artigo saúde rogério gesta leal

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A QUEM COMPETE O DEVER DE SAÚDE NO DIREITO BRASILEIRO? ESGOTAMENTO DE UM MODELO INSTITUCIONAL WHO IS RESPONSIBLE FOR THE RIGHT TO HEALTH IN BRAZIL? DEPAUPERATION OF A INSTITUTIONAL MODEL Rogério Gesta Leal ( * ) RESUMO O presente ensaio aborda o tema do direito à saúde no Brasil e os âmbitos de responsabilidades que lhe dizem respeito, considerando as rela- ções entre quem necessita acessá-lo e quem deve prestá-lo, a partir de uma perspectiva sistêmico-constitucional. ABSTRACT This paper approaches the question of the right to health in Brazil and its levels of responsibilities, considering the relationship between who needs to access this right and who must guarantee it. The discussion is carried within a constitutional and systemic perspective. Palavras-chave Constituição; Dignidade da Pessoa Humana; Direito à Saúde; Res- ponsabilidade Alimentar. Keywords Alimentary Responsibility; Constitution; Dignity of Human Being; Right to Health. (*) Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito, professor titular da Universidade de Santa Cruz do Sul, professor colaborador da Universidade Estácio de Sá, professor visitante da Università Túlio Ascarelli — Roma Trè, Universidad de La Coruña — Espanha, e Universidad de Buenos Aires. E-mail: <[email protected]>. Recebido em 3.10.07. Aprovado em 10.11.07. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 9, n. 1 p. 50-69 Mar./Jun. 2008

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Artigo - Direito À Saúde - Gesta Leal

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    A QUEM COMPETE O DEVER DE SADE NO DIREITO BRASILEIRO?ESGOTAMENTO DE UM MODELO INSTITUCIONAL

    WHO IS RESPONSIBLE FOR THE RIGHT TO HEALTH IN BRAZIL?DEPAUPERATION OF A INSTITUTIONAL MODEL

    Rogrio Gesta Leal(*)

    RESUMOO presente ensaio aborda o tema do direito sade no Brasil e os

    mbitos de responsabilidades que lhe dizem respeito, considerando as rela-es entre quem necessita acess-lo e quem deve prest-lo, a partir de umaperspectiva sistmico-constitucional.

    ABSTRACT

    This paper approaches the question of the right to health in Brazil andits levels of responsibilities, considering the relationship between who needsto access this right and who must guarantee it. The discussion is carriedwithin a constitutional and systemic perspective.

    Palavras-chave

    Constituio; Dignidade da Pessoa Humana; Direito Sade; Res-ponsabilidade Alimentar.

    Keywords

    Alimentary Responsibility; Constitution; Dignity of Human Being; Rightto Health.

    (*) Desembargador do Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito, professortitular da Universidade de Santa Cruz do Sul, professor colaborador da Universidade Estcio de S,professor visitante da Universit Tlio Ascarelli Roma Tr, Universidad de La Corua Espanha, eUniversidad de Buenos Aires. E-mail: . Recebido em 3.10.07. Aprovado em 10.11.07.

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    INTRODUO

    O presente ensaio pretende abordar o tema do direito sade comodireito social fundamental e os limites esgotados do modelo estatal de suaprestao, ao menos no mbito exclusivo da responsabilidade institucionalda Fazenda Pblica. Para tanto, mister que se faa uma avaliao daestrutura normativa do direito sade no Brasil, a partir de algumas matrizestericas da Teoria da Constituio, para em seguida avaliar as condies epossibilidades de ser compartilhado tal direito com outros sujeitos de direito,notadamente os familiares, haja vista o espectro ampliado que se tem hojedo conceito de obrigao alimentar. Neste ponto, impor-se- o dilogo neces-srio e construtivo de institutos do direito privado (constitucionalizados) cominstitutos do direito pblico (projetados ao mbito dos direitos subjetivos).

    I. A MATRIZ NORMATIVA DO DIREITO SADE NO BRASIL: UMAPERSPECTIVA LUZ DA TEORIA DA CONSTITUIO

    O tema da sade pblica, constitucionalmente, vem definido comodireito de todos e dever do Estado (aqui entendido em todas as suas dimen-ses federativas, ou seja, Unio Federal, Estados-Membros, Municpios etc.) art.196 , devendo ser garantida mediante polticas pblicas sociais eeconmicas comprometidas reduo do risco de enfermidades e de ou-tros agravos(1).

    O que est em debate aqui, pelos termos do prisma constitucional, oque se pode chamar de uma das dimenses do mnimo existencial digni-dade da vida humana: a sade. Enquanto princpio fundante de todo o siste-ma jurdico a iniciar pelo constitucional , a vida humana digna espelhae se vincula ao iderio poltico, social e jurdico predominante no pas, aomesmo tempo em que, na condio de princpio fundamental, em face desua caracterstica de aderncia, opera sobre os comportamentos estatais ouparticulares de forma cogente e necessria. Por tais razes: a) todas asnormas do sistema jurdico devem ser interpretadas no sentido mais concor-dante com este princpio; b) as normas de direito ordinrias desconformes constituio e seus princpios fundacionais (dentre os quais o da dignidadeda vida humana), no so vlidas(2).

    Justifica-se tal postura em face de que a sade, como condio depossibilidade da dignidade da pessoa humana, em verdade, passa a cons-

    (1) LEAL, Rogrio Gesta. A efetivao do direito sade por uma jurisdio Serafim: limites epossibilidades. In: LEAL, Rogrio Gesta; REIS, Jorge Renato dos. Direitos sociais e polticaspblicas: desafios contemporneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. v. 6, p. 1525.(2) Neste sentido ver o texto de HESSE, Konrad. A fora normativa da Constituio. Porto Alegre:Fabris, 2001. p. 39.

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    tituir um indicador constitucional parametrizante do mnimo existencial(3),porque se afigura como uma das condies indispensveis construo deuma Sociedade livre, justa e solidria; garantia do desenvolvimento nacio-nal; erradicao da pobreza e da marginalizao, bem como reduodas desigualdades sociais e regionais; promoo do bem de todos, sempreconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas dediscriminao.

    Na verdade, estes postulados esto dispersos ao longo de todo o TextoPoltico, consubstanciando-se nos direitos e garantias fundamentais, indivi-duais e coletivos, nos direitos sociais, nos direitos educao, sade, previdncia etc. Por sua vez, os poderes estatais e a prpria sociedade civil(atravs da cidadania ou mesmo de suas representaes institucionais) es-to relacionados a estes indicadores norteadores da Repblica, eis que elesvinculam todos os atos praticados pelos agentes pblicos e pela comunida-de, no sentido de v-los comprometidos efetivamente com a implementaodaquelas garantias.

