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Page 1: ARTIGO  CIRLEN PUBLICAÇAO

ENTRE SABERES, FAZERES E DIZERES: PRÁTICAS EDUCATIVAS DE UMA

COMUNIDADE CAMPONESA DA AMAZÔNIA PARAENSE

Cirlene do Socorro Silva da Silva – SEDUC/UEPA1

Email: [email protected]

Maria das Graças da Silva – UEPA2

Email: [email protected]

RESUMO

O texto objetiva contribuir para a análise e reconhecimento de saberes camponeses historicamente invizibilizados pelo conhecimento acadêmico orientado pelo pensamento cartesiano, mas, que se materializam por meio de fazeres e dizeres em práticas educativas nas casas de farinha de uma comunidade da Amazônia Paraense. É oriundo de uma dissertação de Mestrado em Educação produzida no Programa de Pós Graduação da UEPA - na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia. O caminho metodológico dessa pesquisa qualitativa exigiu o desenvolvimento de técnicas próprias do estudo de caso para a produção de dados como: pesquisa bibliográfica e de campo, entrevista

semi - estruturada, observação participante e fotoetnografia. Como resultado mapeou-se saberes que originaram uma cartografia composta entre outros, pelos saberes que antecedem o fazer farinha, nas casas de farinha, como o saber plantar, o saber colher, todos saberes que envolvem complexos processos sócios - educativos.

Palavras – chaves: saberes - fazer farinha - práticas educativas.

INTRODUÇÃO

Este estudo originou-se de minha vivência enquanto educadora numa escola de Ensino

Médio da rede estadual localizada no município de Mãe do Rio, Estado do Pará, integrante da

Amazônia brasileira. A necessidade de conhecer os saberes culturais que esses sujeitos jovens

agricultores familiares construíam fora do espaço escolar, especialmente nas atividades

relacionadas ao mundo do trabalho, influenciou-me e orientou minha escolha pelas práticas

*Socióloga, Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Pará - Linha de

Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

**Socióloga, Doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ/BRASIL), Professora Adjunto III da

Universidade do Estado do Pará (UEPA), Líder do Grupo de Pesquisa Educação e Meio Ambiente (GRUPEMA).

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educativas inscritas nos processos do fazer farinha. Essa opção tem sua razão no fato de que

muitas famílias mãerienses têm na agricultura familiar, uma das formas, e, em muitos casos, a

principal garantia de sua sobrevivência.

Na atualidade, é perceptível um movimento epistemológico inscrito em alguns estudos3,

que despontam sob a perspectiva de uma produção de conhecimento crítico, ao considerar que há

uma educação inscrita no fazer dos sujeitos. Em outras palavras, a construção do conhecimento

se faz sob o olhar, a percepção de que as coisas da natureza são transformadas em objetos da

cultura por meio dos modos de ser e de viver dos sujeitos, que ao expressarem seus saberes e

conhecimentos produzem sentido à vida (BRANDÃO, 2002).

Esses estudos indicam que mudanças vêm se processando no campo da educação, pois,

pelo menos, em parte, o território e a história têm sido considerados nas diversas formas de

educação, bem como suas contribuições na construção e na afirmação das identidades. Para

Brandão (2007, p. 09) “Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não

é o único lugar onde ela acontece, e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a única

prática e o professor profissional não é o seu único praticante”.

O fazer farinha é um processo que envolve a realização de várias etapas e atividades,

como plantar, colher, descascar, ralar, prensar, peneirar, torrar, entre outras, que permitem chegar

ao produto final, que é a farinha. Por meio desse produto, historicamente, grupos sociais,

geralmente camponeses, têm construído suas condições de reprodução material de existência.

Por argumentar que em todo processo produtivo a cultura e a educação estão inscritas,

pesquisamos o cotidiano de uma comunidade rural camponesa identificada pelos seus moradores

como Comunidade Santo Antônio do Piripindeua, localizada no município de Mãe do Rio, no

Estado do Pará, a fim de analisar formas de educação praticadas no espaço das casas de farinha.

