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ARTIGO EM TCC © Rev. online Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, SP, v.2, n.2, p.149-160 , fev. 2001. 149 O DESENHO E SUAS RELAÇÕES COM A LINGUAGEM ESCRITA EM ALUNOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA MENTAL Wanda Pereira Patrocinio INTRODUÇÃO O presente trabalho nasceu de uma pesquisa de sondagem sobre a aprendizagem da linguagem escrita em deficientes mentais, na qual verificou-se que essas crianças, em alguns momentos, desenhavam ao invés de escrever. Essa investigação vem, também, preencher uma lacuna, pois notamos a escassez de trabalhos sobre o desenho de crianças deficientes. Para Vygotsky, o desenho deve ser interpretado como um estágio preliminar do desenvolvimento da linguagem escrita, estágio este entendido mais do que como uma simples antecedência temporal. Mesmo que nossa pesquisa esteja voltada para crianças “deficientes mentais”, é relevante percebermos como a deficiência é enfocada; não se pode considerar o deficiente mental como uma pessoa apenas receptora mecânica de conhecimento que os outros possuem, sem nunca ter participado da construção de qualquer saber. É preciso considerar este aluno como um ser que age, decide e pensa por seus próprios meios, principalmente ao trabalharmos na perspectiva da teoria histórico – cultural, que considera que o indivíduo (normal ou deficiente) é constituído pela/na trama de relações sociais. A tese que fundamenta os trabalhos da Defectologia (VYGOTSKY, 1989) é a de que a criança, cujo desenvolvimento tem sido complicado por um defeito, não é sensivelmente menos desenvolvido que seus coetâneos normais, é uma criança, porém desenvolvido de outro modo. A perspectiva vygotskyana analisa a questão da deficiência de forma qualitativa e não mais meramente quantitativa. Dessa maneira, a criança, em cada etapa do desenvolvimento, em cada fase sua, apresenta uma peculiaridade qualitativa, uma estrutura específica do organismo e da personalidade; a criança com deficiência representa um tipo peculiar, qualitativamente distinto de desenvolvimento. GÜTLER (1927) afirma que a deficiência mental infantil deve ser encarada como uma variedade singular, como um tipo especial de desenvolvimento e não como uma variante quantitativa do tipo normal.(In VYGOTSKY, 1989: 03) 2) OBJETIVOS: Tivemos como propósitos neste trabalho: Buscar uma melhor compreensão do desenho produzido por crianças portadoras de deficiência mental. Dar oportunidades para que o desenho se manifestasse e se elaborasse nessas crianças.

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ARTIGO EM TCC

© Rev. online Bibl. Prof. Joel Martins, Campinas, SP, v.2, n.2, p.149-160 , fev. 2001. 149

O DESENHO E SUAS RELAÇÕES COM A LINGUAGEM ESCRITAEM ALUNOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA MENTAL

Wanda Pereira Patrocinio

INTRODUÇÃO

O presente trabalho nasceu de umapesquisa de sondagem sobre aaprendizagem da linguagem escrita emdeficientes mentais, na qual verificou-se queessas crianças, em alguns momentos,desenhavam ao invés de escrever. Essainvestigação vem, também, preencher umalacuna, pois notamos a escassez de trabalhossobre o desenho de crianças deficientes.

Para Vygotsky, o desenho deve serinterpretado como um estágio preliminar dodesenvolvimento da linguagem escrita,estágio este entendido mais do que comouma simples antecedência temporal.

Mesmo que nossa pesquisa estejavoltada para crianças “deficientes mentais”, érelevante percebermos como a deficiência éenfocada; não se pode considerar odeficiente mental como uma pessoa apenasreceptora mecânica de conhecimento que osoutros possuem, sem nunca ter participadoda construção de qualquer saber. É precisoconsiderar este aluno como um ser que age,decide e pensa por seus próprios meios,principalmente ao trabalharmos naperspectiva da teoria histórico – cultural,que considera que o indivíduo (normal oudeficiente) é constituído pela/na trama derelações sociais.

A tese que fundamenta os trabalhosda Defectologia (VYGOTSKY, 1989) é a

de que a criança, cujo desenvolvimento temsido complicado por um defeito, não ésensivelmente menos desenvolvido que seuscoetâneos normais, é uma criança, porémdesenvolvido de outro modo.

