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Nelly Novaes Coelho Fernando Pesssoa, a Dialética de ser em Poesia "Chove ouro baço, mas não no lá-fora... E em mim... Sou a Hora, E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..." ("Hora Absurda" 1913) Com o genial poder de síntese que singulariza sua linguagem poética, Fernando Pessoa condensa nesses dois versos a essencial renovação que, naquele momento, começava a ser gerada na Poesia Portuguesa (e na européia em geral... ), mas que, ainda informe, não podia ser percebida pelo olhar comum. Raros poetas terão manifestado essa certeza, essa lucidez de Pessoa, não só com relação à essencialidade de sua própria criação, mas principalmente, à tarefa fecundadora que ela iria cumprir no processo renovador da poesia de seus contemporâneos. "Hora Absurda", longo poema de raiz simbolista (da fase inicial de Pessoa) expressa, em seu extraordinário jogo de imagens e sensações, a dialética fundamental Poeta X Poesia , que serve de leito à totalidade da produção poética fernandina. Poeta que viveu no primeiro momento da crise que, em nosso século, iria dividir as águas entre o Tradicional e a Modernidade, Fernando Pessoa muito cedo revela uma aguda consciência de que o novo processo de Criação já havia começado ( "Chove ouro baço" ), mas estava ainda limitado aos próprios criadores, não tendo ainda eclodido para todos ( "mas não no lá-fora...É em mim. Sou a Hora." ).Lã fora no panorama geral da nação, reinava a paralisação das formas de vida mas no enigmático campo da criação o novo já nascia. Difícil dizer, de início, até que ponto o "eu" implícito nessa fala poética seria o do próprio poeta. Ou seria o "eu" do Poeta-ser-privilegiado, aquele que dá origem a Poesia e através de cuja voz a humanidade expressa sua evolução em marcha. Ou seria, talvez, o "eu" da própria Poesia com quem o poeta parece confundir-se muitas vezes. De qualquer maneira, a lucidez de Fernando Pessoa, ao perceber a exata dimensão do que começava a acontecer em si mesmo e no mundo à sua volta, nos espanta. Hoje, à distancia é fácil vermos que, naquele instante, Criação e Destruição se processavam intrincadamente ligadas. Mas ver por inteiro tal fenômeno no próprio ato do acontecer, exige uma percepção fora do comum, como era a do genial poeta. Note-se que "Hora Absurda" foi escrita em 1913. Portanto, bem no início do processo renovador que nosso século vem conhecendo. E já nesse momento Fernando Pessoa diz: "E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..." É assim que ele expressa o espanto diante

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Nelly Novaes Coelho

Fernando Pesssoa, a Dialética de ser em Poesia

"Chove ouro baço, mas não no lá-fora... E em mim... Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela..."

("Hora Absurda" — 1913)

Com o genial poder de síntese que singulariza sua linguagem poética, Fernando

Pessoa condensa nesses dois versos a essencial renovação que, naquele momento,

começava a ser gerada na Poesia Portuguesa (e na européia em geral... ), mas que, ainda

informe, não podia ser percebida pelo olhar comum. Raros poetas terão manifestado

essa certeza, essa lucidez de Pessoa, não só com relação à essencialidade de sua própria

criação, mas principalmente, à tarefa fecundadora que ela iria cumprir no processo

renovador da poesia de seus contemporâneos.

"Hora Absurda", longo poema de raiz simbolista (da fase inicial de Pessoa)

expressa, em seu extraordinário jogo de imagens e sensações, a dialética fundamental —

Poeta X Poesia —, que serve de leito à totalidade da produção poética fernandina.

Poeta que viveu no primeiro momento da crise que, em nosso século, iria dividir

as águas entre o Tradicional e a Modernidade, Fernando Pessoa muito cedo revela uma

aguda consciência de que o novo processo de Criação já havia começado ( "Chove ouro

baço" ), mas estava ainda limitado aos próprios criadores, não tendo ainda eclodido para

todos ( "mas não no lá-fora...É em mim. Sou a Hora." ).Lã fora no panorama geral da

nação, reinava a paralisação das formas de vida mas no enigmático campo da criação o

novo já nascia.

Difícil dizer, de início, até que ponto o "eu" implícito nessa fala poética seria o do

próprio poeta. Ou seria o "eu" do Poeta-ser-privilegiado, — aquele que dá origem a

Poesia e através de cuja voz a humanidade expressa sua evolução em marcha. Ou seria,

talvez, o "eu" da própria Poesia com quem o poeta parece confundir-se muitas vezes. De

qualquer maneira, a lucidez de Fernando Pessoa, ao perceber a exata dimensão do que

começava a acontecer em si mesmo e no mundo à sua volta, nos espanta.

Hoje, à distancia é fácil vermos que, naquele instante, Criação e Destruição se

processavam intrincadamente ligadas. Mas ver por inteiro tal fenômeno no próprio ato

do acontecer, exige uma percepção fora do comum, como era a do genial poeta. Note-se

que "Hora Absurda" foi escrita em 1913. Portanto, bem no início do processo renovador

que nosso século vem conhecendo. E já nesse momento Fernando Pessoa diz: "E a Hora

é de assombros e toda ela escombros dela..." É assim que ele expressa o espanto diante

da criação que emerge da própria ruína das formas tradicionais. Mostrando, inclusive,

que Destruição e Criação são fenômenos polares que evoluem simultaneamente e não há

como dissociá-los, sob pena de falsearmos a "verdade" de cada um.

O poema todo ( de uma beleza estranha, difícil de explicar... ) é um iluminar

sucessivo das mil faces desse fazer poético que já se sabia chegado, embora à sua volta

só reinasse a estagnação aparente. "0 teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

/.../ Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia... e entanto/ Tu és a tela irreal

em que erro em côr a minha arte..."

A metaforização é clara. Nela transparece a dupla imagem que a Poesia ( ou a

Vida?) Portuguesa revelava ao poeta. Sob a paralisação vital-criadora daquele decisivo

momento cultural, o poeta já entrevia o "novo" que avançava. E nesse eu-que-fala,

ouvimos a voz do poeta da modernidade, não a do eu biográfico e confessional — como

pode parecer a uma primeira leitura. A certeza disso nos é dada por todo o diversificado

caudal poético fernandino, onde é sempre o "fingidor" que fala e não o "eu pessoal", —

o eu da atitude romântica do "coração ao pé da boca", que Fernando Pessoa sempre

repudiou.

Manifestando-se como um "eu" ortônimo, heterônimo, semi-heterônimo ou de

poeta dramático, esse eu-que-fala na poesia de Fernando Pessoa, obedece a uma das

imposições basilares da "modernidade", — a despersonalização do poeta.

A certeza dessa despersonalização é reforçada, quando descobrimos que por trás

daquele "tu" com quem o poeta dialoga em "Hora Absurda", está a própria Poesia ( e

não uma mulher, como ocorre a qualquer um, numa primeira leitura ). Pela natureza e

relacionamento das imagens ou metáforas, sentimos que ali está a Poesia Portuguesa,

identificada com o próprio fenômeno poético, — a Poesia cujo "silêncio" ( naquele

momento de estagnação vital ... ) já era visto pelo poeta como "uma nau com todas as

velas pandas...", — algo prestes a eclodir como um navio pronto para largar do porto, e

dar início à viagem. Não há dúvida de que "Hora Absurda" é um longo e essencial

diálogo do Poeta com a Poesia, diálogo que se faz sobre ela mesma, revelando em

Fernando Pessoa a preocupação visceral que estará sempre presente em seu espírito,

durante os trinta e tantos anos em que viveu criando.

Ao conhecemos, no todo, a poesia fernandina, essa identificação essencial, Poeta /

Poesia, se torna evidente corno sendo a força dialética que a dinamiza.

Em fragmento solto ( encontrado em meio aos milhares de inéditos que Fernando

Pessoa guardou em sua, hoje famosa, arca ), lemos:

"Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

Navegar é preciso, viver não é preciso."

Quero para mim o espírito d’esta frase, transformada a forma para a casar com o

que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande,

ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só

quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como

minha".

Nesse breve fragmento, temos uma significativa síntese da personalidade poética

do autor e da intencionalidade maior que o moveu para construção de sua obra. Nessas

"palavras de pórtico" se inscreve, pelo menos uma das poucas verdades interiças e

incontroversas que podem ser atribuídas a Fernando Pessoa ou à sua obra singular.

"Viver não é necessário; o que é necessário é criar." Não há dúvida de que essa

frase, já hoje tão conhecida pelos estudiosos do Poeta, pode ser tomada como uma das

chaves mais adequadas para se abrir caminho às possíveis e diferentes leituras dessa

multiforme produção, cujas peculiaridades intrínsecas a tornam única, dentro do

panorama da poesia ocidental deste século.

Ao percorrermos a copiosa produção, em poesia e prosa, publicada até o

momento ( segundo consta, há ainda milhares de escritos que permanecem inéditos no

acervo deixado pelo Poeta ), torna-se evidente que, acima de tudo, Fernando Pessoa foi

um ser-em-poesia. Foi alguém que, no plano criador, viveu dialeticamente todas, ou

quase todas, as possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo, que os tempos e as

diferentes culturas tem oferecido como opção aos homens. Desde a objetividade do

olhar e a naturalidade com que os sentidos do homem e o mundo exterior se

harmonizavam nos gregos e nos clássicos, até o mergulho nos insondáveis meandros do

ocultismo e da metafísica; passando pelo vertiginoso viver destes tempos,

impulsionados pela Tecnologia e pela Velocidade da Máquina; ou ainda mergulhando

nas águas primordiais do Mito, Fernando Pessoa, com sua invulgar capacidade de

despersonalização ( a de ser múltiplo sem deixar de ser um ), viveu intensamente todas

as gamas do conhecimento e das sensações que se lhe ofereciam à inteligência e à

experiência sensível.

