artigo atas paroquiais (final)

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  • 7/25/2019 Artigo Atas Paroquiais (FINAL)

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    SIMO ES, Jose da Silva / CASTILHO DA COSTA, Alessandra (2009). As atas paroquiais debatismo, casamento e obito como ge neros discursivos. In: Bassanezi, Maria Silvia C.Beozzo; Botelho, Tarcsio R.. (Org.). Linhas e entrelinhas: as diferentes leituras dasatas paroquiais dos setecentos. 1 ed. Belo Horizonte: Veredas & Cenarios, 2009, p.35-58.

    As atas paroquiais de batismo, casamento e bito como gneros discursivos

    Jos da Silva Simes (FFLCH-USP)

    Alessandra Castilho Ferreira da Costa (FFLCH-USP).

    Resumo: A Lingstica de Texto pode oferecer subsdios importantes para a anlise dos registros paroquiais,estabelecendo uma interface entre os estudos lingsticos e os trabalhos de histria social. O objetivo deste artigo o de verificar que potencialidades esses documentos oferecem para o estudo da constituio do portugus

    brasileiro dos sc. XVIII e XIX. Na primeira parte do texto, apresentamos os mtodos de anlise segundo alguns

    modelos associados Lingstica de Texto, historiando a constituio dos gneros discursivos atas paroquiais,apartir das relaes intertextuais e interdiscursivas com outros gneros fundadores. Aplicamos este modelo s atasde batismo e casamento, analisando no s a sua constituio temtica, como os recursos lingsticos utilizados

    pelos seus autores. Ao final, identificamos em que medida estes documentos so textos que pendulam entre osplos de tradio e inovao.

    Palavras chave: lingstica de texto tradies discursivas histria social portugus brasileiro atasparoquiais

    Introduo

    Por ocasio do seminrio As atas paroquiais dos setecentos e oitocentos: linhas e

    entrelinhas, especialistas de diversas reas do conhecimento foram convidados a analisarem

    os registros de batismos, casamento e bitos (reunidos em um dossi) para responderem s

    seguintes questes do ponto de vista de sua rea de conhecimento: (1) Que potencialidades

    vem, nesses documentos, para sua rea de atuao, no sentido de agregar conhecimento e

    promover discusses tericas? (2) Como as informaes dos registros podem ser tratadas

    metodologicamente? Disso resulta para os linguistas a seguinte questo: No caso dessas atas

    paroquiais, o que a Lingstica (especialmente, a Lingstica do Texto) pode explicar?

    1.

    Texto e gnero discursivo

    Do ponto de vista da Lingstica, preciso primeiramente definir o que seja uma ata

    Este artigo compe o Projeto Temtico de Equipe Para a Histria do Portugus Paulista (Projeto Caipira), financiado pela FAPESP, Processo 06/55944-02006-2009.

    Doutor em Filologia e Lngua Portuguesa pela FFLCH da USP. Doutora em Lingstica Germnica na rea de Lingstica Textual pela Martin-Luther-Universitt Halle-Wittemberg, Alemanha.

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    paroquial. Nesse intuito, necessrio apresentar os conceitos de texto e de gnero discursivo,

    afinal, falar de gnero discursivo falar de texto. Entretanto, a definio do conceito de texto

    est longe de ser uma unanimidade na Lingstica. Encontramos vrias definies de texto na

    literatura Lingstica, entre elas as seguintes (cf. Antos 1997: 44):

    - texto como frase complexa (fundamentao gramatical)

    - texto como signo complexo (fundamentao semitica)

    - texto como ato de fala complexo (fundamentao pragmtica)

    - texto como discurso "congelado": produto acabado de uma ao discursiva

    (fundamentao discursivo-pragmtica)

    - texto como meio especfico de realizao da comunicao verbal (fundamentao

    comunicativa)

    - texto como verbalizao de operaes e processos cognitivos (fundamentao

    cognitivista)

    Como tentativa de definio do texto, a Lingstica Textual da dcada de 80 voltou-se

    aos conceitos de coerncia e coeso. Tais conceitos nasceram da pressuposio de que todo

    texto verbal forma um todo significativo e acabado. Essa unidade de significado construda

    por um conjunto de relaes que se estabelecem a partir dos significados construdos no texto

    e dos meios lingsticos utilizados. A essa qualidade de ter unidade significativa denomina-se

    textualidade. Sem textualidade, um texto no pode ser texto, no passa de um amontoado

    aleatrio de palavras.