    Se isto verdade, qualquer poltica pblica no Brasil tem como funonuclear a de servir como esfera de intermediao entre o sistema jurdicoconstitucional (e infraconstitucional) e o mundo da vida republicana, demo-crtica e social que se pretende instituir no pas. Em outras palavras, pormeio de aes estatais absolutamente vinculadas/comprometidas com osindicadores parametrizantes de mnimo existencial previamente delimita-dos, que vai se tentar diminuir a tenso entre validade e faticidade que envol-ve o Estado e a Sociedade Constitucional e o Estado e a Sociedade Real noBrasil(4).

    Isto leva a crer na existncia daquilo que chamamos de polticas pbli-cas constitucionais vinculantes, aqui entendidas como aes que o TextoPoltico atribui aos poderes estatais, e comunidade como um todo, comoefetivadoras de direitos e garantias fundamentais, e todas as decorrentesdelas, haja vista os nveis compartidos de responsabilidades entre as entida-des federativas brasileiras e a cidadania envolvendo a matria. Consideran-do ainda no existirem normas constitucionais despossudas de concreono sistema jurdico ptrio(5), resulta claro que a responsabilidade de queestamos falando aqui , diferenciadamente, pr-ativa dos que tm tal res-ponsabilidade, merecendo imediata implementao.

    (3) Argumento desenvolvido em LEAL, Rogrio Gesta. Estado, Sociedade e administrao pblica:novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.(4) H uma reflexo bastante interessante sobre as incoerncias da operacionalidade do sistemacapitalista, notadamente em economias demasiadamente dependentes, em UNGER, RobertoMangabeira. Democracy realized. New York: Verso, 1998.(5) Direo em que caminha a melhor doutrina constitucional do pas, ex vi o percuciente trabalhode STRECK, Lnio Luis. Jurisdio constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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    De outro lado, as aes pblicas, voltadas densificao material des-te direito de todos (sade), integram um sistema nico em todo o pas (art.198,CF/88), financiado com recursos do oramento da seguridade social, daUnio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, bem como deoutras fontes.

    No mbito do dever pblico para alcanar os meios necessrios preservao da sade, o que temos de ter em conta, a uma, so os critriosutilizados para determinar quem efetivamente necessita do auxlio do Esta-do para prover suas demandas a este ttulo e quem no precisa, o que deplano se sabe no existir ao menos em numerus clausulus, porque imposs-vel a matematizao desta questo em face de sua natureza complexa emutvel. A duas, quem responsvel por tal mister. Assim que cada casoenvolvendo prestao de sade pblica submetido ao Estado merecedorde uma apreciao e ponderao em face de, no mnimo, duas variveisnecessrias: a) a varivel normativa-constitucional e infraconstitucional, en-quanto direito fundamental assegurado sociedade brasileira; b) a varivelresponsabilidade institucional e familiar dispostas na estrutura normativaconstitucional e infraconstitucional brasileira.

    Da porque aferir, primeiro, a natureza axiolgico-constitucional domandamento normativo sob comento, tendo cincia que ele se dirige a todaa comunidade, e no a uma parcela dela (os mais doentes, aqueles quepossuem enfermidades letais, que necessitam de farmacolgicos curativosetc.). Em segundo, de que forma o sistema jurdico atribui responsabilidadesenvolvendo esta matria.

    Significa dizer que, quando se fala em sade pblica e em mecanis-mos e instrumentos de atend-la, mister que se visualize a demanda sociale universal existente, no somente a contingencial submetida aferioadministrativa ou jurisdicional, isto porque, atendendo-se somente aquelesque acorrem de pronto ao poder pblico (Executivo ou Judicial), pode-secorrer o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos aquelesque ainda no tomaram a iniciativa de procurar o socorro pblico, por abso-luta falta de recursos para faz-lo(6).

    Se a administrao pblica no construiu critrios razoveis e ponde-rados para escalonar minimamente o atendimento cada vez mais massivode perquiries envolvendo o oferecimento de medicamentos, internaeshospitalares, tratamentos mdico-ambulatoriais e cirurgias populao ca-

    (6) Alm disto, preciso lembrar que the Courts are not well positioned to oversee the trickyprocess of efficient resource allocation conducted, with more or less skill, by executive agencies,nor are they readily able to rectify past misallocations. Judges do not have the proper training toperform such functions and they necessarily operate with inadequate and biased sources ofinformation. ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional law in the age of balancing. Yale LawJournal, n. 96, p. 982, 1987.

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    rente, ento isto dever ser feito na esfera da judicializao do debate, aomenos naqueles casos em que a periclitao da vida tal que se impe estainterveno, pois, caso contrrio, a satisfao de um problema imediatopoder inviabilizar centenas de outros to importantes e legtimos quantoeste, haja vista que os recursos financeiros e materiais para tanto so finitos e ainda sem falar dos demais responsveis por tal mister.

    Para tal raciocnio, utilizamos aqui o que Konrad Hesse chama de prin-cpio da concordncia prtica ou da harmonizao, o qual impe ao intrpretedo sistema jurdico que os bens constitucionalmente protegidos, em caso deconflito ou concorrncia, devem ser tratados de maneira que a afirmaode um no implique o sacrifcio do outro, o que s se alcana na aplicao ouna prtica do texto(7). Tal princpio parte exatamente da noo de que no hdiferena hierrquica ou de valor entre os bens constitucionais; destarte, oresultado do ato interpretativo no pode ser o sacrifcio total de uns em detri-mento dos outros. Deve-se, na interpretao, procurar uma harmonizao ouconcordncia prtica entre os bens constitucionalmente tutelados.

    Numa perspectiva integrada do sistema jurdico, ainda com Hesse, naresoluo dos problemas jurdico-constitucionais deve-se dar prioridade sinterpretaes ou pontos de vista que favoream a integrao poltica e soci-al e possibilitem o reforo da unidade poltica, porquanto essas so as fina-lidades precpuas da Constituio.

    A partir de tais consideraes que a matria vertente precisa serenfrentada, ponderando os bens jurdicos que esto em jogo e que deman-dam abordagem soluo do caso: o bem jurdico vida do cidado, envol-vendo a molstia de que est acoimado, correlato ao dever do Estado e dafamlia para com a sade pblica; o bem jurdico sade pblica de toda asociedade para com quem este mesmo Estado possui o dever de tutela.