E quando dizemos "viveu", estamos nos referindo quase exclusivamente ao plano da

criação ou da produção intelectual. Como todo homem de gênio ou de mente superior,

Fernando Pessoa criou muito mais do que "viveu" ( no sentido comum que se dá ao

termo). Daí a "verdade" existente naquelas "palavras de pórtico".

Tudo o que já se escreveu sobre sua vida e obra ( bem como o que ele próprio

disse de si... ) deixa bem claro o contraste entre o prosaismo ou a semi-obscuridade de

sua vida concreta, exterior, e a surpreendente diversificação de interesses, a altura e

originalidade da produção caudalosa que o poeta deixou por herança aos seus

contemporâneos. Mas, o que significa realmente criar poesia? No caso específico de

Fernando Pessoa ( e dos grandes criadores... ), corresponde a criar pela palavra poética

modos de ver, ouvir, sentir, pensar... pois eram essas, basicamente, as atitudes a serem

redescobertas pela Arte em mutação.

Em última analise é isso que a Poesia ( ou a Arte em geral ) nos dá, para além do

prazer ou da emoção de sua expressão peculiar: pode revelar ao homem os seres e

coisas que o rodeiam, o espaço que o situa e o tempo que o transforma... o também o

homem ao próprio homem.

A respeito de Fernando Pessoa, poderíamos dizer que mais do "viver para criar", ele

criou para viver, tal foi o grau de entrega de seu ser à tarefa poética. A nosso ver, à essa

opção de vida ( assumida conscientemente pelo poeta ),que precisa estar presente no

espírito daquele que se disponha a conhecer esse multifacetado universo poético. Sem

um mínimo de "sintonia" com as inquietudes que dinamizara a criação fernandina, o

eventual leitor se arrisca a "passar ao largo" de sua essencial beleza e significação.

Poesia e Filosofia nela se reúnem, em um excepcional fenômeno poético que tem, em

suas raízes, a crise do Conhecimento que eclode em nosso século, desde os primeiros

anos.

O CONHECIMENTO EM CRISE

E aqui tocamos em um dos "nervos" centrais desse intrigante organismo poético-

filosófico que é a obra fernandina: os modos de conhecer. Poeta do século XX, tal qual

seus companheiros de geração ( os "grandes" Ezra Pound, T.S.Eliot, Valery, cubistas,

futuristas, surrealistas ... ) e em diferentes graus, Fernando Pessoa foi um obsessivo

investigador do Conhecimento. Ou melhor, das novas possibilidades ou

impossibilidades de um conhecimento objetivo do homem/palavra/mundo/Deus, em um

universo em acelerada transformação.

Pode-se dizer que é esse o fulcro filosófico que unifica ou identifica, na origem,

seus diversos heterônimos ( Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos ) ou os

semi-heterônimos ( Bernardo Soares, Barão de Teive, Vicente Guedes, José Pacheco,

Antônio Mora... ). Por diferentes que se mostrem entre si, igualam-se todos por um

impulso de raiz: a ânsia de conhecer.

É natural que em face de um mundo cujos valores, definições, limites e certezas

ruíam irremediavelmente, a arte se voltasse para as possibilidades de um novo conhecer.

Nesse sentido, duas diretrizes se abrem para as buscas: a que investiga os próprios

meios de expressão ( a que faz da própria Arte o objeto da obra ) e a que investiga o

"eu" através do qual a Arte se realiza ( o sujeito do conhecimento estético ).

Fernando Pessoa está entre os que foram atraídos por esta segunda diretriz. Sua

multifacetada obra é um dos frutos mais significativos da crise do conhecimento

acessível ao eu, que se manifesta no início do século, nos rastros da revolução kantiana

e do avanço da ciência. Dentre as várias revoluções que o nosso século tem conhecido

no campo do Conhecimento, sem dúvida, a que mais afetou a criação de Fernando

Pessoa foi a interrogação basilar: como posso eu conhecer o Real? E o além-Real?

Fernando Pessoa — "Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela

E oculta mão colora alguém em mim."

"Emissário de um rei desconhecido

Eu cumpro informes instruções de além

E as bruscas frases que aos meus lábios vêm

Soam-me a um outro e anômalo sentido..."

Alberto Caeiro — "O mistério das coisas, onde está ele?

Onde está ele que não aparece

Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?

/.../

Porque o único sentido oculto das coisas

É elas não terem sentido oculto nenhum."

Álvaro de Campos — "Tema de cantos meus, sangue nas veias da

minha inteligência,

Vosso seja o laço que me une ao exterior

pela estática,

Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,

Porque em real verdade, a sério, literalmente

Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,

Minha imaginação uma âncora meio

submersa,

Minha ânsia um remo partido,

E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar

na praia."

Ricardo Reis — "Sábio é o que se contenta com o espetáculo do

mundo,

E ao beber nem recorda

Que já bebeu na vida,

Para quem tudo é novo

E imarcescível sempre."

Aí estão as vozes de Fernando Pessoa — ele mesmo, Alberto Caeiro, Álvaro de

Campos e de Ricardo Reis, diferentes nas respostas vislumbradas, mas iguais no

empenho de "conhecer", tal como surgem em contraponto nesse fascinante mundo

fernandino, que é um dos grandes desafios lançados à Crítica pela poesia

contemporânea. E desafio, não porque seu discurso poético se emaranhe em processos

de composição que acarretem a obscuridade da fala. Muito pelo contrário, com exceção

de certa poesia experimentalista inicial, tudo é direto e nítido em seu dizer. Fiel ao

postulado de que a "obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação

objetivada duma impressão subjetiva", Fernando Pessoa repudia as abstrações.

Fácil é verificar, mesmo por uma primeira leitura, que não é o processo de dizer em si o

que o preocupa basicamente, mas sim o que dizer. Daí que o experimentalismo formal

só o tenha atraído na medida em que expressava o modo de ver de determinado sujeito.

Assim, por sua preocupação com a nitidez da palavra poética, tratou sempre de maneira

absolutamente objetiva a "coisa" a ser expressa, mesmo as mais obscuras ou incertas à

apreensão lógica ( como acontece em sua poesia esotérica ). Daí a facilidade com que se

lê e se "entende" a quase totalidade de seus poemas.

O desafio que sua poesia representa, para o leitor interessado, está na genialidade

com que o retira da visão estável do mundo (como é, em geral, a visão do cotidiano

rotineiro), para levá-lo a perceber, com inquietação, uma existência-outra, ainda

desconhecida, e que se pressente abissal e decisiva. Lida em conjunto e em confronto,

sua produção poética contraria, de imediato, a nitidez de enunciado que lhe é peculiar,

pois seus poemas se abrem em leque ( ou em labirinto? ), se diferenciando entre si, não

apenas pela dicção poética que os individualiza, mas porque cada uma delas enuncia

uma maneira distinta de sentir e conhecer o mundo. É como se "corporificando" em

distintas personalidades os diferentes e conflitantes modos de sentir/conhecer o mundo e

a vida, Fernando Pessoa tivesse conseguido "neutralizar" os desequilíbrios e angústias

que, fatalmente, apareceriam se uma só personalidade ( Fernando Pessoa ele-mesmo )

vivenciasse tais conflitos. A multiplicidade de cosmovisões é, pois, o que de imediato

avulta na produção poética fernandina.

E essa aparente diversidade de raiz que se tem colocado para a crítica como um

dos problemas iniciais dessa poesia, pois sabe-se, à saciedade, que o que define,

singulariza e dá o valor definitivo à obra de um grande escritor ( ou do grande artista em

geral ) é a unidade, a coerência de sua consciência-de-mundo... Sendo assim, como

poderemos compreender essa "diversidade" de problemática em um gênio como

Fernando Pessoa? Onde estaria a sua "unidade"?

Foi esse o ponto de partida da maioria dos estudos que se têm elaborado sobre a sua

poesia, desde a obra pioneira de Jacinto do Prado Coelho ( "Diversidade e Unidade em

Fernando Pessoa - 1950" ) que chega, afinal, a demonstrar que a "unidade essencial

implícita na diversidade das obras ortônimas e heterônimas" está na "inquietação

metafísica de Pessoa, no modo angustiado como viveu o problema do conhecimento, —

logo, os problemas da apreensão do eu e da sinceridade profunda."

Nestes trinta anos que se passaram desde a primeira publicação desse estudo

basilar para o conhecimento de Pessoa, muitas outras esclarecedoras e perspicazes

analises têm iluminado os mais diferentes campos do universo fernandino. Um dos mais

recentes e inteligentes, Pessoa Revisitado de Eduardo Lourenço, leva mais fundo a

análise para provar magistralmente não apenas a "unidade" da poesia fernandina, mas a

totalidade que abarca os aparentes fragmentos heterônimos. E o problema central

apontado continua a ser o do conhecimento. Não fosse ser esse o grande problema do

nosso século, para o pensamento reflexivo, para as artes e... para a vida.

