artigo - tentativa de identificação da ideologia francesa (paulo eduardo arantes)

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  • 7/27/2019 Artigo - Tentativa de identificao da Ideologia Francesa (Paulo Eduardo Arantes)

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    TENTATIVA DE IDENTIFICAO DAIDEOLOGIA FRANCESA

    UMA INTRODUO

    Paulo Eduardo Arantes

    1

    Para variar, a literatura francesa de idias est novamente mudando de pe-le. S que desta vez no se trata de mais uma figura a se acrescentar ao habitualcortejo de novidades parisienses. Respira-se hoje em dia na Frana filosfica umclima de inegvel restaurao. Retorna-se aos Direitos do Homem e a tudo o maisque se insinua por essa brecha; redescobre-se a "liberdade luminosa do sujeito",como assegura um discpulo, comentando a ltima reviravolta de Foucault; retorna-se Metafsica e aos valores da Repblica; redescobre-se a Democracia, a Filosofiaperene e as virtudes argumentativas do pensamento anglo-saxnico; pela ensimavez retorna-se a Kant e multiplicam-se as manifestaes de adeso irradiao cos-mopolita da Europa ilustrada; aps a suspeita hiperblica que pairou durante umlongo perodo sobre as noes de verdade, sentido, conhecimento etc., renascea confiana na grande famlia dos universais e na vocao clssica do filsofo parao droit deregard, chamado a fundamentar ou "problematizar", como prefe-rem os veteranos mais escaldados a Moral, o Direito, a Poltica etc.1.

    Uma reconverso aparentemente to rasa que at mesmo os mais alrgicos fraseologia imperante nos ltimos anos no podem deixar de constatar, e quaselastimar, uma queda evidente na voltagem da inteligncia francesa. No centro, areconstruo do Humanismo filosfico, jurdico, antropolgico etc. Entretan-to, um observador menos paciente que, sobrevoando o tabuleiro parisiense bemrente sua linha de flutuao doutrinria, julgasse estar assistindo revanche doestilo de pensamento escarnecido e sepultado nos anos 60 pela voga estruturalis-ta, erraria o alvo. As oscilaes do pndulo francs no so assim to simtricas.A atual querela do Humanismo no de modo algum um revival do contenciosode trinta anos atrs, antes a expresso de um realinhamento ideolgico geral. Sim-plesmente no d para imaginar Sartre contrapondo "morte do homem", pro-clamada por Foucault e Cia., os direitos humanos, a universalidade das normasjurdicas, as razes ticas da verdade etc. como, na primeira poca do Existen-cialismo, a imortal Srta. Mercier lhe opusera o sorriso da criana. Nem o rosrio

    (1) Para uma breverecapitulao desses

    revivais, ver o livro dePeter Dews sobre o ps-estruturalismo, Logics of

    Desintegration , Londres,Verso, 1987, Introduo.Do lado francs, quanto restaurao em marcha,ver, por exemplo, EdgarMorin, "Ce qui a Changdans la Vie IntellectuelleFranaise", te Dbat, n40, 1986; Joel Roman,"Une Nouvelle Querellede l'Humanisme?",

    Espr it, ago-set. 1986.

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    de maisculas que fazem a hora parisiense do momento, muito devotada ao reinodos fins Humanidade, Cultura, Razo etc. nas pginas do Temps Modernes,que alis nelas s compareciam quando se tratava de delimitar o campo adverso,onde brilhavam as "luzes" de antanho ao lado de outras efuses da vida do espri-to sob a caqutica ordem capitalista francesa. Como no entanto, nos tempos doexistencialismo triunfante, Sartre empenhou-se em rebater a acusao de anti-humanista praticante, chegou at a prometer os fundamentos de uma doutrina morale denunciar em Lvi-Strauss o vrus do estetismo, por se referir luta dos homens

    com a indiferena dos etlogos, no se pode excluir a possibilidade de que venhaa ser vtima de uma reabilitao, como vem ocorrendo com Merleau-Ponty.

    Em suma, uma reviravolta to inapelvel, uma revoada to acintosa de va-lores do habeas corpus aos cuidados da alma que, observadas as coisas emretrospecto e a vo de pssaro, acaba se destacando na paisagem uma razovelcontinuidade entre a Era Sartre e os Anos Foucault, irmanados pelo menos no an-tagonismo de uma cultura em estado de secesso permanente. Embora polemi-zando exclusivamente com as idias dominantes nesses anos em que a deriva deFoucault deu o tom, os novos humanistas e a crnica perderia boa parte desua graa se entre eles no se encontrassem inmeros veteranos da estao ante-rior esto na verdade rompendo com meio sculo de pensamento oposicionis-ta francs, se lembrarmos que data dos anos 20/30 a guinada radical vers le con-cret, como se dizia na poca, que levou para longe da rota traada por Brunsch-

    vicg, Bergson e demais pontfices da Repblica dos Professores o melhor da inte-ligncia filosfica do pas. Hoje a fantasia conceitual francesa volta a sonhar como conforto espiritual da assim chamada (a torto e direito) Modernidade, claro quetemperada pela luz negra da melancolia e outras elegncias barrocas.

    Um novo alinhamento, portanto. Mas sobretudo o fim de um ciclo de qua-se trs dcadas de hegemonia da Ideologia Francesa. Excelente ocasio para final-mente tentar reconhecer-lhe destino e carter.

    2

    At onde posso saber, foi Cornelius Castoriadis no por acaso um outsi-der o primeiro a chamar Ideologia Francesa o referido ciclo da cultura ensasti-ca na Frana. Alis um batismo tardio, quando j tinham ficado para trs o Estru-turalismo, rescaldos libertrios de Maio de 68 e alastrava-se a Desconstruo, quandoj haviam entrado em cena os Desejantes, o lacanismo apresentava os primeirossinais de decomposio e, rompendo com a "hiptese repressiva" da opinio gau-chista at ento imperante, Foucault dava sua penltima guinada sem falar nosurto espiritualista dos assim chamados Novos Filsofos, antigos maostas emdisponibilidade2. Embora no momento interesse mais a denominao do que asrazes alegadas pelo Autor, observemos que a identificao se d, muito rapida-mente, pela funo de desconversa e diviso do trabalho: enquanto a combalida"ideologia principal" do sistema dominante se encarregaria da tarefa rotineira, ehoje bastante desacreditada, de persuadir os indivduos de que o problema da so-ciedade enquanto tal no tem cabimento ou est sendo resolvido pelo bloco he-

    gemnico de planto, o discurso desviante dos matre--penser, amplificado pelaengrenagem educacional, mdia etc, assumiria propores de verdadeira mano-bra diversionista, abortando a gestao de idias pertinentes sobre questes perti-

    (2) Cf. Castoriadis, LesCarrefours du Labyrinthe,Seuil, Paris, 1978, p. 118.Ver tambm "LesDivertisseurs", inCastoriadis, La SocitFranaise , UGE, col.10/18, Paris, 1979, pp.223-232.

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    nentes. A cada nova figura, essa fraseologia de ponta retomaria seu papel exclusi-vo de "ideologia complementar". Noutras palavras, na ideologia de nosso tempono se encontra refletida, por um sem-nmero de idias truncadas, a falsa cons-cincia das classes dominantes, mas o diagrama varivel de uma pseudo-alternativade subverso global. Por isso bem provvel que na origem da "apelao" deCastoriadis tambm esteja o intuito de rimar com o similar alemo identificadopor Marx nos anos 40 do sculo passado. Neste caso, seria bom recordar que des-de os tempos muito loquazes do Vormrz os "idelogos alemes" tambm no

    tinham parte com o integrismo do pas oficial, nem com a mornaAufklrung daboa vontade reformista: pelo contrrio, alardeavam uma ruptura histrica iminenteinduzida por um rastilho de putschs discursivos. Se nos lembrarmos do que defato se passava na Alemanha antes de 1848 (e sobretudo depois), no h dvidade que os "idelogos" alemes tambm falavam, como seus futuros confrades fran-ceses, "pour que les genspensent ct", como pretende Castoriadis.

    Ainda quanto ao provvel batismo por analogia, seria o caso de se observarde passagem que o enquadramento polmico de Castoriadis no indito. Anli-ses histricas parte, est curiosamente prximo da maneira pela qual Lukcs de-nominava "apologia indireta" a fronda intelectual alem que no se esgota nabravata acanhada de um pobre-diabo como Stirner mas se prolonga at o colapsofinal do "jargo da autenticidade" , graas qual, desde o fim do "perodo ar-tstico" alivia-se a m conscincia da Bildungsbuergertum diante dos malfeitos de

    uma classe dominante que passara de vez para a retaguarda sem nunca ter estadona ofensiva. Como a apologia ostensiva nunca esteve em alta, estaria aberto o campopara as manobras radicais dos verdadeiros idelogos. Lukcs evidentemente nose limitou a explorar as singularidades do caso alemo, at porque os descompas-sos caractersticos deste ltimo antecipavam complicaes contemporneas. Tan-to assim que reencontraremos a bem dizer o mesmo raciocnio nas anlises lu-kcsianas do modernismo literrio europeu do primeiro novecentos: onde espe-rvamos antagonismos, pois afinal vanguarda secesso, voltamos a deparar con-formismo na forma superlativa do irreconcilivel. At a no vai Castoriadis, res-trito ao confronto poltico direto, sem meias-palavras. Podemos contudo presu-mir que esse mesmo ar de famlia derive de afinidades objetivas que uma reconsti-tuio comparativa da dissidncia burguesa na Frana e na Alemanha certamenterevelaria. Digamos enfim que uma longa temporada de imbroglios ideolgicos es-

    t se encerrando pelo menos com o nome certo.

    3

    Mas uma temporada internacional e portanto com desenlace variado con-forme a geografia cultural. Sirva de divisor de guas a fortaleza acadmica americana.