    Como princpios de textualidade, a coerncia pode ser definida como o encadeamento

    temtico do texto e a coeso corresponde ao seu encadeamento lingstico. Em outras

    palavras: em um texto idias so desenvolvidas e relacionadas e isso se manifesta

    concretamente nas formas lingsticas.

    Ao produzirmos um texto, damos a ele uma formatao especfica. Quer dizer: um

    texto sempre pertencente a um gnero discursivo. Poder-se-ia definir os gneros discursivoscomo modelos construdos historicamente e vlidos para aes complexas e recorrentes, que

    ligam tipicamente determinadas situaes e determinadas caractersticas funcionais e

    estruturais (cf. Brinker 1997)1. Em outras palavras: os falantes de uma determinada lngua

    constroem e utilizam modelos de interao e por conseqncia, modelos de textos quando tm

    1 [] historisch gewachsene und konventionell geltende Muster fr wiederkehrende komplexe sprachlicheHandlungen und lassen sich als jeweils typische Verbindungen von kontextuellen (situativen), kommunikativ-

    funktionalen und strukturellen (grammatischen und thematischen) Merkmalen beschreiben. (BRINKER1997:132).

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    de desempenhar tarefas comunicativas recorrentes. Essas formas rotineiras de comunicao

    esto na base do que denominamos gnero discursivo. Como formas construdas

    historicamente, os gneros discursivos esto estreitamente ligados s condies de sua

    produo.

    Todo texto dialoga com outros textos. Assim, a intertextualidade uma caracterstica

    de todo texto. Ao produzirmos discurso, evocamos discursos anterioes. O sentido do texto,

    sua coerncia, construda no somente por quem o produz, mas tambm por quem o ouve ou

    l. O sentido de um texto depende de muito mais que as palavras que o constitutem: depende

    dos conhecimentos a respeito do assunto, do contexto, do tempo, do espao e das pessoas

    nesse contexto. Tal sentido depende, portanto, da histria do texto. Dado que os textos so

    repetidos e evocados no tempo e no espao, ento os textos possuem uma histria. Para tratar

    desse aspecto histrico do texto, preciso falar do conceito de tradio discursiva.

    2. Condies de produo do gnero discursivo e as atas de batismo e casamento

    No se pode analisar um determinado gnero discursivo de um ponto de vista histrico

    sem se levar em considerao as necessidades comunicativas e o desenvolvimento

    econmico, poltico, ideolgico, religioso, moral, em suma, cultural da sociedade em que o

    gnero discursivo produzido. Segundo Krause (2000:48), as necessidades comunicativas de

    uma sociedade determinam o inventrio das formas tpicas de comunicao. Dado que todo

    gnero discursivo funciona como um modelo de texto, i.e como uma forma tpica da

    comunicao, ento podemos considerar os gneros discursivos como categorias

    fundamentalmente histricas. Todo texto/gnero discursivo existe no tempo e no espao.

    Um exemplo bastante concreto da influncia das condies histricas na formao e

    na transformao do gnero discursivo a descoberta da eletricidade que possibilitou o

    surgimento de gneros discursivos como o telegrama e a conversa telefnica (cf. Krause2000:48). Nas ltimas dcadas, vimos surgir tambm webpages, blogs, e-mails, webnotcias,

    entre outros novos gneros discursivos eletrnicos. O gnero discursivo possui, pois, um

    carter histrico-social: ele reflete aspectos da cultura de um povo e das circunstncias

    polticas, ideolgicas e econmicas de uma sociedade.

    As condies de produo e recepo do gnero discursivo no dizem respeito

    somente ao meio no qual ele propagado (se por carta, por telefone, por fax, por

    computador, etc), mas tocam tambm aos temas que ele torna dizveis e a forma pela qual sediz algo. O que dizvel e como dizvel determinado por nossa memria coletiva,

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    entendida aqui como o conhecimento partilhado que os membros de uma sociedade adquirem

    e constroem. Tal conhecimento partilhado cristaliza-se em discursos e em gneros

    discursivos. Desse modo, o gnero discursivo atravessado por discursos transmitidos de

    gerao em gerao. O gnero discursivo est ligado, portanto, a significados que se

    cristalizaram dentro de uma sociedade. Ele revela o que preciso saberpara sua produo e

    recepo.