Já foi sobejamente analisado e provado que um dos índices básicos da

Modernidade é a consciência de que o "eu" pessoal, empírico ( disciplinado pelo mundo

dos conceitos consagrados e das relações sociais ) era o grande obstáculo entre o poeta e

o verdadeiro conhecimento do mundo e das coisas ( exatamente ao contrário do que

exigia o romântico). Nessa ordem de idéias, o "eu" do artista passa a ser visto ( ou

desejado...) como um fulcro de despersonalização, que devia servir de fundamento para

uma nova apreensão de mundo e conseqüentemente a uma nova linguagem.

Vista pelo prisma dessa modernidade, a heteronímia criada por Fernando Pessoa

não se apresenta, pois, como um fenômeno isolado ou absolutamente insólito, mas

antes, corresponderia, a uma imposição geral dos novos tempos. Responde ela à mesma

causa que levou Baudelaire a tentar eliminar o "pessoal" de sua voz poética e a criar a

"teoria das correspondências"; a mesma que também está na origem da "alquimia do

verbo" buscada por Rimbaud. Ou ainda a que levou Mallarmé a perseguir a "magia da

linguagem" Enfim, é a cisão moderna entre Homem e Real que se agudiza, em nosso

século, como consciência-de-mundo e como crise de linguagem, exigindo novas

respostas às interrogações de sempre: quem sou eu? de onde vim? para onde vou? quem

ou o que justifica minha existência? e determina os valores que regem o mundo dos

homens? como posso eu conhecer o Real? e ter certeza da autenticidade desse

conhecimento? em que medida a minha palavra traduz a "verdade" desse Real entrevisto

ou pressentido? etc., etc.

A diversidade de "eus" do universo fernandino tentam, em última análise, dar

algumas das várias respostas plausíveis... uma vez que já não era mais possível ao

homem-século-XX qualquer resposta unívoca...

Para compreendermos melhor não só a natureza da poesia fernandina, mas

também a atualidade, hoje, da complexa consciência de mundo nela concretizada,

tentaremos situar o poeta entre seus companheiros de geração.

FERNANDO PESSOA

O MOMENTO HISTÓRICO E O ESPAÇO CULTURAL

Embora tenha sido publicado, divulgado e conhecido amplamente, apenas no pós-

guerra — 45, Fernando Pessoa pertence à geração dos "Ismos", que tumultuou a Europa

dos anos 10/20. Foram seus contemporâneos, pintores, como Picasso, Braque,

Kandinski, Mondrian, Larionov, Natalia Goncharova... ; músicos como Schönberg,

Stravinsky...; ficcionistas como Henri James, Joyce, Jorge Luis Borges, Virginia Woolf,

Kafka, Hermann Hesse, John Dos Passos, E.E.Cummings... e poetas como Apollinaire,

Mallarmé, Marinetti, Max Jacob, Ezra Pound, Valery, T.S.Eliot, A.Breton, Maiacovski,

Gertrude Stein, Vicente Huidobro, Oswald e Mário de Andrade, Mário de Sá Carneiro,

Almada Negreiros...

Nascido em 1888, em Lisboa, Fernando Pessoa fez parte daquela juventude que,

sofreu em sua formação cultural o primeiro impacto da revolução-evolução , em

marcha. Através dos estudos, ela foi disciplinada por um sistema de pensamento e

valores ainda rigorosamente estruturados ( o sistema tradicional europeu e no caso

especifico de Fernando Pessoa , o britânico ), logo em seguida, quando começava seu

momento de produção artística, ou de atuação no plano da vida prática, é abalada pela

rebelião cultural-política que se manifesta na Arte, com os "Ismos"; e na Política, com a

Guerra de 14 e com a Revolução Comunista de 17.

Em 1896, circunstâncias familiares ( o casamento de sua mãe viúva com o cônsul

português na África do Sul ), levam o menino Fernando, com 8 anos incompletos, a

viver e a estudar em Durban, Colônia de Natal, onde permaneceu até os 17 anos de

idade. É, portanto, nesse período vivido fora de Portugal, que se realiza a formação

cultural básica de Fernando Pessoa , e sob o influxo da língua, do pensamento e cultura

inglesa, diretrizes que, afinal, o poeta nunca abandonara por completo, apesar de sua

profunda consciência de portucalidade.

O quanto essa formação básica foi decisiva para o desenvolvimento posterior de

seu pensamento crítico-reflexivo e para sua criação poética ( e talvez para seu próprio

sentimento de nacionalidade ), o prova a persistência com que Fernando Pessoa usou a

língua inglesa para expressão de seu pensamento. São, em inglês, os primeiros poemas

que ele decidiu publicar em livro (plaquete), Antinous-1918 ( escrito em 1915 ); como o

são, também, a quase predominância dos textos em prosa, em sua produção de teoria e

crítica ( =filosofia e estética ) deixada inédita e publicada parcialmente até o momento.

Obviamente, não poderíamos, neste breve espaço, tentar estabelecer quaisquer relações

ou "confluências" entre a natureza de sua poesia e a de certos poetas ingleses ( por

exemplo E.Pound ou Shakespeare ) que Pessoa considerava geniais. ( Essas relações,

sem dúvida importantes, estão a merecer estudos detalhados que, talvez, em breve

alguém se disponha a realizar ).

Em 1905, de volta a Lisboa ( de onde não sairá até sua morte, em 1935 ),

Fernando Pessoa ingressa na Faculdade de Letras que freqüenta durante dois anos

apenas e onde estuda Shakespeare e a filosofia alemã, em Schopenhauer e Nietzsche. É

desse período que datam seus primeiros "textos filosóficos", cuja produção mais

significativa ( a julgar pelos dois volumes já publicados ) abrange mais ou menos dez

anos ( 1906/1916 ). Essa preocupação com o conhecimento filosófico ( e mesmo com a

teorização literária ) precede o definitivo encontro de Fernando Pessoa com a poesia.

Seu primeiro texto publicado foi de teoria estética( "A Nova Poesia Portuguesa

Sociologicamente Considerada" in Águia, abril, 1912 ), enquanto o primeiro poema

publicado, "Páuis", é de 1913. A julgar pelas datas apostas em seus textos ( e parece que

Pessoa era particularmente cuidadoso desse pormenor ) sua produção poética mais

antiga é de 1911/1912 e é atribuída a Alberto Caeiro, muito antes, pois, desse

heterônimo terá aparecido ( 8/março/1914 ). Também de 1913 é a publicação da

"literatura dramática" Na Floresta do Alheamento, a composição do poema em inglês

"Epithalamium" e do "drama estático" O Marinheiro. O verdadeiro nascimento de seus

heterônimos se dá em 1914, época em que a maior parte de seus textos filosóficos já

estava escrita.

O que nos importa observar nessas datas e tipos de produção é a tendência

dominante em Fernando Pessoa para o pensamento reflexivo e a simultânea atração

pelos vários gêneros literários: ficção, poesia, teatro e também pela filosofia que ele

considerava uma arte. Em seu afã de descobrir a forma mais adequada à expressão do

conhecer, Fernando Pessoa tentou todos os gêneros, inclusive o conto policial ( o que

confirma sua preocupação visceral com o enigma ). É de se compreender, pois, seu

obsessivo interesse pela filosofia, onde é a própria possibilidade do conhecimento, o

fenômeno investigado.

Entretanto, apesar desse interesse, sua verdadeira realização se deu apenas no campo da

poesia. Em suas reflexões filosóficas, Fernando Pessoa não chegou a nenhuma síntese.

Como disse Benedito Nunes:

"0 pensamento de Fernando Pessoa não foi filosófico no sentido

tradicional do termo, porque foi, antes de tudo, uma arte do

paradoxo e uma concepção lúdico-artística da filosofia."

E o próprio poeta não se enganava com essa sua preocupação obsessiva: "Eu era

um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas."

Em seus Textos Filosóficos encontramos menções a praticamente toda a gama de

filósofos. Desde os gregos até os modernos ( Heráclito, Parmenides, Zenão, Górgias,

Platão, Protágoras, Sócrates, Anaxágoras, Aristóteles, Descartes, Kant, Leibniz,

Berkeley, Vico, Nietzsche, Pascal, Schopenhauer... ), Fernando Pessoa sondou

praticamente todas as possibilidades de posicionamentos do "eu" em face do mundo a

ser conhecido. Daí que sua poesia adquira um valor limítrofe ao da filosofia: o que se

abre para o Saber. Como ele próprio o diz a certa altura de suas reflexões:

"Uma corrente literária não passa de uma metafísica. Uma

metafísica é um modo de sentir as coisas /.../ As metafísicas têm

gradações; são modos mais ou menos intensos, mais ou menos

lúcidos de sentir o Universo. O materialismo está no mais baixo

nível, representa uma sensibilidade mínima perante o Universo,

um conceito estético reduzido, porque não vive a vida das coisas

em grau superior. Por isso não há grandes poetas materialistas."

Não esqueçamos que a Arte do momento lançava-se contra o universo positivista

que se oficializara como o pensamento diretor da Sociedade, e assim fechadas as vias de

acesso às realidades não-científicas, a Criação e a Metafísica viram-se em um "beco-

sem-saída"...