    H que se estabelecer, aqui, um juzo de ponderao destes bens,valores, interesses e competncias, para se chegar a alguma concluso.Para tanto, vale-se de critrios constitucionalmente consagrados delimita-o dos ndices de fundamentalidade desses direitos, a saber, aqueles quedensificam o princpio da proporcionalidade dentre eles.

    Na dico de Robert Alexy, o princpio da proporcionalidade desdo-bra-se em trs aspectos fundamentais: a) adequao; b) necessidade (ouexigibilidade); c) proporcionalidade em sentido estrito. A adequao signifi-ca que o intrprete deve identificar o meio adequado para a consecuo dosobjetivos pretendidos. A necessidade (ou exigibilidade) significa que o meio

    (7) HESSE, Konrad, op. cit., p. 119. Fala o autor, aqui e na verdade, da tese de que, na interpre-tao constitucional, deve-se dar primazia s solues ou pontos de vista que, levando em contaos limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualizao de suas normas,garantindo-lhes eficcia e permanncia constante.

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    escolhido no deve exceder os limites indispensveis conservao dos finsdesejados. A proporcionalidade em sentido estrito significa que o meio esco-lhido, no caso especfico, deve se mostrar como o mais vantajoso para apromoo do conjunto de valores, bens e interesses em jogo(8).

    A partir de tais elementos de interpretao dos possveis sentidos esignificados do direito sade no Brasil, importante que se perquira seefetivamente o Estado o nico garantidor/concretizante destas prerrogativas.

    preciso, para tanto, chamar colao aqui a Teoria da Constituio,a fim de que se possa compreender, por bvio, que a partir de uma eleitamatriz terica fundante, o que implica reconhecer o direito sade comodireito fundamental no sistema jurdico brasileiro. Neste ponto, pode-se di-zer, com Alexy, que tal direito se apresenta com posio de tal modo impor-tante que a sua garantia, ou no garantia, no pode ser deixada simplesmaioria parlamentar contingencial(9). Ademais disto, afigura-se tambm comouma posio jurdico-prestacional, j que envolve aes concretas para via-bilizar o acesso e a concretizao de seus comandos normativos.

    Todavia, na dico de Canotilho, preciso sobre tais direitos nos darconta de que:

    Acresce que o facto de se reconhecer um direito vida como direitopositivo a prestaes existenciais mnimas, tendo como destinatrioos poderes pblicos, no significa impor como o Estado deve, primafacie, densificar este direito. Diferente do que acontece no direito vidana sua dimenso negativa no matar , e na sua dimenso positiva impedir de matar , aqui, na segunda dimenso, positiva, existe umrelativo espao de discricionariedade do legislador (dos poderes p-blicos) quanto escolha do meio (ou meios) para tornar efectivo odireito vida na sua dimenso existencial mnima.(10)

    Adverte o autor portugus, com acerto, que aquele espao de discriciona-riedade no , entretanto, total, haja vista que existem determinantesconstitucionais heternomas que esto a vincular os poderes institudos (comoa dignidade da vida humana, por exemplo).

    (8) ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constituciona-les, 2000. p. 126. Mais adiante, o autor alemo faz questo de frisar que h algumas circunstnciasfticas que devem informar as possibilidades das aes estatais prestacionais em nvel de direitossociais, como o da sade, a saber: quando imprescindveis ao princpio da liberdade ftica (latosenso entendida); quando o princpio da separao dos poderes, bem como outros princpiosatinentes aos direitos fundamentais de terceiros forem atingidos de forma relativamente diminuta.op. cit., p. 469. Ver tambm o excelente trabalho de BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderao,racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Da mesma forma ver oconjunto de artigos postos no livro de BARROSO, Luis Roberto. A nova interpretao constitucio-nal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.(9) ALEXY, Robert. op. cit., p. 406 e ss.(10) CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: CoimbraEd., 2004. p. 58.

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    De qualquer sorte, o direito sade, enquanto direito fundamentalconstitucionalizado, dever do Estado, em primeiro plano, que a todos garan-tido, configura-se como verdadeiro direito subjetivo, outorgando fundamentopara justificar o direito a prestaes, mas que no tem obrigatoriedade comoresultado de uma deciso individual(11). Diz-se direito subjetivo prima faciepelo fato de que, conforme ainda Canotilho, no possvel resolv-lo emtermos de tudo ou nada(12), e tambm pelo fato de constiturem, numa certamedida e na dico de Dworkin, direitos abstratos, isto porque representam:

    Finalidades polticas generales cuyo enunciado no indica de qu ma-nera se ha de comparar el peso de esa finalidad general con el deotras finalidades polticas, en determinadas circunstancias, o qu com-promisos se han de establecer entre ellas. Los grandes derechos de laretrica poltica son abstractos en este sentido. Los polticos hablan dederecho a la libertad de expresin, a la dignidad o a la igualdad, sin dara entender que tales derechos sean absolutos, y sin aludir tampoco asu incidencia sobre determinadas situaciones sociales complejas.(13)E por que no se pode resolver tal matria em termos de tudo ou

    nada? Pelo fato de que ela envolve um outro universo de variveis mltiplase complexas, a saber: disponibilidade de recursos financeiros alocados

    (11) Nossos Tribunais ainda no conseguiram uniformidade sobre tal percepo do direito sade;no entanto, o Supremo Tribunal Federal j teve oportunidade de afirmar que se trata este direito dedireito pblico subjetivo, no podendo ser reduzido promessa constitucional inconseqente Agravo Regimental no RE n. 271.286-8/RS. De igual sorte a deciso do Superior Tribunal de Justiaque asseverou que os direitos fundamentais vida e sade so direitos subjetivos inalien-veis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrtico de Direitocomo o nosso, que reserva especial proteo dignidade da pessoa humana, h de superarquaisquer espcies de restries legais REsp. 836913/RS; Recurso Especial n. 2006/0067408-0,1 Turma, Relator Min. Luiz Fux, julgado em 08.05.2007, publicado no Dirio de Justia de 31.05.2007p. 371.(12) Aduz Canotilho que: A questo da reserva do possvel (Vorbehalt des Mglichen), da ponde-rao necessria a efectuar pelos poderes pblicos (Abwgung) relativamente ao modo comogarantir, com efectividade, esse direito (optimizao das capacidades existentes, alargamento dacapacidade, subvenes a estabelecimentos alternativos) conduz-nos a um tipo de direito primafacie a que corresponde, por parte dos poderes pblicos, um dever prima facie. CANOTILHO, JosJoaquim Gomes. op. cit., p. 66. Ver neste sentido a reflexo de SARLET, Ingo. Eficcia dos direitosfundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, notadamente na p. 304, em que o autorsustenta estar esta reserva do possvel parametrizada por trs variveis, a saber: a) dizendo coma efetiva disponibilidade ftica dos recursos efetivao dos direitos fundamentais; b) dizendo coma disponibilidade jurdica dos recursos materiais e humanos, que guarda ntima conexo distribui-o das receitas e competncias federativas (tributrias, oramentrias, legislativas e administra-tivas); c) dizendo com a proporcionalidade da prestao, em especial no tocante sua exigibilidadee razoabilidade.(13) DWORKIN, Ronald. Tomando los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1989. p. 162. Denominao autor de direitos concretos son finalidades polticas definidas con mayor precisin de manera queexpresan ms claramente el peso que tienen contra otras finalidades en determinadas ocasiones.Num texto mais recente (DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Massachussets: Harvard Univer-sity Press, 2006), o autor americano ratifica esta sua assertiva.