A perspectiva vygotskyana analisa aquestão da deficiência de forma qualitativa enão mais meramente quantitativa. Dessamaneira, a criança, em cada etapa dodesenvolvimento, em cada fase sua,apresenta uma peculiaridade qualitativa, umaestrutura específica do organismo e dapersonalidade; a criança com deficiênciarepresenta um tipo peculiar, qualitativamentedistinto de desenvolvimento. GÜTLER(1927) afirma que a deficiência mentalinfantil deve ser encarada como umavariedade singular, como um tipo especial dedesenvolvimento e não como uma variantequantitativa do tipo normal.(InVYGOTSKY, 1989: 03)

2) OBJETIVOS:

Tivemos como propósitos nestetrabalho:• Buscar uma melhor compreensão do

desenho produzido por criançasportadoras de deficiência mental.

• Dar oportunidades para que o desenhose manifestasse e se elaborasse nessascrianças.

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• Observar os processos espontâneos deutilização do desenho por tais alunos.

• Confrontar o material gráfico destessujeitos com sua produção escrita com ointuito de investigar as possíveis relaçõesexistentes entre desenho e linguagemescrita.

3) MATERIAIS E MÉTODOS:

Foram realizadas observaçõessemanais1 do material produzido pelosalunos de uma classe especial de uma escolaestadual na cidade de Campinas,empregando como forma de trabalho aanálise qualitativa. Outra parte da pesquisafoi desenvolvida dentro da rede debibliotecas da Universidade Estadual deCampinas.

Para compor os dados, além dasleituras e observações, levamos atividadesque propiciaram aos alunos a elaboração emanifestação do desenho como uma formade linguagem; demos ênfase aos trabalhos dedois sujeitos: um alfabetizado, mas que nãogostava de desenhar e outro que desenhavabem, mas que não sabia escrever.

4) RESULTADOS E DISCUSSÃO:

Para análise das produções gráficasdos sujeitos, levamos em consideraçãoalguns aspectos que nortearam o andamentode nosso trabalho:• A visão genética ou desenvolvimentista

do desenho: estágios e fases;• Fala egocêntrica e fala social no

processo de produção do desenho;• A relação entre desenho e escrita;• A concepção de “savant” relacionado

ao desenho (cf. página 9)

1 No período julho/99 - julho/2000.

4.1) A visão genética oudesenvolvimentista do desenho: estágios efases.

VYGOTSKY (1987) afirma que asetapas através das quais as crianças passamem seus desenhos são mais ou menoscomuns para as crianças da mesma idade.Tanto este autor como muitos outros fizeramuma descrição da evolução do desenho emcrianças normais. Até o momento nãoencontramos nenhum autor que tratasse daevolução do desenho de crianças deficientesmentais, mas REILY (1986) utiliza-se dosestudos de Lowenfeld & Kellog (que porsua vez, se basearam nos trabalhos deLuquet) para descrever os estágios pelosquais a criança passa no desenho,enfatizando o que ocorre em criançasdeficientes. São cinco fases existentes naevolução do desenho, “no caso da criançaexcepcional, pode haver umdesenvolvimento artístico mais lento, comotambém pode ocorrer um estacionamentoem algum estágio, sem progresso aparente.”(REILY, 1986: 12-13) As fases são: garatuja, pré -esquemática, esquemática, realismo visual enaturalista. A primeira fase é a fase dosrabiscos, quando a criança exploralivremente o espaço do papel, rabiscandonão por motivos estéticos, mas por prazercinético. No início seus rabiscos sãodescontrolados, muitas vezes, semfocalização visual do papel; num certomomento, a criança descobre que os riscossão feitos por ela própria, começando a seconcentrar na atividade com interesserenovado, passando a controlar seusrabiscos.