    Em algumas abordagens lingsticas utiliza-se o termo sujeito universal (por

    exemplo, na Anlise do Discurso, cf. Brando 2002:62) em referncia ao conhecimento

    partilhado por membros de uma comunidade. A nosso ver, a metfora de um sujeito universal

    pode levar a um equvoco: a suposio de que a dimenso social do indivduo possui uma

    existncia autnoma. Na verdade, no existe um sujeito universal. Existem, contudo,

    indivduos que partilham de determinados conhecimentos. Nesse sentido, preciso lembrar

    que todo texto produzido por um indivduo. Se as atas paroquiais dos setecentos e oitocentos

    muito nos revelam sobre a sociedade de uma dada poca histrica, no se pode esquecer que

    esses documentos foram escritos por indivduos, os procos que assinam tais documentos,

    cuja autoridade era instituda duplamente. Pelo Estado e pela Igreja.

    Produzir um texto ou gnero, significa realizar uma ao. Determinadas aes so to

    tpicas e recorrentes, que utilizamos modelos textuais para facilitar a produo de texto. O

    casamento e o batismo de seres humanos so rituais recorrentes que tornam necessrios

    modelos textuais. Os prprios rituais de casamentoe do batismoso gneros discursivos que

    tm funo declarativa, i.e. um enunciatrio (por exemplo, o padre) utiliza meios lingsticos

    para tornar vlida uma nova realidade (X e Y so marido e mulher ou batizo X). Assim,

    todo gnero discursivo possui uma funo, uma inteno, cristalizada historicamente como

    casar, batizar, declarar o bitono caso das atas de casamento, batismo e bito. H, porm,

    outras funes e intenes cristalizadas e reveladas no gnero que esto ligadas a sua

    capacidade de construo cultural. Segundo Meurer (2002: 19), todo discurso tem um poderconstrutivo trplice: (1) produzir e reproduzir conhecimentos e crenas por meio de diferentes

    modos de representar a realidade; (2) estabelece relaes sociais; e (3) cria, refora ou

    reconstitui identidades. Podemos dizer que os gneros refletem aspectos culturais da

    sociedade na qual existem. Mas eles so, tambm, meios de construo cultural.

    Ao discutirmos algumas caractersticas das atas de batismo e de casamento dos

    setecentos e oitocentos, necessrio perguntar:

    (a)

    Quais os meios lingsticos escolhidos pelos procos-autores?(b) Que intenes so realizadas?

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    (c) Que temas e conhecimentos tornam-se dizveis por meio dessas atas?

    Na seo seguinte apresentamos primeiramente uma diferenciao entre os conceitos

    de intertextualidade e interdiscursividade, para em seguida definir o conceito de tradies

    discursivas, modelo de anlise tipolgica de textos aqui adotado para analisar os vnculos de

    tradio que se estabelecem com e entre os registros paroquiais.

    3. O conceito de tradio discursiva

    Ultimamente tem-se utilizado muito o termo intertextualidade para designar a

    retomada de enunciados j conhecidos. Para Koch (1997), esse fenmeno abarca duas

    estratgias distintas: a intertextualidadeem si, comum na literatura, e a interdiscursividade.

    A intertextualidade um recurso bastante usual na literatura e refere-se retomada

    dos contedos temtico-narrativos presentes em diversos textos. No caso especfico das atas,

    temos a intertextualidadequando os registros citam explicitamente os preceitos do Conclio

    de Trentoe das Constituies Primeiras da Bahia.

    Por outro lado, a interdiscursividaderefere-se retomada da estrutura fundamental de

    determinados tipos de textos, ou seja, um discurso, um tipo de enunciado especfico aparece

    em uma ou mais tradies discursivas. Da dizer-se que certas estruturas lingsticas

    pertencem a um determinado estilo ou corrente. As atas de batismo, casamento e bito

    obedecem a um formulrio pr-estabelecido que raramente foge ao esquema convencionado.