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    preventivamente, polticas pblicas integradas em planos plurianuais e emdiretrizes oramentrias, medidas legislativas ordenadoras das receitas edespesas pblicas etc. Todas estas condicionantes, por sua vez, encontram-se dispersas em diferentes atores institucionais, com competncias e auto-nomias reguladas tambm pela Constituio.

    Decorre daqui a tese de que a garantia de um padro mnimo desegurana social no pode afetar de forma substancial outros princpios ouinteresses constitucionais igualmente relevantes, assim que, somente quandoa garantia material do padro mnimo em direito social (previamente delimi-tada como prioritria em termos de sociedade) estiver efetivamente sendoameaada no caso concreto, que se poder levar a cabo uma necessriaponderao de interesses em face da potencial restrio de bens jurdicos fundamentais ou no colidentes com tais demandas ou pretenses.Caso contrrio, dever-se- buscar a plena integrao mantenedora da inco-lumidade normativa e concretizao de todos os bens jurdicos tuteladospelo sistema jurdico(14).

    Ocorre que, como referiu o Superior Tribunal de Justia no Brasil, arealizao dos direitos econmicos, sociais e culturais alm de caracteri-zar-se pela gradualidade de seu processo de concretizao depende, emgrande medida, de um inescapvel vnculo financeiro subordinado s possi-bilidades oramentrias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetiva-mente, a incapacidade econmico-financeira da pessoa estatal, desta nose poder razoavelmente exigir, considerada a limitao material referida, aimediata efetivao do comando fundado no texto da Carta Poltica(15).

    por esta razo que doutrinadores como Ingo Sarlet so incisivos aoafirmar que o Estado conta com apenas delimitada capacidade de disporsobre o objeto das prestaes reconhecidas pelas normas definidoras dedireitos fundamentais sociais, de tal sorte que a questo da limitao dos

    (14) Ver o texto de SARLET, Ingo, op. cit., p. 371, oportunidade em que adverte acertadamente oautor que, com isso, traou-se um claro limite ao reconhecimento de direitos originrios a prestaessociais, de tal sorte que, mesmo em se tratando da garantia de um padro mnimo (no qual a perdaabsoluta da funcionalidade do direito fundamental est em jogo), o sacrifcio de outros direitos noparece ser tolervel.(15) bem verdade que, nesta mesma deciso, manifestou-se o STJ no sentido de reconhecer queno se mostrar lcito, no entanto, ao Poder Pblico, em tal hiptese mediante indevida manipu-lao de sua atividade financeira e/ou poltico-administrativa criar obstculo artificial que reveleo ilegtimo, arbitrrio e censurvel propsito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimen-to e a preservao, em favor da pessoa e dos cidados, de condies materiais mnimas deexistncia. Cumpre advertir, desse modo, que a clusula da reserva do possvel ressalvada aocorrncia de justo motivo objetivamente afervel no pode ser invocada, pelo Estado, coma finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigaes constitucionais, notadamentequando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificao ou, at mesmo, aniqui-lao de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. REspn. 811608/RS; Recurso Especial n. 2006/0012352-8, 1 Turma, Relator Min. Luiz Fux, julgado em15.05.2007, publicado no DJ 04.06.2007 p. 314.

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    recursos constitui um certo limite ftico efetivao desses direitos. De outrolado, o Estado tambm deve ter a capacidade de dispor destes recursospara o cumprimento daqueles direitos(16).

    O problema que, historicamente, no Brasil, at em face das particu-laridades de excluso social, miserabilidade e fragilizao de sua cidadania,o Estado chamou para si, de forma concentrada, um universo de atribuiescom carter protecionista, paternalista e assistencialista, promovendo aespblicas de sobrevivncia social no mbito notadamente da sade, compoucas polticas preventivas, educativas e de co-gesto com a sociedade dosdesafios daqui decorrentes, induzindo a comunidade a uma postura letrgi-ca e de simples consumidora do que lhe era graciosamente presenteado,sem nenhuma reserva crtica ou constitutiva de alternativas das mazelaspelas quais passava e ainda vive.

    O cenrio hoje , todavia, diferente, a uma, pelos nveis de inclusosocial construdos no pas nos ltimos quinze anos, propiciando cenriosmateriais e formais de maior participao da cidadania na gesto de seucotidiano; a duas, em face do processo descentralizador da governana ins-titucional que nestes ltimos tempos vem ocorrendo, ensejando a aberturagradativa dos poderes institudos e da administrao pblica dos interessescoletivos(17).

    Mesmo em tal quadro, a relao Estado x Sociedade ainda marcadasignificativamente por graus de dependncia hierrquica e alienada da se-gunda para com o primeiro, provocando o que Canotilho chama de introver-so estatal da socialidade, ou seja:

    1. os direitos sociais implicam o dever de o Estado fornecer as presta-es correlativas ao objeto destes direitos; 2. os direitos sociais postu-

    (16) SARLET, Ingo, op. cit., p. 303. Mais tarde, vai afirmar Ingo que: o que a Constituio assegura que todos tenham, em princpio, as mesmas condies de acessar o sistema pblico de sade,mas no que qualquer pessoa, em qualquer circunstncia, tenha um direito subjetivo definitivo aqualquer prestao oferecida pelo Estado ou mesmo a qualquer prestao que envolva a proteode sua sade, (p. 347 da mesma forma na p. 376). Na mesma direo ver o texto de BOYNTON,Brian. Democracy and distrust after twenty years: elys process theory and constitutional law from1990 to 2000. Stanford: Stanford University Press, 2005. p. 51 e ss.(17) O assunto tratado em LEAL, Rogrio Gesta. Estado, administrao pblica e sociedade:novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. Talvez se possa dizer que, emverdade, toda uma concepo de Estado que entra em mutao a partir daquele perodo histrico,caracterizado por seus matizes mais sociais e compromissados com o restabelecimento de equi-lbrios necessrios em face das diferenas gritantes e desestabilizadoras de uma ordem mnima decivilidade. Isto no implica um nico modelo de Estado Social, mas vrios, eis que se formam oracom vis mais paternalista e assistencialista (tal qual o modelo de Estado Getulista no Brasil), ora comfeies mais curativas e compensatrias (tal qual o Welfare State e o Ltat dProvidence), oracom natureza de classe social (tal qual o Estado Sovitico). Ver tambm o texto LEAL, RogrioGesta. O Estado-Juiz na democracia contempornea: uma perspectiva procedimentalista. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2007, e tambm o texto de SANDULLI, Armando Mantinni. Stato didiritto e Stato sociale. Napoli: Giappichelli, 2004.

