artigo corporativismo

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Noções de corporativismo. Considerações a respeito da inserção e da trajetória de um conceito. Vinícius dos Santos Fernandes * Resumo: Este artigo procura compreender a trajetória e a inserção do conceito de corporativismo nos contextos europeu e brasileiro. Para isso, está estruturado de maneira a permitir uma compreensão mais genérica do conceito para então, analisar a maneira pela qual esse conceito se insere nessas duas conjunturas e as transformações e adaptações que ele sofreu em cada um dos casos. Neste sentido, o corporativismo é um conceito fundamental para entender o panorama político da primeira metade do século XX. Palavras-chave: Corporativismo, Política e Autoritarismo. Introdução ou a constatação do problema. Durante longa tradição na historiografia nacional e internacional, o tema do corporativismo esteve associado ao surgimento de Estados Autoritários ou Totalitários, como uma espécie de doutrina que dá fundamentação teórica à experiência política dos países que optam pela radicalização da via direitista. * Graduado em História pela UFRRJ/IM. Membro do grupo de pesquisa: Revendo a relação entre o movimento operário e Estado na América Latina: O sindicalismo classista no México, Argentina e Brasil, coordenado pelo Prof. Dr. Alexandre Fortes.

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Page 1: Artigo Corporativismo

Noções de corporativismo.Considerações a respeito da inserção e da trajetória de um conceito.

Vinícius dos Santos Fernandes*

Resumo:

Este artigo procura compreender a trajetória e a inserção do conceito de

corporativismo nos contextos europeu e brasileiro. Para isso, está estruturado de maneira a

permitir uma compreensão mais genérica do conceito para então, analisar a maneira pela qual

esse conceito se insere nessas duas conjunturas e as transformações e adaptações que ele

sofreu em cada um dos casos. Neste sentido, o corporativismo é um conceito fundamental

para entender o panorama político da primeira metade do século XX.

Palavras-chave: Corporativismo, Política e Autoritarismo.

Introdução ou a constatação do problema.

Durante longa tradição na historiografia nacional e internacional, o tema do

corporativismo esteve associado ao surgimento de Estados Autoritários ou Totalitários, como

uma espécie de doutrina que dá fundamentação teórica à experiência política dos países que

optam pela radicalização da via direitista.

Muito dessa associação deriva da apropriação feita pelos regimes totalitários que

surgiram na Europa no período do entreguerras, de certos elementos do corpo teórico

corporativista. As experiências fascista e nazista contribuíram também para impregnar certa

carga pejorativa ao conceito, em virtude dos “horrores da guerra” e da condenação posterior a

qualquer característica presente nesses dois regimes políticos.

A associação corporativismo/fascismo teve representação em terras nacionais quando

da crítica (ou análise) do Governo de Getúlio Vargas, principalmente quando da implantação

do Estado Novo em 1937, por setores da oposição política (aos contemporâneos) e por setores

da intelectualidade brasileira preocupados com a questão da incorporação das classes

populares ao Estado Brasileiro, sobretudo aqueles que buscam ver na montagem do aparelho

estatal getulista a expressão de uma máquina dominadora.

* Graduado em História pela UFRRJ/IM. Membro do grupo de pesquisa: Revendo a relação entre o movimento operário e Estado na América Latina: O sindicalismo classista no México, Argentina e Brasil, coordenado pelo Prof. Dr. Alexandre Fortes.

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Tendo base neste panorama, o objetivo principal deste breve estudo é o de contribuir

fornecendo indicações e perspectivas para um melhor entendimento do conceito através de

uma análise de suas trajetória e aplicação prática em determinados contextos históricos.

Uma análise do conceito.

Para se entender o conceito e sua aplicação nas Ciências Humanas e Sociais, faz-se

necessária uma breve caracterização, seguida de uma explanação de seu desenvolvimento. De

maneira geral, o corporativismo é entendido como uma doutrina ou sistema sócio-político

baseado na representação dos interesses dos grupos sociais junto ao Estado ou às esferas mais

altas de poder em função de atividades profissionais, tendendo à harmonia entre esses setores

para a realização de um bem comum, algo maior que extrapola os interesses definidos de cada

grupo social.

“O corporativismo é uma doutrina que propugna a organização da coletividade baseada na associação representativa dos interesses e das atividades profissionais (corporações). Propõe, graças à solidariedade orgânica dos interesses concretos e às formas de colaboração que daí podem derivar, a remoção ou neutralização dos elementos de conflito: a concorrência no plano econômico, a luta de classes no plano social, as diferenças ideológicas no plano político”( INCISA, 1995. p. 286).

