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LARISSA VELOSO O menino e o mundo, o terceiro cinema e a morte dos vagalumes Artigo acadêmico realizado para o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),  para a disciplina de Teoria do Cinema 2, ministrada pela professora Nina Velasco. RECIFE 2015

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LARISSA VELOSO

O menino e o mundo, o terceiro cinema e a morte dos

vagalumes

Artigo acadêmico realizado para ocurso de Cinema e Audiovisual daUniversidade Federal de Pernambuco (UFPE),

 para a disciplina de Teoria do Cinema 2,ministrada pela professora Nina Velasco. 

RECIFE

2015

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Resumo: Este artigo pretende traçar um olhar sobre o filme de animação brasileira O

menino e o mundo (2014), de Alê Abreu, relacionando-o com algumas das ideias econceitos desenvolvidos sobre o terceiro cinema, bem como com a morte dos

vagalumes desenvolvida por Pasolini. Além disso, mostrar o quanto a escolha de umanarrativa sem diálogos e de uma estética texturizada da imagem contribuem para umamaior difusão de sua mensagem crítica.

Palavras-chave: Animação. Olhar. Terceiro cinema. Imagem crítica.

Abstract: This article intends to cast a look over the brazilian animation film O menino

e o mundo (english: The boy and the world, 2014) from Alê Abreu, connecting it of theideas and concept developed about the third cinema as well as the death of fireflies developed by Pasolini. Besides that, show how much the choice of a dialogue-lessnarrative and of a textualized aesthetic of the image contribue to a greater diffusion ofits critical message.

Keywords: Animation. Outlook. Third cinema. Critical image.

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Entre os anos 50 e 60, em plena Guerra Fria, o mundo ainda se encontrava

dividido entre as duas grandes potências econômicas dos Estados Unidos e da antiga

URSS (o Primeiro e o Segundo Mundo, respectivamente). Os demais países que não

faziam parte desses dois blocos, os “países pobres” e subdesenvolvidos, começaram 

então a ser chamados de países do Terceiro Mundo. Essa denominação, de certo modo

eufemística e atenuante, servia para trazer uma ideia de “unidade” entre eles. Assim, os

 países Latino-Americanos, bem como os países da África  –   cujas culturas são tão

distintas entre si –  recebiam todos o título de países terceiro-mundistas. E no campo das

artes, consequentemente, isso não foi diferente. Em se tratando do campo

cinematográfico, os filmes que faziam parte do chamado Terceiro Cinema possuíam

conteúdos e estéticas diferentes daqueles originados de Hollywood. Os temas tratados

 por esses filmes, em sua maioria, eram relacionados com a pobreza e as opressões

sociais, bem como a vida urbana nas grandes metrópoles, marcadas pela violência e

miséria. A partir dos anos 80, no entanto, começou-se a questionar a validade do termo

Terceiro Mundo. A própria queda do Muro de Berlim, por exemplo, que de certa forma

simboliza a dissolução das ideias de Primeiro e Segundo Mundo, proporcionou o

questionamento a respeito do uso desses termos. (PRYSTHON, 2006)

É a partir dessas discussões sobre as estéticas e os conteúdos tratados nos filmesdo chamado Terceiro Cinema que este artigo pretende fazer uma relação com o filme O

menino e o mundo (2014), animação brasileira dirigida por Alê Abreu. Embora

cronologicamente fora do período dos grandes debates sobre a utilização do termo

Terceiro Mundo, ainda é possível traçar um paralelo entre o filme em questão e as

características do que se designou como sendo o Terceiro Cinema, visto que “alguns

cineastas e teóricos ainda usam o termo [...] para se referir ao cinema dos países não

desenvolvidos ou ao cinema feito às margens da estética hollywoodiana” (PRYSTHON, 

2006, p. 80) A narrativa do filme, então, trata da história de um menino, inicialmente

vivendo com seu pai e sua mãe numa pequena casinha no campo, que de repente se vê

diante das mais diversas realidades quando passa a conhecer o mundo longe de casa. O

 pai, cuja necessidade de ir procurar emprego na cidade grande o faz ir embora, é a todo

o momento lembrado pelo garoto saudoso. E é a partir do encontro do menino com

essas realidades, estas antes desconhecidas por ele, que o filme irá construir sua

mensagem crítica aos diversos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea: o

contraste social entre patrões e trabalhadores, por exemplo, assim como a substituição

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destes últimos pelas novas máquinas e a impossibilidade desses trabalhadores de

comprar o produto final do qual fizeram parte da confecção são algumas das

 problemáticas abordadas pelo filme. 