    Sartre atravessou inmeras vezes o Atlntico. Malgrado o antiamericanismocongnito do autor maldito porm consagrado, seus escritos estavam encharca-dos de jazz, cinema e romance policial, sem falar nos clssicos do modernismoamericano. Mesmo assim o Existencialismo e seus derivados jamais ultrapassaramas barreiras alfandegrias da cultura filosfica local. So conhecidas algumas dasrazes, nem todas conjunturais: tanto no plano poltico quanto no retrico, tratava-se do prprio Anticristo, cheirando a enxofre no auge da Guerra Fria; alm domais, o contencioso demarcando elucubrao metafsica e linguagens bem cons-

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    trudas j viera armado da Europa, desde os tempos em que o Crculo de Vienapassara a perseguir os enunciados da fenomenologia, tachados de pseudoproposi-es. O degelo veio com o ps-estruturalismo como conhecido na bibliogra-fia anglo-americana, e depois alem, o captulo central da Ideologia Francesa ,no sem algum paradoxo e com a ajuda de vrias transformaes concomitantes.Pois no tempo em que as novas idias francesas foram postas de quarentena pelosprofessores americanos de filosofia, Sartre rodava o mundo, um palco cujos refle-tores pareciam estar ainda na Rive Gauche desde os anos 30, mas sempre voltados

    para alm das fronteiras nacionais, da Guerra Civil Espanhola Revoluo nos Tr-picos deflagrada em Cuba. Opathos do"engajamento", desmoralizado no inciodo perodo que nos interessa estudar, pelo menos aspirava envergadura planet-ria. tradio intelectual firmada no decnio anterior por Gide, Malraux etc, Sar-tre viria acrescentar depois da Guerra, reunindo pela primeira vez numa s pessoao escritor e o profissional das idias, o gesto mais enftico da problematizao fi-losfica, renovando-lhe por a os assuntos. Mais patente porm ia se tornando oseguinte descompasso: um pas relativamente retardatrio na corrente do novocapitalismo, como a Frana dos anos Sartre, funcionando como quadrante da ho-ra ideolgica mundial. Miragem caracterstica do derradeiro "paraso dos intelec-tuais", cuja ascendncia se explicaria justamente pelas idiossincrasias do "atraso"mencionado? Como se sabe, era mais ou menos essa a posio de Raymond Aronem meados dos anos 50, algum alis que tinha motivos de sobra para apreciar

    a maneira pela qual, no mundo anglo-saxo, o mercado punha os intelectuais noseu devido lugar. De qualquer modo, mesmo dando iluso a parte que lhe cabe,com aquele perodo encerrava-se a "idade de ouro da conscincia histrica", co-mo reconhecer Lvi-Strauss ao lanar-lhe a primeira p de cal no limiar do novociclo.

    Para salientar a mudana de horizonte bastaria cotejar Les Temps Moder-nes e uma das principais vitrines do momento que se abre, Tel Quel. Ressaltarimediatamente a ndole paroquial da vanguarda, ressuscitada com a estridncia co-nhecida. Pois bem: um dos maiores lugares-comuns na interpretao do primeirocaptulo da Ideologia Francesa, o Estruturalismo, costuma associ-lo grande on-da modernizante da Quinta Repblica gaullista, quando finalmente o capitalismocontemporneo chega Frana e com ele o torpor da sociedade de consumo. Napoltica interna, a calmaria que se segue ao fim da Guerra da Arglia ir acelerar

    a edificao do novo Estado Providncia, enquanto no plano internacional a con-juntura de dtente e expanso econmica, alm de contribuir para desbloquearum pas secularmente emperrado, reforar no mbito ideolgico a impresso deque a histria finalmente evaporara. Quanto a esta ltima construo mental, di-gamos que se tratava na verdade da projeo de um sentimento com forte apoiolocal, a sensao de que quanto mais o pas se reciclava menos a gesticulao dagrandeurgaullista conseguia maquiar o seu gradativo apequenamento na cirandaplanetria do grande capital. Da o encurtamento de perspectiva assinalado acima,e que se manifesta, entre tantos outros indcios, na substituio do escritor filoso-fante, porta-voz da conscincia do mundo, pelos professores, mais exatamente,pelos especialistas em "cincias humanas". O horizonte rebaixado, quando com-parado ao internacionalismo da Era Rive Gauche, exprime um certo confinamen-to domstico, de que o circuito universitrio reativado mero prolongamento,

    mesmo, ou melhor, sobretudo quando passa a abarcar os Departamentos de Hu-manidades do mundo inteiro. Considere-se desse ngulo Maio de 68, que relanaa segunda fase da Ideologia Francesa. Menos uma brecha, como costuma ser mag-

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    nificado, do que um "tremblement de terroir" em cuja esteira, balizada pelo di-reito Diferena e outros descentramentos, se completaria a americanizao daFrana3. Comea ento a conquista da Amrica pela Ideologia Francesa, sob o no-me de ps-estruturalismo.

    Nesse meio tempo modificara-se substancialmente o panorama americano.Sabe-se que menos de trs dcadas depois de proclamada por Reichenbach a pro-fecia de ascenso e triunfo da "filosofia cientfica" nos Estados Unidos, longe decumprir-se, viu-se seriamente torpedeada pela prpria prata da casa, apoiada so-bretudo na lio passada a limpo do segundo Wittgenstein. Alm do mais, essadissidncia ps-positivista costuma ser legitimada por retomar uma outra tradiolocal, a do "pragmatismo" de entre-guerras, encarnada por Dewey e discpulos,abafado pela profissionalizao subseqente do argumento filosfico, de costas,para o conflito social das opinies4. Desacreditada a obsesso "fundacionista",reabilitado em sua verso americana o abominado "historicismo", baixava-se aguarda diante da ltima figura francesa da filosofia continental. Isto quanto a ex-pectativas no circuito mais restrito dos paperse colquios binacionais. Alargandoum pouco o horizonte, um dos principais tericos dessa nova sensibilidade chegaa afirmar que a predio deweyana para o futuro da filosofia nos Estados Unidos a saber, que a cultura filosfica se desviaria da tenso "representativa" entreo modelo fsico-matemtico do saber e a viso comum do mundo, voltando-separa problemas extrados das cincias sociais e das artes , que tal programa esta-ria enfim sendo realizado por assim dizer conjuntamente pela filosofia europiae pela cultura highbrow americana5. Mas nenhuma palavra acerca das mudanasde cenrio que permitiram Ideologia Francesa desembarcar na Amrica justamentepelas mos exclusivas dos highbrows encastelados em alguns Departamentos deLetras. Seja como for, o fato que largas pores do pensamento europeu noforam importadas no mundo anglo-saxo pelos filsofos mas pelos tericos da li-teratura, irradiando dali para os setores menos ortodoxos do campo "analtico".Um transplante revelador em mais de um aspecto, ao que parece abundante emequvocos recprocos e convergncias ideolgicas intempestivas. Assim, a dcadade 60 ainda no havia se encerrado quando alguns crticos americanos comea-ram a aplicar o mais recente repertrio francs nova narrativa local, Barth,Pynchon, Barthelm etc. A seqncia conhecida: uma pequena legio de litteratiatribuiu quele bando de idias novas o condo de despert-los do longo sonodogmtico do New Criticism agonizante para alguns, entretanto, quando mui-to um retorno agravado do velho formalismo da Nova Crtica. Estava aberta a tem-porada desconstrucionista. Ainda se discute para saber at que ponto esta domi-nncia da esttica literria amorteceu a impregnao gauchista originria do ps-estruturalismo. De qualquer modo, o foco literrio se alastrou e hoje em dia umaboa parte da Amrica pensante, da Antropologia Economia, da Histria Filoso-fia, passando pela Epistemologia, pelas Artes Plsticas e pela Arquitetura, gira emtorno do "deconstructive turn".

    A travessia do Atlntico integrou de vez a "nova retrica francesa" ou-tro nome escarninho inventado por Castoriadis na gelia terminolgica inter-nacional. Mais exatamente, ao longo de sua aclimatao americana, acabou preci-pitando a cristalizao de um novo gnero, um outro trao fisionmico a partirdo qual identificar a Ideologia Francesa. O advogado mais representativo desseestado de coisas o filsofo Richard Rorty mencionado no pargrafo anterior sem dvida exagera, no af de fornecer uma genealogia ilustre aos supracitadoshighbrows convertidos ao prazer da desconstruo, fazendo remontar o gnero

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    (3) Cf. Rgis Debray,Modeste Contribution

    aux Discours et

    Crmonies Officielles duDixieme Anniversaire,

    Mas ero Paris 1978.

    (4) Cf. Richard Rorty,"Philosophy in AmericaToday" e "Profiss-ionalized Philoso-phy and Transcend-entalist Culture",in Consequences oPragmatism, The HarvestPress, Brighton, Sussex,1982.

    (5) Cf. Richard Rorty,Consequences oPragmatism, ed. cit., p.64.

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    dos e importado retalhos de sua prpria, porm primeira vista irreconhecvel,"teoria"10.

    Mas antes de incluir o registro americano da Ideologia Francesa na "lgicacultural do capitalismo avanado", seria bom antecipar uma aparente incongrunciana fuso de ps-estruturalismo francs e ps-modernismo americano, sempre nointuito preliminar de recompor em suas linhas gerais a trajetria do ciclo que estse encerrando. Como ficou sugerido pginas atrs, no so poucos os observado-res que assinalam a domesticao americana do finado gauchismo dos idelogos

    franceses, notadamente no plano literrio da Desconstruo. Pode-se por certoduvidar que tenha havido mesmo desfigurao. Mas o fato que, pelo menos emseu impulso inicial, a Ideologia Francesa parecia alimentar-se das ltimas sobrasdas vanguardas histricas, j rotinizadas e amaneiradas na mera gesticulao mo-dernista. A esse respeito, confiemos no instinto seguro do gosto convencional.Castoriadis, por exemplo, na algaravia dos "divertisseurs" v antes de tudo "col-lages d'unepop philosophie en plastique". Claude Lefort, por sua vez, vai na mesmadireo quando investe, na Apresentao do primeiro nmero de Libre, contrao "modernismo" (mais ou menos como nossos avs desancavam o "futurismo")responsvel pela "agitao febril" da intelligentsia parisiense. A marcha errticado "discurso moderno" francs ter certamente outra razo de ser que no o fre-nesi atribudo idade herica. Por outro lado, algum sexto sentido no pode dei-xar de ter advertido mesmo os mais excitados matres--penserque j nos idos

    de 60 fazia tempo que o ethos vanguardista tinha os seus dias contados. No obs-tante perserverou-se na mise-en-scne da Transgresso.

    Quem se dispusesse a percorrer o paideuma da Ideologia Francesa desdeos tempos da assim chamada Revoluo Estrutural, encontraria, em ordem maisou menos disparatada, antigos e novos patronos do Modernismo francs, de Lau-tramont e Mallarm a Artaud, Bataille e Blanchot para ficarmos num dos estri-bilhos prediletos de Foucault. Uma tal idiossincrasia levou um estudioso do ps-modernismo americano ao seguinte arranjo, simptico anomalia francesa, queprocura ento acomodar na paisagem de alm-Atlntico: primeira vista, longede ser uma radiografia da cultura (ps-moderma) contempornea, o ps-estruturalismo apresenta-se de fato como uma recapitulao do modernismo napoca de sua exausto, mas sobretudo do seu veio estetizante. Pois precisamen-te esta condio de revenantdo modernismo, no fundo uma longa citao na for-

    ma da "teoria", que o torna enfim ps-moderno". Fica no entanto o quebra-cabea: um repertrio de idias modernistas tardiamente organizadas num mo-mento em que a Frana ia deixando de ser um pas rural e provinciano emboratenha sido justamente nessa condio o palco das ltimas vanguardas histricas, tornou-se nos Estados Unidos a matria-prima de que careciam os idelogosde uma nova etapa cultural do capitalismo multinacional.