Fica evidente, neste sentido, a referência à experiência da centralidade das comunas e

das corporações de ofício na Idade Média.

Além disso, é importante destacar a pretensa incompatibilidade teórica, pelo menos em

essência, entre liberalismo e corporativismo, na medida em que o primeiro pressupõe um

processo de individualização, de libertação do indivíduo das limitações que o impediam de

desenvolver suas potencialidades (preconizando uma dinâmica conflituosa e competitiva, já

que os indivíduos possuem uma infinidade de interesses); e o segundo, um processo de

limitação dos interesses individuais em função do bem da coletividade, fundando uma ordem

social harmônica.

Como último componente, destacamos a profunda associação entre o conceito e a

chamada doutrina social da Igreja. Por essa tendência harmonizante, muitas vezes, o

corporativismo foi utilizado e visto, por alguns defensores do processo de industrialização,

como instrumento privilegiado de defesa desta ordem social, caráter que, de modo algum, é

unânime entre seus principais teóricos, entre os quais

Page 3: Artigo Corporativismo

“Sobrevive em alguns a desconfiança em relação à sociedade industrial e a nostalgia de uma sociedade descentralizada, baseada nos corpos intermédios, que vão da família à sociedade local e à associação profissional, e trazem ao indivíduo remédio para sua solidão, assegurando-lhe, em um quadro pluralista, dentro de um equilíbrio de poderes e posições, um mais profundo sentido de participação política.” (INCISA, 1995. p. 287).

A partir da compreensão da complexidade dessa relação entre liberalismo e

corporativismo é que se faz necessária a identificação e distinção de dois tipos de

corporativismo, o chamado “tradicional” ou “contra-revolucionário” e o “dirigista”.

O primeiro tem caráter antiliberal e profunda ligação com a doutrina Social da Igreja

que, se põe à parte do processo modernizador desencadeado pela Revolução Industrial e

busca, através da divulgação de um ideal de solidariedade entre as classes marginalizadas do

sistema, a restauração de uma ordem anterior.

Esse tipo de corporativismo não logrou muito êxito em função das limitações que lhe

foram impostas pela dinâmica de funcionamento da sociedade liberal. As ações católicas

informadas por esse modelo corporativo, logo se viram obrigadas a aceitar a luta de classes e

o sistema democrático – representativo em suas estratégias.

O corporativismo dirigista parece derivar exatamente da constatação desses limites.

Ele provoca uma ruptura com o primeiro por promover uma conciliação do corporativismo

com a industrialização, num processo onde os conflitos e interesses particulares de cada grupo

são dirimidos e a cooperação entre os mesmos é estabelecida pelo Estado, para a manutenção

do mesmo.

Do corporativismo Europeu.

Antes de uma análise um tanto quanto mais detalhada, é necessário situar

historicamente, isto é, cronologicamente, o debate acerca do tema.

A inserção do corporativismo no horizonte político dos países europeus remete ao

período do entreguerras. Neste contexto ele se apresentava como opção entre os excessos do

comunismo e o liberalismo que, como demonstra Hobsbawm, encontrava-se em processo de

crise. Como mostra o autor, esse período assistiu a um intenso processo de queda da ideologia

liberal, provocada principalmente pela desilusão com os progressos do liberalismo, decorrente

das conseqüências catastróficas da primeira Grande Guerra. Estava aberto o espaço para

difusão de novas ideologias. Neste contexto, duas forças se mostravam presentes, a direita e a

Igreja.

Page 4: Artigo Corporativismo

Sobre esse processo de queda do liberalismo, Hobsbawm afirma que a principal

ameaça aos regimes liberal-democráticos partia, neste momento, da direita política. Essa

ameaça vinha de três movimentos: os “reacionários antagônicos”, os idealizadores de um

“estatismo orgânico” e o(s) movimento(s) fascista(s). Para efeito de análise restringiremos o

escopo do estudo aos dois últimos movimentos por sua relação direta com o tema da presente

análise.

A idéia de estatismo orgânico sugerida por Hobsbawn tem definição próxima, se não

idêntica, ao que aqui denominamos corporativismo tradicional ou católico. Em suas palavras:

“Um segundo tipo da direita produziu o que se tem chamado de “estatismo orgânico” (...), ou regimes conservadores, não tanto defendendo a ordem tradicional, mas deliberadamente recriando seus princípios como uma forma de resistir ao individualismo liberal e à ameaça do trabalhismo e do socialismo.” (HOBSBAWN, 1995. p. 117)

Baseava-se assim, na recusa ao liberalismo e na aceitação da cooperação entre as

classes sociais, muitas vezes delimitada enquanto uma “democracia orgânica”. Não à toa o

autor identifica a existência desse sistema em países católicos.