Delimitei meu foco de estudo sobre as relações de (con)vivência e práticas educativas que

perpassam a produção da farinha de mandioca, reconhecido neste estudo como um processo

eminentemente educativo que possibilita a construção e a difusão de saberes culturais.

3 Dentre eles, as dissertações defendidas no Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Pará, de João

Colares da Mota Neto, das práticas religiosas cotidianas de um terreiro do Tambor de Mina na Amazônia onde se

desenvolvem processos educativos de construção e transmissão de saberes culturais. E de José Williams da Silva

Valentim, que analisa, entre outros, os saberes quilombolas da comunidade de Murumuru a partir das práticas sociais

cotidianas.

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A pesquisa caracterizou-se por ser uma pesquisa de campo. Para Minayo (2000, p.105),

na pesquisa qualitativa, o campo “é o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos

empíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto da investigação”.

Tomei como referência Martins (2008) para optar por algumas técnicas utilizadas pelo

estudo de caso, que é concebido por ele como uma investigação empírica que pesquisa

fenômenos dentro de seu contexto real. Essas técnicas foram: a fotoetnografia, que de acordo

com Achutti (1997) teve a função de registro, de documentar as ocorrências cotidianas, no fazer

da farinha; entrevistas semi-estruturadas que foram realizadas, por se tratar na concepção de

Macedo (2010, p. 104) de “recurso metodológico para a apreensão de sentidos e significados e

para a compreensão das realidades humanas”; e a observação participante, fundamentada na

necessidade de registrar os relatos detalhados e contextualizados (MARTINS, 2008).

2. SABERES E DIZERES DA TEORIA: ALGUMAS CONSIDERAÇOES

Na chamada modernidade, o rural, considerado sinônimo de agricultura, foi caracterizado

pela oposição campo/cidade, concebido como sujeito aos domínios da natureza e da tradição, a

ser transformado pelos processos civilizatórios burgueses em que a tecnificação, a lógica e a

racionalidade do mercado transformariam esse espaço. Com essa valorização econômica,

desqualificaram saberes e outras racionalidades distintas da racionalidade técnica científica e do

mercado, tais como as camponesas e de outras culturas não hegemônicas que passaram a ser

vistas como irracionais e incivilizadas (MOREIRA, 2003).

Dessa forma, é importante esclarecer que estou tratando aqui de acordo com Moreira

(2009) de uma redefinição de espaço rural, não mais apenas como espaço de produção agrícola,

mas, entendido, na perspectiva de mundo contemporâneo onde se tem atores com interesses

diversos construtores de um campo de forças onde variadas relações de trabalho estão a ele

associadas, enquanto campo sociocultural.

Ao assumir, como pressuposto, que a realidade humana é culturalmente construída, torna-

se imprescindível reconhecermos a construção de processos sociais que se constituem no campo

da cultura e da educação, por considerar que vivemos num processo de ressignificação da

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natureza humana e, no caso, da própria realidade rural (CASTORIADIS, 1992; MOREIRA

2003).

Brandão (2008), afirma não haver grupo humano estável que, além de ter sua vida social,

não tenha também a sua memória, a sua história e a sua cultura. Para esse autor, essa complexa

teia e trama que envolve esses conhecimentos, consistem na experiência de uma cultura, de sua

partilha recíproca e de seu aprendizado, e está contida nas diversas formas dos seres humanos

ocuparem o planeta, socializarem a natureza e criarem modos de vida.

Neste sentido, a criação de um produto, como a farinha de mandioca, possui uma história

relacionada com um determinado estilo de vida de grupos sociais da região amazônica,

configura-se como um produto imbricado em contextos socioculturais e naturais peculiares.

Nesse estudo, o fazer farinha é analisado como um ato de criação, pois, nesse fazer se produz

não apenas a matéria (farinha), mas também cultura e educação, e, ao produzir cultura e

educação, o ser humano está se produzindo enquanto ser multiplicador desse saber camponês.