    (10) Cf. Maurizio Ferraris,Postmoderno, inAA.VV., Imagini delPostmoderno, Veneza,Cluva, 1983, p. 22.

    (11) Andreas Huyssen,op. cit., pp. 39-40.

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    Pois foi nessa encruzilhada que a Nova Teoria Crtica alem (antiga Escolade Frankfurt) tomou conhecimento pela primeira vez do pensamento francs con-

    temporneo. E vice-versa, tambm foi nos Estados Unidos que os franceses des-cobriram que havia na filosofia alem algo mais do que Nietzsche e Heidegger.Desconhecimento mtuo para o qual no faltaro razes de ordem local e outras

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    implicncias paroquiais. O que reala ainda mais o fato de o primeiro confrontoter ocorrido em terra estrangeira, mesmo barateado em seguida pela rotina, res-ponsvel por uma espcie de FlaFlu internacional, variando o resultado conformevariam os fatores campo e torcida. Ocorrncia compreensvel do estado mundialdas coisas, o debate americano foi o primeiro a internacionalizar-se. Registre-seainda a precedncia alem na descoberta da Amrica. Ameaado de extino pelanazificao do continente europeu, a transferncia do Institut fr Sozialforschungpara os Estados Unidos, se no lhe aumentou a audincia, redobrou-lhe o nimoinquiridor, acrescentando ao amplo espectro de interveno do marxismo alemode entre-guerras, alm da meditao histrico-filosfica provocada pela revelaodo estado de alienao terminal no capitalismo administrado, a percepo reno-vada do ponto sensvel de todo intelectual alemo, concentrado como se sabe nosefeitos antitticos do processo de modernizao, percepo aguada pela situa-o de comparatismo permanente e estudioso em que acabou se convertendo afatalidade da emigrao. Porm no foi exatamente esse materialismo de fim delinha o responsvel por mais esta tentativa de identificao da Ideologia Francesamas, como lembrado, uma verso ampliada, no caso, por uma perspectiva de re-construo a um tempo terica e prtica, ela mesma reformulada em funo deum "linguistic turn", como se diz, de intenes normativas que o distinguem dareviravolta similar na origem do atual surto historicista da literatura de idiasanglo-saxnica.

    Na ordem do dia, recordemos, em meio aos problemas de legitimao docapitalismo avanado, a multiplicao dos sintomas de esgotamento do assim cha-mado, pelos novos tericos alemes, Projeto Moderno, sob o fundo de uma rea-o conservadora inquietante. No viria ao caso enumer-los agora e por extenso,tampouco os sinais costumeiramente alegados em favor do surgimento da "ps-modemidade". Conviria observar apenas o que uma tal Tendenzwende, que vol-ta a limitar a modernizao ao crescimento capitalista e ao progresso tcnico, exor-cizando em conseqncia os desdobramentos culturais por ela mesma propicia-dos e que no entanto a contrariam, pode encerrar de alarmante para intelectuaisalemes que conheceram por experincia direta as mais sinistras formas de mo-dernizao conservadora. H sem dvida nuances significativas nesse clima mun-dial de opinio favorvel a processos capitalistas de modernizao e enfaticamen-te hostil ao modernismo poltico-cultural, nuances que se prendem a diferentes

    tradies de cultura poltica nos respectivos meios intelectuais, Se, ao que parece,um mesmo colapso da imagem positiva que as sociedades industriais desenvolvi-das alimentavam a respeito delas prprias vem impulsionando o neoconservado-rismo atual, preciso no entanto distinguir a decepo de antigos liberais ameri-canos convertidos em doutrinrios da Era Reagan-Thatcher, da oposio de raizdos idelogos alemes que se vergaram depois de 1945 aos imperativos tecnol-gicos ultramodernos de uma acumulao capitalista acelerada sem nunca se recon-ciliarem de fato com o mundo da Aufklrung'2. Em contrapartida, os protagonis-tas franceses da nova virada ideolgica no so nem trnsfugas do liberalismo nemmandarins reconciliados fora com o curso moderno do mundo. Pelo contr-rio, esses demolidores da retrica progressista da emancipao so veteranos dogauchismo e tericos da cultura alternativa, idelogos dos Novos Movimentos So-ciais, alm de abstratores da quintessncia da civilizao americana dita ps-

    industrial. Da a verdadeira sublevao parisiense provocada por Habermas quan-do os rotulou de "jovens-conservadores", acrescentando mais um qualificativo cambiante identidade dos mestres pensadores franceses.

    (12) Cf. J. Habermas,"Les No-ConservateursAmricains et Allemandscontre la Culture", LesTemps Modernes, dc.1983, publicado original-mente em Praxis Inter-national,jan. 1983.

    (13) Cf. "Modernityversus Postmodernity' ,

    New German Critique, n22, 1981, p. 13. Traduobrasileira in Arte em

    Revista, n 7, CEAC,1983.

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    jovens-conservadores alemes. Ou no? Sabe-se que na ltima dcada a Alemanhauniversitria assistiu escalada do novo estilo francs, uma irrupo perfeitamen-te inslita para os padres locais. Dentre as vrias explicaes para o fenmeno,Habermas refere-se de preferncia ao horizonte negro que rebaixou as expectati-vas dos intelectuais mais jovens, percepo exasperada da marcha desastrosa dasociedade alem a partir dos anos de chumbo, uma sensibilidade de tal sorte afeta-da por aquele estado de coisas que as teorias acerca do carter no-verdadeiro doTodo e a conseqente (ou inconseqente) afirmao unidimensional do beco sem

    sada acabaram reavivando os nimos locais da crtica civilizao, abrindo enfimcaminho ao "humor cnico dos descontrucionistas"21. Envoltos numa embalagemps-estruturalista, deu-se ento uma estranha repatriao de Nietzsche e Heideg-ger, este ltimo, acrescenta Habermas, aparentemente desnazifcado graas re-cepo francesa, e por esta via, americana, descontextualizada. Ao ser reexporta-da, a aclimatao francesa da crtica heideggeriana da racionalidade ocidental aca-bou exumando a sndrome alem jovem-conservadora, que muitos julgavam se-pultada. Na observao insuspeita de um discpulo de H.-G. Gadamer: abrindo-sefinalmente dimenso internacional das idias francesas, acolhidas como uma t-bua de salvao, a jovem intelligentsia alem simplesmente reatava com uma fortetradio local eclipsada depois do apocalipse do Terceiro Reich22.

    E vice-versa. No deixa de ter sua graa observar que o atual refluxo da Ideo-logia Francesa consideraes acerca de continuidades sociais por enquanto

    parte se deve em razovel medida vulnerabilidade crescente a uma objeoque vinha ganhando terreno no campo alemo adverso e suas adjacncias anglo-americanas, at alcanar os epgonos franceses em alta nos dias de hoje. O argu-mento opunha surenchre francesa da crtica da ideologia, to radicalmente abran-gente a ponto de pulverizar a prpria noo de Crtica, o seu carter autodestruti-vo: para se sustentar o desmoronamento de todos os critrios de avaliao nose pode dispensar os servios de ao menos uma instncia normativa ainda intacta.No sei de melhor exemplo dessa emigrao para a outra margem do Reno da dis-puta alem em torno dos pressupostos e conseqncias da Aufklrung do que aderradeira metamorfose de Foucault, ela mesma o mais veemente atestado do cu-nho internacional da inflao da sensibilidade de que estamos falando, pois bemprovvel que Foucault tenha sabido da referida objeo pelos seus amigos da Cali-frnia. Assim, em sua ltima guinada, em lugar de um novo captulo da histria

    ocidental da "sujeio",Aufklrung s avessas em cuja esteira se desdobrara o pro-cesso moderno de individuao-subjetivao, Foucault enveredou por uma medi-tao de tonalidade moral sobre as tcnicas greco-romanas da vida justa. Restitui-o do Sujeito a si mesmo? Ainda no. A estilstica da existncia que passara a cul-tivar pendia muito menos para a universalidade dos imperativos modernos do quepara a deriva de um decisionismo estetizante23 ltima sobra do "limbo feliz dano-identidade" pelo qual suspiraram duas dcadas de fraseologia francesa da Trans-gresso. Uma soluo de compromisso na qual no obstante ecoava o menciona-do paradoxo normativo. Se no for mera volubilidade, dissentir em nome do qu?Sero mesmo "lgicas" todas essas revoltas? Por uma questo de princpio nose poderia professar ao mesmo tempo um perspectivismo radical, exigido peloculto da Diferena, e engajar-se na trilha gauchista da secesso. Bendita incoern-cia do anti-humanismo a servio da contestao. E assim por diante.

    Esse o n (teuto-americano) do relativismo a cuja tardia evidncia comea-ram a se render em parte os intelectuais franceses de vanguarda. Muito a propsi-to, mas no creio que de caso pensado, Derrida forjou uma categoria prpria para

    (21) Cf. entrevista deHabermas New Left

    Review (maio/junho de1985), cuja respostaacerca da progressocrescente do ps-estruturalismo naAlemanha parafraseio umpouco livremente traduo brasileira Novos

    Estudos CEBRAP, n 18,1987, p. 83.

    (22) Trata-se de ManfredFrank no por acasoautor de um Was istNeostruktunlismus?,

    Frankfurt a.M.,Suhrkamp, 1983 emartigo citado por J.Habermas, MartinHeidegger l'Oeuvre etl'Engajement, Paris, Cerf,1988, pp. 17-18.

    (23) Cf. Richard Wollin,"Foucault's AestheticDecionism", Telos, n 67,1986.

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    batizar e estilizar essa dificuldade: o barroco, cuja voga ao longo dos anos 80 seconhece, inclusive como senha francesa do ps-moderno. Uma objeo de doisgumes, sobre a qual paira igualmente a ameaa do disparate: nesse mesmo diapa-so se negar ao dissidente da modernizao o direito de acender a luz ou tomarantibiticos. Enquanto isso, os novos amigos franceses da Idia Prtica de Huma-nidade passaro a denunciar o nominalismo em que se resolve o confronto dosveteranos com a ordem estabelecida, subordinando a pertinncia da crtica uni-versalidade do critrio, por sua vez responsvel pela hierarquizao dos valores

    e por a afora. Em contrapartida, sempre bom repisar que nem mesmo in ex-tremis distante at a ltima hora, como exigiria Montaigne de quem escreve Foucault cedeu ao angelismo da nova gerao. Desde o momento em que ven-ceu a tentao naturalista da doxa gauchista "sous le pav la plage" nuncadeixou de escarnecer, como manda o figurino de vanguarda, da utopia dos cora-es transparentes ou dos atos de fala, enfim de todas as maneiras de escamotearo carter "violento, sangrento e mortal" da realidade, "reduzindo-a forma apa-ziguadora e platnica da linguagem e do dilogo".