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    lam esquemas de unilateralidade, sendo que o Estado garante e pagadeterminadas prestaes a alguns cidados; 3. os direitos sociais eli-minam a reciprocidade, ou seja, o esquema de troca entre os cidadosque pagam e os cidados que recebem, pois a mediao estatal dis-solve na burocracia prestacional a visibilidade dos actores e a eventualreciprocidade da troca.(18)

    Sustenta o autor, corretamente, que j tempo de se descobrir oscontornos da reciprocidade concreta e do balanceamento dos direitos sociais,at porque tais direitos envolvem patrimnio de todos quando de sua opera-cionalidade e concreo e, j que a todos so dirigidoa tais prerrogativas,deve-se perquirir sobre a quota-parte de cada um neste mister, sob pena deconstituirmos o que o jurista lusitano denomina de uma aproximao abso-lutista ao significado jurdico dos direitos sociais, ou seja, confiar na simplesinterpretao de normas consagradoras de direitos sociais para, atravs deprocedimentos hermenuticos, deduzir a afetividade dos mesmos direitos,produzindo resultados pouco razoveis e racionais.

    preciso levar em conta que todo e qualquer exerccio de direito socialcomo a sade, em tese, custa dinheiro e no pouco em nenhuma partedo mundo. Assim que Peter Hberle, na primeira metade da dcada de1970, j formulava a idia da reserva das caixas financeiras para o atendi-mento de direitos sociais prestacionais, com o objetivo de, exatamente, evi-denciar o fato de que estes direitos esto tambm vinculados s reservasfinanceiras do Estado, na medida em que devessem ser custeados peloErrio(19).

    Claro est que o simples argumento da escassez de recursos doscofres pblicos no pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais,muito menos os relacionados sade, eis que diretamente impactantes emface da vida humana e sua dignidade mnima, e por isto estaro sujeitos aocontrole jurisdicional para fins de se aferir a razoabilidade dos comporta-mentos institucionais neste sentido, devendo inclusive ser aprimorados osparmetros, variveis, fundamentos e a prpria dosimetria concretizante dodireito em xeque.

    (18) CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, op. cit., p. 102.(19) HBERLE, Peter. Grunderecht im Leistungstaat. VVDSTRL, n. 30, 1972. Neste ponto concor-da Canotilho, quando assevera que: Parece inequvoco que a realizao dos direitos econmicos,sociais e culturais se caracteriza: (1) pela gradualidade da realizao; (2) pela dependncia financei-ra relativamente ao oramento do Estado; (3) pela tendencial liberdade de conformao do legisladorquanto s polticas de realizao destes direitos; (4) pela insusceptibilidade de controlo jurisdicionaldos programas poltico-legislativos a no ser quando se manifestem em clara contradio com asnormas constitucionais, ou transportem dimenses manifestamente desrazoveis. Reconhecer es-tes aspectos no significa a aceitao acrtica de alguns dogmas contra os direitos sociais. Op.cit.,p.108. Ver o texto de GALDINO, Flvio. Introduo teoria dos custos dos direitos: direitos nonascem em rvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

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    No se afigura simples, pois, trazer-se colao argumentos do tipoprincpio da no reversibilidade das prestaes sociais, ou o princpio daproibio da evoluo reacionria, como frmulas retricas e mgicas parapoder garantir, a qualquer preo que nem se sabe o qual , tudo o que forpostulado por segmentos da comunidade (indivduos) em termos de sade,pelo simples fato de que o Estado est obrigado a tanto, isto porque odesafio da bancarrota da previdncia social, o desemprego duradouro, pa-recem apontar para a insustentabilidade do princpio da no reversibilidadesocial(20).

    verdade que este estado de coisas tem como um dos fundamentos ofato de que o catlogo de diretos econmicos, sociais, e culturais, forjadonos dois ps-guerras do Sculo XX, compromissados com a reconstruodo prprio tecido social, elevou mxima exausto as expectativas de podere ao dos poderes institudos em prol de tais demandas, acreditando quepoderiam dar concreo a tudo isto sozinhos, causando o que Arthur chamade vitimizao do Estado por seu prprio sucesso(21).

    Todas estas crises identificadas, ainda no plano do diagnstico, nosignificam a descrena total no Estado como espao pblico de gesto deinteresses coletivos, mas, to-somente, no Estado instituio tradicional,concebido a partir e exclusivamente de seu locus insulado e tecno-burocr-tico de fala oficial, unilateral e arbitrariamente imposto a uma cidadaniaainda mais expectadora dos acontecimentos.

    Ento, qual a sada para um cenrio como este em que as forasprestacionais do Estado de Bem-Estar se esmorecem em face de crisesglobais de recursos naturais e econmicos (ora concentrados demasiada-mente, ora fragilizados demasiadamente)?

    Concordando com Sunstein, the mainly issues here involve the matterof the competence limits of the State in front off the rights, and if that Statecould involve itself in privates relations, as well as which the limits of that

    (20) CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes, op. cit., p. 112. Ver no Brasil, uma boa abordagem dotema em DERBLI, Felipe. Proibio de retrocesso social: uma proposta de sistematizao luz daConstituio de 1988. In: A RECONSTRUO democrtica do direito pblico no Brasil. Rio deJaneiro: Renovar, 2007. p. 433 e ss.(21) ARTHUR, John. The unfinished Constitution: philosophy and constitutional practice. Belmont:Wadsworth Publishing Company, 1989. p. 118 e ss. Com base nesta crtica, adverte o autor queuma cidadania social se conquista no atravs da estatizao da socialidade, mas atravs dacivilizao da poltica (a social citizenship is not conquered through the nationalization of the sociality,but through the civilization of the politics). Ao lado disto, para no conhecer de sua ineficinciaou fracasso, o Estado prefere, em algumas oportunidades, negar a existncia de inmerastenses sociais que se avolumam sem respostas satisfativas, ou ainda, lan-las clandestinida-de ou ilicitude, tratando-as como anomalias comportamentais que precisam ser severamentecoagidas, tais como os movimentos dos sem-terra, dos sem-teto, a questo dos parcelamentosclandestinos do solo urbano, a violncia generalizada, a prostituio, o narcotrfico etc.