    A intertextualidade (repetio de contedos temticos) e a interdiscursividade

    (repetio de esquemas textuais), tidas como convenes, nem sempre se apresentam de

    maneira linear e fixa.

    A prtica da linguagem no nvel das tradies discursivas oscila entre a convenoe a

    inovao, entre conservadorismo e dinamismo. Todas as tradies culturais esto sempreentre estes dois plos. Veja-se o exemplo da evoluo do design dos relgios, dos carros, etc.

    A Lingstica de Texto, assim como estudada na Alemanha desde h alguns anos, deposita

    especial ateno ao conceito de tradies discursivas/tradies textuais.

    Segundo os tericos alemes, tais como Peter Koch (1997) e Kabatek (2006), o

    conceito de tradies discursivas (TD) exibe alguns traos fundamentais que as definem como

    material composicional dos gneros textuais:

    - A repetio: atravs dela um texto estabelece uma relao com outros textos em umdeterminado momento da histria.

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    - A evocaorefere-se ao contedo dos textos, ou seja, a evocao a repetio dos

    contedos temticos que so tratados nos textos, isto , a hierarquia temtica da lnguagem

    especfica de um texto, como o caso dos sermes que sempre evocam textos bblicos e

    outros textos religiosos, tais como as crnicas de vidas de santos etc.

    Por esse raciocnio, entende-se que uma atividade comunicativa parte de uma

    finalidade a qual se submete a dois filtros: a) lngua em particular e b) s tradies

    discursivo-textuais. Atravs da realizao individual no discurso atualizam-se, portanto, o

    saber idiomtico que um grupo de indivduos instituiu como tradies culturais.

    Kabatek (2006:508) prope o seguinte esquema para compreender a duplicidade do

    nvel histrico da linguagem:

    Figura 1.A reduplicao do nvel histrico (Kabatek, 2006: 508)

    4. A questo da tradio do texto jurdico-religioso

    Os documentos de que falamos aqui so fruto da convergncia de duas tradies

    culturais: o texto jurdico e o texto religioso, como se v no esquema a seguir.

    Figura 2. A inovao das Tradies Discursivas atravs da convergncia (Cf. Koch, 1997:69)

    FINALIDADE COMUNICATIVA

    ENUNCIADO

    LNGUA (SISTEMA E NORMA) TRADIO DISCURSIVA

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    5. A gnese das atas paroquiais em um contexto jurdico-religioso:

    A reviso histrica que fazemos a seguir no novidade alguma para os colegas

    historiadores, mas prescindimos dela para compreendermos melhor as caractersticas textuais

    dos registros paroquiais aqui analisados. Sabe-se, portanto, que os mesmos foram institudos a

    partir do Conclio de Trento (1545-1563) com o objetivo evangelizador de dilatar a f entre os

    povos. No por acaso ele escrito no borbulhar do Renascimento, perodo em que se

    descobria o Novo Mundo e em que era preciso rever as leis, uma vez que novas conquistas

    eram feitas.

    Os textos forenses jurdico-religiosos promulgados ao longo de alguns dos sculos

    anteriores, como o caso do Foro Real de Afonso X, j no atendiam a demanda que se

    apresentava, ou seja, a mudana na sociedade imprimia s leis um novo formato. Assim como

    durante todo o perodo medieval, a partir do sculo XVI at o final do sculo XIX a Igreja e o

    Estado andavam de mos dadas. No foi diferente no Brasil e nas palavras de Douglas Batista

    de Moraes (UFPE):

    O monarca portugus adquiriu da Igreja, no apenas o Padroado sobre as novas terras descobertas,como tambm um padroado propriamente rgio, que o habilitava a propor a criao de novasdioceses, escolher os bispos e apresent-los ao Papa para serem confirmados. Na realidade, apesar

    de suas intenes iniciais, o Padroado terminou sendo usado como instrumento de poder da Coroapara subordinar aos seus os interesses da Igreja catlica (MORAES 2004:1)

    No entanto, a constituio tnica do Novo Mundo demandava leis especficas que

    abarcassem os filhos da terra, os indgenas, e os africanos aqui instalados fora. nesse

    contexto que surgemAs Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia,promulgadas em

    1707 e que serviram como o primeiro cdigo de leis eclesisticas criado na colnia brasileira.