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A criança não passa diretamente dorabisco ao desenho do homem cabeça -pernas. Ela desenvolve do rabiscodescontrolado ao rabisco controlado, dorabisco nomeado ao rabisco em formato, daforma com um traço até a junção das formasdescobertas. A criança deficiente, aindasegundo Reily, pode ficar muito tempo nestafase dos rabiscos e, se o professor nãoconhece a evolução que acontece nesta fase,ele não vai saber reconhecer odesenvolvimento que a criança está tendo. Na fase pré - esquemática ocorre oprocesso de junção das formas, a criançadescobre a “mandala”: círculos concêntricos,círculos cruzados, até quadrados cruzados,figuras perfeitamente simétricas. Aparece oasterisco: o sol, que é a primeirasimbolização da criança. É assim quesurgem, como uma elaboração da mandala,o homem, os animais e as flores. Fase esquemática: o esquema é aforma humana que a criança escolhe comoseu desenho definitivo, que ela vai usardaquele momento em diante, modificando-oapenas quando as circunstâncias o exigem.Este esquema é muito individualizado, poiscada criança descobre o seu. A grandemudança da fase anterior está narepresentação do espaço; as figuras não sãomais colocadas aleatoriamente no papel, masnum conjunto inter - relacionado, sendo aprimeira indicação desta evolução a linha debase, que pode ser o chão, a rua, água domar ou um morro e tudo fica em cima destalinha base, perpendicular a ela; o céutambém é representado como uma linha quefica na parte superior da folha. O desenho desta fase é muitopessoal, retratando as experiências que sãorelevantes para a criança, mas REILY(1986) coloca que, dificilmente a criançaexcepcional deficiente mental ultrapassa esta

fase esquemática para atingir as fasesseguintes. A autora continua citando que édifícil encontrar uma criança excepcional,mesmo de “nível educável” (conceitoutilizado pela autora), que tenha alcançado onível de elaboração artística da fase dorealismo visual, principalmente quando nãohouve quase oportunidade para o seudesenvolvimento artístico. Esta fasecaracteriza-se pela riqueza de detalhe e apreocupação em representar os objetosrealisticamente. A criança não exagera maisnem omite partes menos importantes, maselabora essas partes através de detalhes.Para representar espaço, ela se apoia emuma linha de base, preenchendo a área embaixo e trazendo o céu até o chão. Criaplanos e os sobrepõe, para mostrar o queestá na frente. O sistema de dobragem e raio- x são considerados absurdos nesta fase enão aparecem mais; a cor assume umaimportância renovada, mas ainda não setrabalha luz e sombra, nem efeitostridimensionais. A criança procura novasformas e não repete mais o seu velhoesquema corporal. Fase naturalista: nessa fase, atemática utilizada por cada sexo - meninos emeninas passam a se diferenciar; osmeninos passam a desenhar mais coisasmecânicas, como foguetes, carros, fábricas,etc., enquanto meninas desenham animais,principalmente o cavalo e figuras humanas. Afigura humana passa a ter proporçõesadequadas; a criança começa a desenhar afigura em movimento, retratando inclusive asarticulações dos membros - braços, pernas- pela primeira vez. Já que a autora faz referência aosestágios percebidos por Luquet,consideramos relevante colocar uma citaçãodeste teórico, citação esta, que a nosso ver,tem relação principalmente com o processo

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de evolução do desenho em criançasportadoras de deficiência mental: “Aevolução individual do desenho, como todasas modificações de atividade, está sujeita aregressões.” (LUQUET, 1969: 212). Seessa afirmação é válida mesmo para ascrianças ditas "normais", veremos que entrenossos sujeitos também encontramosmomentos em que surgem tais regressões.

Embora esse aspectodesenvolvimentista não tenha merecido umaimportância fundamental em nossas análises,parece-nos interessante apresentar doisdesenhos que por suas características seenquadrariam dentro do realismo visual,indicando também alguns traços típicos donaturalismo.

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4.2)Fala egocêntrica e fala social no processo de produção do desenho.

SILVA (1993) afirma, que a perspectivahistórico – cultural “possibilita ver o desenhocomo um signo empregado pelo homem econstituído a partir das interações sociais.”(p. 11). Além disso, as teses dessa teoriaapontam para a necessidade de se examinaro desenho a partir de outros ângulos, entreos quais, a relação estabelecida com a fala.“Importa considerar tanto a fala auto -organizadora quanto a fala nas trocasdialógicas, que permeiam a atividade dacriança e que tem sido negligenciada naanálise do desenho.” (idem: 18). VYGOYSKY (1993) vai tratar dafala egocêntrica de uma forma mais geral nasatividades da criança, porém ela serácompreendida, para nosso caso específico,como relevante na atividade de desenho: “...