Perceber a educação enquanto prática social pressupõe compreendê-la numa perspectiva

que extrapola o espaço escolar, ou para usar outra terminologia muito conhecida no mundo

acadêmico, o saber formal. Para Castoriadis (2002, p. 233) “existe sempre um campo social da

significação que está longe de ser simplesmente formal, e do qual ninguém, nem mesmo o mais

original dos artistas, pode escapar: ele só pode contribuir para sua alteração”.

O campo de estudos anteriormente classificado como sendo específicos das ciências

sociais passa a ser analisado pela ótica da educação. O conhecimento científico sob o recorte da

educação projeta-se de modo a refletir sobre as práticas educativas a partir das relações de

(con)vivência, como as que acontecem nas festas, nos rituais, nos espaços de lazer, nas casas, nas

ruas, nas florestas, enfim, nos espaços onde se produzem aprendizagens, saberes e fazeres.

3-O SABER PLANTAR E O SABER COLHER: SABERES QUE ANTECEDEM O FAZER

FARINHA.

O saber-fazer farinha, que informa as atividades cotidianas dos agricultores, tem se

configurado como uma prática social por meio da qual se dinamiza historicamente a socialização

de um conjunto de saberes entre as gerações.

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As diferentes práticas que fazem parte do processo de fazer farinha são orientadas e

orientam saberes. No entanto, este saber-fazer farinha não se inicia nas casas de farinha e

incorpora outros saberes, como o saber plantar a maniva e o saber colher.

3.1 - O saber plantar a maniva

Para fazer a farinha, primeiro precisa saber como se planta a maniva, pra poder dá a

mandioca pra gente poder fazer a farinha, porque se a gente pensar só de fazer a farinha

sem plantar, mais tarde a gente não vai fazer a farinha porque não tem. Você tem que

primeiro aprender como plantar a maniva, porque dali é que vem pra gente poder fazer a

farinha. Se você só dizer: “ah! Eu vou fazer farinha”, mas se eu não plantar, no próximo

ano eu não tenho como fazer a farinha (AFC, 02).

Conforme se pode perceber nesta fala, o saber plantar antecipa o saber fazer farinha, ou

seja, configura-se como um saber necessário à realização das demais práticas, uma vez que o

fazer farinha depende da matéria prima básica, que é a raiz da mandioca. Ao relatar que

“primeiro precisa aprender como planta a maniva”, o agricultor revela nesse discurso que eles

não adquirem a matéria prima necessária de outras comunidades ou mesmo de outros municípios,

sendo, portanto, responsáveis pelo plantar, o que possibilita o fazer farinha.

Identifico nesse processo uma relação dialética entre o fazer farinha e o saber plantar, pois

um precisa do outro para continuar existindo. Não saber plantar para os agricultores, significa a

impossibilidade de não realizar as práticas de fazer farinha.

Ao perguntar sobre a origem desse saber plantar na comunidade, um dos entrevistados

revelou que o cultivo de roçados de mandioca é de origem indígena, pois, plantaram o primeiro

roçado; “a gente não sabe se eles produziam a farinha, a gente conta a história, que eles (os mais

antigos) contavam, sabe que mexiam com o roçado” (AFC, 03).

Assim como o conhecimento local, estudos que abordam a origem da raiz de mandioca

(manilhot esculenta Crantz) no Brasil também afirmam que essa raiz já era cultivada pelo menos

há cinco mil anos, numa área que abarcava desde a América Central, as Antilhas e toda a vertente

Atlântica da América do Sul (ADAMS, 2006).

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O processo que envolve o saber fazer farinha incorpora uma temporalidade e uma relação

intergeracional e que não se configura como uma simples relação de ensinar e aprender.

Acho que vem mais dos antigos. De primeiro, foi os mais antigos que

começaram, nós já somos os mais novos. Não tem bem explicação não, esse

saber a gente aprendeu quando começamos mesmo, os outros já estavam há

muitos tempos já fazendo a farinha, já tinha aprendido com outros (AFC,02).