    Este conjunto de leis retoma os preceitos do Conclio de Trento, evoca e reformula tal texto,

    assim como de se esperar para esse gnero textual to rgido na forma. No eixo que pendulaentre conservadorismo e inovao, reafirma-se a dupla finalidade que j era exercida pelos

    desgnios do Conclio de Trento, ou seja, ao mesmo tempo em que tinha o propsito de

    dilatar a F, atendendo aos interesses da Igreja, ele servia ao Reino como forma de dilatar

    o Imprio. Sabemos tambm que As Constituies Primeiras serviram de orientao para

    todo o territrio da colnia, como veremos a partir de pistas presentes nas atas de batismo e

    casamento analisadas aqui.

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    deJorge Benci

    deManoel Ribeiro Rocha

    Figura 3. A gnese dos registros paroquiais a partir do Conclio de Trento.

    Bem, aqui interrompemos a reviso histrica para agregar uma informao que nos

    parece bastante importante para a constituio do gnero textual ata paroquial.

    Anteriormente, vimos que os gneros so constitudos de remisses, evocaes, tradies, s

    vezes fceis de serem identificadas, s vezes um tanto nebulosas. Nesse particular, o estudo da

    histria externa da lngua, ou seja, a histria social da lngua, nos ajuda a entender as

    mudanas que possam haver se processado no interior dessa mesma lngua. Da a importncia

    do trabalho conjunto entre as disciplinas da Histria e da Lingstica.

    Ento, a Histria nos ensina que as mesmas Constituies Primeiras da Bahia (1707),

    so evocaes de outro texto fundamental largamente utilizado pelos que promulgaram as leis

    baianas. Trata-se do livroEconomia Crist dos Senhores no Governo dos Escravos do padre

    jesuta italiano, radicado no Brasil, Jorge Benci, escrito em 1700, poucos anos antes de terem

    sido promulgadas as tais leis. Analisando as remisses a esse texto nas Constituies

    Primeiras, Ana Palmira Casimiro (2006) verificou que nesse conjunto de leis, as normas

    referentes questo especfica da educao dos escravos negros na doutrina crist foram,

    segundo ela, declaradamente extradas do livro de Benci, provindas de uma longa histria

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    do pensamento teolgico cristo (Casimiro 2006:10). Em termos de constituio do texto,

    felizmente temos aqui pistas bem claras de como se deu a atualizao do gnero texto

    jurdico-religioso. Uma atualizao que ocorreu portanto em funo de uma demanda da

    sociedade que este conjunto de leis deveria regular.

    5.1 A tenso entre economia rgiavs. economia cr ist: escravido e libertao no Sculo

    das Luzes.

    Para continuar nosso raciocnio de como textos evocam outros textos, vale a pena

    retomar o que Palmira Casimiro (2006:16-22) observou em relao obra do Padre Manoel

    Ribeiro Rocha, autor do livro O Etope Resgatado, Empenhado, Sustentado, Corrigido,

    Instrudo, Libertado: discurso teolgico-jurdico sobre a libertao dos escravos no Brasil,

    publicado em 1756. A autora nota que nesse livro h referncias tanto das Constituies

    Primeiras como da Economia Crist e que tambm h uma semelhana ideolgica e, por

    vezes, uma forte identificao de forma e contedo entre o Etope Resgatado e a Economia

    Crist, se bem que esta semelhana proceda, em parte, do fato de ambos os autores terem se

    inspirado na mentalidade coletiva da poca (op. cit., p. 17). Essa mesma mentalidade

    coletiva da poca parece ter sido confirmada por um estudo recente de Martha Hameister

    (2007)2 e ser retomada mais adiante atravs do exemplo de uma curiosa ata de batismo

    setecentista do Rio Grande do Sul. Ana Palmira Casimiro (2006:17), identifica dois pontos

    em comum entre as obras de Benci e Ribeiro Rocha: 1. Nas duas obras defende-se a dignidade

    do negro escravizado e 2. Nelas se protesta contra a crueldade cometida contra os escravos.

    23.o Encontro Escravido e Liberdade no Brasil Meridional, 2 a 4 de maio de 2007, Universidade Federal deSanta Catarina, Laboratrio de Histria Social do Trabalho e da Cultura.