    Seja como for, enganando-se ou no a respeito de si mesmo, o fato queum projeto intelectual coletivo de reconstruo do Materialismo Histrico, na ba-se verdade de uma mudana de "paradigma" em funo de novas evidnciassociolgicas, como o caso da Teoria Crtica depois do "linguistic turn", acabousancionando numa direo diametralmente oposta do marxismo ocidental, de

    cujas intenes de fundo aquele ltimo exemplar da Teoria alem pelo menos de-clara no pretender abrir mo, a mais recente transformao da filosofia francesa,finalmente reconciliada com o Ocidente, a Modernidade e Cia., que de Sartre aFoucault todos pelo menos concordavam em repudiar. S mesmo desconsoladatica de um Perry Anderson, inconformado com a suposta primazia conferida pe-la nova Teoria Crtica s funes comunicativas em detrimento das produtivas nadefinio do desenvolvimento histrico, ocorreria o seguinte amlgama, no mni-mo pitoresco. Ao contrrio do sugerido acima, o inesperado recobrimento franco-alemo (em s conscincia, ningum imaginaria na plataforma da nova gerao,no lugar de mais uma pirueta da Ideologia Francesa, os ideais austeros do Ilumi-nismo alemo), pelo menos de direito j era visvel na dcada anterior, est claroque na forma do contraponto entre plos antagnicos, mas sobre o fundo comumde um "lingustic turn" internacional que descartava, por exemplo, as teorias "re-

    presentativas" da verdade, ao mesmo tempo em que conferia poderes demirgi-cos linguagem, "arquiteto e rbitro final de toda sociabilidade". Da a gangorraescarnecida por Perry Anderson: o que do lado francs era "equvoco, obscuroe maldito", aparecia "translcido e redimido" do lado alemo; enquanto em Parisa linguagem demonizada "bombardeava o sentido, devastava a verdade, atacavapelos flancos a tica e a poltica, exterminava a histria", na Alemanha encarregava-se o mesmo protagonista impalpvel de "restaurar a ordem histrica, prover o bl-samo do consenso para a sociedade, assegurar os fundamentos da moralidade, for-talecer os elementos da democracia", sendo enfim congenitamente avessa a se des-viar da verdade, horizonte antecipado de cada ato de fala. Provocaes parteno despropsito dessa liga to disparatada, no h dvida de que na batida alemdo pndulo se encontra o brevirio da nova gerao francesa.

    Num circuito assim disposto, compreende-se que o ltimo rebondissement

    do caso Heidegger tenha se tornado sobretudo um pesadelo, alm de captulo seno conclusivo ao menos decisivo, para a Ideologia Francesa. Duas palavras a res-peito nos levaro a uma outra pista, por onde tambm correm os nossos idelo-

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    gos. Afinal como foi possvel ao responsvel pela mais consistente sublimaoespeculativa da "revoluo conservadora" alem tornar-se velada ou ostensiva-mente o grande norte filosofante do gauchismo ps-68? Rebocado e caiado, umHeidegger pensador de esquerda? O ltimo idelogo alemo, primeiro idelogofrancs?

    Se investigssemos a rvore genealgica traada pela prpria tradio liberal-conservadora francesa de Tocqueville a Raymond Aron, passando por Taine e Bar-rs, veramos a preponderncia atual do mais eminente "jovem-conservador" as-segurada nada mais nada menos do que pelo magistrio espiritual dos seus arquii-nimigos, "les gens de lettres", cujo processo, na pessoa dos philosophes setecen-tistas, por crime de "Poltica abstrata e literria", Tocqueville principiou num ca-ptulo famoso de O Antigo Regime e a Revoluo. Interessa aqui o destino de doistraos fisionmicos destacados por Tocqueville, enfaticamente sublinhados de-pois pela referida tradio. O primeiro deles concerne metamorfose da sensibili-dade polifactica do intelectual no horizonte raso do homo ideologicus, confina-do ao gesto monocrdio da interpretao de mo nica. Um paradoxo para a es-querda, ponto pacfico para a opinio liberal-conservadora, em guerra permanen-te com a classe discutidora. O segundo reflete peculiaridades da carreira do ho-mem de letras no Antigo Regime, uma consagrao pblica tanto mais notvel quan-to marcada por um alheamento crescente desta mesma ordem do mundo que lheratificava a ascendncia, um distanciamento grand seigneurexercido por plebeusgraas aopersiflage metdico dos usos e costumes congelados pelo esprito desa-busado de quem se afasta do mais familiar afetando encarnar a surpresa irnicade um persa ou de um iroqus. Retrospectivamente, uma Grande Recusa avantla lettre. Uma insensibilidade s reformas caractersticas do imperativo do manda-rim alemo, nicht mitmachen em suma, algo no rumo da idiossincrasia intelec-tual que mais exaspera a reao conservadora de ontem e de hoje.

    Pois uma certa reviso das vrias fases da evoluo de conjunto da ideolo-gia Francesa, auxiliada pelas mesmas averses, acabou esbarrando em prolonga-mentos modernos daquelas tendncias de fundo. Veja-se a explicao de FranoisFuret para o Estruturalismo dos intelectuais franceses, imaginada ainda nos idosde 60 por um dissidente que esperava ver suceder bancarrota da Fenomenolo-gia, Marxismo e demais filosofias concretas ideologias na acepo positivistado termo enfim o reinado de Raymond Aron e dos herdeiros de Hume. Dianteda expectativa frustrada, Furet acabou remontando ao tradicional magistrio deopinio monopolizado pelos letrados franceses para poder colocar no seu verda-deiro foco uma flagrante anomalia: sendo o Estruturalismo movido por uma am-bio de inteligibilidade global e sistemtica equivalente ao velho sonho totali-zante das finadas ideologias, assistia-se na Frana modernizante da Quinta Rep-blica a um espetculo inslito, o suposto fim da Era das Ideologias encontrava alios seus mais veementes doutrinrios24.

    Ora, vai na mesma direo da atrao exercida pelo Estruturalismo sobreos meios intelectuais parisienses nos primrdios da Ideologia Francesa, o heideg-gerianismo gauchista da etapa subseqente. Ao pensamento de sobrevo do mestre-pensador sobrepe-se agora, exacerbado pelo refluxo das grandes "teorias" dadcada anterior, um novopathos da distncia. Sabe-se que a averso pela flutua-o irresponsvel do intelectual, transformada por Mannheim e Schumpeter emargumentos sociolgicos clssicos, passou a repercutir com nfase redobrada naatual campanha neoconservadora contra a "cultura antagnica", "hostil", "irni-ca" etc, encarnada por uma pretensa nova classe intelectual, acaparadora do "sen-

    (24) Cf. Franois Furet,"Les Intellectuels Franaiset le Structuralisme", in

    L'Atelier de l'Histoire,Paris, Flammarion, 1982.

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    tido" e sua interpretao como seus ancestrais franceses. A alegada m vontadeda nova classe envolve justamente o supremo dgagementdos highbrow em facedo claro-escuro da modernizao social, mencionado pginas atrs e que agoravoltamos a encontrar em sua terra natal no momento em que a reverso dos anos80 passou a dar novo curso aos ataques neoconservadores cultura dita antagni-ca. Existem sem dvida uniformidades, regularidades institudas e partilhadas in-dispensveis existncia, da comunidade lingustica de compreenso s regras ele-mentares de convvio poltico, mas nada disso ter acesso, enquanto tal, ao dis-

    senso ntimo que caracteriza a vida do esprito, sempre inconformado o primeiroe desabusada a segunda. Manter portanto mais intransponvel distncia tudo oque d a impresso de funcionar um pouco consensualmente demais, que favore-a identificaes espontneas. Tal o alheamento de elite caracterstico do inte-lectual ps-estruturalista, segundo os seus atuais contendores franceses25.

    Como se v, uma imagem compsita, embora historicamente construda.No difcil reconhecer nela elementos herdados dos philosophes, cuja urbanida-de de princpio mal disfarava a mais completa indiferena pelo destino suposta-mente comum. Traos fisionmicos familiares aos quais vieram se juntar fantasiasneoconservadoras quanto aos malfeitos e desmandos da cultura do contra. Mes-mo algum simptico filosofia continental como Richard Rorty, a ponto de apostarno lado high talkdela para o soerguimento da crtica cultural highbrow, acabase impacientando com a sistemtica desqualificao de origem gauchista das for-

    mas de entendimento, nelas includas at mesmo as puramente pragmticas, no-fundacionistas etc. Enerva-o antes de tudo certos efeitos do vanguardismo da Ideo-logia Francesa, que por definio autorizaria seus principais representantes adesinteressar-se das questes midas de engenharia social, na prtica uma espciede brevet de iseno de servio social. Quanto consternao de um pacato aps-tolo alemo da Hermenutica, como a do j citado estudioso do ps-estruturalismoManfred Frank, diante da lastimvel implicncia francesa at mesmo com o "con-senso sem dominao", que em princpio despontaria no horizonte da sociabili-dade moderna, surpreende bem menos do que o fato de no atinar com os laosde famlia que parecem vincul-la ao clima de opinio jovem-conservador. Aquia porta de entrada para o heideggerianismo ps-estruturalista.

    Para concluir a peripcia, basta referir o argumento panormico dos princi-pais advogados do Pensamento 80. Admitido que o intelectual (de corte francs

    evidentemente) o porta-voz natural do "ressentimento que a positividade dasleis e dos fatos no pode deixar de provocar em cada um de ns"; que essa paixotriste assume a forma achatada da Grande Recusa inaugurada pelos philosophes,sendo o marxismo, hoje extinto na Frana, a ltima manifestao dela; e que afora reativa do intelectual deriva da posio de "exterioridade radical" em quese coloca diante da positividade da sua poca, concentrada hoje no universo de-mocrtico; verificou-se que, com a falncia do gauchismo realmente existente epermanecendo tabu a referncia irrecupervel platitude da dita positividade, coubeao heideggerianismo, em particular assim chamada superao metafsica, por eleenfaticamente alegada, tanto da civilizao americana quanto da sovitica, salvaro essencial, a saber, a figura do intelectual enquanto contraditor irredutvel do mun-do constitudo pelo menos esta a pose26. Completava-se assim a aberrantetransplantao gauchista de Heidegger, no propriamente expurgado de uma di-

    menso que afinal estava entranhada nas menores clulas temticas do filsofo,mas vendo transfigurada na prosa inflada do irreconcilivel a mencionada "exte-rioridade radical positividade democrtica contempornea", que na Alemanha,

    (25) Cf. JacquesBouveresse,Rationalit etCynisme, ed.cit., p. 132.