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    State performance(22), e tais questes precisam ser bem apreendidas, sobpena de se inviabilizar de vez quaisquer polticas pblicas de gerenciamentode demandas sociais coletivas.

    II. POSSIBILIDADES DE COMPARTILHAMENTO FAMILIARDO DEVER DE SUSTENTO SADE

    No momento em que a Constituio Federal de 1988 dispe, em seuart. 196, que a sade direito de todos e dever do Estado, garantindo medi-ante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doenae de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e serviospara sua promoo, proteo e recuperao, no h como negar que taldever relacional e condicionado garantia de acesso universal e igualit-rio (a todos) das aes consectrias nesta direo. Isto significa, salvo me-lhor juzo, que qualquer poltica pblica ou ao preventiva e curativa, neces-sitam levar em conta a demanda global que envolve tais interesses, sobpena de atender uns e desatender muitos.

    Da que prope-se uma leitura mais integrada deste dever estatal paracom o universo que ele alcana, ou seja, direito social da populao comoum todo que envolve, inclusive, co-responsabilidades societais importantes(constitucionais e infraconstitucionais). Por exemplo: a) do dever da famlia(da Sociedade e do Estado) em assegurar criana e ao adolescente, comabsoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, aolazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda aforma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade eopresso(23); b) os pais tm o dever de assistir, criar e educar os filhos meno-res, e os filhos maiores tm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice,carncia ou enfermidade(24); c) a famlia (a Sociedade e o Estado) tem odever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participao na co-munidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o di-reito vida(25).

    Com tal perspectiva j se pde asseverar que a prestao alimentarno deva subsistir at os 21 anos, mas, estender-se, com base no princpio

    (22) SUNSTEIN, C.; HOLMES, S. The cost of rights: why liberties depends on taxes. New York:Macmilann, 2004. p. 90. Ver igualmente o texto de BEN-DOR, Oren. Constitutional limits and thepublic sphere. Oxford: Hart Publishing, 2007 em especial a partir da p. 95 (The role of the People indetermining Constitutional Limits).(23) Art. 227, da Constituio Federal de 1988.(24) Art. 229, da Constituio Federal de 1988.(25) Art. 230, da Constituio Federal de 1988.

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    da solidariedade familiar, alm da maioridade(26). Como o Novo Cdigo CivilBrasileiro reduziu para dezoito anos o comeo da maioridade, com maiorrazo este entendimento se justifica(27).

    Mesmo no plano da infraconstitucionalidade, temos como deveres fa-miliares (notadamente entre os cnjuges), dentre outros, a mtua assistn-cia e o sustento dos filhos, sendo que eles so obrigados a concorrer, naproporo de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento dafamlia e a educao dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial(28).Ao lado disto, ainda de se ressaltar que podem os parentes, os cnjuges oucompanheiros, pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem paraviver de modo compatvel com a sua condio social, nos termos do art.1.694, do Novo Cdigo Civil Brasileiro(29). Veja-se que, quando faltam nestedever, os familiares podem ser enquadrados inclusive nas disposies doart.244, do Cdigo Penal, que disciplina:

    Deixar, sem justa causa, de prover a subsistncia do cnjuge, ou de filhomenor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendenteinvlido ou maior de 60 (sessenta) anos, no lhes proporcionando osrecursos necessrios ou faltando ao pagamento de penso alimentciajudicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, desocorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.(30)

    Mesmo nas situaes em que as famlias se desconstituem, fenmenoacelerado em nossa poca, a legislao infraconstitucional confirma o dis-posto no Texto Poltico de 1988, ao assegurar que o cnjuge responsvelpela separao judicial prestar ao outro, se dela necessitar, a penso que

    (26) In RT 698/156; 727/262.(27) Neste sentido, ver o texto de SANTOS, Luiz Felipe Brasil. Os alimentos no Novo Cdigo Civil.Revista Brasileira de Direito de Famlia, n. 16, p. 12, jan./mar. 2003. Neste texto, o autor lembra quea extenso e a caracterstica da reciprocidade da obrigao alimentar encontram-se previstas nosarts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris, o que j dispunham os arts. 397 e 398, do Cdigo de1916. Assim, a obrigao alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes,depois aos descendentes e, por fim, aos irmos, assim germanos como unilaterais (art. 1.697).Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou descendente, no h limitao de grau, ao passoque na colateral resta limitada ao grau mais prximo (irmo). Em cada linha, sempre os maisprximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a obrigao alimentar dos parentesmais remotos subsidiria e complementar. Isto , vem depois da dos mais prximos e limita-se acompletar o valor que por estes possa ser prestado.(28) Consoante as disposies dos arts.1.566 e 1.568, ambos do Novo Cdigo Civil Brasileiro. Vero texto de OLIVEIRA, Jos Lamartine; MUNIZ, Francisco Jos Ferreira. Direito de famlia (direitomatrimonial). Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 1990.(29) Uma discusso mais ampla desta perspectiva pode ser encontrada em: VENOSA, Slvio deSalvo. Direito civil: direito de famlia. So Paulo: Atlas, 2002. p. 365; RODRIGUES, Silvio. Direitocivil. So Paulo: Saraiva, 2002. v. 6. p. 427; GONALVES, Carlos Roberto. Direito civil: direito defamlia. So Paulo: Saraiva, 2002, v. 2. p. 139.(30) Redao dada pela Lei n. 10.741, de 01.10.2003, DOU de 03.10.2003, com efeitos a partirde 90 dias da publicao. A pena prevista aqui deteno, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, deuma a dez vezes o maior salrio mnimo vigente no Pas, consoante a redao dada pela Lei n.5.478, de 25.07.1968.

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    o juiz fixar, sendo que para manuteno dos filhos, os cnjuges, separadosjudicialmente, contribuiro na proporo de seus recursos. Para assegurar opagamento da penso alimentcia, o juiz poder ainda determinar a consti-tuio de garantia real ou fidejussria, ou mesmo que a penso consista nousufruto de determinados bens do cnjuge devedor. Ainda, a obrigao deprestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor(31).

    Dentre outras questes que poderiam causar espcie nesta reflexo a que diz com a ampliao cada vez maior do conceito de obrigao alimen-tar e seus liames de responsabilidade parental.