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    Figura 4. A intertextualidade dos registros paroquiais.

    O certo que textos so constitudos de evocaes e inovaes. O sentido disso que

    cada rede de gneros mais propensa conservao que inovao. No caso particular dos

    textos jurdico-religiosos o carter conservador sempre ser mais saliente. Como lingistas

    estamos interessados tanto num plo como no outro, interessa-nos o conservadorismo para

    verificar como se constitui a norma culta da lngua, e tambm nos interessa a inovao para

    identificar o estado da norma cotidiana e popular de pocas passadas. As atas paroquiais nos

    do mais pistas do conservadorismo, embora na maior parte das vezes o lingista histrico

    esteja preocupado com a constituio da norma popular, algo que pouco transpira desses

    documentos.

    6. A anlise lingstica dos registros paroquiais

    Pelo que se viu anteriormente, as atas podem trazer em seu bojo elementos

    convergentes dos vrios textos reguladores aqui apresentados. Assim, segundo as tradies

    discursivas que exibe, pode remeter vrios desses textos ou apenas a alguns deles, como

    vemos pelo quadro, em que podemos alocar diferentes tipos de ata no s no eixo diacrnico,como tambm no eixo das evocaes que exerce, ou seja,

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    - uma ata do incio dos setecentos pode conter apenas referncias ao CT,

    - enquanto que a partir da segunda dcada do sc. XVIII as atas j trazem elementos

    das CP baianas e

    - em determinados contextos sociais podem manter-se relativamente estveis quanto

    sua estrutura e contedo, em funo do desconhecimento das idias contidas nos

    outros textos orientadores como aEconomia Crist ou O Etope Resgatado.

    - Elas podem ainda indicar pistas desses textos inspiradores, ou at mesmo

    elementos convergentes desses dois textos.

    Identificamos esses elementos somente nas atas de batismo e casamento e deixamos as

    atas de bito para uma outra ocasio, devido exigidade do tempo.

    6.1 As atas de casamento

    Iniciamos a anlise pelas caractersticas textuais dos registros de casamento.

    Anteriormente dissemos que esses documentos so exemplares de textos que estabelecem

    uma relao de maior distanciamento entre o enunciador e seus enunciatrios, ou seja, a quem

    o texto se dirige. Tal fato implica no uso de uma linguagem mais elaborada, de um lxico

    mais especializado, de frmulas pr-estabelecidas, as quais permitem pouca ou nenhuma

    variao. A tabela abaixo d conta de alguns desses elementos:

    Tabela 1. Frmulas das atas de casamento dos setecentos e oitocentos.

    Partes do texto Frmulas

    Data -

    Aos vinte e dois dias do ms de abril de mil setecentos e setenta e um anos

    Diligncias - feitas as denunciaes como manda o sagrado concilio tridentino e Constituio doBispado (XVIII)

    -

    feitas as denunciaes na forma do Sagrado Conclio Tridentino (XVIII)-

    feitas as denunciaSoins na forma do Conclio tridentino (XVIII)-

    feitas as deligencias do estilo Com Provizo do Reverendo (XIX)- depois de feitas as denunciaSoins Canonicas (XVIII)- e feitas as deligencias do estilo (XIX)-

    e feitas as deligencias (XIX)Resultado das diligncias -

    sem se descobrir impedimento algum e nem eu at o presente o saber comoconstou-me da licena que se me apresentou do Reverendo Vigrio da Vara (XVIII)

    -

    sem se descobrir impedimento algum, como consta da provizam de Licena do M.toRd.o vigario da vara, q fica em meu poder (XVIII)

    - sem se desCobrir empedim.to algum o q. tudo Consta da Sertido dos Banhos(XVIII)

    -

    sem impedimento, precedendo LicenSa do ordinario e do Reverendo Paroco(XVIII)

    -

    Sem empedimento algum Com Provizo do Reverendo Vigario da vara (XIX)-

    sem se descobrir impedim.to (XIX)Testemunhas - e Sendo tt.as as abaixo aSi.das peSosas Conhecidas (XVIII)

    - sendo presentes por testemunhas (XVIII)-

    em minha prezenia, e das Testemunhas abaxo aSignadas Com palavra de prezente(XIX)