    (26) Parafraseei em parteLuc Ferry e Alain Renaut,

    Heidegger e osModernos, Lisboa,Teorema, 1989. Cf. dosmesmos autores, LaPense 68, Paris,Gallimard, 1985.

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    situada emporte--faux na ordem burguesa, sempre fora um dado real do proces-so. Sirva contudo de contrapeso uma observao de Habermas, insuspeito de com-placncia a este respeito: caso a sempre invocada Modernidade nada mais tenhaa oferecer do que a ladainha apologtica dos neo-iluministas, compreende-se quea ltima gerao intelectual "prefira voltar a Nietzsche, passando por Derrida eHeidegger, e procure sua redeno em estados de alma carregados de significa-o, prometidos, no caso, por um movimento jovem-conservador autntico, res-taurado sob forma de culto e ainda no desfigurado por qualquer compromisso".

    Pode-se dizer que os idelogos franceses aplicaram-se nas demonstraesde "endurance devant l'Indicible", a ponto de se tornarem especialistas exmiosna procura da marginalidade herica, na encenao de compls urdidos pelos bemaquinhoados da ratio moderna, na identificao em efgie com minorias sociais,prias da vida intelectual, enfim especializaram-se no fomento de tudo que pudes-se reforar uma bem-sucedida estratgia de "vitimizao", como sublinham seusatuais adversrios27. Em contrapartida, o real declnio dos mandarins alemes dis-pensava pelo menos essa mise-en-scne. Laminados entre a acomodao dos mo-dernistas, desmoralizada pela crise do entre-guerras, e a impossvel restaurao dosortodoxos, os autodenominados "autnticos", congregados, segundo a melhortradio alem, em crculos de intelectuais antiintelectuais, encontravam-se de fa-to margem, tanto do bloco dirigente de aristocratas e burocratas, quanto do arri-vismo empreendedor dos novos beneficirios da ocidentalizao do pas. Combi-nando devaneios arcaizantes e demonizao da tcnica e da sociedade de massas,podiam com a maior naturalidade reencarnar no sculo XX o ressentimento ale-mo de nascena. No limite, dois casos de sobrevida ideolgica. No captulo con-clusivo da Ideologia Alem, ressoa em sua intensidade mxima a sndrome jovem-conservadora, repercutem, no vazio de aluses aos arcanos de uma origem pri-mordial, os poncifs agora desdentados da crtica alem da civilizao moderna,em jargo, um pensar-rememorativo de costas para a consumao metafsico-niilistada dominao europia do mundo. Ora, no caso francs, a situao-limite irrepre-sentvel tornou-se com o tempo mera invocao ritual de uma ruptura vanguar-dista hoje extinta. Isso por certo no tudo, se quisermos focalizar mais de pertoo diagnstico de Habermas e colaboradores. Segundo eles se deve entender o ps-estruturalismo como uma resposta de feitio jovem-conservador nova "intrans-parncia" moderna, e isto na exata medida em que a Ideologia Francesa ela pr-pria nada mais do que uma vasta recapitulao "terica" (na acepo americanado termo) do contedo de experincia da modernidade esttica. Da a pirueta mortalque a aproxima daquele captulo alemo. Ancorados na atitude esttica bsica dostempos modernos, como Habermas no cessa de relembrar, explorando as reve-laes expressivas de uma subjetividade descentrada, emancipada dos imperati-vos da utilidade, os idelogos franceses evadem-se do mundo moderno em nomede um antimodernismo sem volta.

    Deixando de lado as vrias acepes de Moderno, Modernidade, Moder-nismo etc, em jogo na tipologia habermasiana dos desencontros entre processoglobal de modernizao, desempenho capitalista e antagonismo cultural, varian-do de resto o Modernismo da modernolatria integrista ( maneira de Marinetti)ao desvio dessublimador das vanguardas mais intransigentes, no se poderia dei-xar de assinalar pelo menos duas circunstncias no mbito mais geral dessas ana-logias franco-alems. Viria ento ao caso relembrar um dos vnculos definidoresda vanguarda artstica do perodo herico, justamente a relao polmica e ambi-valente com as formas arcaicas da experincia, abafadas pela normalizao pro-

    (27) Indcios inventari-ados mas no explicadospelos mesmos Luc Ferry eAlain Renaut, La Pense68, ed. cit., pp. 38, 39,40.

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    movida pela cultura burguesa em seu apogeu, primitivismo a um tempo ps-burguse regressivo, cujo choque detonador os franceses dos cubistas aos surrealistas foram os primeiros a elaborar e trazer para a linha de frente da bancarrota cul-tural do capitalismo, primazia devida inclusive ao fato de ainda ser muito frouxana Frana a civilizao do Capital, se comparada, por exemplo, sua marcha semtropeos no Novo Mundo anglo-saxnico. Isso posto, no era sem uma forte com-ponente de construo acordada que a vanguarda francesa explorava aquele sub-solo socialmente adormecido fazia tempo. O que valia ainda para Breton, tentan-

    do ganhar para o renascimento de uma outra sociabilidade as foras do xtase,como se disse certa vez, se apresentaria como artifcio redobrado quando maistarde Foucault tentou reeditar a coreografia da Transgresso, colocando-se na es-cola dos ratardatrios Bataille e Blanchot. Ora, no pas por excelncia da "no-contemporaneidade" como Ernst Bloch costumava definir nos anos 30 a Ale-manha autocrtica e burguesa, camponesa e inteiramente industrializada, e por is-so mesmo colhida como uma fruta madura pelo nazismo pode-se dizer que odesrecalque capitalista, promovido pela autocrtica da cultura moderna, transcor-reu com uma certa naturalidade, de sorte que a demolio expressionista da em-patia clssica, por exemplo, embora formalizasse resultados gerais, podia estilizarde sada traumas locais e assim por diante. Da a quase evidncia da demagogiaanticapitalista dos jovens-conservadores, hoje bem menos visvel na sublimaoheideggeriana do desenvolvimento desigual, resumido num conjunto de efeitos

    estilsticos que sugerem profundidade gerada nos confins dos tempos, em nomede cuja vagueza incontornvel e sem fundo se objeta ao curso filistino do mundomoderno. Tirante a cor local, reconheamos o prprio diagrama do Sublime re-quentado pelos derradeiros epgonos franceses das vanguardas histricas. Valhaento como arremate a seguinte retificao terminolgica, que tambm de fun-do, como j vimos a propsito da travessia atlntica da Ideologia Francesa. Aindapouco vontade na identificao do "ps-moderno", como observado, sndro-me de foco americano e teoria francesa, os atuais coveiros franceses do ps-estruturalismo costumam enumerar valores ou preferncias negativas que lhe con-firmariam a vocao ps-moderna para a dissipao de um acervo insubstituvel:a disseminao, a margem, o indeterminvel, o indecdvel, o incontrolvel, o im-previsvel, a dissoluo, a diferenciao, a deperdio, a paralogia, o frvolo, a con-trafao, o simulacro, o irrefletido, o retrico, o menor, o pardico, o incomen-

    survel, o barroco, a desregulagem, o ponto fixo em fuga etc. para no mencio-nar os temas mais batidos da fase anterior do jargo, como desejo, escritura, repe-tio, espaamento etc. A menos que tambm se convencione chamar ps-modernoa flagrante tenuidade desse repertrio, se cotejado com o elenco de profanaessonhadas pelo homem souverain de Bataille, para ficarmos com um antecessormais prximo, ainda estamos diante de relquias do vanguardismo moderno, porcerto nascidas caducas, como toda transgresso planejada em comits de redao.

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    O confronto americano entre ps-estruturalistas e ps-frankfurtianos aindareservaria novas revelaes para o observador interessado na identificao da Ideo-logia Francesa. Um desses arranjos, revelia das respectivas tradies, pelo me-nos primeira vista parece frisar o mais acabado contra-senso. Nas palavras quase

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    lises frankfurtianas da sociedade totalmente administrada, esquecendo-se todaviaque as minuciosas anlises histricas de Foucault acerca das tcnicas polimorfasde sujeio referem-se quando muito ao limiar da transio para o mundo moder-no, Habermas estende-as sem maiores ressalvas s contradies entre meios e finsque levaram o Welfare State sua crise atual, quando at poderia ser o caso dese perguntar se no foi o caminho inverso, a experincia direta das patologias ine-rentes juridificao e burocratizao das polticas sociais do capitalismo avana-do, acrescida de algumas leituras en cachette de Max Weber e dos funcionalistas

    americanos, que teriam inspirado a redescoberta foucaultiana dos nexos sistmi-cos entre saber e poder, circunstncia camuflada pelo fato de fazer retroagir osesquemas explicativos dela para a crise do Antigo Regime e a consolidao da no-va ordem burguesa. Quanto ao sculo XX, como se h de recordar, nenhuma pa-lavra, salvo os discursos de apoio aos Novos Movimentos Sociais, onde vagoo aparato conceitual, tirante as declaraes de praxe acerca do declnio do Universal.

    Aqui um outro contencioso, em lugar da inconvincente convergncia evo-cada at agora. Boa parte da Ideologia Francesa ps-68 girou em torno dos men-cionados e assim chamados Novos Movimentos Sociais e em funo deles remo-delou a imagem da Revoluo, dos Intelectuais, das relaes entre Teoria e Prti-ca etc., e mais, conforme definhava o impulso globalizante do gauchismo origi-nal, delineava-se o horizonte mais modesto (outra palavra-chave do perodo, mo-dulando discursos e intervenes da Epistemologia Arquitetura) de um "refor-

    mismo radical" em permanente litgio com a afluncia desregulada do capitalismoavanado porm deslegitimado. Sem querer arbitrar bisonhamente a querela deprecedncias, convenhamos que os franceses foram os primeiros a elevar esse no-vo elenco de manifestaes ao plano da fraseologia terica. Mudando de "para-digma", como alegam, os alemes da promoo Habermas passaram a enfrentar,por sua vez, essas mesmas manifestaes, por muitos deles qualificadas de "sur-realistas", em termos do contraponto entreLebenswelt(reanimado ento por eco-logistas, pacifistas, feministas, negros etc.) e racionalidade sistmica. Terminolo-gia parte e observadas as transformaes da vanguarda francesa nos anos 80, aquisim seria o caso de recensear um bom nmero de entrecruzamentos caractersti-cos dos novos tempos.