O outro movimento a que nos cabe fazer referência é o fascismo. Este nutria

basicamente as mesmas bases do “estatismo orgânico”, sobretudo seu caráter antiliberal, mas

diferia deste na medida em que atuava diretamente na mobilização das massas.

“A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da política democrática e popular que os reacionários tradicionais deploravam, e que os defensores do “Estado orgânico” tentavam contornar.” (HOBSBAWN, 1995. p. 121)

Permeando todo esse movimento do período existiu a questão da atuação da Igreja

católica. Como ressalta Jessie Jane V. de Souza, foi nesse período que a ação católica passou

a se pautar no corporativismo, constituindo-se como elemento constitutivo da doutrina social

da Igreja e como uma espécie de terceira via, alternativa ao liberalismo e ao comunismo,

ambos movimentos repugnados pela instituição eclesiástica.

“(...) foi com a encíclica Quadragesimo anno, promulgada em 15 de março de 1931 por Pio XI, cujo papado ocorreu durante o período entre as duas grandes guerras, que o corporativismo foi introduzido no debate do catolicismo social.

Naquele contexto, o corporativismo surgiu como uma resposta às novas inquietações dos católicos envolvidos na ação social e foi visto por estes como a possibilidade de a Igreja se fazer presente no mundo de então. Era preciso que os

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católicos se pronunciassem sobre a restauração da ordem social e seu aperfeiçoamento em conformidade com o evangelho.” (SOUSA, 2006. pp. 424-425)

É a influência dessa doutrina que se percebe nos movimentos direitistas que

emergiram, então, no cenário europeu. Foi nela que os teóricos do fascismo, por exemplo,

buscam inspiração para a montagem de seu aparelho estatal. Em comum todos estes

movimentos alimentavam um sentimento de repulsa a toda a tradição política que se

inaugurou com a Revolução Francesa. Contudo, há que se relativizar os termos dessa

semelhança/proximidade.

Apesar da constatação de um inimigo comum, a Igreja não apoiava abertamente o

fascismo e recusava a idéia de Estados totalitários. Junte-se a isso o fato de o corporativismo

católico, diferentemente do adotado no fascismo, não ter um caráter unívoco, ou seja, não

pregar a união das corporações em torno do ideal maior que se concretizava no Estado, nem

surgiu por iniciativa do mesmo. Tinha caráter plural e surgiu por iniciativa da sociedade civil.

Completando esse cenário de derrocada do liberalismo e ascensão de regimes

totalitários e/ou, corporativistas, surge a questão da opção da socialdemocracia européia, no

período demarcado, pela defesa dos regimes constitucionais e da democracia como estratégia

de atuação, num processo que Eley denominou, “constitucionalização da socialdemocracia”.

Como já referenciado antes, desvelou-se nesse período um intenso processo de crise

dos referenciais liberais que, associado à deflagração da revolução na Rússia (que trouxe à

cena um novo foco revolucionário), provocou a instauração de uma situação potencialmente

revolucionária em virtude, sobretudo, dos estragos da Guerra.

O medo dessa radicalização acabou provocando uma reação defensiva da social

democracia, que optou por fazer alianças com setores mais conservadores, excluindo da pauta

a atuação extraparlamentar em função de um ideal reformista, que, por se basear no

corporativismo, contemplava as bandeiras de luta dos movimentos trabalhistas, e da

instauração de uma nova ordem socialista por dentro do sistema.

Neste sentido, Eley foge dos esquemas clássicos de definição do corporativismo ao

mostrar que projetos políticos corporativistas também se delineavam no horizonte político da

esquerda. Medidas que, de certa maneira, se assemelhavam às fascistas no sentido de assinalar

a conquista de determinados direitos por parte dos trabalhadores, ainda que isso significasse

sua incorporação ao Estado ou a descrição de uma estratégia de atuação dentro dos limites

estabelecidos pela legislação.

Page 6: Artigo Corporativismo

Não que isso significasse, obviamente, qualquer tipo de manipulação dos interesses

dos trabalhadores por parte do Estado, já que a opção corporativista da esquerda estabeleceu-

se em relação complementar a um forte desempenho parlamentar.

Esse reformismo foi garantido enquanto a prosperidade capitalista permitiu a execução

das reformas. A profunda crise econômica que se inaugura a partir de 1929 viria a abalar essa

situação. Contudo, ao invés de provocar uma ruptura nas alianças socialdemocratas com os

setores conservadores, a crise veio mostrar que, mais uma vez, aquela optou pela ortodoxia

teórica em detrimento da radicalização política.

