil a valorizao da produo alheia pelos centros legitimadores.A sociedade globalizada se move a partir de uma ideologia quedeposita a sua f na histria cumulativa, onde, no campo artstico,a criatividade e a exigncia do novo sobrevivem antiga procurado belo. So estes valores que fazem do artista o prottipo do indi-vduo moderno, que se encontraria, no nvel da ideologia nonaquele da realidade (Dumont 1980) , livre das garras da tradi-o, e cujo gnio lhe permitiria inovar sem precisar submeter-se aorduo processo de iniciao, prprio de profisses menosglamourosas como as cincias. Pois o artista age no plano das pos-sibilidades e depende, para existir, da aceitao de um pblico res-trito de iniciados, e no necessariamente da verossimilhana.

    Continua, portanto, relevante voltar a nossa ateno paracontextos nativos em que a produo artstica no segue as mes-

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 111

    i L H A

    mas leis, no entra na lgica do mercado, s vezes nem da troca, eno funciona a partir da separao entre a vida cotidiana e a arte.Estudos sobre a relao entre a produo artstica e o quadroconceitual da sociedade ressaltaram particularidades que contras-tam com os cnones tradicionais da arte ocidental exemplos, ali-s, que so encontrveis tambm nas mais recentes manifestaesda arte conceitual, com obras feitas para no serem vistas ou ouvi-das, ou ainda outras obras produzidas para desaparecerem ao fi-nal do processo de sua fabricao ou performance (Gell 1998;Carpenter 1978; Witherspoon 1977). Esperamos, desta maneira, terdemonstrado que o tema da arte na etnologia ainda tem muito acontribuir para os debates contemporneos que visam constante-mente reformular o sentido que a arte tem para ns, e estamos con-vencidos de que a obra pstuma de Alfred foi decisiva narevitalizao deste debate.

    Referncias Biibliograficas

    BARCELOS, Aristteles Neto. 2002. A arte do sonho. Uma iconografia amerndia.Dissertao de Mestrado, PPGAS, UFSC.

    BATESON, Gregory. 1977. Style, grce et information dans lart primitif. In : Versune cologie de lesprit. Paris, Ed. du Seuil. pp. 167-194.

    BOAS, Franz. 1955 (1928). Primitive Art. New York, Dover publications.BOURDIEU, Pierre. 1979. La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit.CARPENTER, Edmund. 1978. Silent Music and Invisible Art. Natural History.

    (87)5:90-99.CHARBONNIER, G. 1961. Entretiens avec Claude Lvi-Strauss. Paris: Plon-Julliard.

    ____ . 1989. Arte, Linguagem, etnologia. Entrevistas com Claude Lvi-Strauss.Campinas: Editora Papirus.

    CLIFFORD, James. 1988. The Predicament of Culture. Massachusetts: HarvardUniversity Press.

    DAWSON, A. 1975. Graphic Art and Design of the Cashinahua. In: DWYER,J.P.(ed.). The Cashinahua of Eastern Peru. Haffenreffer Museum of Anthropology.

    DIAS, Jos A. B. F. 2000. Arte, arte ndia, artes indgenas. In: Mostra doRedescobrimento, Brasil 500 anos mais. Vol. Artes indgenas. So Paulo:Fundao Bienal de So Paulo. pp. 36-57.

    DUMONT, Louis. 1980. Homo Hierarchicus. Paris: Plon.GEERTZ, Clifford. 1983. Art as a Cultural System. In: Local Knowledge, Further

    Essays in Interpretative Anthropology, 94-120. (1998. A arte como um sistemacultural, in O Saber Local, Pertrpolis: editora Vozes, pp. 142-181).

  • 112 Elsje Maria Lagrou

    i L H A

    GELL, Alfred. 1992. The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology. In COOTE & SHELTON (eds.). Anthropology, Art and Aesthetics.Oxford: Clarendon Press. pp. 40-63.

    ____ . 1993. Wrapping in Images. Tattooing in Polinesia. Oxford, Clarendon Press.____ . 1996. Vogels Net. Traps as Artworks and Artworks as Traps. Journal of

    Material Culture. Vol. 1(1): 15-38.____ . 1998. Art and Agency: an anthropological Theory. Oxford: University Press.____ . 2001. A rede de Vogel, armadilhas como obras de arte e obras de arte como

    armadilhas. In: Arte e Ensaios - Revista do Programa de Ps- Graduao emArtes Visuais. Escola de Belas Artes. UFRJ. ano VIII - nmero 8: 174-191.