    De qualquer modo, pelo menos no plano das declaraes de princpio, Ha-bermas sempre foi taxativo diante do contra-senso atualmente em voga. Em ne-

    nhum momento as aporias em que se meteu o Adorno da ltima fase sopraramna direo da negao indeterminada cultivada pelos ps-estruturalistas e sua cor-respondente invocao encantatria do inteiramente Outro; nenhum trao jovem-conservador em suas decifraes da vida mutilada que o aproxime da rennciaargumentativa da desconstruo francesa, compensada esta ltima, verdade, pe-lo alinhamento com as minorias, os marginalizados, ao qual sempre se juntou umcerto pendor para a explorao estetizante de novas formas de vida.

    O equvoco vai se tornando mais instrutivo medida que vem baila a jmencionada matriz esttica da Ideologia Francesa. Trata-se de uma vasta fraseolo-gia gerada pela exportao sistemtica e indiscriminada de procedimentos consa-grados pela tradio das vanguardas artsticas para os mais diversos domnios, daFilosofia Poltica, passando pela Cincia e esferas afins. Como dispomos agorade um terreno comum, a saber, a irrupo, cristalizao e anemia final do moder-

    nismo esttico, saltam mais significativamente vista as meias-razes que suge-rem a aproximao de posies diametralmente opostas. Se fosse o caso, mas ain-da no no mbito preliminar desta Introduo, entre tantos outros paralelismos

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    arrevesados, de chamar a ateno para a incongruncia que consiste em afirmarque Derrida e Adorno no s partilham uma mesma concepo da arte de van-guarda, mas pertencem ao ramal "Breton, Artaud, Barthes" (sic), bastaria compa-rar as respectivas linhas evolutivas da arte moderna europia na Frana e na Ale-manha, e nesta ltima, a simbiose muito especfica entre a arte avanada e a teoriaesttica marxista no entre-guerras, uma incorporao constitutiva de origem (Ador-no e Benjamin foram mais do que apenas os principais tericos de Schnberg eBrecht, respectivamente), ao contrrio da glosa filosofante tardia dos franceses,quando j no havia tempo para mais nada, simplesmente passara a temporadamodernista. Fica sem dvida o mnimo, a constatao de que de um lado e deoutro o foco dinmico da teoria a recapitulao da experincia esttica moder-na. Recorde-se, por exemplo, um dos efeitos do Estruturalismo sobre o discursofilosfico francs dos 60. A substituio das "ingnuas" descries fenomenol-gicas dos dados imediatos da experincia perceptiva pelas desconstrues, queno traduziam apenas aDestruktion heideggeriana das categorias tradicionais daMetafsica, mas sobretudo os expedientes tcnicos dos linguistas, e depois etnlo-gos, historiadores, psicanalistas etc, na anlise das "construes" de uma frase mas estavam lanadas as bases da Retrica desconstrucionista do Discurso Filo-sfico, nos moldes portanto das novas poticas estruturalistas29. Seria ento opor-tuno incluir nesse roteiro derridadiano, mais do que o comentrio explicativo,alis inexistente, o peso da reiterao amplificada do Teatro da Crueldade em Ar-taud, a Economia Geral de Bataille etc. em suma, lembrar que a Ideologia Fran-cesa engordou de tanto requentar a marmita vanguardista de epgonos eretardatrios.

    Pode-se dizer que a Ideologia Francesa se confunde em razovel medidacom uma espcie de reconstituio igualmente mitolgica de um romance fami-liar sobre a origem da vanguarda modernista, cujo marco zero leva obviamenteo nome de Mallarm e se estende at os derradeiros espasmos formalistas dos lti-mos representantes do finado Nouveau Roman. Uma histria sem dvida apenasfrancesa e predominantemente literria, decantao inteiramente retrospectiva etributria de um notvel desencontro. Enquanto se sucediam na Frana e alhuresas vanguardas histricas, a reflexo dita terica continuava atrelada rotina uni-versitria, alheada da cultura viva; quando, com os existencialistas, renovou-se for-ma e fundo da supracitada reflexo, o equvoco do "engajamento" repudiou, porexemplo, o que ainda sobrevivia do Surrealismo; paradoxalmente, Sartre, comose h de recordar, jamais revogou a condenao daquela ltima investida contraa existncia em separado da dimenso esttica, enfiando no mesmo saco da nega-o abstrata os antiobjetos de Duchamp e as bravatas de Breton, includos no roldas manifestaes do consumo improdutivo dos intelectuais. Rompendo enfimcom o iderio histrico-transcendental dos fenomenlogos e demais amigos dovivido e do concreto, os idelogos franceses voltaram-se finalmente para o pro-grama das vanguardas mas quando o seu horizonte j se fechara fazia tempo. Porisso mesmo, nada poderia ser mais instrutivo do que a comparao entre essa apo-teose sem atmosfera da a nfase superlativa que a distingue e o sbrio ba-lano adorniano do envelhecimento do moderno, tanto mais revelador por resul-tar de uma "teoria esttica" de mesmo andamento temtico-conceitual que o pro-cesso de desestetizao da arte por ela refletido desde o seu nascedouro. Isso parano falar no peculiar antivanguardismo de Adorno, mais do que a averso que po-demos imaginar, tambm um ponto de vista sobre o rescaldo surrealista do ps-estruturalismo, por assim dizer armado avant lalettre.

    (29) Cf. VincentDescombes, Le Mme etl'Autre, Paris, Minuit,1979, pp. 96-98.

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    Assim sendo, o que acaba comprometendo pela raiz a bizarra tentativa dohabermasiano heterodoxo Axel Honneth de aproximar a teoria foucaultiana dopoder da filosofia negativa adorniana, justamente o seu n mais interessante,a lembrana do fundo de experincia esttica subjacente tanto na referncia deHorkheimer e Adorno ao "destino do corpo" que obscura porm decisivamenteatravessa a "histria oculta da Europa", quanto na sua retomada por Foucault. Salvoengano, uma vez concedido que em ambos o foco da reconstruo terica da ex-perincia moderna o seu momento esttico mais expressivo a ruptura encar-nada pelos vrios modernismos artsticos , no h mesmo termo de compara-o entre a memria negativa da alienao a que se reduz, para Adorno, a arte mo-derna no seu processo de autonomizao, e a quase celebrao estetizante dessemesmo processo de ossificao na correspondente traduo "terica" francesada vanguarda ps-surrealista.

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    Nesse rumo comparativo fora de esquadro, ditado porm pelas idas e vin-das desses entrecruzamentos internacionais, no admira que o passo subseqentetenha sido a assimilao da Ideologia Francesa, notadamente na sua configuraops-estruturalista, ao molde alemo da Dialtica daAufklrung, tanto ao quadropropriamente dito do mal superior alemo, quanto aos esquemas expositivos doclssico de Adorno e Horkheimer. Do lado francs, representado pelos atuais ad-versrios do iderio por eles mesmos batizado de Pensamento 68, bem como dolado alemo (ortodoxos e dissidentes da Nova Teoria Crtica e da Nova Herme-nutica), variam, est claro, os respectivos alinhamentos. Sem entrar por enquan-to no pormenor, certo que imaginao do observador decidido a atinar coma verdadeira ndole da Ideologia Francesa acabam falando to ou mais alto as evo-lues de tal coreografia.

    Abreviadamente, comecemos pelos alemes, sempre no plano provisriodos diagnsticos gerais. Mesmo fazendo ressalvas, Habermas direto: na figurado seu principal representante, Michel Foucault, no h nem pode haver "dialti-ca" na crtica totalizante da razo, a que acabou se reduzindo, seja dito de passa-gem, a Ideologia Francesa no atual achatamento internacional em torno da dispu-ta Racionalidade versus Irracionalismo. Mais exatamente, Foucault tenderia a anu-lar a ambivalente complexidade "dilemtica" do processo moderno de racionali-zao social, a ponto de convert-lo numa histria linear; ou melhor, como emprincpio a marcha bifronte da modernidade seria impermevel s categorias dasfilosofias do Sujeito, das quais Foucault ainda permaneceria prisioneiro malgradoas declaraes em contrrio, nada mais lhe restaria do que a permanente dennciada "inverso irnica" de toda e qualquer perspectiva de dessublimao emanci-patria. Mas nesse ininterrupto alm de auto-referente renversement du pour aucontre no residiria justamente a "dialtica", privada, claro, do seu momentoafirmativo? Entrevendo a brecha, Habermas passou a louvar a "magistral descri-o da bifurcao da razo", a que se resumiriam no seu todo as anlises histri-cas de Foucault, cuja rplica entretanto, como era de se esperar, depois de repu-diar a chantagem inibidora de qualquer histria contingente da razo, como sefosse impossvel uma crtica racional da racionalidade, substitui o ponto nodal,

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    e virtualmente normativo, da interverso por uma bifurcao sem fim, por umaramificao interminvel.

    Quanto ao j mencionado Axel Honneth, parece no ter dvida de que precisamente essa proliferao que aparenta, por exemplo, Surveiller et Puniraosfragmentos filosficos que compem aDialektik der Aufklrung, estendendo in-clusive ao segundo livro as aporias do primeiro. Como as duas teorias, carregan-do nas tintas sombrias das Luzes, so cegas para o avesso luminoso do mundototalmente desencantado, no limite no haveria "dialtica" nem mesmo em Ador-

    no/Horkheimer. Excesso de zelo iluminista que seu patrono Habermas por certono subscreveria, como se pode depreender do referido h pouco. Na verdadea sombra de Adorno, enquanto terico da autodestruio do esclarecimento, pai-ra sobre uma flagrante contrafao. "Les lumieres abusent les masses", como pro-clamou certa vez um jovem idelogo francs: escusado assinalar que esta enormi-dade no tem absolutamente nada a ver com a apresentao, no livro de Adornoe Horkheimer, daAufklrung em seu estado terminal como um "engodo de mas-sa". Neste caso, as "luzes" que ofuscam as massas so irradiadas pela dessublima-o repressiva da cultura produzida em escala industrial; ao passo que no outro,se trata pura e simplesmente da aclimatao francesa de um clich neoconserva-dor internacional, segundo o qual crtica em excesso, coisa de intelectual candi-dato a matre penseur, redunda em Estado policial. A inexistente Dialtica France-sa do Iluminismo seria essa fantasmagoria de intelectual s avessas acerca do vn-

    culo necessrio entre Terror e ponto de vista da Totalidade.Para os atuais defensores franceses da Modernidade redescoberta em boa

    parte na esteira dos seus doutrinrios alemes e nas condies em que se viu es-praiar a nova sensibilidade jurdico-moral dos anos 80 , a referida aproximaono vem ao caso, por razes de interpretao mas antes de tudo para fins ostensi-vamente apologticos. Assim procedem Luc Ferry e Alain Renaut, salvo enganoos nicos a encararem tal possibilidade, mas para descart-la como um falso libi.Depois de batizarem, como j mencionado, Pensamento 68 a Ideologia Francesa,reconhecem que o anti-humanismo, transformado em ponto de honra pela inteli-gncia francesa de vanguarda, pode de fato se escorar no inegvel desmoronamentodas grandes ideologias do progresso, flagradas acobertando as calamidades polti-cas do sculo, mas da a falar-se numa Dialtica das Luzes, s mesmo da parte dealgum mal-intencionado, no intuito de absolver o famigerado Pensamento 68, atri-

    buindo inclusive a incoerncia pragmtica dos seus promotores suposta nature-za do processo. No que no caiba a comparao, pelo contrrio, o recobrimen-to at exato demais a o problema. Alm de falsa, a idia mesma de uma Dial-tica da Ilustrao perversa, por lanar uma suspeita sem volta sobre a civilizaodas sociedades civilizadas etc. Sem dvida verdade, mas apenas meia verdade,que a universalidade prometida tomou o aspecto contrrio do eurocentrismo edo colonialismo (para no mencionar outras amenidades), que a organizao ra-cional da sociedade no exclui o fascismo, o genocdio bem administrado etc. Masda a desmoralizar-se a Europa e os valores ocidentais, a ordem democrtico-liberale a vida do esprito, s mesmo, mais uma vez, devido exterioridade do intelec-tual margem do universo democrtico, extraterritorialidade resultante de maisuma mascarada gentil, pois no se pode prescindir do oxignio liberalmente for-necido pelo mundo de que escarnece, sem o qual murcharia o ressentimento que

    lhe move a crtica etc. etc. No domnio do disparate convenhamos que a proezano pequena. Certo ou errado, o reconhecimento e exposio de uma "dialti-ca" inerente ao processo global daAufklrung tudo menos a expresso de um