“A radicalização da agenda política significava a mobilização popular, de formas extraparlamentares e portanto perigosamente transgressoras, que forçaria os limites normativos da política, assustando as classes dominantes e seu apoio popular e levantando da mesma forma o espectro do bolchevismo.”(ELEY, 2005. p.285)

O corporativismo brasileiro.

No caso brasileiro, a maioria dos autores é enfática ao indicar o início da década de 30

como o período de implantação do corporativismo no Brasil, sobretudo com a implantação do

Estado Novo por Getúlio Vargas. As raízes e causas da implantação desse projeto

corporativista remontam, entretanto, à experiência política da Primeira República e os

excessos de seu liberalismo.

Além disso, os debates giram em torno da questão se o corporativismo brasileiro teria

se constituído enquanto projeto integral de governo ou se foi utilizado um tanto quanto

pragmaticamente, tendo sua contribuição se resumido a um determinado setor da sociedade,

sobretudo o econômico.

Longe de querer esgotar o tema do corporativismo brasileiro, o intuito deste trabalho

reveste-se de caráter indicativo, das problemáticas, limites e contribuições de diversos autores

acerca do tema e sua acepção ou integração na política nacional.

Como uma primeira contribuição importante, destacamos a obra de Francisco Martins

de Souza. Em seu, “Raízes teóricas do corporativismo brasileiro”, o autor desenvolve uma

linha de argumentação que visa mostrar que o corporativismo, para além de mera importação

de um modelo estrangeiro e apesar da reafirmada inspiração no fascismo italiano, se revestiu

de elementos altamente originais, calcados na experiência do desenvolvimento do pensamento

autoritário brasileiro, constituindo solução original, própria para os problemas nacionais. Para

tanto, o autor recorre a já propalada associação entre o desenvolvimento do pensamento

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autoritário e a implantação de medidas corporativas, como se tais medidas fossem apanágio

da direita política. Entretanto, incorpora um novo componente importante do corporativismo

brasileiro, o nacionalismo.

Neste sentido, o autor recupera a trajetória intelectual e as formulações de Alberto

Torres, e parece traçar uma linha evolutiva de pensamento, embora não seja efetivamente esse

o intuito, que passa pelas considerações acerca do Integralismo de Plínio Salgado, Miguel

Reale e Gustavo Barroso, desembocando nas acepções acerca do Estado Novo de Azevedo

Amaral para, finalmente, analisar as contribuições de Francisco Campos.

Na raiz dessa formulação teórica que se inaugura com Alberto Torres, estariam os

problemas da recente experiência democrática da Primeira república, e a desilusão de amplos

setores da sociedade com os limites encontrados para o desenvolvimento democrático nesse

período. Eclodindo, então, certo sentimento autoritário no país, um clamor por soluções

autoritárias, que teve sua formulação primeira na ideologia nacionalista de Alberto Torres.

É a partir do amadurecimento dessa doutrina, baseada no centralismo e nacionalismo

políticos modernizadores, que se dá o desenvolvimento posterior do corporativismo brasileiro.

“Amadurecida a ideologia nacionalista, será posta em andamento pelos intelectuais das décadas de vinte, trinta e quarenta, com profunda influência nos jovens oficiais do Exército, o chamado tenentismo.” (SOUZA, 1999. p. 84)

A despeito de sua influência posterior o corporativismo brasileiro só será alvo de

melhor sistematização quando da eclosão do movimento integralista. A partir de então, será

acrescido do elemento do pensamento católico ou da influência da Doutrina Social da Igreja.

Nos anos 30, associado à crença generalizada na ineficiência do capitalismo em

resolver os problemas sociais e ao descrédito acumulado pelos partidos políticos, o

corporativismo será alvo de nova teorização dessa vez por parte de Azevedo Amaral e

Francisco Campos, que procuram montar e legitimar o arcabouço teórico do Estado Novo.

Entretanto, distanciando-se dos projetos desses dois intelectuais, o projeto de Estado

efetivamente levado a cabo por Getúlio Vargas terá um componente a mais, o castilhismo

positivista.