tal fala vai, progressivamente, tornando-seapropriada para planejar e resolverproblemas, à medida que as atividades dacriança tornam-se mais complexas. Esseprocesso é desencadeado pelas ações dacriança; os objetos com os quais ela lida,representam a realidade e dão forma aosseus processos mentais.” (p. 20) Em uma perspectiva diferente da deVygotsky e sem relação com a falaegocêntrica, WIDLÖCHER (1990) tambémconsidera a questão da fala no momento daprodução do desenho; ele afirma queobservar a criança desenhar e escutar seuscomentários enquanto desenha, nos permitepenetrar em todo um campo de conexõesassociativas, semânticas e afetivas, que o

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simples diálogo raramente dá ocasião deapreender. O que pudemos notar, ao finaldeste trabalho, é que não surgiu esta falaegocêntrica citada pelos autores acima.Todos os trabalhos teóricos aos quaistivemos acesso e que tratam da questão dafala egocêntrica enquanto as crianças estãodesenhando, estão relacionados às criançasnormais; VYGOTSKY (1987) afirma quede todas as formas de criação literária, a arteda palavra, do falar é mais típica da idadeescolar. Todavia, nos momentos deobservação, não foi notado a presença dafala egocêntrica; quando os alunos falavamdurante o processo de produção dodesenho, exigiam a atenção do outro, suafala estava sempre voltada para o outro queinteragia com ele naquele momento. Quemsabe, até, podemos considerar estaocorrência como uma singularidade dosalunos portadores de deficiência mental: aausência de fala egocêntrica e uma plenautilização da fala social. Talvez haja algomais a ser pesquisado e aprofundado nestesentido, em trabalhos futuros.

4.3) A relação entre desenho e escrita.

Reily, em sua Dissertação deMestrado, cita que existe uma estreitaligação entre o desenho e a escrita. Ambossão meios de expressão e comunicação,determinados por habilidades próximas demotricidade e pensamento simbólico. “ Odesenho, todavia, possibilita uma leitura queultrapassa a linguagem individual de cadaum, ao passo que a escrita é dependente dalinguagem.” (REILY, 1990: 66)

Em entrevista com a professora AnaAngélica Albano Moreira2, ela acrescentaque no desenho tudo subsiste ao mesmotempo: “em apenas um olhar você enxergatudo, já no texto escrito, você tem que lerpalavra por palavra para poder entender”.Em suma, há uma simultaneidade napercepção dos elementos do desenhocontraposta à linearidade da fala e daescrita. MEREDIEU (1974) também tratada função simbólica no desenvolvimento dacriança, afirmando que a evolução dodesenho depende intimamente da evoluçãoda linguagem e da escrita, pois “é uma parteatraente do universo adulto, dotada deprestígio por ser secreta, a escrita exerceuma verdadeira fascinação sobre a criança, eisso bem antes de ela própria poder traçarverdadeiros signos.” (p. 9) Entretanto, encontramos umaafirmação de Harste e colaboradores quequestiona a visão corrente que afirma ser odesenho nascido antes da escrita. Essesautores “consideram que há uma relaçãorecíproca, de apoio mútuo, na atuação dacriança ao desenhar e aprender a escrever.”(In REILY, 1990: 67) AZENHA (1995) pesquisou osfatores que explicam a ocorrência e omovimento dos processos de diferenciaçãográfica, ensaiando explicações quebuscassem continuidades funcionais entre osrabiscos e as primeiras formas de organizardiferenciações decorrentes da compreensãoda escrita como signo cultural. Segundo aautora, no período que corresponde à pré –história, reencontramos a mesma evoluçãona forma de usar imagens com fins deescrita, que, neste caso, sofrem o mesmo 2 Profa. Dra. da Faculdade de Educação daUniversidade Estadual de Campinas, Laboratóriode Arte - Educação.

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processo de simplificação realizado pelascrianças analisadas em seu estudo. Aesquematização do desenho e seuconseqüente afastamento da imagem visualdo objeto é também característico dahistória da escrita neste período primitivo.(Ver quadro a página 10 e o que a autoraescreve a respeito). Em relação à afirmação de Harste ecolaboradores, parece-nos que Azenha vemconcordar com eles quando cita que,“desenho e escrita parecem ocupar lugarescomplementares na produção gráfica e aimagem não aparece paralela à escritaapenas para garantir a evocação dossignificados às quais esta se refere. Desenhoe escrita “dizem” um em relação ao outro enão são redundantes.” (1995:175)