Dotado de uma linguagem simples, na qual a história é narrada somente através

das imagens e dos sons, O menino e o mundo dispensa diálogos. Em poucos trechos, no

entanto, há sons referentes às falas de alguns personagens, mas eles são totalmente

incompreensíveis. Além disso, as palavras dos anúncios e propagandas, bem como os

números que nos aparecem são todos deformados de alguma forma. Todos destituídos

da identidade de uma língua específica (o português) para, então, se tornarem símbolos

de uma linguagem universal (a dos grandes anúncios do mundo capitalista, por

exemplo). A letra da música que compõe a trilha sonora do filme, composta pelo rapperEmicida, é tocada ao contrário para que suas palavras também se tornem indecifráveis.

Essa escolha pela ausência dos diálogos e pelo uso de palavras incompreensíveis serve

 para universalizar a mensagem crítica presente no filme.

Além disso, O menino e o mundo  também possui uma textura da imagem

 bastante interessante e diferenciada das que geralmente são utilizadas nas grandes

animações digitais hollywoodianas, marcadas por um caráter comercial. Dispensando

grandes aparatos tecnológicos, o filme aposta na simplicidade da animação em 2D,

utilizando algumas imagens feitas em computador ao mesmo tempo em que usa

desenhos feitos em giz de cera e colagens de jornais e revistas, por exemplo. É possível

 perceber, em diversos momentos, esse caráter texturizado da imagem. As marcas do giz

nos saltam aos olhos, por exemplo, na cena em que o menino está sentado com seu pai

olhando o horizonte do crepúsculo. As colagens, em outro momento, nos aparecem

através dos produtos que são vendidos numa espécie de feira. Além disso, há uma cena

específica do filme, na qual é mostrado o desmatamento de imensas áreas florestais, em

que aparecem imagens de arquivo filmadas. E é dessa forma que as imagens do filme

são compostas, sendo caracterizadas pela união entre essas várias técnicas distintas. A

escolha por essa forma de animação, levando em conta o contexto da narrativa, é mais

um dos artifícios usados por Alê Abreu para se distanciar das estéticas comumente

utilizadas nesse tipo de filme. Ele aposta na materialidade da imagem, que de certa

forma aproxima o espectador da narrativa, para utilizá-la, também, como uma posição

crítica em relação à  forma, visto que ele não busca o realismo digital das animaçõescontemporâneas.

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 Figura 1: Textura do giz de cera Figura 2: Colagens

O menino e o mundo, dessa forma, apresenta a personagem principal como umgaroto que, inicialmente numa condição de inocente perante a realidade do mundo, aos

 poucos vai perdendo essa inocência ao ser confrontado com os diversos problemas que

afligem a sociedade para, por fim, entender as cruéis relações de poder que regem o

mundo contemporâneo. Em relação a essa inocência, o cineasta e escritor italiano

Pasolini se posiciona:

A inocência é um erro, a inocência é uma falta, compreendes? E osinocentes serão condenados, pois não têm mais o direito de sê-lo. [...]Eu não posso perdoar aquele que atravessa com o olhar feliz doinocente as injustiças e as guerras, os horrores e o sangue.(PASOLINI, 1967-1969 apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 23)

É por isso, então, que o menino é apresentado ao mundo real, para perder essa

inocência imperdoável   e tomar consciência da realidade. Se se prestar atenção o

suficiente, é possível perceber que o personagem que o guia pelos mais diversos lugares

é ninguém menos que ele próprio adulto. Como se, através do contato com seu próprio

ser já crescido, destituído dessa inocência, o menino fosse tirado de sua condição

alienada. Enquanto o garoto vive em sua aldeia, tudo lhe parece lindo e harmonioso: as

 paisagens naturais e os animais, por exemplo, convivem em paz uns com os outros. No

entanto, quando ele se vê diante da vida nos grandes centros urbanos, nos quais a

agitação da vida moderna se faz presente, a realidade lhe aparece de forma brutal: as

 jornadas desumanas de trabalho, as grandes máquinas substituindo os trabalhadores e

fazendo-os perder o emprego, o caos da cidade em meio ao trânsito, os ônibus e metrôs

lotados de pessoas com aparência triste e cansada, dentre outros.

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Ora, Pasolini insiste em nos dizer: esta é a realidade, nossa realidadecontemporânea, esta realidade política tão evidente que ninguém quervê-la pelo que ela é, mas que “os sentidos” do poeta - esse vidente,esse profeta - acolhem tão fortemente. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.38). 

