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A A revista A rte da Cen A Nadiana Assis de Carvalho - Por uma Estética da Recepção Criativa e da Comunicação Performativa Revista Arte da Cena, Goiânia, V. 1, N. 1, pp. 70-78, jan/jul, 2014 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 70 POR UMA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO CRIATIVA E DA COMUNICAÇÃO PERFORMATIVA NO TEATRO: Imagem, Imaginação e Imaginário Nadiana Assis de Carvalho* Universidade do Estado de Santa Catarina RESUMO: O estudo pretende refletir sobre a recepção e a comunicação no teatro propondo, sobretudo, uma recepção criativa e uma comunicação ativa, cuja atuação do imaginário por meio do jogo performativo parece ser, respectivamente, uma suposição favorável. É certo que o sujeito receptor está em busca constante pela experiência, pela afetação, pelo prazer; mas possivelmente se trata de um encontro consigo mesmo, na procura de uma ação que mobilize sua própria criatividade, confrontando suas próprias idéias, emancipando ou transformando suas ideologias e exteriorizando suas sensibilizações e emoções. Neste caso, a arte seria um instrumento, o teatro um espaço para este encontro e o artista um provocador de uma ação que só sucede no consentimento do imaginário receptivo. Palavras-chave: Estética da Recepção; Imaginação; Prazer; Teatro. ABSTRACT: e study aims to reflect on the reception and communication in theater proposing, above all, a creative reception and active communication, whose performance of the imaginary through performative game seems to be, respectively, a favorable supposition. It is true that the receiver is in constant search by experience, affectation, for pleasure; but possibly it is an encounter with oneself, in an action seeking to mobilize their own creativity, confronting their own ideas, empowering or transforming their ideologies and externalizing their sensitivities and emotions. In this case, art is an instrument, the theater space for this meeting and artist of a provocative action that happens only on the consent of the receptive imagination. Keywords: Aesthetics of Reception ; Imagination ; Pleasure; eater.

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artigo sobre imagem, imaginação e imaginários e suas relações estéticas no teatro

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  • A ArevistaA rtedaCen A

    Nadiana Assis de Carvalho - Por uma Esttica da Recepo Criativa e da Comunicao PerformativaRevista Arte da Cena, Goinia, V. 1, N. 1, pp. 70-78, jan/jul, 2014Disponvel em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce

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    POR UMA ESTTICA DA RECEPO CRIATIVA E DA COMUNICAO PERFORMATIVA NO TEATRO:

    Imagem, Imaginao e Imaginrio

    Nadiana Assis de Carvalho*Universidade do Estado de Santa Catarina

    RESUMO: O estudo pretende refletir sobre a recepo e a comunicao no teatro propondo, sobretudo, uma recepo criativa e uma comunicao ativa, cuja atuao do imaginrio por meio do jogo performativo parece ser, respectivamente, uma suposio favorvel. certo que o sujeito receptor est em busca constante pela experincia, pela afetao, pelo prazer; mas possivelmente se trata de um encontro consigo mesmo, na procura de uma ao que mobilize sua prpria criatividade, confrontando suas prprias idias, emancipando ou transformando suas ideologias e exteriorizando suas sensibilizaes e emoes. Neste caso, a arte seria um instrumento, o teatro um espao para este encontro e o artista um provocador de uma ao que s sucede no consentimento do imaginrio receptivo.

    Palavras-chave: Esttica da Recepo; Imaginao; Prazer; Teatro.

    ABSTRACT: The study aims to reflect on the reception and communication in theater proposing, above all, a creative reception and active communication, whose performance of the imaginary through performative game seems to be, respectively, a favorable supposition. It is true that the receiver is in constant search by experience, affectation, for pleasure; but possibly it is an encounter with oneself, in an action seeking to mobilize their own creativity, confronting their own ideas, empowering or transforming their ideologies and externalizing their sensitivities and emotions. In this case, art is an instrument, the theater space for this meeting and artist of a provocative action that happens only on the consent of the receptive imagination.

    Keywords: Aesthetics of Reception ; Imagination ; Pleasure; Theater.