Enfim, o que nos importa ressaltar aqui é que, não só Fernando Pessoa, mas toda sua

geração, estava no encalço de um novo "conhecimento", de uma nova "abertura" para a

vida. Em face de uma cultura e de uma arte que se esfacelavam, recolocavam

interrogações sobre o Ser, o Estar-no-mundo e o Conhecer que os novos tempos

passaram a exigir.

A REVOLUÇÃO KANTIANA E A CRISE DA MODERNIDADE

Dissemos mais atrás que essa "crise do conhecimento", em nosso século, se dá

nos rastros da revolução kantiana e do avanço da Ciência. Pelo muito que as teorias de

Kant parecem ter atuado no pensamento de Fernando Pessoa e de sua geração, a

tomaremos aqui, como ponto de apoio, para tentarmos compreendermos, não

propriamente o mistério do processo criador fernandino, mas sim as idéias básicas que

nele teriam influído.

Em suas reflexões filosóficas ou sobre estética, são inúmeras as referências do

poeta ao pensamento do grande filósofo alemão. Em uma delas escrita em inglês, e com

data provável de 1906, Fernando Pessoa registra:

"Conhecemos as coisas, não como são, mas apenas como se nos

apresentam."(Kant) Tant d'hommes — tant de sensations.

A sociedade vulgarizou a sensação. A vulgaridade de nomenclatura e do sentido

de sensação adquirida são as causas dos nossos pensamentos e sentimentos serem todos

parecidos.

A matéria existe —como matéria. Existe por intermédio dos nossos sentidos. Para

o rústico, uma árvore é uma arvore; para um poeta é mais o que uma árvore. É mais ou

menos assim que vemos a matéria com a nossa falta de percepção espiritual. Assim

como aquelas montanhas que, vistas de longe, parecem escarpas despidas e áridas, mas

que vistas de perto não mostram rochas nem nenhuma aridez, antes pelo contrário vales

e grandes extensões de terra lavada.

Somos fracos espiritualmente, isto é, somos somente capazes de uma compreensão

material, a não ser que usemos os nossos poderes mais vastos e profundos.

No entanto, trazemos em nós o poder de aprender a verdade — não verdade

fenomenal, mas verdade numenal. Afirmo agora, e afirmarei sempre, que ao homem

escapou o mistério do universal somente por falta de vontade de pensar

profundamente."

Aí temos, expresso em linguagem reflexiva, o núcleo problemático de toda

produção poética fernandina e, em maior ou menor grau, de toda literatura modernista

dos primeiros anos do século: Obviamente, seria ingenuidade ou tolice, qualquer

tentativa de se isolar o fenômeno responsável pela crise da Cultura e da Arte que eclode

abertamente nesse momento. Bem sabemos que a teia das causas e efeitos ou o

imbricamento dos fenômenos é de tal ordem que jamais poderá ser deslindado em seus

vários componentes isolados. Essa impossibilidade não impede, porém, que o espírito

crítico continue tentando iluminar diferentes aspectos do fenômeno global, em busca de

possíveis explicações. É o caso do pensamento kantiano.

Sem pretendermos entrar nos meandros do lastro filosófico que pode ser

encontrado na poesia de Fernando Pessoa ( e de seus companheiros de geração... ) não

resistimos, porém, ao impulso de cotejá-la com a teoria que, nitidamente, lhe serviu de

ponto de partida. Assim, da complexa "revolução copernicana" ( expressão usada pelo

próprio filósofo ao definir suas próprias descobertas... ), operada por Kant a partir do

século XVIII, interessa-nos, aqui, apenas um aspecto: o que trata da possibilidade ou

impossibilidade de um conhecimento objetivo do universo ( homem/mundo/Deus ).

Em que consistiu, basicamente, essa "revolução" que está na base da renovação

romântica; que se aprofunda em crise, a partir dos "poetas malditos" (Baudelaire,

Rimbaud, Verlaine...), até explodir na iconoclastia dos "Ismos"... é o que procuraremos

sintetizar adiante, para chegarmos à multiforme experiência poética de Fernando

Pessoa.

A "SENSAÇÃO" COMO MEDIADORA DO CONHECIMENTO E O

SENSACIONISMO DE FERNANDO PESSOA

É principalmente na criação do Sensacionismo, atribuído a Álvaro de Campos que

está, a nosso ver, a realização poética mais próxima das premissas filosóficas de Kant.

Aliás, essa produção "sensacionista", produzida e publicada nos anos 1915 e 1916,

corresponde a um dos pontos mais altos da poesia fernandina, como expressado mundo

contemporâneo, isto é, o mundo construído pela Civilização da Técnica e da Máquina,

—onde as sensações humanas parecem explodir, tal o grau em que são provocadas.

Referimo-nos, precisamente, aos poemas: "Ode Triunfal" (publ.1.Orpheu-l.lºtrim.1915);

"Ode Marítima" (publ..2.Orpheu-2ºtrim.1915) "Saudação a Walt Whitmann" (escrito em

junho,1915); "Passagem das Horas" (escrito em maio, 1916) e "Casa Branca Nau Preta"

(escrito em out.1916). Neste último poema, já existe uma outra atmosfera, melancólica,

desalentada, que contrasta com a euforia vital que predomina nos primeiros e indica que

o "sensacionismo" de Álvaro de Campos estava se esgotando, ou pelo menos iria

enfatizar outros aspectos da possível apreensão do Real.

Nesses poemas, aparece de maneira indiscutível a intenção básica do processo Poético

de Fernando Pessoa: consumar a alquimia do verbo, ou melhor transubstanciar em

Palavra a "verdade"do Real, intuída pelas sensações.

Obviamente, não será por acaso que, nos anos 1915 e 1916, quando aqueles

poemas eram publicados ou escritos, Fernando Pessoa registrava também, em seus

manuscritos soltos, reflexões filosóficas e estéticas que indicam com clareza a

intencionalidade criadora que orientava, no momento, sua produção poética. Para se

compreender melhor o quanto a poesia fernandina foi "programada" ou era

"intelectualizada" ( como ele mesmo tantas vezes afirmou ) parece-nos bastante

esclarecedor um cotejo de textos. Vejamos, por exemplo, um fragmento de seus "textos

filosóficos", cuja data provável é dos anos acima mencionados (1915-1916).

"Tudo é sensação. /... / O espiritual em nós é a potência para sentir e o sentir é a

sensação, o ato. /.../ Tudo o que existe é um fato mental, isto é, concebido. /.../

Criar, isto é, conceber uma coisa como em nós, mas não em nós, /... / é concebê-la

como feita da nossa própria substância conceptiva, sem ser essa mesma

substância."

Aí temos enunciada de maneira óbvia uma explicação das relações entre eu e

mundo, tendo em vista o sentir, pensar e conhecer, de lastro kantiano. Tal lastro aparece

também em certas reflexões pessoais ( recolhidas em Páginas Íntimas... com data

provável de 1916, mas que talvez sejam anteriores à publicação dos poemas em questão

), onde Fernando Pessoa analisa teoricamente o que Álvaro de Campos realiza

poeticamente na diretriz do Sensacionismo, e com isso nos dá as "chaves" mais

adequadas para compreendermos a natureza da alquimia verbal ali pretendida pelo

poeta. Diz Pessoa:

"Nada existe, não existe a realidade, apenas sensação.

As idéias são sensações, mas de coisas não situadas no espaço e, por vezes, nem

mesmo situadas no tempo. A lógica, o lugar das idéias, outra espécie de espaço. /.../ A

finalidade da arte é simplesmente aumentar a auto-consciência humana. O seu critério é

a aceitação geral ( ou semi-geral ), mais tarde ou mais cedo, pois é essa a prova de que,

na realidade, ela tende a aumentar a auto-consciência entre os homens.

Quanto mais decompomos e analisamos as nossas sensações em seus elementos

psíquicos, tanto mais aumentamos a nossa auto-consciência. A arte tem, pois, o dever de

se tornar cada vez mais consciente."

Aí temos pelo menos três importantes premissas que alicerçam o universo poético

fernandino:

— a importância basilar das sensações na apreensão do mundo das relações: homem X

mundo exterior;

— a diferença de natureza entre "sensações" (ligadas à intuição) e "idéias" ( ligadas à

inteligência, à lógica, à razão ) e

— a finalidade pragmática da arte: tornar a humanidade auto-consciente das realidades

que lhe são essenciais à evolução...

Essas premissas podem ser rastreadas em todo o universo poético fernandino (ortônimo

ou heterônimo ); e é através dessa perspectiva ( a de o poeta tentar decompor e analisar

suas sensações até o fundo de seus componentes psíquicos, para aumentar sua auto-

consciência do Real que deve ser objetivado no poema ), que compreenderemos melhor

o ritmo torrencial dos poemas sensacionistas. Em "Ode Triunfal", por exemplo:

"A dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecido dos antigos

O rodas, õ engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Em fúria fora e dentro de mim.

..........................................................................................

Mais do que a euforia futurista de Marinetti ( a primeira a tentar encontrar o ritmo

e a atmosfera própria à civilização da máquina ); mais do que a adesão à "vitalidade

transbordante", ao "belo feroz" ou "à força sensual" do universo poético de Walt

Whitmann, os poemas sensacionistas de Álvaro de Campos expressam a experiência

quase apocalíptica do poeta contemporâneo, ao pretender expressar um mundo que

ultrapassou sua capacidade normal de apreensão, um mundo "totalmente desconhecido

dos antigos"... mas resultante irredutível destes últimos.