Ou seja, assim como o poeta, cujos olhos já não guardam mais essa inocência

 perante o mundo, a criança protagonista do filme, ao despir seu olhar de certa alienação 

e enxergar o mundo tal qual ele é, consegue perceber a crueldade “[d]esta [...] nossa

realidade contemporânea” que, nas palavras de Didi-Huberman, mais se assemelha a um 

“pesadelo”.  E para isso, o filme se utiliza das cores e dos sons para mostrar os

antagonismos entre a vida na grande metrópole e a vida no campo. Este último é sempre

representado com cores vivas e variadas, bem como com sons suaves e agradáveis,

enfatizando a harmonia presente nesse espaço. Já o ambiente urbano é marcado por

cores escuras e pesadas, além de sons agressivos. E o que traz vida ao cotidiano da

cidade é o grande povo, com suas cores e músicas, que deixa seu rastro vivaz ao passar.

Por fim, o contexto das guerras aflorou diversas discussões em torno da

realidade do mundo e das artes. Assim como na Guerra Fria os debates e discussões se

voltaram sobre o Terceiro Mundo e, por extensão, sobre o Terceiro Cinema; no ano de

1941, sob o horror da Segunda Guerra Mundial, Pasolini escreveu uma carta para um

amigo seu de adolescência, Franco Farolfi, onde declarou a morte dos vagalumes. Para

ele, estes seriam, no âmbito da guerra e do fascismo italiano, uma metáfora para todos

aqueles seres que resistem. No entanto, Pasolini acreditava que o pior tipo de fascismo

não era o fascismo histórico da Itália, comandado por Mussolini, e sim o novo

“fascismo” do consumo. E o problema, como afirmou o cineasta italiano, não está na

escuridão, visto que esta deixa ainda mais visível a lucciole dos pirilampos. O que os

faz desaparecerem é a luz (luce) ofuscante do “fascismo” presente nos estádios de

futebol e nas televisões, por exemplo. (DIDI-HUBERMAN, 2011) E nesse ponto,

 podemos fazer uma relação entre o que foi dito por Pasolini e a animação O menino e o

mundo. Há uma cena do filme em que o “menino” já adulto chega cansado em casa,

depois de um dia exaustivo na cidade grande, acompanhado dele mesmo criança. Os

dois sentam-se ao sofá e a televisão está ligada. No entanto, nada do que se passa na TV

acrescenta algo à vida dos dois. Ela mostra, apenas, desenfreadamente, diversas

 propagandas e anúncios, numa jorrada de “luzes” ofuscantes. Há também outra cena em

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que os dois personagens estão passando por um estádio de futebol: todas as luzes

noturnas da cidade, somadas com a dos fogos de artifício saídos do estádio são como a

grande luce enunciada por Pasolini, luzes “fascistas” que ofuscam os dois garotos que

 passam em sua bicicleta. É o resultado do que podemos chamar do “neofascismo

televisual” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 39)

 Figura 3: Anúncios na televisão Figura 4: Luzes da cidade e do estádio

Em relação a essa experiência urbana das grandes cidades, o filósofo italiano Agamben

afirma:

[...] hoje sabemos que, para a destruição da experiência, umacatástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existênciacotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamentesuficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contémquase nada que seja ainda traduzível em experiência: [...] nem osminutos que passa preso ao volante, em um engarrafamento; nem aviagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a manifestaçãoque de repente bloqueia a rua. [...] O homem moderno volta para casa,à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos - divertidos oumaçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes, entretanto

nenhum deles se tornou experiência. (AGAMBEN, 2008, p. 21-23apud DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 76)

Para exemplificar essa ausência de experiência, podemos tomar a imagem do pai

do menino quando retorna a sua casa. O trem para e o garoto espera ansiosamente a

saída dele da locomoção. No entanto, mal o menino se alegra ao vê-lo, os outros

 passageiros que saem do veículo se mostram com o mesmo rosto e corpo do pai. São

todos iguais. Foram confundidos: já não há mais individualidade. O homem foi

“mecanizado” pelo surreal cotidiano na vida das grandes metrópoles.

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Apesar de tudo isso, Didi-Huberman não acredita no total desaparecimento dos

vagalumes, como Pasolini afirma. Ele acredita que depende “apenas de nós não vê-los

desaparecerem” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.154)

 Não se pode, portanto, dizer que a experiência, seja qual for omomento da história, tenha sido “destruída”.  Ao contrário, faz-senecessário [...] afirmar que a experiência é indestrutível, mesmo quese encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades desimples lampejos na noite. ( Ibidem p. 148)

E apesar de toda a crítica que o filme carrega em relação ao mundo contemporâneo, ele

 próprio é uma espécie de lampejo na noite, fazendo com que os espectadores que o

assistem tomem ciência das luzes ofuscantes do novo fascismo televisual  e, assim, não

se deixem desaparecer.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte. MinasGerais: Editora UFMG, 2011.

PRYSTHON, Â. F. Imagens periféricas: os Estudos Culturais e o Terceiro Cinema.E-Compós (Brasília), 2006.

Adoro Cinema. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202641/criticas-adorocinema> Acesso em 8 de fevereiro de 2015