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    Nadiana Assis de Carvalho - Por uma Esttica da Recepo Criativa e da Comunicao PerformativaRevista Arte da Cena, Goinia, V. 1, N. 1, pp. 70-78, jan/jul, 2014Disponvel em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce

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    Como o lugar quando ningum passa por ele? Existem as coisas

    sem ser vistas?

    (Carlos Drummond de Andrade, A suposta existncia)

    A ideia de considerar o espectador como participante ativo na concepo do sentido da obra artstica bastante recente, embora na pintura encontram-se registros analticos sobre o olhar do espectador desde o sculo XVIII, na literatura o tema se torna mais aprofundado somente no sculo XX a partir dos estudos da recepo de Robert Jauss e Wolfgang Iser, e no teatro esta participao parece ser concebida junto s propostas estticas dos primeiros encenadores.

    Por muito tempo a esttica perdurou sob o legado platnico do belo, cujo pensamento esttico considerava somente a atividade produtiva da arte que estava submetida correlao do belo com o verdadeiro e o bem, numa necessria conformidade entre forma e contedo, entre forma e significado e, consequentemente, da criao com a imitao. No advento da era moderna, a partir das contribuies de interpretaes fenomenolgicas, a prxis esttica passa a ser compreendida pra alm da sua atividade produtora, considerando com excelncia sua funo receptiva e comunicativa. A partir de ento, os estudos da recepo ganham maior evidncia ao enfatizarem a arte no mais como uma questo de representao, mas como ela produz seus efeitos, como atinge o espectador e muda a forma como ele v, compreende ou sente algo. A arte demonstra ser especialmente criativa na medida em que altera a faculdade de apreender do sujeito receptor e segundo Merleau-Ponty essa experincia nos abre para aquilo que no somos (2005, p. 156), colocando-nos em contato com a alteridade e com o novo, que exige de ns criao para dele termos experincia (2005, p. 187). Desse

    modo, uma experincia que proporciona aos sujeitos expandir seu olhar diante da realidade, transcendendo os esquemas perceptivos pr-condicionados. Da resulta o prazer esttico, da resulta a funo esttica da arte, se que possvel design-la.

    Neste sentido, a teoria da imitao, sistematizada sobre os pressupostos da representatividade, vai aos poucos migrando sua nfase para as teorias da expresso que, em contraponto a representao do que j existe na natureza, pretende antes produzir algo que no existe. O que antes era compreendido como um modo de captar o mundo inteligvel se transforma em um modo de criao de mundo. Por conseguinte, essa criao sensvel compreende agora uma manifestao em estado de devir, em processo, necessariamente em jogo, quando a arte se faz acontecer no encontro com o receptor; e pelo jogo, por este ato criativo, compartilhado e em processo que torna possvel e necessrio dialogar sobre uma esttica da recepo criativa e da comunicao performativa na arte, especificamente na arte do teatro. O teatro uma ao artstica diferenciada pelo seu necessrio carter de presena e presente, ou seja, o acontecimento depende da real presena dos sujeitos participantes num espao e tempo presente; ele s acontece no agora, no como a fotografia ou a pintura que podem ser frudas num futuro prximo, por exemplo. Isso faz com que a recepo teatral esteja sempre em estado de devir e o sentido artstico est sendo e se formando simultaneamente na medida em que as aes poticas se operam.

    Pois bem, Robert Jauss identificou que a experincia esttica torna-se emancipadora na medida em que desenvolve trs atividades relacionais: a relao de prazer ao produzir uma obra artstica ou sentir-se co-autor desta obra (Poesis), a relao de prazer ao experienciar uma obra de arte e adquirir novas percepes da realidade (aisthesis) e o prazer de purificao,

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    liberao ou transformao dos sentimentos, que mobiliza o sujeito para novas maneiras de pensar e agir sobre o mundo (katharsis). Por conseguinte, a expresso no mrito do artista possui como propsito afetar as almas alheias, provocando certo prazer esttico no sujeito receptor por meio da sua fruio; mas, para que esta afetao suceda, exige do espectador uma ao ativa, e porque no tambm criativa, j que o objeto artstico se revelar no ato participativo do espectador, desestabilizando a inteno do artista como um ato rgido para submet-la tambm a inteno do receptor. Jauss j identificara que as relaes estticas poiesis, aisthesis e katharsis podem operar juntas, e que inclusive uma ao de katharsis poderia mobilizar uma ao de Poesis, na qual o sujeito receptor, por intermdio das emoes frudas, cativado a produzir tambm uma ao potica. Mas o que talvez ficasse em suspenso e que torna possvel supor que, se o ato de recepo exige do espectador uma participao ativa onde o objeto artstico se revela a partir da sua inteno, no seria a recepo um ato todo potico e, portanto, um ato tambm produtivo e criativo? E apropriando-se desta suposio, o que faria a recepo no teatro ser um ato especialmente criativo?