“A peculiaridade do castilhismo reside na admissão de que aposse do poder político constitui a condição essencial e suficiente para educar a sociedade na busca do bem comum. O bem comum deixa de ser uma barganha entre interesses, sustentados por grupos sociais diversificados, e passa a ser considerado como objetivo de saber, de ciência.” (SOUZA, 1999. p. 154)

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É interessante ressaltar que o corporativismo brasileiro, para Francisco de Souza

Martins, está restrito ao âmbito econômico. Tal afirmação deve-se ao fato de o autor situar a

adoção strictu sensu do corporativismo, na década de 30. Neste sentido, comporiam o

arcabouço corporativo todo o aparato desenvolvido por Getúlio com o intuito de organizar as

relações de trabalho no Brasil. Fato que fica melhor explicitado, quando analisado o adendo

feito por Antônio Paim e que se intitula: “Pensamento e Ação Corporativa no Brasil”.

Segundo o próprio autor: No Brasil não houve nenhum empenho em tomar o corporativismo

como doutrina globalizante, salvo talvez numa das vertentes do integralismo. (SOUZA, 1999.

p. 125)

Estas são basicamente as influências teóricas que o autor elenca na formação do

corporativismo brasileiro e que, de certa maneira, são relevantes para o entendimento da

constituição desse conceito no Brasil e para o entendimento das contribuições posteriores.

Ângela de Castro Gomes, no artigo intitulado: “Os paradoxos e os mitos: o

corporativismo faz 60 anos”, visa esclarecer o tema do corporativismo na política brasileira. A

autora propõe a existência de certos aspectos pelos quais seria interessante pensar o tema do

corporativismo. Para efeito de análise, daremos ênfase a apenas dois deles, a saber: a

existência de uma certa tradição associativa de tipo corporativo, que remonta à Republica

Velha, e as razões da produção do discurso, no período pós-30, que afirmava ser este o

período por excelência da implementação de medidas corporativas. Na visão da autora, essa

segunda característica reveste-se de sentido por entender que:

“(...) ao produzir um discurso que visava monopolizar a experiência corporativa para o período do pós-30, estava sendo produzida, igualmente, uma certa conceituação do que era o “corporativismo brasileiro”, conceituação marcada por uma associação com a tradição política de nosso pensamento autoritário, florescente desde os anos 20.” (GOMES, 1991. p. 51)

Sobre o primeiro aspecto, a autora afirma que se desenvolveu no Brasil uma tradição

de estudos que visam esclarecer os termos da formação de atores coletivos e a participação

desses atores no espaço público brasileiro. Neste sentido, a análise de alguns trabalhos

clássicos como o de Wanderley Guilherme dos Santos e de Elisa Pereira Reis dá

fundamentação à tese de que, no período em questão, havia uma restrição da atuação de

amplos setores da sociedade no âmbito das representações político-partidárias, em que pesem

na questão as análises das ambigüidades e limites do liberalismo brasileiro presente na

Primeira República, e uma valorização da atuação através da esfera político associativa ou do

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associativismo de classe. Contraria-se assim o já referido discurso que propunha a ausência de

instituições associativas e de representação na Primeira República.

Para o entendimento das razões que levam à formulação de tal discurso, a autora se

dedicou à analise da obra de Oliveira Vianna. Ela ressalta que, para este pensador, o problema

principal residiria na desarticulação do povo na primeira República. Ele até percebia as

intensas movimentações sociais que estavam ocorrendo durante a Primeira República,

entretanto, a negação em seu trabalho dessa tradição associativa, se deve à intenção deliberada

de se fazer esquecer, ou no mínimo de não considerar, a experiência de representação desse

período, por ter uma concepção própria do que consistiria o corporativismo. Para ele,

“corporativismo era a forma de estabilizar a ordem política e faze-la promotora do

desenvolvimento econômico, ampliando-se a participação do povo”. (GOMES, 1991. p. 56)

Esse processo de implantação de um discurso e mesmo da implantação efetiva de uma

ordem corporativista ganha reforço no Estado Novo. Nesse momento ocorre um

distanciamento do projeto político de Vianna do projeto efetivamente implementado por

Vargas. No modelo corporativista de Vianna, o partido é substituído pelo sindicato

corporativo como canal preferencial de representação dos interesses dos grupos sociais. Isso

se concretiza no projeto Varguista através da implementação das leis trabalhistas. Contudo, o

afastamento ocorre a partir do momento em que, através da ideologia trabalhista, ocorre uma

aproximação entre o sindicato e o partido.

“Portanto, os anos que medeiam 1942 e 1945 são chaves para a implementação do “corporativismo brasileiro”, que se mostra flexível, ganha legitimidade com a ideologia trabalhista e começa a ser preparado para conviver com partidos políticos. É neste contexto que nasce o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), competindo com o tradicional Partido Comunista (PC) e destinado a se aproximar dos sindicatos de trabalhadores, contrariando a norma separatista de Vianna.” (GOMES, 1991. p. 60)

Um dos estudos também já tradicionais a respeito do assunto é o trabalho de Luiz

Werneck Vianna, “Liberalismo e sindicato no Brasil”.