    De certa forma a doutrina e jurisprudncia brasileiras tm operadomuito bem na direo de demarcar um conceito de alimentos conforme Constituio, ou seja, atenta para o fato de que o direito a alimentos devecorresponder no somente ao indispensvel para a subsistncia, mas tam-bm ao que for necessrio para o alimentando viver de modo compatvelcom sua condio social(32).

    Mesmo na processualstica a definio dos contornos conceituais dealimentos vem sofrendo profunda ampliao, exatamente para cumprir comque designa a norma civil (art.1.694, e seguintes, do NCCB), no sentido de quesejam fixados na proporo das necessidades do reclamante e dos recursosda pessoa obrigada, conforme disciplina Talamini: O sentido constitucional dealimentos, portanto, vai necessariamente alm do direito de famlia: abrangeindenizaes, penses, salrios e outras verbas desde que esssencial-mente destinadas ao sustento do titular do crdito.(33)

    Por esta razo que o Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande doSul j teve oportunidade de asseverar que deve a obrigao alimentar serfixada de modo a incluir, tambm, valores gastos pela alimentada com sa-de, no se mostrando possvel a escolha do plano de sade que ser pagopelo alimentante, bem como devendo ser retirada a condenao do alimen-tante ao pagamento de multa pela sua no incluso em referido plano(34).

    (31) Consoante disposies dos arts.19, 20, 21 e 23, da Lei n. 6.515/77.(32) TJPE AgRg 93939-5/01 Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo DJPE 29.10.2003. Namesma direo os trabalhos clssicos de GONALVES, Luiz da Cunha. Princpios de direito civilluso-brasileiro. So Paulo: Max Limonad, 1951. p. 1.287; BORDA, Guilhermo A. Manual de derechode famlia. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2002. p. 403. De igual forma as decises jurisprudenciaisantigas e recentes no pas: RE n. 102877, STF, 2 T., Rel. Min. DJACI FALCO, j. 14.09.1984;REsp 184807/SP, STJ, 4 T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, j. 24.09.2001.(33) TALAMINI, Eduardo. Priso civil e penal e execuo indireta a garantia do Art. 5, LXVII, daConstituio Federal. Revista de Processo, So Paulo, v. 92, n. 3, p. 37-51, out./dez. 1998. Nestadireo refora SPENGLER, Marion. Fabiana. Alimentos da ao execuo. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2002, que quando se discute a verba alimentar, sempre imprescindvelatentar para o fato de que no se trata de uma obrigao simples, mas uma obrigao compeculiaridades, pois diz respeito manuteno do ser humano.(34) Apelao Cvel n. 70007665268, Oitava Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator:Antnio Carlos Stangler Pereira, julgado em 20.05.2004.

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    Nos termos da responsabilidade dos avs paternos ou maternos, a juris-prudncia interativa no sentido de que a obrigao alimentar (1.696, doCCB), somente se justifica se restar comprovado que os genitores no possu-em condies financeiras de suprir as necessidades do alimentando, dada anatureza subsidiria e complementar de tal obrigao. Vale dizer, o ordena-mento jurdico ptrio impe aos parentes o encargo alimentar de forma suple-tiva, uma vez esgotada a possibilidade dos principais obrigados em prest-los.

    Para facilitar o cumprimento de tais obrigaes alimentares, o CdigoCivil Brasileiro de 2002, reitera o princpio da divisibilidade da obrigaoalimentar, carreando a cada devedor, de mesmo grau de parentesco, a res-ponsabilidade pelo pagamento de sua quota-parte da dvida, que ser fixadapreviamente, segundo as suas possibilidades financeiras (art. 1.698).

    Sequer a maioridade do alimentando, tem sido razo de afastamentodo dever alimentar, eis que

    O instituto dos alimentos entre parentes compreende a prestao doque necessrio educao independentemente da condio demenoridade, como princpio de solidariedade familiar. Pacificou-se najurisprudncia o princpio de que a cessao da menoridade no causa excludente do dever alimentar. Com a maioridade, embora ces-se o dever de sustento dos pais para com os filhos, pela extino dopoder familiar (art. 1.635, III), persiste a obrigao alimentar se com-provado que os filhos no tm meios prprios de subsistncia e neces-sitam de recursos para a educao.(35)

    Em face disto, se se toma que o dever alimentar no solidrio, masdivisvel, em caso de ao judicial para concretiz-lo, a ao deve, em tese,ser proposta contra todos os co-responsveis, visando, com isso, a delimitar aparcela de responsabilidade de cada qual na dvida. Diz a doutrina especializa-da que, em tese, a ao dever ser ajuizada contra todos os co-responsveispela obrigao alimentar, porque, do contexto extrado do art. 1.698, este su-posto dever , na realidade, uma faculdade do credor de alimentos(36).

    Est-se falando, em verdade, tambm do dever de solidariedade que aConstituio Brasileira de 1988 impe a estas relaes, chamando res-ponsabilidade de cada qual para que contribuam na formao de uma soci-edade justa e democrtica, condio de possibilidade de uma Repblica eEstado de Direito.

    Impe-se, agora, a volta ao tema da natureza constitucional dos deve-res da famlia para com seus pares, em especial no mbito da sade, objeto

    (35) Comentrio ao art. 1.694, do Novo Cdigo Civil, feito por SILVA, Regina Beatriz Tavares da.Novo Cdigo Civil comentado. So Paulo: Saraiva, 2002. p. 1503.(36) WELTER, Belmiro Pedro. Alimentos no Cdigo Civil. So Paulo: Saraiva, 2004. p. 240-241.

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    desta abordagem, em especial no que tange Constituio Estadual do RioGrande do Sul de 1989, no seu art. 241, que dispe sobre a sade em seuterritrio, a partir, por certo, da dico da Constituio Federal de 1988, asse-verando que:

    Art. 241. A sade direito de todos e dever do Estado e do Municpio,atravs de sua promoo, proteo e recuperao.Pargrafo nico. O dever do Estado, garantido por adequada polticasocial e econmica, no exclui o do indivduo, da famlia e de institui-es e empresas que produzam riscos ou danos sade do indiv-duo ou da coletividade.O Estado do Rio Grande do Sul introduziu em sua Constituio a parti-

    cipao do indivduo e de sua famlia no custeio da sade pblica, sendoque, com base nestes pressupostos, foi editada a Lei RS n. 9.908/93, deter-minando que o poder pblico estadual deve fornecer medicamentos especiaisou excepcionais aos seus cidados, desde que comprovem o seu estado decarncia e tambm de sua famlia:

    Art. 2 O beneficirio dever comprovar a necessidade do uso de medi-camentos excepcionais mediante atestado mdico.Pargrafo nico. Alm do disposto no caput deste artigo, o beneficiriodever comprovar por escrito e de forma documentada, os seus rendi-mentos, bem como os encargos prprios e de sua famlia, de formaque atestem sua condio de pobre.Este parmetro normativo apresenta-se como condio de possibili-

    dade da prestao de medicamentos excepcionais, mas pode servir pararegulamentar o fornecimento de medicamentos normais? E o que distingueum frmaco normal em face de um excepcional?