    Para tanto, compreendendo a experincia esttica do espetculo teatral j sob uma perspectiva moderna, necessrio elucidar como se configura o espetculo (enquanto objeto esttico expressivo) investigando seus mtodos idiossincrticos dos quais reverberam um modo de ser sensvel e nico. Vale aproximar aqui do pensamento de Jacques Rancire (2000, p.32) que destaca ser o regime esttico um modo especfico do sensvel, se identificando no como uma distino na maneira de fazer, mas no seu modo de ser sensvel. Por meio dessas reflexes possvel alcanar o que chamaremos de aura1 do espetculo, um estado de presena sui generis, um momento em que, segundo Schiller (1759 1805), a forma experimentada por si mesmo

    pura suspenso2.

    Penso, por exemplo, na maneira como este paradigma da superfcie dos signos/formas se opem ou se confundem ao paradigma teatral da presena (RANCIRE, 2000, p.24).

    certo que este modo de ser sensvel do teatro no possvel de ser auferido racionalmente, porque se trata de um estado bastante singular e subjetivo tornando-o impossvel de ser categorizado ou sistematizado, uma vez que pode ser alcanado de inmeras maneiras. Contudo, o que possvel presumir que no teatro este ato sensvel se manifesta por meio de uma materialidade potica da imagem. necessrio, pois, compreender a imagem neste contexto, no seu modo ontolgico, como um ato de tornar consciente a realidade3, posto ainda que, aqui no se trata de uma realidade do cotidiano da vida real, mas da realidade potica do espetculo teatral, ou seja, uma realidade artificializada e potente no seu modo criativo de ser. Segundo Sartre,

    a imagem o produto da ao dos corpos exteriores sobre nosso prprio corpo por intermdio dos sentidos e dos nervos. (...) Ela teria a estranha propriedade de poder motivar as aes da alma (2011, pg.13).

    Para uma equivalncia consciente da teoria de Sartre para uma esttica artstica do teatro exige destacar, entretanto, que no teatro se trata de uma imagem desinteressada e intencional ao mesmo tempo. Desinteressada porque no se trata de uma realidade com razes pragmticas ou interesse de efeitos prticos; e intencional porque ela j existe como uma espcie de apreenso da realidade por parte do artista e, portanto, contida de certas impresses, interpretaes, vontades ou idealizaes.

    Por outro lado, esta imagem produzida artisticamente no tem o intuito simbolizar a vida ou conceitu-la e sim corporific-la,

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    exprimindo-a de forma singular. Neste sentido, o teatro se torna um encontro de confrontao entre a apreenso da realidade do artista e a do receptor e as imagens renascem potencializadas por desenvolver todo um jogo de embates hermenutico, epistemolgico, antropolgico, psquico e espiritual. Para Sartre, a imagem no se distingue da sensao, ela o domnio da aparncia, mas de uma aparncia a qual nossa condio de homem d uma espcie de substancialidade (2011, p.19); assim, a imagem no teatro surge como o domnio da aparncia do todo sensvel, um todo circunscrito em sua espacialidade e temporalidade artificial, mas infinito enquanto relaes substanciais. Ora, pois, tais relaes so mobilizadas pela imaginao.

    O contedo da materialidade potica do teatro torna-se comunicativo na medida em que h afetao, ou seja, as imagens se formam pelas aes intencionais dos corpos exteriores que mobilizam aes na alma (pensamentos, idias, memrias, sentimentos, emoes), na arte caso haja afetao essas aes tornam-se estmulos de uma produo potica; pois, a partir de ento, que as aes em afeto sero movidas pela imaginao criadora. A imaginao o conhecimento da imagem, o que lhe confere forma, sentido e qualidade, por meio dos afetos. Enquanto a imagem a apreenso das coisas do mundo (realidade), a imaginao conhecimento e criao do mundo. Porquanto a imaginao se torna o substrato criativo da recepo.