O poeta tenta ( e praticamente o consegue ... ) nos comunicar suas sensações in

totum. Não, a epidérmica visão do babélico mundo moderno que os futuristas

ofereciam, mas uma apreensão global, abrangente, que sugere o mundo como um

continuum vital, em que presente/passado/futuro se amalgamam na alquimia do verbo,

tal como na realidade cósmica as vivências estão amalgamadas.

"Canto, e canto o presente e também o passado e o futuro

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das Máquinas e das luzes elétricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão."

Com uma funda consciência da metamorfose, como processo fundamental da

vida, Fernando Pessoa, tal como os grandes criadores, seus contemporâneos, introjeta o

passado no presente, como algo vivo, que ocultamente dinamiza as realidades.

( É da mesma origem, o impulso que levava E.Pound, naquele mesmo momento,

a criar suas Personae e seus Cantos, onde ( pelo processo da intertextualidade ) vozes

poéticas do passado são absorvidas pela voz "poundiana" que, assim, expressa o

Presente como uma voragem, que o ontem dinamiza, e onde já se gera o amanhã. )

Esse é um dos aspectos fundamentais da poesia contemporânea, bem como da

fernandina: a diluição das fronteiras entre os "tempos" que regem nossa vida concreta,

para revelar o Tempo infinito que tudo engloba e que permanece desconhecido dos

homens.

Mas não é só dos "tempos" que se anulam as fronteiras. Na palavra de Pessoa há

uma grande ânsia de fundir "espaços" distintos e distantes em um só espaço abrangente

e perene. Como há também a ânsia de expansão da Individualidade, para que seja

alcançada a Totalidade do ser ou uma plenitude de sentir e ser, quase cósmica, na qual

pressentimos uma grande identificação com o fenômeno de nossos dias, o "mutante

cultural", ao qual voltaremos mais adiante, quando falarmos da atualidade de Fernando

Pessoa.

Entretanto, no geral da poesia fernandina, essa ânsia de expansão da

Individualidade desemboca na perda da identidade do "eu" e, conseqüentemente, na

despersonalização.

A CRISE DA MODERNIDADE E A DESPERSONALIZAÇÃO

Foi exatamente no início deste século que certas interrogações, provocadas pela

evolução das premissas kantinas, se avolumam e se tornam obsessivas ou angustiantes:

como posso saber se minha sensibilidade, sensações ou minhas intuições têm realmente

"formas a priori" que fundamentem em verdade o ser-das-coisas? como saber se essas

"formas" foram intuídas e não, simplesmente inventadas por mim? quem me garante

que estou expressando corretamente a minha intuição? e que não estou dando uma

forma falsa à coisa-a-ser-conhecida? até que ponto meu "entendimento discursivo",

minha "palavra" expressam com autenticidade meu pensamento?

Obviamente, as dúvidas quanto à possibilidade ou não de conhecimento, que vem

desafiando o homem pós-Kant, desde fins do século passado até hoje ( homem

pressionado por mil descobertas nas mais variadas áreas da Vida e da Cultura ), não se

colocam assim de maneira direta e simples ( ou ingênua ). Mas para nosso objetivo aqui,

tal enunciado é suficiente. E de certa maneira, podemos dizer que nessas interrogações

está uma das marcas mais flagrantes de modernidade que vai distinguir a poesia

tradicional da poesia contemporânea a despersonalização na qual a perda de identidade

do eu vai desembocar.

Pode-se dizer que essa perda de identidade do eu é o denominador comum que,

para além das enormes diferenças individuais, identificou os integrantes do grupo

"Orpheu" como uma geração literária. Não foi outro, o elemento apontado por Almada

Negreiros quando, em 1965 ( 509 aniversário da revista Orpheu ), escreveu:

"Ainda hoje desconheço felizmente a identidade dos inesquecíveis

companheiros do "Orpheu" /... / que foram os meus,

precisamente por nos ser comum uma mesma não identidade.

Éramos em realidade muito estranhamente diferentes uns dos

outros, e todos suspensos do mesmo fio de nos faltar território. E

assim nasce o profundo da palavra "companheiro".

O que Orpheu se propunha ser ( conforme o diz a Introdução de Luiz de

Montalvor ) era esse "território" comum, onde se encontrariam os exilados de si

mesmos e do mundo. Não é outra a "tecla" desde sempre percutida por Mário de Sá-

Carneiro, em poesia ou prosa. Em poemas de Indícios de Oiro, publicados no Orpheu 1

(1915), lemos:

"A ponte levadiça de Eu-ter-sido

Enferrujou — embalde a tentarão descer...

/.../

Percorro-me em salões sem janelas nem portas,"

"Esta inconstância de mim próprio em vibração

É que me há transpor às zonas intermédias,"

"Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:"

"— Ó pântanos de Mim — jardim estagnado..."

Também Ronald de Carvalho, nesse mesmo número inaugural de Orpheu,

escreve:

"Fujo de mim como um perfume antigo foge ondulante e vago de

um missal e julgo uma alma estranha andar comigo."

Note-se ainda que Fernando Pessoa escolheu para esse importante numero inicial

da revista( que deveria identificá-los como nova geração ), não poemas, mas o "drama

estático" O Marinheiro, cujo eixo problemático é exatamente a sondagem do "quem

somos?". ( Observe-se que a primeira proposta de comunicação entre as três donzelas

veladoras da.donzela morta é entreterem-se contando umas às outras o que foram,

apesar de saberem que esse contar "É belo e é sempre falso." )

Enfim, fácil é verificar que esse estranhamento ou esse desconhecimento de cada

um a respeito de si próprio ( e do mundo à volta ) era a tônica comum a essa geração de

artistas e escritores, nos primeiros anos do século. Diz Almada:

"Era a arte que nos juntava? Era. Arte era a solução. A nossa

solução comum. Era o neutro entre nós."

O que Almada diz aí ,com respeito à "geração do Orpheu", pode ser estendido a

toda a geração européia e americana que nos anos 10/20 fez sua entrada no mundo da

Literatura e da Arte. Por diversos que fossem os gêneros adotados por cada um ou a

natureza de suas obras, identificava-os uma mesma paixão: a da Arte em face a um

espaço cultural vazio ou agressivo, onde lhes "faltava território" para viverem em

plenitude. Esse "território" só a Arte, a Literatura podiam oferecer. Daí a importância

vital da forma a ser conquistada como expressão do novo, então apenas intuído em meio

ao "caos de sensações" oferecidas por um mundo de valores em naufrágio e valores em

gestação; daí, também, o fragmantarismo como processo de composição e acima de

tudo o esforço de libertação de uma identidade pessoal/social limitadora e a busca da

despersonalização.

A HETERONÍMIA : DESPERSONALIZAÇÃO VERSUS PERSONIFICAÇÃO

E aqui já nos aproximamos dos heterônimos fernandinos, nos quais essa busca de

despersonalização se funde com diferentes impulsos de personificação, resultando na

expressão de distintos estados de consciência que, por sua vez, expressam distintas

cosmovisões.

"De quem é o olhar / Que espreita por meus olhos?/ Quando

penso que vejo,/ Quem continua vendo / Enquanto estou

pensando?/ Por que caminhos seguem, Não os meus tristes

passos, / Mas a realidade / De eu ter passos comigo? Às vezes, na

penumbra / Do meu quarto, quando eu / Para mim próprio

mesmo Em alma mal existo, / Toma um outro sentido / Em mim o

Universo — / E uma nódoa esbatida / De eu ser consciente sobre

/ Minha idéia das coisas."

Para lã da conotação esotérica ou ocultista que têm esses versos, está bem

evidente a obsessão com o conhecimento acessível ao eu.

Distendido na ânsia do conhecer, o poeta sonda continuamente sua própria

consciência das coisas. Com esse gradativo aprofundar-se no eu, de quem se esperava a

revelação da verdade do mundo, o artista-criador viu-se cada vez mais reduzido a si

mesmo e, ao mesmo tempo, cada vez mais distanciado de sua própria identidade.

Sê plural como o universo." , diz Fernando Pessoa, reagindo à nova realidade

cósmico-social que se oferecia ao homem moderno da Sociedade Tecnológica.

Obrigado a apreender a caótica pluralidade de formas do universo, o eu tende também a

se pluralizar. Fragmenta-se, e aos poucos desaparece aquele "eu" uno ( do Romantismo

) que se apresentava como um centro fixo, nítido e que, acima de tudo, devia ser sincero

ao expressar seus sentimentos. E nesse sentido que se pode entender os conhecidos

versos de "Autopsicografia":

"O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente."

Pessoa apreende aí, com nitidez, a dialética entre eu pessoal X eu poético que se

impôs ao poeta moderno, obrigado a distanciar-se do seu eu comum, preso na teia social

e rotineira do mundo cotidiano, para poder ouvir com clareza o seu "outro" eu, o eu

criador, sensível e intuitivo que serviria de mediador entre o Conhecido e o

Desconhecido.

A esse repúdio do "eu" pessoal, individualizado e poderoso ( que está na base do mundo

romântico ) corresponde a despersonalização procurada a partir de então. Não se trata

mais de dar voz ao eu real do poeta, nem de lhe pedir "sinceridade de sentimentos"...

mas sim de entregar a experiência da criação à sua personalidade poética, —

personalidade fictícia, mas muito mais livre e verdadeira do que a real, e muito mais

capaz de estabelecer novos vínculos do Ser com o Mundo e de dar forma ou concretude

às novas realidades ( apenas intuídas e ainda não conhecidas pela razão comum ).