Para este autor, tributário da tradição marxista sociológica dos anos 60, o

corporativismo só pode ser entendido dentro do processo de desenvolvimento e implantação

do capitalismo no Brasil. Para ele o processo de aburguesamento e, consequentemente da

implantação do liberalismo enquanto ideologia da sociedade, se inaugurou a partir do

processo de independência do Brasil e da constituição do Estado Nacional. Entretanto, esse

processo só se veria completo a partir do momento em que o indivíduo estivesse totalmente

inserido na ótica do capital, nas relações do mercado, pois só assim o indivíduo estaria em

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condições de estabelecer o pacto que funda a ordem liberal já que baseada no princípio de

igualdade, ao menos no aspecto jurídico-político, entre os homens.

O autor vê o estabelecer desse processo, no Brasil, no período que abrange a Primeira

República, em virtude da abolição da escravidão. Entretanto, a ordem política desse período é

marcada por uma ambigüidade fundamental. Por um lado, assistia-se a um processo de

fundação de uma nova ordem baseado nos princípios do liberalismo e da democracia, por

outro, o processo de estabelecimento dos setores dominantes na sociedade não sofreu

alteração, visto que continuava desempenhando esse papel, a classe agrário-exportadora.

Nem o crescente processo de modernização econômica do Estado, ou seja, da

implantação de um setor Urbano-Industrial e do crescimento da acumulação capitalista

burguesa pôs fim a esse domínio (estabelece-se na primeira república o que o autor denomina

complementaridade de interesses entre os setores da recente burguesia industrial e os setores

das oligarquias agrário-exportadoras), que só verá seu fim no processo revolucionário

desencadeado em 1930 em função das constantes pressões democratizantes exercidas por

diversos setores da sociedade, tais como: as classes médias urbanas representadas, por

exemplo, no movimento tenentista; e as oligarquias dissidentes ou que se viam desfavorecidas

pelo sistema político de então, a chamada Política dos Governadores, complementada pelo

sistema Coronelista.

O sistema inaugurado com o movimento de 1930, entretanto, ao invés de propor um

sistema baseado nos pressupostos básicos do liberalismo clássico, aos moldes do da Primeira

República, adotou o corporativismo enquanto doutrina que propugnava a incorporação “por

cima”, ou controlada, dos novos setores sociais alçados ao espaço público. Controle que se fez

evidente nas determinações das leis trabalhistas. A dinamização do espaço público e a

presença cada vez mais ativa dos setores mais baixos da sociedade são constatadas, sobretudo,

na ampliação e diversificação dos movimentos migratórios.

Neste sentido, segundo Jessie Jane V. de Souza,

“para Luiz Werneck Vianna, o corporativismo seria uma resposta às pressões sociais sem, no entanto, ser a única solução possível para a resolução destes mesmos conflitos. Representava uma condenação à participação do governo no sistema produtivo como um meio de resolver a crise econômica; apresentava características oriundas da sua adequação à ideologia revolucionária e seria voltado especialmente para os conflitos gerados no setor urbano – fabril, com controle sobre a classe operária vista como capaz de desestabilizar a ordem social.” (SOUSA, 2006. p.435)

Esta autora, por sua vez, desenvolve estudo altamente contributivo no sentido de

delimitar as influências do chamado “corporativismo católico”, no Brasil. Esta tradição

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remete diretamente à definição antes referenciada de corporativismo tradicional. Baseia-se

numa concepção antiliberal da sociedade, propõe a divisão e estruturação social em função

das corporações ou associações profissionais tendo em vista sempre a coletividade ou o bem

comum, aqui identificado ao ideal de justiça social.

No caso brasileiro, porém, não aspirava à volta de uma tradição medieval. Aceitava a

inevitabilidade das transformações decorrentes da Revolução Francesa contudo, opunha à

agressividade do ideal liberal a noção de justiça social calcada na idéia bastante difundida da

incapacidade do capitalismo de resolver os problemas sociais. A noção de justiça surgia como

órgão supremo norteador da sociedade que prezava a cooperação entre as todas as

corporações, através principalmente da caridade cristã, em função do bem maior da

coletividade.