    O prazer esttico resulta da satisfao psicolgica e espiritual pressuposta pelo fato de imergir na experincia imaginria da imagem. Segundo o terico Jac Guinsburg, a imagem no teatro produto da imaginao, e esta por sua vez, uma preparao ldica e desencadeada a partir de uma intencionalidade. Deve-se, pois, analisar a imagem dada ao olhar, aliada a ordem da imagem subjetiva, desenvolvida

    pelo imaginrio do espectador. Ao apreender a imagem, o receptor lhe atribui significado provindo do imaginrio.

    Se a matria prima do teatro so imagens produzidas pela imaginao [atuando ludicamente numa gerao em devir, isto , jogos encetados e encerrados a partir do arbtrio e da inteno dos intrpretes] cumpre admitir que as demais funes desencadeadas e atinentes so tambm um jogo do vir a ser a ele subordinado, que na qualidade de imagens, nos instantes que so configuradas, emergem na esfera do imaginrio como uma conscincia. (GUINSBURG, 2002, p.29)

    Assim, a percepo esttica no teatro uma percepo criativa porque mediada pelas intenes da imaginao. A imaginao possibilita compor com o sensvel um sentido novo, criando novas formas, fazendo jus singularidade do objeto esttico, que, ademais, exprime ele mesmo um mundo imaginrio. Desta fonte intangvel que a imaginao, podemos dizer que tanto o artista quanto o receptor usufruem de forma criativa, criando ou percebendo o objeto de arte. Talvez resida da o forte vnculo que una a produo e a recepo fazendo da experincia esttica artstica uma relao de comunicao criativa, comunicao mtua entre imaginrios por meio da materialidade potica intencional e afetiva do teatro. O artista nos revela assim seu universo, atravs da transcrio imagtica de um pensamento emocionalmente percebido do mundo. A criao artstica, grande nmero de vezes, regida pela dinmica da revelao. Materializado este estrato imaginativo no objeto artstico, este se revela sendo moldado por mais um estrato imaginativo, o ato de percepo criativa do receptor. Sendo assim, a imaginao representa uma grande potncia de significado para a esttica artstica, ela um extrato criativo que d forma a coisas que no existiam antes, nem existiriam sem a atividade artstica; e amplia o sentido da imagem, na medida em que esta se esgota de significados, quando exprime algo inexprimvel pelas palavras.

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    Neste movimento contnuo do afluxo imaginrio, o espectador seleciona o que lhe prprio, absorve assim o que mais se aproxima da sua experincia pessoal, podendo ainda suscitar outras expectativas, completar o sentido de uma imagem, por exemplo, ou transform-la, imprimindo outras relaes. No teatro buscamos compreender e superar a realidade cotidiana, e a imaginao torna-se um caminho possvel que nos permite no apenas atingir o real como tambm vislumbrar as coisas que podem vir a tornar realidade.

    Michel Maffesoli (1944) recuperou a tradio de Gastn Bachelard (1844 1962) e Gilbert Durand (1921 2012) quanto importncia do imaginrio na construo da realidade. Para ele o imaginrio uma sensibilidade que caso queira uma definio a relao entre as intimaes objetivas e a subjetividade4, intimaes objetivas que seriam aos limites que a sociedade impe a cada sujeito. Desta forma, possvel interpretar a imaginao como o substrato criativo e individual o qual est em processo constante da formao e vivncia do imaginrio que, por sua vez, compreende relaes entre as coeres sociais e a subjetividade. Ou seja, o imaginrio faz parte do mbito coletivo e social, determinado pela idia de se fazer parte de algo. Partilha-se uma filosofia de vida, uma linguagem, uma atmosfera, uma idia de mundo, uma viso das coisas, na encruzilhada do racional e do no racional. Para Maffesoli este estado de esprito de um grupo surge por processos interacionais diversos e cria a aura, uma sensao comum e compartilhada que constitui o imaginrio.