    GUSS, David. 1989. To Weave and Sing. Art, Symbol and Narrative in the SouthAmerican Rain Forest. Berkeley, Los Angeles, London: University of CaliforniaPress.

    INGOLD, Tim (ed.). 1996. Aesthetics is a cross-cultural category. In: Key Debatesin Anthropology. pp 249-293.

    LAGROU, Elsje M. 1998. Caminhos, Duplos e Corpos. Uma abordagem perspectivistada identidade e alteridade entre os Kaxinaw. Tese de doutorado, University ofSt. Andrews/USP.

    LAYTON, Robert. 2003. Art and Agency: A Reassessment. Journal of The RoyalAnthropological Institute (N.S.) 9: 447-464.

    LEENHARDT, Maurice. 1971. Do Kamo. La personne et le mythe dans le mondemlansien. Paris: Gallimard.

    LEVI-STRAUSS, Claude. 1974 (1958). Anthropologie Structurale. Paris: Plon.____ . 1993. Regarder, couter, Lire. Paris: Plon.

    MALINOWSKI, Stanislav. 1976. Os argonautas do Pacfico. S. Paulo: Abril Cultural(coleo Os Pensadores).

    MARCUS, George & MYERS, Fred (eds.) 1995. The traffic in Culture. Refiguring Artand Anthropology. Berkeley: University of California Press.

    MAUSS, Marcel. 1974 (1934). Uma categoria do esprito humano: a noo de pes-soa, a noo do eu. In: Sociologia e antropologia. Vol. 1. So Paulo: E.P.U./EDUSP. pp.207-241.

    MILLER, Daniel. 1994. Artefacts and the Meaning of Things. In:CompanionEncyclopaedia of Anthropology. Londres: Routledge . pp. 396-419.

    MLLER, Regina. 1990. Os Asurin do Xingu. Histria e Arte. Campinas: Ed. daUnicamp.

    MUNN, Nancy. 1977. The Spatiotemporal Transformation of Gawa Canoes. Journalde la Socit des Ocanistes. pp.39-51.

    ____ . 1986. The Fame of Gawa: a Symbolic Study of Value Transformation in aMassim Society. Cambridge: Cambridge University Press.

    OVERING, Joanna. 1991 (1989). A esttica da produo: o senso da comunidadeentre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia: 7-34.

    PEIRCE, Charles S. 1977. Semitica. So Paulo: Perspectiva.PRICE, Sally. 2000 (1993). Arte primitiva em lugares civilizados. Ed. da UFRJ.SEEGER, A., DA MATTA, R. & VIVEIROS DE CASTRO, E. 1987 (1979). A constru-

  • Antropologia e Arte: uma relao de amor e dio 113

    i L H A

    o da pessoa nas sociedades indgenas brasileiras. In: PACHECO DE OLIVEI-RA FILHO, J. (ed.) Sociedades indgenas e indigenismo. pp. 11-29.

    STRATHERN, M. 1988. The Gender of the Gift. Berkeley: University of CaliforniaPress.

    VAN VELTHEM, Lucia. 1995. O belo a fera. Tese de doutorado. So Paulo: USP.WITHERSPOON, G. 1977 Language and Art in the Navajo Universe. Ann Arbor:

    The University of Michigan Press.

    Notas

    1 A possibilidade de a qualidade do desenho, atravs de um recorte arbitr-rio, sugerir sua continuao ilimitada alm do suporte foi notado pela muselogaDawson (1975: 142-145) em coleo etnogrfica colecionada por Kensinger e porMller (1990: 232) na pintura corporal Asurini. Ambas usaram o conceito efeito-janela para designar a impresso de recorte em um desenho infinito.

    2 O conceito de distributed person foi proposto por Gell (1998) a partir dabibliografia referente aos povos do pacfico, e em estreito dilogo com as reflexessobre a pessoa melansia de Strathern (1988). Vale lembrar que esta temtica sedestacou na literatura sobre o Pacfico desde o clssico do Kamo de Maurice Leenhardt(1971).

    3 Veja por exemplo os textos do curador Jos Antnio Braga Fernandes Diasno catlogo da Mostra do Redescobrimento, Artes indgenas, 2000.

    * Este artigo resulta da elaborao da comunicao pormim apresentada no Frum Especial: O estado daarte na Antropologia da Arte: algumas perspectivas,coordenado por Elizabeth Lucas e Deise Lucy Montardona V RAM (Dez. 2003, Florianpolis). Na proposta foisugerido como mote para a discusso o debate provo-cado por Alfred Gell (1998) e o debate sobre o uso deesttica como categoria transcultural (Ingold, 1996).