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    ponto de vista exterior, no caso, caluniada ordem esclarecida do Ocidente. Senela as coisas no so o que so inclusive e sobretudo a prpria Ideologia Bur-guesa , trata-se justamente de uma fratura interna que s a crtica imanente po-de expor. Isso quanto ao modelo armado por Adorno e Horkheimer, desde ostempos em que o primeiro estudava o congelamento da revoluo musical deSchnberg e o segundo o niilismo das massas esclarecidas. Pouco importa. A no-va apologtica vai enfileirando, na qualidade de captulos de uma mesma e nefasta"desconstruo da modernidade", o ltimo Heidegger, a Crtica da Razo Instru-

    mental e, agora, a Ideologia Francesa sob o nome de Pensamento 68.

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    No iremos muito longe por esse caminho. Se existir de fato uma DialticaFrancesa do Iluminismo, da qual a Ideologia Francesa seria a um tempo expressotruncada e conforme, a chave para o seu reconhecimento e interpretao deveriaser procurada noutro terreno, alis local, porm sob o prisma da comparao, co-mo manda o raio de ao mundial do processo. Por enquanto algumas indicaesprovisrias.

    Ainda nesse caso a Alemanha referncia obrigatria, se verdade que apercepo por assim dizer congnita de um permanente balanceio "dialtico" nointerior da Aufklrung constitui a mais enftica e peculiar elaborao mental daposio em falso de um pas marcado pela defasagem histrica em suma, cujoprocesso de socializao no seguiu a trilha clssica do desenvolvimento capitalis-ta. Ora, a Dialtica do Esclarecimento vem a ser justamente a expresso cultural da Filosofia ao Classicismo Musical, passando pela formao do pensamentosociolgico moderno, sem falar nas hesitaes do Realismo Literrio da convi-vncia antinmica de dois sentimentos constitutivos de uma espcie de amlgamararo entre conscincia nacional infeliz e xtase ameaador de intelectual encasula-do. Por um lado, a intuio, nem sempre traduzida em idias claras e distintas,do elevado preo pago pela modernizao acelerada de uma sociedade que entre-tanto vinha se mantendo a despeito dos antagonismos herdados; por outro lado,a sensao imperativa do progresso necessrio a qualquer custo num pas "atrasa-do", sensao tanto mais intensa quanto a barbrie dos setores mais arcaicos dasociedade e da cultura ressaltam ainda mais sobre o fundo de uma racionalizaodesejvel e possvel30. Da o permanente p atrs diante dos Tempos Modernos,da direita jovem-conservadora ao Kulturpessimismus de esquerda.

    O modernismo reticente da sociologia weberiana do "desencantamento"do mundo tambm deve ser apanhado por esse ngulo. Sucede que depois de ali-mentar muita sociologia americana da modernizao, depois de ter definido emparte o rumo do marxismo ocidental nos anos 20, a famosa "gaiola de ferro" we-beriana acabou contagiando a imaginao tambm ambivalente dos idelogos fran-ceses. No por acaso Foucault arrumou um jeito de associar Weber sua Microf-sica do Poder. Ocorre que de fato a obra de Foucault, no obstante as flutuaesde um autor excessivamente permevel conjuntura (no eufemismo empregadopor um entrevistador benevolente), pode e deve ser revista por esse prisma hist-rico. O seu antiiluminismo s avessas acompanha como uma sombra a reconstitui-o, recontada tantas vezes quanto foram as maneiras de Foucault, dos ritos depassagem para o mundo moderno. Esse o verdadeiro assunto de Foucault, a tran-

    (30) Acompanhei umaformulao de Habermas.Como poderia terrecorrido a Lukcs ouAdorno, pois se trata deum esquema explicativoclssico na crtica alemmaterialista.

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    sio das sociedades tradicionais para a modernidade capitalista, esquadrinhadaporm nas formas atravs das quais conhecimento e modos de organizao socialse entrelaaram, mas de tal sorte que a nfase da dominao, que especifica a mar-cha do moderno na sociedade, recai antes de tudo na malha capilar da administra-o integral, e de modo apenas derivado na luta que se desenrola na esfera dasrelaes de produo. Sabe-se que Foucault negligenciava ostensivamente a do-minao de classe, o lugar do Estado no capitalismo moderno etc, mas nunca emfuno de generalidades ontolgicas acerca do Poder (como nos epgonos). Oupor outra, tirava por assim dizer concluses "abstratas" da transio do tradicio-nal para o moderno na histria europia. A sua maior novidade: contrapor g-nese categorial do campo filosfico moderno e seu iderio por ele mesmo batiza-do de histrico-transcendental uma espcie de fogo de barragem ultra-iluminista.Assim, em lugar de doutrinas alternativas, a desmoralizao pela sondagem insti-tucional do subsolo daquele horizonte carregado de promessas. Quando Foucaultembarcou, logo na primeira hora do Estruturalismo militante, no "discurso nega-tivo sobre o Sujeito", estava de fato reabrindo o processo da Modernidade, quena poca ainda no atendia por esse nome.

    Esquemas da sociologia weberiana daAufklrung "esclarecimento" emprogresso nas formas racionais de organizao das burocracias modernas e do agen-ciamento capitalista do processo de trabalho transparecem igualmente na idiafoucaultiana de que o Poder no uma instncia negativa mas produtiva, no caso,de domnios objetivos e rituais de verdade. Sabemos enfim no que consiste a "dia-ltica" weberiana da racionalizao moderna, apangio casual do Ocidente, da in-veno renascentista da perspectiva pictrica ao sistema tonal na msica, passan-do pela eficincia dos campos de extermnio bem planejados como qualquer em-preendimento econmico: como lembrado h pouco, a evaporao do "sentido"e da liberdade num mundo assim emancipado, expurgado dos fantasmas tutelaresda tradio31. Meio sculo depois, a percepo francesa dessa "dialtica" inver-teu a tonalidade da matriz weberiana reencontrada quase por instinto. Igualmentepresente, a circunstncia catalisadora de um pas a seu modo retardatrio, projeta-do com os traumas de praxe no brave new worldda ordem capitalista internacio-nal, sobretudo depois da falsa brecha de 68.

    Voltemos ento ao weberianismo de vanguarda de Foucault porm nas pa-lavras quase inocentes de um crtico americano, que cito por extenso tamanha

    a capacidade reveladora de seus arroubos futuristas. Depois de fustigar o eclipseps-moderno, sob o qual "toda uma gerao de refugiados dos anos 60 encon-trou um libi de dimenso histrica e mundial para o sentimento de passividadee desesperana que tomou conta de tantos de ns nos anos 70", e imaginar umainjeo de nimo base de "modernismos do passado" reanimados para este fim,trazendo em conseqncia novamente vida o "dinmico e dialtico modernis-mo do sculo XIX", Marshall Berman (creio que o leitor j o tinha reconhecido)detm-se por um momento na imagem foucaultiana da modernidade: "uma inter-minvel, torturante srie de variaes em torno dos temas weberianos do crcerede ferro e das inutilidades humanas (sic), cujas almas foram moldadas para se adaptars barras. Foucault est obcecado por prises, hospitais, asilos, por aquilo que Er-ving Goffman chamou de instituies totais [...] As totalidades de Foucault absor-vem todas as facetas da vida moderna. Ele desenvolve esses temas com obsessiva

    inflexibilidade e, at mesmo, com filigranas de sadismo, rosqueando suas idiasnos leitores como barras de ferro, apertando em nossa carne cada torneio dialti-co como mais uma volta do parafuso". Tirante a indignao bisonha diante do

    (31) Veja-se a notvelreconstituio do pen-samento weberiano noprimeiro volume da Teo-ria daAo Comunicati-va de J. Habermas.

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    "mais selvagem desrespeito" que Foucault reserva s "pessoas que imaginam serpossvel a liberdade para a humanidade moderna" um verdadeiro desacato, ou-trora condio do Progresso, hoje efeito cool de uma "vanguarda retroversa", comoHabermas qualificou a arquitetura ps-moderna exibida na Bienal de Veneza em1980 , pois parte essa miopia de velho-modernista, a observao que se segueatina em parte com ofrisson adicionado pelos franceses ao virtual porm confor-tvel colapso do projeto moderno. Acompanhando portanto o novo roteiro we-beriano de Foucault, "intil tentar resistir s opresses das injustias da vida mo-derna, pois at os novos sonhos de liberdade no fazem seno acrescentar maiselos cadeia que nos aprisiona; porm, assim que nos damos conta da total futili-dade disso tudo, podemos ao menos relaxar". Erro flagrante de personagem nagaleria dos idelogos franceses. No inteiramente falso aludir a esse abrandamentoda tenso moderna na concluso foucaultiana de que toda emancipao uma novaforma de sujeio, mas o referido "relaxamento" uma espcie de suspiro desa-fogado em plena alienao ser providncia especfica dos dsirants, cifradana revelao de que a forma-mercadoria generalizada no fundo um condutorde "intensidades" libidinais32. Novamente surrealismo em clima festivo de fim delinha. Nessa vertente torna-se ainda mais flagrante o abismo que separa a velha-guarda frankfurtiana da reviravolta afirmativa do ps-estruturalismo, atribuda es-ta ltima por Lyotard a uma percepo mais afinada da marcha batida do capitalis-mo, evidentemente grafado com k: "nous avons sur Adorno l'avantage de vivredans un kapitalisme plus nergique, plus cynique, moins tragique. II met tout enreprsentation".