O discurso acima evidencia essa temporalidade no saber fazer farinha, um conhecimento

construído que vem sendo socializado de geração em geração e que se aprende na prática

cotidiana da comunidade. Neste sentido, o conhecimento prático de fazer farinha se aproxima das

considerações de conhecimento tradicional de Diegues (2000, p. 14), que “pode ser definido como

o saber e o saber-fazer a respeito do mundo natural, sobrenatural, gerados no âmbito da sociedade não-

urbano/industrial, transmitidos, em geral, oralmente de geração em geração”.

Ao referir-se sobre a importância do fazer farinha para a sua reprodução social e de sua

família, um agricultor destaca, ainda que de forma indireta, a importância da roça, ou seja, uma

das etapas do processo que antecede o fazer farinha: “eu digo que pra mim (o mais importante) é

a roça, porque é daqui que eu vivo, que é como eu estava falando, sem roça é o meu sofrimento”

(AFM, 01). Essa fala atribui à existência da roça o sentido da própria vida. Ele concebe a roça

como um território de vivência, a base de sua reprodução material e cultural.

Ao relacionar o “sofrimento” à ausência da roça, este discurso remete à concepção de

Castro (2000), para quem os seres humanos agem sobre o território a partir de atividades

produtivas que contém e combinam formas materiais e simbólicas, ou de Brandão (2002), que

considera as relações de produção e reprodução social também como relações simbólicas.

O saber plantar incorpora uma diversidade de saberes dos sujeitos. Esses saberes são

construídos na relação com a natureza e nas relações de (con)vivência. São indicados aqui nos

diversos tempos que compreendem o saber plantar: o tempo de brocar, o tempo de queimar, o

tempo de capinar, entre outros, conforme pode-se perceber nos depoimentos dos entrevistados:

Primeiro a gente prepara a terra, a gente aqui faz é brocar... no tempo de

queimar, a gente queima.... No tempo de plantar, a gente planta a maniva... Que

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é pra produzir a mandioca, a maniva está nascidinha no jeito de limpar, a gente

capina, umas duas capinadas (AFC, 02).

O brocar é a gente pega uma foiça e saí no mato, caçando, brocando. Eu acredito

que isso se chama brocar, mas é cortar mato né (...). Depois é só esperar secar

pra tocar o fogo. Quando queima bem, a gente não ajunta galho, não ajunta nada,

nem um mais, queima bem, ficando só a terra. Mas quando não queima bem, a

gente tem que ajuntar, fazendo aquele monte que nem caieira, taca fogo, fica só

coivara, fica só o chão é só plantar roça (AFM, 01).

Esses procedimentos revelados nesses discursos evidenciam que a diversidade de saberes

dos sujeitos indica um acúmulo de conhecimentos que lhes possibilitam perceber não só a

necessidade de manter a sequência das atividades, como também as temporalidades de suas

realizações.

Na sequência do desenvolvimento das atividades, a “broca” e a queimada são as duas

práticas relacionadas à preparação da terra. Dependendo do resultado da “broca” e da

“queimada”, é possível iniciar o plantio. Caso ainda haja muitos restos de madeira, é necessário

praticar a “coivara”, processo de limpeza do terreno.

Nesse sentido, é possível perceber que o saber plantar expresso no discurso dos

agricultores remete a um saber popular que orienta o cotidiano desses sujeitos. Dito de outra

forma, um saber empírico ligado à solução de problemas que transcende o indivíduo e é assumido

como certeza básica, é constituído pelos conhecimentos, interpretações e sistemas de

compreensão que produzem e atualizam os setores subalternos da sociedade para esclarecer e

compreender sua experiência (MARTINIC, 1994).

No caso analisado, o plantar é um saber construído coletivamente na (con)vivência com

familiares, vizinhos ou até diaristas:

pra plantar, a gente junta o pessoal do trabalho, junta tudo. Aí vai quatro, cinco

abrindo os buracos, e dois, três jogando a maniva dentro da cova, jogando a terra

em cima, isso no meio do capim, isso que é o plantar (AFM, 01).

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Figura 01 – preparação, ida ao roçado.

Fonte: Silva (2010).

A figura acima retrata o momento que antecede a ida ao roçado de uma família.