A ação da Igreja católica no período era desempenhada pelos círculos Operários e da

Ação Católica, que prezavam pela adoção de um projeto integral de corporativismo,

predominando entre nós o que a autora designa por “traços secundários”, tais como

assistência social, mutualismo e cooperativismo. Não se podendo desprezar, contudo,

“o papel de implementar uma legislação social e previdenciária (...), já que seu projeto pareceu expressar, em todos os princípios e objetivos, o desejo de forjar uma cultura corporativa, tanto no plano da organização das classes quanto na elaboração de um corpo jurídico voltado para a solução da chamada ‘questão social’”. (SOUSA, 2006. p.435)

O desenvolvimento do corporativismo no Estado brasileiro, apesar de se concretizar na

década de 30, teve antecedentes na Primeira República e desdobramentos no período da

redemocratização ou do intervalo democrático. A esse respeito, é importante o estudo de

Adriana Carvalho que, através da análise do processo constituinte de 1946, identifica

continuidades de elementos característicos da ordem autoritária anterior na nova ordem que se

afigurava.

Através da análise da fala dos deputados envolvidos na constituinte, a autora detecta a

persistência de elementos autoritários no regime democrático a partir, principalmente de três

aspectos, os problemas em torno da constituição de 1937 e dos decretos-lei; a cassação do

registro do PCB e a manutenção de instituições corporativas.

Sobre a constituição de 1937, a autora mostra como a impossibilidade de se extingui-la

enquanto não estivesse terminado o processo de elaboração da nova Constituição, abriu um

precedente administrativo ao presidente provisório que continuava governando por meio de

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decretos-lei. A situação era ainda mais contraditória se se considerasse o fato de que o

presidente detinha poderes de destituir o processo da constituinte.

“Era uma contradição o fato de a nova ordem democrática estar sendo gestada com a expedição de decretos-leis por parte do Executivo. Assim, apesar da queda do estado Novo, o novo Presidente da República, democraticamente eleito, ainda governava por decretos-lei.” (CARVALHO, 2009. p.5)

A questão da cassação do registro do partido Comunista mostra uma continuidade por

razões óbvias. Trata-se da cassação do registro de um partido em um governo que se diz

democrático. O contexto e o fato mostram o medo por partes das elites dirigentes do país de

uma radicalização do movimento comunista. É importante lembrar que, em 1935, eles tinham

acabado de tentar um levante. A cassação foi decretada logo após uma manifestação

comunista no largo da carioca, no ano de 1946.

Por último, resta salientar a persistência das fórmulas corporativistas no regime

democrático que se inaugurou pós-ditadura estodonovista. Neste sentido, a autora destaca que,

apesar do reforço no debate sobre a democracia em virtude das convulsões sociais e políticas

provocadas pela Guerra, subsistiu na mentalidade dos políticos o artifício corporativo em

matéria de política.

Os debates que se estabeleceram na constituinte de 1946 têm o que a autora classifica

como democracia restrita. Eles se estabeleceram como contraposição à ordem política

anterior, rejeitando assim, as diretrizes da Constituição de 37. Entretanto, a instituição da nova

ordem tem como modelo principal a Carta de 34, demonstrando assim, um imenso apreço por

velhas formas políticas que em nada contribuíam para o desenvolvimento democrático.

“Giovanetti Netto (1996) aponta que os deputados e senadores constituintes procuravam sempre pensar a democracia em contraposição ao regime autoritário anterior. A constituição autoritária de 37 sempre foi vista como um antimodelo na elaboração da nova Constituição e a Constituição de 34 era o modelo a ser seguido. O autor argumenta que a conseqüência dessa visão de democracia é um formalismo que obstaculiza a emergência de uma participação popular que fosse além da participação pelas urnas eleitorais. Somado a isso, temos uma estrutura burocrática que é inacessível aos interesses populares, impossibilitando que, pela atuação das massas, ocorram as transformações que o pós-guerra presumia.” (CARVALHO, 2009. p.14)

Além dos limites mais claros da democracia, baseando-se na obra de Vianna

(VIANNA, 1978), a autora argumenta que a tradição corporativista também foi decisiva no

sentido de limitar o processo de transição democrática.

Page 13: Artigo Corporativismo

O corporativismo enquanto sistema antiliberal e que se propunha a estabelecer uma

ordem alternativa ao mesmo, encerra uma contradição significativa na incipiente democracia

brasileira, a exaltação do bem comum (do coletivo), próprio do corporativismo, em

detrimento do individual. Além disso, enquanto o Estado corporativista dominasse os canais

de representação das classes sociais ou da sociedade civil, as possibilidades de ampliação dos

direitos sociais são dadas na proporção da capacidade de negociação das representações frente

ao Estado. Restringe-se assim, a capacidade de autonomia da sociedade civil.