    O imaginrio permanece uma dimenso ambiental, uma matriz, uma atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginrio uma fora social de ordem espiritual, uma construo mental, que se mantm ambgua, perceptvel mas no quantitvel. Na aura da obra h uma materialidade da obra (cultura) e, em algumas

    obras, algo que se envolve, a aura. No vemos a aura, mas podemos senti-la. O imaginrio para mim esta aura, da ordem da aura: uma atmosfera, algo que envolve e ultrapassa a obra. Esta a idia fundamental de Durand: nada se pode compreender da cultura caso no se aceite que existe uma espcie de algo mais, uma ultrapassagem, uma superao da cultura. Esse algo mais que se tenta captar por meio da noo de imaginrio. (Entrevista concedida Revista FAMECOS, n 15, 2001, p. 75)

    H algo materialmente slido e alguma coisa que ultrapassa esta materialidade. As imagens no teatro so imagens poticas, ou seja, sensveis em si mesmas e compostas de um substrato que transcende o seu sentido de realidade, configurando ela mesma outra realidade. Uma realidade dilatada e expansvel no seu sentido denotativo, ela toda desinteressada embora toda intensionada. A cena teatral deve ser entendida aqui como um corpo vivo, um corpo potente pelo seu constante estado de criao, e que emerge da sua materialidade potica algo imaterial e transgressor. Imagina-se um corpo vivo que possui carne, osso, pele, energia, luz, pulsao, respirao, ao, vibrao; que se conectam como uma teia por campos de fora em atravessamento5. Sendo assim, essas foras geram uma zona de jogo que afetam e so afetadas mutuamente por seus participantes constituindo, modificando e pulverizando constantemente este corpo vivo. Aqui a arte se faz do homem para o homem e pelo homem, a a conexo direta, pois se d instantaneamente por encontros de um olhar para com outro olhar, de uma escuta para com outra escuta, de um pensamento para com outro pensamento, de muitas energias para com outras muitas energias, de um imaginrio incessante para com outro imaginrio imensurvel. neste encontro que emerge o modo de ser sensvel do teatro, um ato nico, com infinitas possibilidades de afetaes e substancialidades.

    Desta forma, possvel inferir que o

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    imaginrio o agente motivador da recepo criativa e que, se torna exequvel quando configurado por meio da comunicao performativa, ou seja, atravs do jogo .

    O jogo coloca em embates as aes produtivas e receptivas como uma comunicao performativa uma vez que ela um ato, um dilogo que se constri tanto pela ao de quem o produz quanto pela ao de quem o recebe, e, o sentido do dilogo dado pelo resultante destas aes. Ou seja, por meio do jogo - embates, desafios e riscos - que se pode chegar a um resultado, um possvel sentido da comunicao. Os sujeitos do dilogo concebem uma realidade nica, uma realidade que eles prprios constituem por meio de uma ao singular daquele instante. Wolfgang Iser fez um estudo do jogo no texto literrio possvel de transpor ao dramtica. O jogo se d, a princpio, por uma conveno, uma espcie de contrato entre artista e receptor, em considerar o como se fosse o que parece ser, criando juntos uma realidade artificial a partir do como se fosse essa a realidade. Segundo o autor, o jogo teria ainda duas vantagens: a de no se ocupar do que poderia significar e a de no ter que retratar nada fora de si prprio, permitindo que a inter-relao (artista/obra/receptor) seja concebida como uma dinmica que conduz a um resultado final. O jogo mobilizado pelos espaos vazios com que a obra, por meio da sua incompletude, requisita certa posio do receptor. So as indeterminaes que permitem ao texto comunicar-se com o leitor, introduzindo-o a tomar parte na produo e compreenso da inteno da obra (Zilberman apud Costa Lima, 2001, p.51). Mas, os espaos vazios no precisam ser necessariamente completados, antes precisam mobilizar a formao do objeto imaginrio e as mudanas de perspectiva. A obra oferece pistas que estimulam a criao do objeto imaginrio, ou como as imagens devem ser desenvolvidas na mente do leitor, porm o que ser produzido no o saber enquanto tal, mas combinaes ainda no formuladas. O prazer na atividade

    receptiva manifesta-se neste momento em que sua produtividade entra em jogo, exercendo assim suas capacidades criadoras.