    A Constituio Estadual do Rio Grande do Sul precisa ser interpretadaconforme Constituio Federal, no sentido de ratificar este sentido solida-rstico que chama responsabilidade a famlia para contribuir na mantenado sistema republicano e federativo de sade, dando sua quota-parte, sejaela qual for, na medida de sua possibilidade e diante da necessidade doparente enfermo.

    Como se far isto em nvel de demandas judiciais que envolvem aprestao de medicamentos, internaes hospitalares etc.? Por via simtrica respeitadas sempre a urgncia e especificidades da matria forma eprova judiciria que instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivao deobrigaes alimentares, oportunizando e reivindicando a demonstrao danecessidade do enfermo e a possibilidade de contribuio para o atendi-mento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como referncia osvnculos parentais estatudos pelo prprio sistema jurdico, a saber:

    A extenso e a caracterstica da reciprocidade da obrigao alimentarencontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris,

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    o que j dispunham os arts. 397 e 398, do Cdigo de 1916. Assim, aobrigao alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aosascendentes, depois aos descendentes e, por fim, aos irmos, assimgermanos como unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta,seja ascendente ou descendente, no h limitao de grau, ao passoque na colateral resta limitada ao grau mais prximo (irmo). Em cadalinha, sempre os mais prximos em grau devem ser chamados emprimeiro lugar, sendo a obrigao alimentar dos parentes mais remotossubsidiria e complementar. Isto , vem depois da dos mais prximos elimita-se a completar o valor que por estes possa ser prestado.(37)

    CONCLUSES

    Com Canotilho, chegada a hora dos constitucionalistas se daremconta dos limites da jurisdio e reconhecer, com humildade, que a Consti-tuio j no o lugar do superdiscurso social, levando em conta que aeventual coliso de discursos reais de aplicao da Constituio tero de sersupervisionados a partir de colises de valores ideais (a vida, a segurana, aintegridade fsica, a liberdade, a sade de todos e no de alguns) que inte-gram o justo de uma comunidade bem ou mal ordenada(38).

    Assim, o direito sade no pode se concretizar, ou pelo menos nose concretiza somente por meio de uma poltica constitucional, eis que esta, prima facie, uma projeo imperativa sobre rgos constitucionais doEstado das contingncias de vrias esferas da sociedade.

    Partindo do pressuposto de Boaventura de Souza Santos(39), que tanto asociedade democrtica como o Estado Democrtico s se justificam a partir doreconhecimento de suas naturezas multiformes e abertas, constituindo-se am-bos num campo de experimentao poltica emancipadora, permitindo quediferentes solues institucionais e no-institucionais coexistam e compitamdurante algum tempo, com carter de experincias-piloto, sujeitas monitoriza-o permanente de organizaes sociais, com vista a proceder a avaliaocomparada dos seus desempenhos(40) e levando em conta aquelas polticasconstitucionais, o envolvimento de toda a comunidade se faz necessrio con-creo dos direitos em geral, e do direito prestacional sade em especial.

    (37) SANTOS, Luiz Felipe Brasil, op. cit.(38) CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. op. cit., p. 129. Ver igualmente o excelente texto deBURT, Robert A. The constitution in conflict. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 81 e ss.(39) SANTOS, Boaventura de Sousa. Reivindicar a democracia: entre o pr-contratualismo e o ps-contratrualismo. In PAOLI, Maria Clia Pinheiro Machado (Org). Os sentidos da democracia:polticas do dissenso e hegemonia global Petrpolis/RJ: Vozes, 1999. p. 126.(40) Criando, por exemplo, mecanismos de acompanhamento e avaliao permanente das institui-es (Executivo, Judicirio, Legislativo), tanto no mbito do controle interno (a ser maximizadocom estratgias e instrumentos de visibilidade plena de suas aes), como do externo (comconselhos corporativos e populares, mais os tradicionais j existentes).

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    Esta nova forma de um possvel Estado e sociedade democrticosdeve se assentar em dois princpios de experimentao laboratorial:

    O primeiro de que o Estado s genuinamente experimental namedida em que s diferentes solues institucionais so dadas iguaiscondies para se desenvolverem segundo a sua lgica prpria. Ouseja, o Estado experimental democrtico na medida em que confereigualdade de oportunidades s diferentes propostas de institucionali-dade democrtica. S assim a luta democrtica se converte verdadei-ramente em luta por alternativas democrticas. S assim possvellutar democraticamente contra o dogmatismo democrtico. Esta expe-rimentao institucional que ocorre no interior do campo democrticono pode deixar de causar alguma instabilidade e incoerncia na aoestatal e pela fragmentao estatal que dela eventualmente resultepodem sub-repticiamente gerar-se novas excluses.(41)

    O segundo princpio adotado pelo pensador portugus, com o qualconcordamos e aqui queremos aplicar, deixa muito clara a importncia queo Estado tem ainda na constituio de uma gesto pblica compartida dodireito sade (e dos direitos fundamentais em geral), pois que deve servirde garantia no s da igualdade de oportunidades aos diferentes projetos deinstitucionalidade democrtica, mas tambm de padres mnimos de inclu-so, que tornem possvel a cidadania ativa participar, monitorar, acompanhare avaliar o desempenho dos projetos alternativos. Estes padres so indis-pensveis para transformar a instabilidade institucional em campo de delibe-rao democrtica.

    Neste ponto, est certo Tribe(42), ao afirmar que la Costituzione non uno specchio in cui ognuno vede quello che vuole, n un documento affidatoalle sempre mutevoli suelte politiche dei suoi interpreti. suo compito creareuna nazione attraverso le parole e, pertanto, debe godere del pi ampioconsenso fra i cittadini consociati.

    Em face de tudo isto, precisa-se urgentemente encontrar uma formade contemporizar to diferentes desafios no mbito do direito sade, par-tindo do pressuposto de que tal mister incumbe a todos e no somente aalguns.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional law in the age of balancing. YaleLaw Journal, n. 96, 1987.

    (41) SANTOS, Boaventura. op. cit. p.127.(42) TRIBE, Laurence H.; DORF, Michael C. Leggere la Costituzione. Roma: Il Mulino, 2005. p.

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