Para finalizar, recuperando mais uma vez Vianna (VIANNA, 1978), Adriana mostra a

emergência de um Estado Híbrido1, pautado na convivência de doutrinas poítico-sociais que,

em última instância, em essência, são contraditórias.

Considerações finais.

Com base nos relatos acima, resta-nos afirmar que, guardadas as devidas proporções, o

corporativismo no Brasil sempre esteve associado ao desenvolvimento do Estado autoritário,

como um instrumento de dominação e controle da atuação das classes populares no espaço

público brasileiro. Neste sentido, a maioria dos estudos se concentra na análise do aparelho

estatal varguista, período considerado fulcral para o entendimento dos limites impostos pelo

estado à mobilidade dos populares na sociedade, principalmente através da legislação

trabalhista.

Essa tendência só há bem pouco tempo vem sendo relativizada pela historiografia

brasileira, como podemos ver nas indicações de Ângela de Castro Gomes (GOMES, 1991).

Esse movimento que se inaugurou na historiografia brasileira deve suas contribuições, acima

de tudo, à tradição de estudos historiográficos que, a partir dos anos 80, tenderam a questionar

certos paradigmas de análise como, por exemplo, a pretensa manipulação da classe

trabalhadora pelo Estado Populista.2

Apesar dos esforços recentes, fica a indicação da necessidade de um maior

aprofundamento sobre o tema, no sentido de aproveitar a indicação feita por Eley, de que

mesmo em essência teórica corporativismo e liberalismo sejam instâncias conflitantes, o

desenvolvimento histórico efetivo nos mostra que na prática, os acontecimentos podem

determinar o surgimento de processos e sistemas políticos “híbridos”, forjados na combinação

1NOTAS

? Este termo não aparece em momento algum no artigo ora referenciado, sendo de inteira responsabilidade da interpretação efetuada pelo autor do presente texto.

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de elementos diametralmente opostos. Mostra ainda que, se durante muito tempo,

corporativismo foi associado ao cabedal político de perspectivas da direita, o contrário não é

necessariamente incorreto. Como pudemos ver no caso europeu, medidas corporativistas

foram tomadas por governos situados à esquerda no espectro político, sem que isso

determinasse a perda de sua essência.

Para finalizar, cumpre ressaltar a indicação feita por Daniel Aarão Reis de que, no

caso brasileiro, o Estado corporativista inaugurado na década de 30 (que o autor denomina

2 Desnecessário dizer de que maneira o desmantelamento do arcabouço teórico do populismo pela historiografia recente influenciou nos estudos acerca do tema do corporativismo brasileiro, já que parece ser evidente a relação ou referência ao conceito para legitimar a tão propalada manipulação de classe.

BIBLIOGRAFIA

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GOMES, Ângela de Castro. Os paradoxos e os mitos: o corporativismo faz 60 anos. Revista Análise e conjuntura, v.6, nº 2, 1991. Disponível em pdf em: http://www.fjp.mg.gov.br/revista/analiseeconjuntura/viewarticle.php?id=225&layout=abstract. Acessado em: 07/12/2009.

HOBSBAWM, Eric. A era dos Extremos. O breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

REIS FILHO, Daniel Aarão. As esquerdas no Brasil. Culturas Políticas e tradições. In. FORTES, Alexandre (org.). História e perspectivas da esquerda. São Paulo/Chapecó: editora Fundação Perseu Abramo/Argos, 2005.

SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Uma sociedade juxta totum naturare ou um corporativismo incompleto? Topoi, v.7, n. 13, jul. - dez. 2006, pp. 424-444.

SOUZA, Francisco Martins de. Raízes teóricas do corporativismo brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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nacional-estatismo) foi esvaziado de todo o seu conteúdo esquerdista. Advogando a

necessidade de realocá-lo, então, no campo político das esquerdas, provoca-se uma séria

inversão de perspectiva que, por enquanto, ainda está por ser dimensionada.

“Assim, essa tradição até hoje é muito mal estudada, a rigor, nem sequer considerada no campo das esquerdas. Trata-se, a meu ver, de um erro de avaliação e de uma injustiça histórica, resultando em muitas perdas, porque, como sabemos, a melhor maneira de sermos dominados pelas tradições é ignora-las.

Penso, portanto, que é preciso examinar com atenção a tradição nacional-estatista, ou trabalhista, integrando-a, com seus múltiplos aspectos, no campo diversificado das esquerdas brasileiras.” (REIS, 2005. p.176)