    Desta forma, a imaginao torna-se instrumento de prazer justamente por atuar permitindo que o sujeito expanda a obra em si mesmo; ou ainda, que a partir da obra, ele mesmo se expanda e se estenda na medida em que transgride suas percepes e expectativas. Para Iser o jogo fundado na nossa constituio antropolgica e pode tambm, com efeito, nos ajudar a captar o que somos. Atravs do jogo o teatro desafia o pblico e o prprio sujeito receptor se coloca em desafio, faz suas apostas, entra em combates com suas convices e cria, na congruncia das aes externas e internas, uma nova realidade. um encontro consigo mesmo a partir do outro, cuja imaginao possibilita o sujeito se experimentar na alteridade da obra. Mas esta experimentao se d antes pela distancia, pelo afastamento de si que, contraditoriamente, provoca o seu encontro. O prazer desinteressado ao mesmo tempo o prazer que exige uma tomada de posio, na qual a fruio se d por certo distanciamento e o sujeito usufrui da sua liberdade para se afastar de si, dos seus hbitos e valores cotidianos. Ele frui da conscincia do seu eu ( seu prazer) e busca sua perda ( seu deleite) (BARTHES, 1973, p.26), afasta de si para experimentar a si mesmo, abandona-se para adentrar-se. Por conseguinte, o prazer esttico realiza-se sempre numa relao de reciprocidade entre os sujeitos e o objeto artstico, tanto na ao desinteressada quanto na participao experimentadora no receptor. Assim, a atitude esttica torna-se uma atividade de co-produo do objeto artstico numa necessria relao de jogo, cujo sentido potico produzido a partir de um imaginrio cativado que, por sua vez, exerce sua autenticidade e autonomia. Por meio do jogo, o sujeito frui segundo seu estado de entrega e o prazer emerge de encontros consigo mesmo, da descoberta do desconhecido, da rememorao de algo esquecido, da conscincia

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    do que parecia desabitado, da imerso de afetos que faz reascender a alma e purificar o esprito; produzindo, pois, uma nova percepo de mundo.

    CONSIDERAES FINAIS

    Atravs dos estudos da esttica da recepo possvel conceber a obra artstica em processo de formao por meio do carter dialgico com o espectador, o qual por meio das suas interferncias, interpretaes diferenciadas e atos criativos admitem o espectador como co-criador, uma vez que ele se torna participante ativo na construo do sentido da obra.

    Desde que o teatro abriu mo do sentido representativo para se tornar expresso, o que molda esta nova esttica o jogo, a relao humana e recproca de trocas experienciais. Nada foi desertado, contudo foi mobilizado para o sentido do jogo: o jogo da representao, o jogo do simblico, o jogo da iluso, da fantasia, do drama, do verossmil, do realismo, do romantismo, etc. Assim tambm o termo performativo no aqui identificado como estilo modal de teatro, mas como significado da ao. O sentido da obra s ocorre pelo momento temporal em que a obra atualiza-se no instante do ato receptivo. Na comunicao performativa o dilogo est em jogo, o dilogo uma ao que exige ser completado, estendido ou confrontado, o dilogo est em jogo e isso implica a presena atuante do receptor. certamente uma comunicao que implica desafios e riscos, pois o espectador est situado na intimidade da ao, interpelado pelo seu imediatismo ou pelos riscos implicados no jogo.

    A esttica da presena se instaura e a vida colocada em suspenso. O jogo precisa mobilizar a imaginao a ponto dos jogadores viverem as imagens artificiais como se fosse imagens reais no se trata de mera iluso ou fantasia, mas de permitir que o imaginrio experiencie outra

    realidade. Os jogadores querem uma realidade colocada vida, ou ainda, querem colocar em cena o que propriamente vivo, ser e viver de fato uma realidade outra - a imaginao faz com que esta realidade se presentifique. O artista ir introduzir uma imagem e esta imagem ir se reproduzir.

    A ao imaginria na arte foi desconsiderada por muito tempo, ela era associada com freqncia, e restritamente, iluso, ao delrio e a loucura. Kant (1724 1804) identificara que a imaginao produtiva, e assim, a arte seria um produto da imaginao. preciso ainda elucidar e integrar arte o sentido imaginativo provindo tambm da recepo, ou seja, a arte o produto do jogo imaginrio de aes produtivas e receptivas.