Para completar WIDLÖCHER(1971) assinala que “historicamente a escritanasceu de um encontro entre a coisadesenhada e a palavra.” (p. 77) Através dos dados teóricos pode-sedizer que, historicamente, o desenho nasceuprimeiro que a escrita. Nos primórdios, oshomens usavam o desenho como meio dememorização e organização; a escritacuneiforme surgiu dos signos querepresentavam determinados elementos. (cf.Quadro da página 10) Para nós, é factual que a criançaprimeiro começa a desenhar e, ao longo deseu desenvolvimento, vai aprendendo alinguagem escrita, mas não podemosconsiderar o desenho como estágio

preliminar, pois são linguagens que secomplementam e, em muitos casos, secompletam. Se o desenho fosse um estágiopreliminar para a ocorrência da escrita,então como se explicaria o caso de nossosdois sujeitos? Por um lado, o Lu., cujasproduções são muito primitivas; se realmenteconsiderássemos o desenho como estágiopreliminar, este aluno ainda não teriacondições de escrever, e no entanto, é umaluno praticamente alfabetizado. Por outrolado, temos o Jo., que apresenta desenhosriquíssimos em detalhes e cores; deveriasaber escrever muito bem, o que não ocorre.(Ver desenho de Jo na página 11 e de Lu.na página 12.) Por esses exemplos, notamos quemesmo aceitando que na história dahumanidade, o desenho precede a escrita,essa seqüência não ocorre, necessariamente,no nível ontogenético.

4.4) A concepção de “savant”relacionado ao desenho.

Para HILL (1978), “savant” é “umapessoa mentalmente retardadademonstrando uma ou mais habilidadesacima do nível esperado de indivíduo nãoretardado.” (In REILY, 1994: 17). Utiliza-se, portanto, o termo savant para: “pessoasque têm apresentado habilidadesextraordinárias em áreas específicas dodesempenho humano.” (REILY, 1994: 21)

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(PRODUÇÃO DE JO.)

Através da leitura do trabalho deReily que traz vários casos de savants,encontramos um que nos fez lembrar o Jo.por vários aspectos; no grupo de discussãoda pós – graduação em Psicologiacoordenado pela professora Dra. LuciBanks Leite (FE/UNICAMP) discutimoseste assunto e pareceu-nos provável que oaluno Jo. seja um savant.

Vamos ao caso: Richard Wawro(REILY, 1994: 44) se apóia em imagensvistas em livros ou na televisão, ou desenhade memória cenas de paisagens vistas comseus binóculos. Jo. se apoia em imagensvistas em livros, cadernos, cartazes e emcenas presentes em sua vida diária. Wawroapresenta alguns comportamentos autistas:

obsessão por rotina fixa, distanciamentosocial, gestos bizarros, comportamentoritualístico e atraso na evolução dalinguagem. Em Jo., percebemos umcomportamento ritualístico; por exemplo,quando ele vai desenhar, primeiro apontatodos os lápis de cor que vai usar, colocaem ordem crescente na mesa e organiza seusobjetos em uma ordem específica; se alguémmuda algum lápis ou objeto de posição, elepára imediatamente e recoloca no localcerto. É um aluno de pouca amizade, quasesempre está sozinho concentrado em suaatividade e no intervalo fica correndo aoredor do pátio se divertindo sozinho. Nãopercebemos uma obsessão por rotina

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(PRODUÇÃO DE LU.)

fixa, mas uma certa tendência que vai nessesentido: sempre quando chegava na sala,colocava sua mochila na mesa e ia pegar umgibi para folhear. Em relação a sua linguagemverbal, esta é prejudicada principalmentequando fica nervoso; nessas ocasiõesapresenta um ataque de gagueira. Em sua página 125, a autoracoloca os aspectos ausentes da produçãosavant, aspectos estes ausentes também naprodução de Jo.: não se encontraminstâncias de imagens abstratas; ausência deconteúdo de origem pessoal claramentesimbólica, reveladora do mundo interior; nãose evidencia humor, caricatura, piadas oujogo de imagens incompatíveis; não se

encontram imagens de sonho ou alucinação,nem imagens que transmitem medo ou terror;não se apresentam metáfora e analogias,nem tampouco imagens de origem religiosa. Já em relação aos aspectoscomuns na produção dos savants, dos dezitens, sete foram encontrados na produçãode Jo. e dos outros três, um não foiobservado, os aspectos são: surgimento“espontâneo” (sem treinamento prévio) dahabilidade artística; desenho de temáticafigurativa; agilidade na execução; ausênciade padrões decorativos; evidência de uso deregras; restrição na seleção de temas etécnicas; representação de memória; emrelação a este último aspecto, temos algumas

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dúvidas, pois o Jo. gosta muito de copiar,porém, em muitas ocasiões faz desenhos dememória.