Com base nas informações e observações locais analisadas neste texto, é possível inferir

que esse saber construído e socializado na organização social cotidiana dos agricultores e no

fazer farinha, configura-se como uma prática educativa que envolve todos da família, inclusive as

crianças, que participam como ajudantes. Elas quase sempre estão acompanhadas de uma pessoa

adulta, seja dos pais, ou de demais parentes ou vizinhos.

Contudo, por ser um saber construído na prática, no caso, a de fazer farinha, há uma

dificuldade por parte de uma visão determinista de ciência em conceber nesse saber plantar uma

dimensão educativa. Segundo Brandão (2002), esta dificuldade ocorre porque temos o costume

de associar educação a longínquas determinações sociais e esquecemo-nos de vê-la no seu

contexto cotidiano, no interior de sua morada, ou seja, na cultura, considerado o lugar das ideias,

códigos e práticas de produção e reinvenção do saber.

3.2 O saber colher

Para colher, a gente colhe com nove mês, conforme, um ano. Às vezes a gente

nem espera ela amadurecer, tem que tirar ela verde. Quando a gente quer mexer

nela que o verão já acabou, aí acaba o verão e o jeito é entrar na nova aí (...) a

roça de verão começa a plantar no mês de maio, junho ou julho, conforme a

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chuva. Estes três meses é pra colher, é só quando faz ano, no outro ano. É só de

ano a ano, mas às vezes não dá tempo porque a de verão está menor. A gente

planta mais no inverno. No verão a gente planta menos. No inverno dá mais,

produz mais, dá mais trabalho. Quando é no mês de maio ou junho é que é a

roça de verão, aí fica mexendo, capinando nas duas (AFM, 02).

A colheita da mandioca geralmente é realizada de dez a doze meses depois de plantada.

No entanto, algumas manifestações de alterações climáticas podem alterar e até prejudicar o

período da colheita, que ocorreu nos meses de janeiro e fevereiro de 2010, cujo verão intenso,

ocasionou produção insuficiente da farinha em função do tamanho das raízes.

Assim, percebe-se que essa prática da produção de farinha possui uma dimensão

educativa, pois não ocorre sem planejamento, sem desenvolvimento e sem avaliação, entre outros

motivos. Os sujeitos precisam conhecer o tempo adequado para o plantio, acompanhar seu

desenvolvimento e avaliar o momento adequado para colher. Essa percepção remete a Freire

(2008), para quem planejar a prática significa ter uma ideia clara das condições em que vamos

atuar, dos instrumentos e dos meios em que dispomos, significa saber com quem contamos para

executá-la ou prevê os momentos de ação que são avaliados.

Lá você vê se vai replantar de novo ou se vai deixar lá pra plantar com três ou quatro anos de novo, naquele mesmo lugar. Se você não for usar a maniva, você deixa lá e lá mesmo estraga. Agora se você for precisar, você apara, corta, põe numa sombra ou afinca ou deixa ela ali deitada com rama em cima, pra não

secar o leite, pois se secar o leite, não nasce de jeito nenhum [...]. Você tem que escolher pela mandioca a maniva pra poder guardar ela e plantar (AFM, 02).

Esse discurso revela que, saber colher e saber plantar, são atos intercomplementares de

um mesmo processo, pois no momento em que se está colhendo o tubérculo da mandioca, as

manivas são separadas para posteriormente serem colocadas em lugares adequados para que

possam permanecer hidratadas, pois se “secar o leite”, as manivas não servem de mudas para o

plantio. Como uma maneira de garantir uma boa produção, as manivas são separadas de acordo

com a classificação que recebem, porque precisam ser consideradas como aquelas que dão boas

raízes.

Ao realizarem esse processo de seleção das raízes, os agricultores na concepção de

FREIRE (1985) não apenas se capacitam tecnicamente, eles constroem o conhecimento que

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permite a continuidade do fazer farinha, e ao construírem esse conhecimento, educam-se a partir

de conteúdo educativo que nasce de suas relações com o mundo.