    O imaginrio independe de estilo literrio ou esttico, ele no atua somente por meio da iluso, ele no faz parte somente do delrio, da construo de algo fora da realidade; ao contrrio, ele criao a partir da realidade e com interesses na realidade. Ele recriao do mundo a partir dele mesmo. Ele antes parte ontolgica do ato esttico, renascendo neste sentido, como agente impulsionador. um caminho de acesso ao inacessvel, torna presente algo ausente, e assim emerge o prazer por nos conceder ter ausncia como presena, o jogo se converte em um meio pelo qual podemos nos estender a ns mesmo. No h em nosso tempo, em nosso mundo, espectadores de teatro que no sejam jogadores em potencial (GUNOUN, 2004, p.150). No importa se se trata de um teatro trgico, cmico ou dramtico; realista, simbolista, ou romntico; teatro pico, teatro da crueldade ou teatro pobre; moderno, ps-moderno ou performativo; a experincia esttica , fundamentalmente, imaginativa e, portanto, criativa. O imaginrio est em toda parte: em todas as alavancas de comando, em todas as engrenagens (...) ele , decididamente, o mestre do jogo. (GUNOUM, 2004, p.92). Por outro

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    lado, o jogo sim, necessita de uma pr-disposio tanto produtiva quanto receptiva para o dilogo, para a interao, para a entrega, para os embates e para o risco. Na comunicao performativa, os sujeitos devem estar atentos experincia, ao ato de deixar que algo se produza em voc, alguma coisa se inscreve quando se abre para o acontecimento.

    O receptor no teatro espectador na arte como o na vida. Est em busca por experincias inditas, por novas percepes, mudanas, transformaes, na busca por novas emoes e por novas paixes que o permita relacionar poeticamente com o mundo. E somente o sujeito aberto experincia esta apto a mudanas. uma recepo ousada, que exige autonomia, autenticidade e criatividade.

    Por outro lado, para ativar o afluxo imaginrio do espectador a fim de que ele reaja provocao das aes exteriores, necessrio que a imagem artstica lhe oferea no apenas um contato com a realidade cotidiana, mas uma experincia com sentimentos complexos e ntimos, com um substrato espiritual e transgressor e que ainda, conceda ao espectador a competncia do ato criativo. Como afirma de modo esclarecedor Juan David Nasio O que est em jogo no a transmisso daquilo que se inventa, mas antes a transmisso do poder de inventar. (apud ALVES, 2007, p. 149)

    NOTAS1 Termo usado por Walter Benjamin para carac-terizar certo valor sensvel e imaterial da obra de arte.

    2 Friedrich Schiller apud Jacques Rancire, A Partilha do Sensvel, So Paulo, 2005, pg. 35.

    3 Conceito de imagem por Jean-Paul Sartre em A imaginao, 1936.

    4 Entrevista concedida Revista FAMECOS, Porto Alegre, n 15, agosto 2001, p. 74.

    5 Termo utilizado por Renato Ferracini para falar das vibraes corpreas (2013, p.36).

    REFERNCIASALVES, Rubem. Filosofia da Cincia: In-

    troduo ao jogo e as suas regras. Editora Loyola, So Paulo, 2007.

    BARTHES, Roland. O prazer do texto. Traduo de J. Guinsburg. Editora Perspectiva, So Paulo, 1996.

    FERRACINI, Renato. Ensaios de atuao. Editora Perspectiva, So Paulo, 2013.

    GUNOUN, Denis. O teatro necessrio? Editora Perspectiva, So Paulo, 2004.

    GUINSBURG, Jac. Dilogos sobre teatro. Org.: Armado Sergio da Silva. Edusp, 2002.

    HONZL, Jindrich. A mobilidade do signo Teatral. Texto extrado da obra O signo teatral, a semiologia aplicada arte dramtica.

    LARROSA, Jorge Bonda. Notas sobre a ex-

    * NADIANA ASSIS DE CARVALHO mestranda no Programa de Ps-Graduao em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, do departamento de Artes, na linha de pesquisa Teatro, Sociedade e Criao Cnica.

  • A ArevistaA rtedaCen A

    Nadiana Assis de Carvalho - Por uma Esttica da Recepo Criativa e da Comunicao PerformativaRevista Arte da Cena, Goinia, V. 1, N. 1, pp. 70-78, jan/jul, 2014Disponvel em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce

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