A seguir, colocaremos umdesenho feito por Richard Wawro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O estudo do desenho infantil já é umtema bastante explorado na literatura, algoque vem sendo tratado de longa data. Ooriginal de LUQUET é de 1927 e o deVYGOTSKY (1987) é de 1930. Então,muitos devem se perguntar: por que será quevão pesquisar algo que já está tão falado? Pensamos que o que teve de originalem nosso trabalho foi a abrangência daquestão, como muito se tem estudado nodesenho de crianças ditas “normais”,acreditamos que muito há, ainda, a sepesquisar no desenho e na produção artísticade crianças com “problemas”. Nósescolhemos os deficientes mentais, oumelhor, alunos de uma sala especial de uma

escola regular e como pudemos notar, Reilyjá deu início a uma pesquisa nessa área. No começo do trabalho não nosinteressávamos pela questão das fases eestágios na evolução do desenho, esseinteresse só veio a tona quando percebemosque tínhamos algo a discutir em relação aessa evolução relacionada às criançasdeficientes. Acreditamos que os estágiospodem dar indicações interessantes do quese pode esperar das produções da criança.Entretanto, não se deve utilizar essesestágios como meio de rotular as crianças,nem tampouco de prever uma futuraevolução. Enquanto aluna do curso dePedagogia da Universidade Estadual deCampinas, sinto que esses dois anos que

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venho me relacionando com alunosdeficientes mentais trouxe uma contribuiçãomuito importante para nossa pesquisa e quenão esperávamos: * a quebra de preconceitos, pois agrande maioria da sociedade percebe osdeficientes mentais como pessoas “idiotas” esem capacidades; contudo, essa classeespecial nos mostrou a grande diversidadeexistente nesse grupo e, como através detrocas em diferentes níveis, váriashabilidades e capacidades pouco evidentesem uma primeira abordagem, têm apossibilidade de surgir.

* decorrente do anterior, torna-seevidente que mesmo dentro de uma classeespecial, há uma multiplicidade de casos,razão pela qual não podemos colocar todosos alunos dentro de um mesmo “pacote”;cada aluno deficiente como, também, cadaser humano tem suas singularidades epossibilidades que só as interações sociais ea convivência nos permite perceber.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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LUQUET, Georges – Henri (1969) Odesenho infantil. Barcelos: CompanhiaEditora do Minho. (original: 1927)Tradução: Maria Teresa Gonçalves deAzevedo.

MEREDIEU, Florence de (1974) Odesenho infantil. São Paulo: EditoraCultrix. p. 01-66.

REILY, Lúcia H. (1986) Atividades deartes plásticas na escola: hoje é meu dia,

dona aula de artes? São Paulo: Pioneira.p. 01-36

________. (1990). Nós já somos artistas:estudo longitudinal da produção artísticade pré - escolares portadores deparalisia cerebral. Dissertação deMestrado. São Paulo: USP - IP.

________. (1994) Armazém de imagens:estudo de caso de jovem artista portadorde deficiência múltipla. São Paulo: USPTese de Doutorado (IP).

SILVA, Silvia M. C. (1993). Condiçõessociais da constituição do desenhoinfantil. Dissertação de Mestrado.Campinas: UNICAMP.

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________. (1993) Pensamento elinguagem. São Paulo: Martins Fontes. p.13-21. Tradução: Jefferson Luiz Camargo.

WIDLÖCHER, Daniel. ( 1971)Interpretação dos desenho infantis. Riode janeiro: Vozes p. 07-115 (Original: 1965)

________. In: WALLON, PH.;CAMBIER, A. & ENGELHART, D.(1995) El dibujo del niño. México: Sigloveintiuno editores. Prefácio: p. 07-11.(edição original, 1990).

Wanda Pereira Patrocinio Faculdade de educação

UNICAMP Fapesp