Essa nova experiência de criação, através de uma "personalidade poética" que

pouco ou nada tem a ver com a personalidade empírica do poeta e, pois, a marca

distintiva da "modernidade" que se instaura em nosso século e que Fernando Pessoa

procurou conscientemente, levar às últimas conseqüências. Pela singularidade de seu

gênio ou temperamento, a "despersonalização" exigida pela modernidade assumiu um

feitio absolutamente invulgar. Nem as "personae" de Ezra Pound, nem as "máscaras" de

Eliot podem ser comparadas à organicidade interna de cada. "personalização" assumida

por seus heterônimos ou semi-heterônimos... Conhecidos em conjunto, eles oferecem

um verdadeiro balanço da Poesia, desde seus primórdios registrados pela História até o

mundo-século XX, e também das diferentes possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo

que o Conhecimento punha em xeque naquele início da crise cultural, cujo processo se

desenvolve ainda hoje ...

O FENÔMENO DA HETERONÍMIA

É dentro dessa crise cultural que as interrogações sobre a heteronímia fernandina

podem ser colocadas. Obviamente, o dado fundamental é a personalidade singular do

poeta que, desde menino, revelou uma tendência inegável para a despersonalização, ou

melhor, pelo desdobramento da própria individualidade, como ele próprio o confessou

em várias ocasiões. A essa capacidade inata para a invenção, para a ficção, juntou-se,

por via cultural ( através dos estudos e da reflexão estética e filosófica intensificada ) a

influência da interrogação basilar da época: como conhecemos? E Fernando Pessoa, nos

rastros de Kant, afirma:

"Não conhecemos senão as nossas sensações. O universo é, pois,

um simples conceito nosso."

Mas não é um "eu" qualquer, comum... que poderá ter acesso a esse

conhecimento essencial. E pouco antes de Pessoa, Níetzsche afirmava:

"A história e as ciências da natureza foram necessárias contra a

Idade Média: o saber contra a crença. Contra o saber dirigimos,

hoje, a arte: volta à vida! Matriz do instinto do conhecimento!

Reforço dos instintos morais e estéticos!

É a um "eu" vivo, liberto das deformações do saber estratificado, e alimentado

pela criatividade artística, a quem se entrega a responsabilidade de redescobrir as novas

formas de vida, e por conseguinte as novas formas do conhecer. Conforme Pessoa o diz

em outra ocasião:

"O problema do conhecimento é a fronteira que, a um tempo une

e separa como toda fronteira, a física e a metafísica. Postos Sujeito

e Objeto, e Relação entre eles como, desde Kant se estabeleceu, o

último irredutível abstrato da experiência depurada, a teoria do

conhecimento metafísico, é a da relação essencial entre Sujeito e Objeto."

No afã de multiplicar as latentes possibilidades dessas relações essenciais, é de se

compreender que a multiplicação das personalidades poéticas tivessem surgido como

um recurso valiosíssimo. Uma vez que o "fato fundamental do universo" é alguém ter

"consciência dele", e uma vez que todo trabalho mental versa sobre a Relação que se

estabelece entre Sujeito e Objeto, e essa "relação" se identifica com a Realidade que

julgamos conhecer... conclui-se que, mudando um dado da "relação", isto é, o sujeito

pensante também mudará o resultado ou a natureza da mesma. Tantos "sujeitos" quantas

"realidades". Daí a multiplicidade incrível de verdades, conhecimentos, realidades que

se superpõem ou se desmentem reciprocamente em qualquer panorama histórico-

cultural, ou na vida cotidiana que cada um de nós conhece, ou também no universo

fernandino.

A ânsia de ser plural, que é comum a praticamente todos os artistas desses

primeiros tempos do Modernismo, torna-se facilmente compreendida. Sendo eu, um só

ser , uma só possibilidade de percepção ( por mais variadas que sejam as perspectivas, a

partir das quais eu me coloque ), não poderei ver, sentir, perceber e compreender o

ambiente ou o mundo que me situa, senão pelo meu prisma ... o que redunda fatalmente

em pobreza de visão, tendo em vista a multiforme dimensão do universo a ser

apreendido pelo conhecimento. A infinitude das formas latentes à espera de serem

descobertas, fatalmente me escapam.( Daí a tentativa da "auto-abertura" que as várias

técnicas da psicologia atual oferecem para que o eu atinja uma interação espontânea e

harmoniosa com o espaço global a que ele pertence, e que pela razão, só conhece

fragmentariamente...) Daí, também, o fenômeno que teria estado na origem dos

heterônimos, — não "personalidades" ou "sujeitos pensantes" criados ao acaso, mas sim

personalidades representativas de modos de ver, perceber e conhecer fundamentais ...

que se vem sucedendo no Tempo, pelo menos desde os gregos ...

Que consciência-de-mundo está presente em cada um deles?

Alberto Caeiro é o poeta ingênuo ( e pensador, embora não o admita ... ), para

quem o viver pleno decorre da adesão espontânea do homem as coisas, tais como são, e

no frui-las com despreocupada e alegre sensualidade.

Ricardo Reis é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita o Fatum, de

olhos abertos e para quem o viver ideal depende de o homem aceitar com calma lucidez,

a relatividade e a fugacidade de todas as coisas e assim, sem nada esperar de duradouro,

se furtar à dor das perdas inevitáveis.

Álvaro de Campos é o poeta moderno da dialética fundamental: eu civilizado

versus eu poético, tentando conhecer as antinomias latentes no novo ser-forjado-pela-

civilização, quando posto em confronto com o Absoluto.( Álvaro de Campos seria o

novo embrionário que hoje vemos aparecer, inconfundível, no "mutante cultural" dos

nossos dias. )

Bernardo Soares, o burocrata lisboeta, é o prosador poético em quem convive,

surdamente, sem angústias, o contraste de uma realidade cotidiana estreita ( presa às

necessidades materiais, e à rotina desgastante ) e a certeza de que, embora ausentes, há

ideais mais altos, aos quais a vida devia ser dedicada, para se realizar com plenitude.

Vicente Guedes, Antonio Mora, Rafael Baldaia, Barão de Teive, Alexander

Search... heterônimos ou semi-heterônimos, totalmente individualizados ou semi-

autônomos... cada um assume uma maneira especifica de ver, pensar e falar.

E Fernando Pessoa-ele mesmo, quem é? Teria existido esse "ele-mesmo"? Qual

seria sua face verdadeira? Ou melhor, seria plausível que buscássemos essa pretensa

"face verdadeira" quando sabemos que Fernando Pessoa fugiu sempre da identificação

pessoal? E só confrontarmos as inúmeras justificativas ou explicações acerca dos

heterônimos, que ele deixou registradas em cartas pessoais, em manuscritos soltos, em

"prefácios" projetados para publicação de sua obra, etc., etc., e nos daremos conta de

que Fernando Pessoa tentou enfatizar, de mil maneiras, o fenômeno fundamental que

estava na origem de sua heteronímia: o fenômeno da ficção, da invenção essencial,

exigida pela verdadeira poesia.

Portanto, quanto à sua produção dita "ortônima", como explicar a diversidade que

também a caracteriza? Em qual de seus diferentes aspectos estaria o verdadeiro

Fernando Pessoa-ele mesmo? No poeta de tendências simbolistas de "Hora Absurda"?

no poeta do "interseccionismo impressionista" de "Chuva Oblíqua"? ou no do

"paulismo", o poeta blasé em quem predomina o virtuosismo formal sobre a

preocupação espiritual? Ou no poeta esotérico da "Passos da Cruz"? Ou estaria no poeta

dramático? Ou ainda no poeta dos "poemas ingleses"? — aquele que registra a

perplexidade do homem diante do "cisma" que separou pensamento e mundo sensível, e

que perscruta o "abismo" que se interpõe entre a consciência e o eu que sente?

"Between me and my consciouness / Is an abyss." Ou será o poeta épico-místico de

"Mensagem", o que acreditava que "O mito é o nada que é tudo."? e que, por essa

crença, ao escrever a "epopéia" moderna da portucalidade, diluiu sua historicidade

fugaz no húmus mítico-místico de uma realidade perene, que transcende o cognoscível,

porque pertence ao mistério do destino humano.

Difícil dizer qual desses é o "verdadeiro" Fernando Pessoa. Apenas, o que se

percebe de imediato é que todas essas diferentes faces assumem uma postura igual:

estão voltadas para uma determinada investigação do Real ou do Mistério

incognoscível. O que se impõe também como fato inegável, é a importância que

Fernando Pessoa atribuiu ao mito, ou à consciência mítica para o poeta. E isso, não só

porque tal "consciência" aparece desde cedo em seus escritos ( o projeto de

"Mensagem" em já se encontra registrado em suas anotações, desde os anos 1O ), mas

principalmente pelo cunho de perenidade que tentou imprimir a cada produção

heterônima, com a matéria poética em grau maior, com que as construiu passo a passo.