Na hora de colher, tem a mandioca amarela, né? Conforme o tipo de farinha que quer fazer é a mandioca que vai colher. Se for para fazer uma farinha seca, branca, colhe uma mandioca branca, mas desde o plantio já planta separado a branca da amarela (AFC, 07).

Essa fala revela que o agricultor planeja o plantio das manivas de mandioca, pensando no

momento da colheita e no tipo de farinha que irá fazer. De acordo com essas decisões, cada parte

do terreno é destinada a um tipo de tubérculo, conforme a cor do produto e o tipo de farinha que

ele almeja produzir.

O agricultor identifica na prática da colheita, o tipo de mandioca que pode comprometer a

qualidade da farinha e que vai exigir maiores cuidados na hora da produção: “a gente identifica

pelo pau da maniva, antes de saber que esse tipo de mandioca amargava, às vezes fazia, quando

ia ver, a farinha estava amargando. A gente coloca mais ela pra colocar na água pra ela amolecer”

(AFC, 05).

Assim, a colheita do tubérculo da mandioca é feita quando a raiz está madura: “bem no

ponto, é que a gente vai trazer pra fazer a farinha, aí a gente traz a mandioca de lá, raspa, bota na

água pra gente poder fazer a farinha” (AFC, 02).

Além da preocupação prática com as condições de produção a partir do amadurecimento

das raízes, há também a preocupação com o manuseio de ferramentas para que a retirada do

tubérculo do subsolo não seja prejudicada e ocasione prejuízo: “na colheita a gente usa o terçado,

quando não uma foice. Se tiver muito duro, tem que levar uma foice pra arrancar as pequenas

debaixo da terra, pra não quebrar e não deixar” (AFM, 02).

O saber que orienta a prática da colheita, assim como o saber plantar, é construído a partir

da convivência familiar, pois: “na colheita é tudo, é mulher, é criança, é homem é tudo” (AFM,

02). A participação das crianças ocorre segundo uma das agricultoras: “se não der pra gente

deixar na escola” (AFM, 02). Essa participação, ainda crianças, contribui para que adquiram o

conhecimento desta prática e iniciem sua formação como prováveis agricultores.

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Dessa maneira, os sujeitos transformam a colheita numa prática educativa, seja na

participação direta dos sujeitos no ato de colher, seja pelo desenvolvimento de atividades ou

brincadeiras. Essa prática educativa, para Freire (1985, p. 76), ocorre pela interação do ser

humano com a realidade que ele sente, percebe e sobre a qual exerce uma prática transformadora.

É um fazer educativo que não pode ser realizado a não ser, inserido no mundo histórico e

cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das intenções da pesquisa foi transgredir a idéia das casas de farinha serem

consideradas apenas como espaços de produção material. Nesse sentido, o diálogo com teóricos

de várias áreas do conhecimento amparou o estudo sobre as perspectivas de educação nesses

espaços e contribuiu para a interpretação e análise de saberes e práticas educativas, que emergem

dos processos de apropriação e usos desses espaços e das práticas cotidianas de fazer farinha dos

agricultores familiares.

A pesquisa indicou que esses saberes são socializados pelos mais experientes e aprendido

na prática, nas vivências dos aprendizes, que buscam seguir o exemplo dos que possuem mais

habilidade na execução das práticas de fazer farinha e não são construídos de forma isolada, mas

guardam relações de interdependência entre si, de maneira que o saber colher depende do saber

plantar a maniva.

Ao realizarem as práticas coletivamente, os agricultores demonstram a experiência

acumulada e promovem a socialização dos saberes, principalmente com os aprendizes, que vão

construindo e ampliando o saber inicial, até conseguirem autonomia na realização da prática de

fazer farinha.

Ao trazer essas questões, a expectativa é de que elas possam ser o ponto de partida para

outros percursos de pesquisas e de reflexões, pois no campo da educação, em contexto não

escolar, particularmente em relação à agricultura familiar camponesa amazônica, ainda são pouco

os estudos com enfoque nos saberes culturais e nas práticas educativas desses sujeitos.

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Referências

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