    Mas antes de passarmos aclimatao cnica daAufklrung, rebatida no seugrau zero dialtico, ainda uma observao a respeito do vanguardismo weberianode Foucault. No sei se de caso pensado, na sua apresentao de conjunto do ps-modernismo como "lgica cultural do capitalismo avanado", Fredric Jameson,no s atribuiu ao ps-estruturalismo americanizado a formao do gnero arre-vesado "Theory", como tambm retoma, sem no entanto citar, a glosa de Mar-shall Berman do mote foucaultiano do Superpoder, nos seguintes termos: uma vi-so como esta, centrada num sistema total absolutamente onipresente, parece tersido talhada para incutir no leitor um sentimento da mais insanvel impotncia;com isso, tanto mais ganha o "theorist" quanto mais carrega na imagem da suamquina infernal, est claro que na exata medida da paralisia do leitor aterroriza-do porm sem dvida siderado de estesias. (Lembremo-nos da descrio do supl-cio de Damiens.) Costuma-se apresentar o cenrio ps-moderno, nele includa a"teoria" francesa, como um palco iluminado a non sobre o qual se desenrolaa coreografia vaporosa de figurantes que teriam deixado para trs a aspirao tipi-camente moderna, configurada no nimo produtivo da alienao, pela vida semmedo. No bem assim, se verossmil a derivao que se acabou de assinalarna origem de um dos estratagemas ps-modernos de anestesia. De fato um casode "racionalizao do estado inquietante da realidade", como disse certa vez Hork-heimer noutra circunstncia. O efeito retrico produzido pela escrita genealgicade Foucault vem de longe, embora cool trai sua filiao jovem-conservadora so-bretudo na inteno de produzir calafrios in vitro, alis um propsito especifica-mente moderno, esse de se tornar "existencialmente desprotegido, assustando-sea si mesmo", na frmula de Gnther Anders. Efeito que os idelogos francesespediro estilizao da retrica tardia das situaes-limite. Desabusados e blasspor trs sculos de esclarecimento, no ser sem algum artifcio que puxaro uma"transgresso" como outrora seus antepassados alemes, uma "angstia".

    (32) Cf. Peter Dews, Logicof Desintegration, ed. cit.,p. 167; cf. igualmenteManfred Frank, "TheWorld as Will andRepresentation: Deleuze'sand Guattaris Critic of

    Capitalism as Schizo-Analysis and Schizo-Discourse", in Telos, N57, 1983.

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    Ao contrrio do que pensam tanto os consternados advogados alemes dacausa moderna, quanto os americanos deslumbrados como novos-ricos do boomdesconstrucionista, os idelogos franceses no so os campees da contra-ilustrao. Pelo menos desde que se entenda por Iluminismo tambm aquilo queele sempre foi, ou melhor, o processo histrico atravs do qual ele vem se trans-formando naquilo que de fato : a irresistvel expanso soberana do sujeito semtutela e sem limites. No sei de melhor reconhecimento involuntrio desse fatodo que esta singela tirada de Jacques Bouveresse contra Foucault: "o mais esclare-cido (clair) e avanado pensamento de hoje de fato suprimiu os derradeiros res-tos de idealismo (sic) que poderiam tornar desejvel e concebvel uma transfor-mao qualquer da realidade social na direo dos ideais humanitrios (sic) herda-dos daAufklrung'. Deve ser sem dvida acabrunhante redescobrir que a to de-cantada Ilustrao ( esquerda e direita, tanto pelos promotores da ressurreioda Esfera Pblica quanto pelos idelogos do capitalismo ps-industrial) justa-mente esse movimento de bscula no seu contrrio.

    Digamos que a Ideologia Francesa seja um caso terminal de "cinismo ilus-trado". Esta ltima expresso forjou-a seu autor no s no intuito de marcar oencontro da Ilustrao com os seus limites, e por a divertir-se s custas dos bonssentimentos daAufklrerei, mas tambm no de assinalar a presena descarada doEsclarecimento no seu Outro33. Noutras palavras: sobre a "dimenso transgres-sora" do Sobrinho de Rameau pois ele o cnico em questo no por acasorealada nas pginas clebres que lhe dedicou Foucault na Histria da Loucura,tambm se reflete a imagem cnico-utilitria dos clculos libertinos do Marqusde Sade. Desnecessrio relembrar o lugar central ocupado pelos escritos de Sadena fantasia especulativa de Bataille, Blanchot, Klossowski etc, isto , numa dasprincipais fontes da Ideologia Francesa. Tambm intil frisar que era na sua maistrivial acepo que Marshall Berman se referia ao "sadismo" das anlises de Fou-cault, acertando no obstante em cheio no seu ncleo essencial de pense clairemovida a "torneios dialticos". De fato, ningum mais desabusado. Da o brvidod'horrore com que os alemes acompanharo a volta do pndulo, do mundo des-mitologizado para a barbrie sedutora do mito. Mas para os franceses j se trataapenas de Literatura.

    Pode-se sem dvida dizer, carregando no duplo sentido muito bem dosa-do do termo, que a Ideologia Francesa nasceu, cresceu e prosperou sombra doIluminismo34. Na primeira hora do Estruturalismo, o que foi a liquidao da "vi-vncia" dos fenomenlogos seno uma operao assassina de "esclarecimento"?E em cujo sarcasmo era impossvel deixar de reconhecer mais de um trao do fa-migerado ricanementde dois sculos atrs. Replicando na poca acusao de"abstrao" ainda pecado mortal no fim de um perodo que principiara rumandoao "concreto" , Foucault se comprazia em afetar a reao do homem de cinciadiante das efuses sentimentais do Humanismo: "todos esses gritos do corao,todas essas reivindicaes da pessoa humana, da existncia, so abstratas, querdizer, separadas do mundo cientfico e tcnico, que, esse sim, o nosso mundoreal". A cincia em questo era evidentemente a de Lvi-Strauss, em particular amaneira pela qual o ponto de vista da Antropologia Estrutural ia demolindo o "sen-tido" laboriosamente procurado e reconstrudo por um Sartre no deserto moder-no, a demonstrao de que ele no era mais do que "um efeito de superfcie, uma

    (33) Cf. Rubens RodriguesTorres Filho, Ensaios deFilosofia Ilustrada, SoPaulo, Brasiliense, 1987,pp. 53 ss.

    (34) Outra frmula deRubens Rodrigues TorresFilho, op. cit., p. 53.

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    reverberao, uma espuma". Essa a tonalidade ultra-iluminista dos anos 60, bemconhecida porm raramente chamada pelo seu verdadeiro nome. Note-se entoque o primeiro Foucault reativou com a maior naturalidade o dtourcaractersti-co do Iluminismo histrico, salientado pginas atrs, a saber, passar por estrangei-ro em sua prpria terra, ao transpor o ponto de vista do etnlogo para o exame tambm na acepo ilustrada do termo do mundo moderno surpreendidono seu nascedouro, transformando assim em lngua morta a gramtica da moder-nidade to encarecida pela atual teoria alem. Tambm j mencionei o passo se-

    guinte nessa direo, no rumo do esclarecimento total, as metamorfoses franco-alems do sempre enaltecido (pelos idelogos)pathos da distncia, dos moralistasfranceses seiscentistas at sua reverso pela galxia Nietzsche de hoje. Podemosprecisar um pouco mais agora.

    Censurava-se na abstrao do Estruturalismo sobretudo a frieza com quecongelava o calor da existncia concreta etc. Sem dvida frieza de um esprito ana-ltico que casava bem com o epistemologismo imperante na poca, mas igualmen-te expresso de uma outra paixo predominante naquele tempo em que o rigorostensivamente alegado dava o tom, no jargo do perodo, a "paixo pelo Con-ceito". Essa a verdadeira vocao da inteligncia que ento se contrapunha "te-pidez mole dos compromissos". Porm uma paixo fria, como costumava dizerFoucault. A a novidade, enfatizada pelos prprios protagonistas da temporada quese abria: a reinveno dafroideurilustrada, sem a qual no seria possvel falar maldo homem, mas tampouco a constituio de um sujeito sem tutela. Nos primeirostempos da Ideologia Francesa o novo intelectual precisava apresentar-se como umser frio e sistemtico, e por tabela, um arquiinimigo da "vida interior" como Sar-tre poderia ento mais facilmente passar por lacrimejante. Frieza de quem calculae se controla, equilibrando paixes e interesses conforme madrugava o capitalis-mo, mas igualmente, no outro extremo, frieza de intelectual "desencantado", de-capitando sem anestesia toda a aura das significaes vividas, cujas razes Merleau-Ponty, este sim adversrio confesso da Ilustrao, das suas platitudes e venenos,porfiava por desentranhar das dobras do corpo prprio, na gama incomensurveldas expresses do "metafsico no homem". Alm do mais, um gelo de vanguarda,conforme ficou sugerido acima. O achado reside na transgresso froid. No ha-vendo mais nada a profanar como reconhecia Foucault dando um balano naherana de Bataille inaugurava-se outro ritual, o da transgresso sem contedo,

    por isso mesmo mais cintilante na forma vazia da sua prpria-ausncia etc. Ummosaico de frmulas que aos poucos iro definindo a Literatura, assim mesmo commaiscula e sem nenhum outro qualificativo que lhe comprometa a pureza do gestoradical e instituinte.

    Por enquanto apenas o registro de que a redescoberta da froideuriluminis-ta pela Ideologia Francesa indissocivel da trajetria da vanguarda literria ps-surrealista35. Uma vanguarda branca no corao da Dialtica Francesa do Ilumi-nismo, cujo diagrama justamente essa alternncia espiralada de esclarecimentosem resto e transgresso estetizante. Amaciado por uma conjuntura de amoleci-mento, ainda um espasmo do modernismo histrico. Com o tempo e a travessiado Atlntico, acabaria desempenhando dois papis para os quais no havia ensaia-do: espantalho pop a servio da chantagem neo-ilustrada e ideologia do "ps-moderno". verdade que nesse meio tempo a Frana ps-68, mais uma vez na

    sua carreira de modernizaes abortadas, promovia uma nova arrancada na tenta-tiva de ser moderna, (continua)

    (35) Como foi observadode passagem por A.Honneth, "Foucault etAdorno", Critique, n471-472, 1986, pp.802-803.

    Paulo Eduardo Arantes professor do Departa-mento de Filosofia daFFLCH da USP. J publi-cou nesta revista "Idiasao Lu" (n 25).

    Novos EstudosCEBRAP

    N 28, outubro 1990pp. 74-98

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