Perenidade de mito, que o poeta tentou, de certa maneira, neutralizar diante do leitor,

pela invenção das biografias, com que pretendeu fixar, no cotidiano, algo que ele sabia

pertencente ao intemporal. Note-se que, entre os manuscritos de "Páginas Intimas",

onde ele explica mais uma vez sua "heteronímia" lê-se textualmente:

"Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que

pode obrar alguém da humanidade."

Se entendermos o mito como uma vivência, gesto ou situação... que se perpetua

no tempo, por se alimentar de um conhecimento ou de um valor essencial à cultura de

determinado grupo humano, podemos ver nos heterônimos ( e não só em Mensagem ) a

intenção do poeta em criar, em cada um deles, um pequeno universo mítico. Ou melhor,

um "universo" que representa uma determinada maneira de ver, pensar, fazer ou

conhecer que é essencial e verdadeira em-si-mesma, embora possa ser conflitante com

as maneiras representadas nos demais.

Embora verdadeiro e válido-em-si, o universo do homem rústico, ingênuo e

comum defendido por Alberto Caeiro, se chocará com a "verdade" defendida no

universo de Ricardo Reis ou no de Álvaro de Campos, e vice-versa. No entanto,

facilmente se verifica que nenhum desses "universos políticos" existe de maneira

arbitrária ou lúdica, isto é, dependente apenas da fantasia de seu autor. Mas, ao

contrário, são autênticos "universo de valores" construídos poeticamente, cujos

fundamentos são perfeitamente reconhecíveis como "verdades" atuantes em

determinadas épocas.

Seja valorizando a concretude do Real e do visível, seja tentando sondar o

invisível ... a poesia fernandina é bem eloqüente como fenômeno de modernidade:

exacerbando a responsabilidade de conhecer e de dar a conhecer que o Romantismo lhe

impusera como tarefa, a linguagem poética, neste século, empenha-se não mais em

imitar ou representar a realidade conhecida, mas em transfigurá-la, para que o novo que

nela está oculto, transpareça. Poesia, sendo expressão de vivências, sensações ou de

pensamento é, acima de tudo, um fenômeno de linguagem.

Daí que aos diferentes universos heterônimos correspondam diferentes processos

de composição poética e diferentes linguagens. A poética fernandina, se aplica bem o

que H.Lefebvre afirmou acerca de Baudelaire e Rimbaud, como poetas da modernidade:

"(neles) a linguagem humana se quer mundo e a palavra, criadora

de mundo. A poesia e o poema (enquanto objeto, —reunião de

palavras) se dizem enigma revelado do mundo, ao mesmo tempo

humano e sobrenatural. Acima da voragem do coração, acima dos

abismos cósmicos, recusando uma beleza pré-existente, o poema

será o objeto transparente, cristal que se basta e que, todavia,

resume o mundo refletindo-o na sua pureza.

A poesia proclama o primado da linguagem, sua possível perfeição, auto-

suficiência. Na e pela linguagem criadora ( poética ), dualidade, cisão, dilaceramento (

entre o ser e o real ) se resolvem. O ideal e o real, o abstrato e o concreto separados,

tradicionalmente, agora se encontram. O verbo, enfim, vai-se fazer carnal e sensível, a

carne e o sensível se metamorfoseiam em verbo. É a magia, é a Alquimia do verbo."

Em essência, foi essa a intencionalidade básica da poesia fernandina: consumar

em sua palavra a "alquimia do verbo", transubstanciar em palavra a verdade do real,

intuída por determinadas sensações. E, pois, o poema o que importa, e não, a pessoa do

poeta, sua identidade pessoal ou sua pretensa verdade pessoal.

A "DESPERSONALIZAÇÃO" E A ABERTURA PARA O "SER GLOBAL" : O

MUTANTE CULTURAL

É nesse sentido, também, que a despersonalização, como processo de criação

desempenhou um papel decisivo na "abertura" para o ser global, ansiado pelo homem

contemporâneo, e que, a nosso ver, no sensacionismo de Álvaro de Campos encontrou a

sua expressão mais perfeita. Leia-se, por exemplo, "Ode Triunfal":

"Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro de Esquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes volantes,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia a alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

/.../

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrênuos."

Para além do novo ritmo ou da nova velocidade que o homem tenta alcançar para

se sentir em sintonia com o mundo que ele mesmo construiu ( e que agora o ultrapassa ),

o que se faz patente, nesse fragmento de "Ode Triunfal", é a ânsia de expansão e fusão

que caracteriza o "eu" contemporâneo. Não mais a dicotomia "corpo" e "alma" ou

corpo/mente, mas um só corpo-soma: "parte-agente" deste universo espantoso: "Nova

Revelação metálica e dinâmica de Deus.", como diz o poeta mais adiante, nessa mesma

ode.

A idéia mais próxima que nos ocorreu, ao tentarmos "diagnosticar" o

contemporâneo em Fernando Pessoa ( principalmente, o espetacularmente registrado em

Álvaro de Campos ) foi a do "corpo somático" que, nestes últimos anos, vem sendo

investigado por fenomenólogos, psicólogos e cientistas de várias áreas ... Por ser uma

relação inesperada e insólita que se nos apresentava à reflexão, resolvemos investigar

sua possível legitimidade e retomamos o caminho de análise que vínhamos seguindo: o

de como Fernando Pessoa resolveu, em poesia, o problema do Conhecimento colocado

por sua época. Nessa atitude basilar, víamos ( e vemos ) a principal razão da absoluta

atualidade da poética fernandina, hoje, há mais de sessenta anos de distância de seu

início.

Ao perseguirmos, novamente, o esforço inventivo de Fernando Pessoa, para se

fazer mediador do universo, através de suas próprias sensações, acabamos verificando

que ele se identifica com aqueles pensadores/criadores revolucionários que Tomas

Hanna analisa como profetas ou arautos do "mutante cultural" de nossos dias: Kant,

Nietzsche, Freud, Darwin, Marx, Kierkegaard, Husserl, Sartre,etc.

Tendo-se dedicado à leitura e estudos de quase todos esses pensadores ( como

suas notas e reflexões o atestam ), Fernando Pessoa expressa em sua produção poética

os elementos básicos da evolução-mutação para a qual cada um deles contribuiu de uma

maneira. E isso, evidentemente, não porque os tenha lido, mas porque ele próprio foi um

desses super-perceptivos que se anteciparam aos tempos.

Lida à luz dessa evolução-mutação, veremos que novos aspectos da poesia fernandina

podem ser iluminados. E a certa altura, pareceu-nos sobremaneira fecundo ( para

posteriores estudos ) que tentássemos compreender essa singular poesia como uma

daquelas vozes que, desde o início do século, "profetizaram" o mutante que, nesta

segunda metade do século, singulariza o nosso panorama cultural. E assim nos

decidimos por esta abordagem, colocando de início a pergunta fundamental: em que

consiste esse "corpo somático" que caracteriza o "mutante cultural" deste século, e que

já vemos pressentido por.Fernando Pessoa?

Analisando o fenômeno, T.Hanna diz:

"À medida em que se chega ao fim deste último terço do século

XX, estamos assistindo ao final de um imenso período da cultura

humana, e simultaneamente, estamos experimentando uma

brusca e acelerada mutação em direção a uma cultura humana

radicalmente diferente. A chave para a compreensão desse

acontecimento evolutivo é o fato de que fomos bem sucedidos na

construção de uma sociedade tecnológica. /... / Não a

conhecíamos anteriormente, nem sonhávamos com ela, mas agora

que a estamos vivendo, sabemos que quando ocorrem mutações

culturais em alguma coisa tão inteiramente nova na história

humana (como a sociedade tecnológica), elas ocorrem

rapidamente: a mudança evolutiva, em lugar de ser vagarosa e

imperceptível, torna-se uma mudança revolucionária./.../

gerações sucessivas, vivendo nesse ambiente transformado, irão

elas mesmas transformar-se. Esses mutantes, em termos gerais,

parecerão os mesmos, mas não sentirão da mesma forma (porque

os seus corpos estarão respondendo a um novo ambiente) e

obviamente não irão comportar-se da mesma maneira (pois

estarão adaptados à nova forma pela qual eles vêem e sentem o ambiente).

E isto tem sido o impacto inicial da adaptação evolucionária

revolucionária: os protomutantes são considerados, pela

sensibilidade dos tradicionalistas culturais, como tendo "mau

comportamento" /... / Mas enquanto existir a sociedade

tecnológica, mais e mais mutantes aparecerão a cada geração e

eventualmente chegarão a dominar. Serão em número suficiente

para controlar as instituições políticas, econômicas e

educacionais. Já estão trabalhando. Começam a criar uma cultura humana."

T.Hanna desenvolve, a partir daí uma esclarecedora análise do atual "conflito de

culturas" ( não mais, conflito de gerações ), que estamos vivendo. Inicialmente põe em

questão os conceitos de moralidade/imoralidade ( tão vivamente presentes na poesia

fernandina e que são, sem dúvida, o ponto nevrálgico do conflito social de hoje ), e

chega enfim à "novidade" da mutação em processo: o corpo humano. E, a partir de uma

cuidadosa e inteligente revisão das "descobertas" filosóficas e científicas que, desde o

século XIX, vieram preparando a atual mutação, T.Hanna chega ao "soma" que deve

resultar da evolução-revolução em marcha, — um "Eu, ser corporal" em inter-ação com

o novo espaço/tempo, e que sentimos muito vivo no eu-que-fala no Álvaro de Campos

sensacionista.

Conforme T.Hanna: "Soma não quer dizer "corpo", significa "Eu, ser

corporal"/.../ Os somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse momento, nesse

lugar onde você está. O soma é tudo o que você, pulsando dentro dessa membrana frágil

que muda, cresce e morre, e que foi separada do cordão umbilical que unia você — até

o momento da separação — a milhões de anos de história genética e orgânica desse

cosmos. Somas somos eu e você, querendo sempre a vida, e sempre em maior

abundância. Somas somos eu e você, irmãos em um envoltório membranoso comum,

em uma comum mortalidade, em um ambiente comum, em uma confusão comum e uma

oportunidade comum, agora, de descobrir muito mais do que já soubemos a respeito de

nós mesmos. /.../ O novo mundo a ser explorado pelo Século XXI é o imenso labirinto

do soma, da experiência corporal e viva dos indivíduos humanos. E nós, do último terço

do século XX, fomos nomeados descobridores e cartógrafos desse continente somático.

Durante as próximas gerações, os indivíduos humanos deixarão de pensar em si mesmos

como mentes ou espírito ( em oposição aos corpos ) precisamente no grau em que eles

começam a descobrir-se na imediaticidade dos seus somas."

Isolando os elos mais próximos da complexa cadeia-em-reação que desemboca na

mutação atual, T.Hanna analisa o pensamento de Heidegger com a "questão do Ser"; de

Nietzsche e a "nova consciência do Super-Homem ou o Homem Total"; de Freud e o

"trauma do ovo"; de Marx e a "comunidade dos corpos", etc., etc. E dá ênfase especial à

"revolução copernicana" realizada por Kant, como sendo a primeira manifestação da

cultura somática que o nosso século está construindo. E conclui :

"... as várias falhas específicas de Kant não são nada em

comparação com a revelação e a revolução que ele provocou no

nosso entendimento de nós mesmos e do mundo externo que

experimentamos. Antes de Kant, havia apenas o mundo:

soberano, onipotente e magnificente, enquanto jogava luz nas

humildes câmaras fotográficas humanas, tão dependentes e vazias

(Descartes). Depois de Kant, a pequena caixa negra já não estava

vazia nem colocada em humilde dependência: tornara-se plena,

viva e palpitante de estruturas inexploradas, processos e

possibilidades. Emmanuel Kant tinha descoberto o soma humano."

E neste momento voltamos a Fernando Pessoa.

Realmente não parece ser muito difícil identificarmos aquela ânsia incontida de

expansão/fusão do Eu com a Totalidade do Espaço/Tempo, que vimos mais atrás, com a

preocupação nuclear do pensamento em nossos tempos, que T.Hanna chama de

"mutação somática".

Mais uma vez provando a superioridade da arte em relação à filosofia, na intuição

das novas realidades, Fernando Pessoa ( da mesma forma que Joyce, Pound, Eliot,

J.L.Borges, surrealistas, etc., etc. ) antecipa, em sua poesia a mutação humano-cultural:

a fusão eu/Mundo, hoje abertamente procurada e já em processo de concretização. Essa

ânsia, ele a afirmou de mil maneiras.

Em suas reflexões filosóficas:

"Tudo é sensação. Sensação compõe-se do objeto sentido e da

sensação propriamente dita." "Arte é a auto-expressão forcejando

por ser absoluta."

E em sua poesia, como em "Saudção a Walt Whitmann":

"Abram-me todas as portas

Por força que hei-de passar!

/.../

Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,

E que há de passar por força, porque quando quero passar sou

Deus!

/.../

Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos

Os meus versos-ataques-histéricos

Os meus versos que arrastam o carro de meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro.

MAL FERNANDO PESSOA, A DIALÉTICA DE SER

E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

/.../

Não quero intervalos no mundo!

Quero a contiguidade penetrada e material dos objetos!

Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas

Não só dinamicamente, mas estaticamente também!"

Nem é preciso análise para se encontrar nessa torrente verbal, a ânsia de

expansão/fusão do Eu com o Mundo, com o Todo, — ânsia que, impossível de ser

vivida concretamente, é vivenciada pela palavra poética.

Um ser em metamorfose, mais pleno, mais completo é pressentido pelo poeta,

como aquele que deve e pode corresponder as novas dimensões do mundo-século XX,

onde novas regiões se descobrem a cada passo. Não será por acaso que, no poeta

sensacionista, proto-mutante, a principal força dinamizadora, desse desejo avassalador

de expansão/fusão, seja o erotismo que vibra através de todo o longo poema. E, na

verdade, que outra força existe, que dê maior sensação de plenitude do que essa

expansão/fusão erótica do eu com o outro ( e consigo mesmo )? Talvez a força mística,

que Fernando Pessoa também desde o início de sua criação poética tentou vivenciar em

sua poesia esotérica.

Esta foi a outra via tentada pelo poeta ( e talvez mais importante que a

"sensacionista"), para "reconhecer" outras dimensões de ser e conhecer, ansiadas pelo

homem. Via essa que, embora se apresente quase sempre brumosa, mostrando o corpo

como exílio ou mergulhada na pré-ciência de vidas anteriores, se identifica plenamente

com o romper dos limites procurado pelos proto-mutantes e que, um dia, será natural

nos mutantes. Nesse sentido é de-se crer que a dramática dicotomia ( corpo-espírito-

universo ) nos serão desvendados, como a unidade essencial que, hoje, só a fé ou a

percepção mística podem dar.

Que Fernando Pessoa acreditava nessa unidade visceral ( que a cultura somática um dia

provará ... ) nos confirma um de seus mais belos poemas, "Eros e Psiquê", onde o poeta

desenvolve o conhecido mito do mesmo nome, que nos mostra a Alma despertada pelo

Amor. ( Mito da Antiguidade Clássica que se vulgarizou na literatura popular medieval

e vive até hoje na literatura infantil na estória da "A Bela Adormecida" ). Além de ser

interpretado como uma teoria na alma, o mito Eros e Psiquê tem sido compreendido por

muitos estudiosos, também como uma busca do conhecimento. Em Fernando Pessoa,

para além de seu sentido espiritualista e esotérico ( onde aquelas duas interpretações

confluem ) pode-se perceber claramente o "pressentimento" mutante.

Leiamos o poema:

"Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,

A cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A princesa que dormia.

(maio — 1934)

A metaforização é clara, pois coincide com a "situação"narrada pelo mito: a

princesa adormecida que seria despertada pelo príncipe que a encontrasse, e também

todo o caminho da busca. Entretanto, a inversão operada por Fernando Pessoa, no final

transformando o "Infante" na própria "Princesa encantada", altera por completo a

significação tradicional do mito, e abre uma outra possibilidade de resposta para essa

eterna busca do homem. A da expansão/fusão somática que o eu mutante sem dúvida

conhecerá ...

Todo o longo processo da procurarem que o homem está empenhado há milênios,

registra-se claramente nesse poema ( "Ele tinha que, tentado / Vencer o mal e o bem" ).

E também a certeza de que há o caminho para o encontro final e decisivo ( "Mas cada

um cumpre o Destino / Ela dormindo encantada/ Ele buscando-a sem tino / Pelo

processo divino / Que faz existir a estrada." ), ao fim do qual as eternas dicotomias se

resolverão em síntese ...

O que resta de evidente, afinal, é que "a estrada existe" para que a humanidade

caminhe. Quem a faz caminhar? e para onde? são as perguntas que há milênios vem

sendo colocadas e obtendo as mais diferentes respostas da Arte, da Filosofia, da Ciência

e da Religião... Na cultura somática ( ou qualquer nome que venha a ter, afinal ... )

haverá, sem dúvida, a síntese que Fernando Pessoa ( e outros como ele ... ) com sua

Penalidade pressentiu ser possível.

Aguardemos que o tempo o revele ... Por enquanto, para meditarmos nas

respostas que Fernando Pessoa tentou encontrar, em todos os minutos de sua vida, aqui

temos a sua bela e desafiante produção poética.

Fernando Pessoa foi um super-perceptivo e a preocupação com atingir uma nova

consciência-de-ser, de estar-no-mundo e de conhecer está presente de ponta a ponta em

sua poesia. Mas, tal como os demais poetas ou pensadores entregues a tal problemática,

ele sabia que essa nova "consciência" ou "percepção" não dependia apenas de uma

aprendizagem intelectual, — não poderia ser ensinada ou aprendida pela inteligência,

mas que resultaria de um processo de amadurecimento interior, de evolução ou

mutação: a que resultara da adaptação do homem ao novo ambiente cultural

(tecnológico/eletrônico) que ele próprio inventou, construiu e que agora o desafia...

Tal como a consciência iluminada dos budistas ou zenbudistas, não se trata

apenas de um novo entendimento intelectual das coisas, mas principalmente de uma

nova vivência, uma nova mentalidade, nova "gestalt" Será a revolução "somática", — a

que ultrapassar de muito a "revolução kantiana".

E para a preparação da auto-consciência que deverá iluminar o caminho, a poesia

é um dos grandes mediadores... Como disse Fernando Pessoa: "A finalidade da Arte é

simplesmente aumentar a auto-consciência humana." Bem sabemos ( como ele também

o sabia ) que arte não é só isso... Entretanto, nestes tempos de mudança, e de

rebaixamento geral da cultura essencial ao ser humano, é bom que a encaremos assim...