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    Ato do casamento -

    Se cazaro em face da Igreja Com palavras de Prezente (XVIII)- se casaram por palavras de presente ... (XVIII)- Se Cazaro, Com palavras de prezente (XVIII)- Ce Cazaro (XVIII)-

    Se Recebero por marido e mulher... (XIX)-

    Se Recebero por Marido e mulher (XIX)Ato do registro e

    assinatura

    -

    fis este assento q na verdade asignei com as ditas testemunhas (XVIII)

    -

    e logo lhes dei as bencas, e p.a Constar fis este aSento (XVIII)-

    Logo recebero as benSas, do que para Constar faSo este aSento. (XVIII)- e llogo Recebero as Abensas comforme o Comcillio Tridentino e p.a Constar fao

    este aSento (XIX)-

    e logo lhe conferi as abensas na fr.a do Comcilio Tridentino e para Constar fis esteaSento (XIX)

    -

    e logo ... Conforme o Rito da Santa Madre Igreja e p.a Constar fis este asento (XIX)-

    e para Constar fis este aSento (XIX)

    Uma anlise muito rasa desses documentos revela os seguintes traos lingsticos:

    (a) Do ponto de vista dos elementos constitutivos do gnero, percebemos que:

    -

    As frmulas apresentam-se regulares quanto sua estrutura contendo trechosorganizados de forma rgida contendo: 1. a data; 2. a informao das diligncias do batismo

    conforme o Conclio Tridentino; 3. a informao do resultado dessas diligncias; 4. o nome

    das testemunhas; 5. a informao do ato de casamento; 6. a informao o registro e assinatura

    do assento paroquial.

    - As atas de casamento podem trazer expressas evocaes dos textos fundamentais que

    orientam esses registros como o caso das determinaes do Conclio de Trento e das

    Constituies Primeiras;- H uma tendncia de reduo na extenso das frmulas do sc. XVIII para o sc. XIX,

    em decorrncia em parte pelo possvel desgaste promovido pela repetio, ou pela obviedade

    do contedo pressuposto (p.ex., a referncia ao Conclio Tridentino). A retomada no sc. XIX

    de determinadas frmulas que j estavam em processo de eroso pode indicar os movimentos

    de conservadorismo vivenciados por determinadas comunidades.

    - Frmulas que inicialmente eram registradas em latim, passam a ser traduzidas ou

    deixam de existir (in facia eclesia = em face da igreja, ut supra)- A ordem dessas frmulas bastante rgida. No sc. XIX, alguns itens do asento

    rompem a ordem dessa estrutura rgida, aparecendo antes ou depois de outras, como o caso

    da informao sobre as testemunhas e o lugar da informao sobre as diligncias tridentinas.

    (b) Do ponto de vista intrnsecamente sinttico, nota-se que:

    - So freqentes as construes absolutas com particpios (feitas as diligncias),

    gerndios (sendo presentes, sendo testemunhas) e construes absolutas nominalizadas

    introduzidas por preposies (sem impedimento, em minha presena),

    - Oraes infinitivas (sem se descobrir impedimento algum, para constar).

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    - Uso de conectivos de pouco valor lgico (e, logo, sem, com) com sentido mais

    temporal e mais instrumental. Em textos morais, como o caso das leis que orientam os

    registros paroquiais, a tcnica de juno mais tpica feita atravs do uso de operadores

    lgicos mais fortes como porque, se, portanto, que indicam maior teor argumentativo. Nas

    atas nada se discute, at que se prove o contrrio, como veremos...

    - O uso do se indeterminativo, ndice de impessoalizao das tarefas executadas (sem

    se descobrir impedimento)

    - O curioso uso da prclise em incio de sentena, to abominado pelas gramticas

    escritas a partir do sc. XIX no Brasil (Se casaro, se recebero por marido e mulher), um

    ndice que se atribua a um uso popular da lngua, mas que hoje sabemos faz parte do

    portugus falado culto no Brasil.

    - Verbos performticos conjugados no modo indicativo, efetivando o ato (se casaro,

    se recebero por marido e mulher, fiz, assinei, lhes dei as benas)

    As atas de casamento parecem no exibir marcas que remetam aos textos de Jorge

    Benci ou de Manuel Ribeiro Rocha. Isso se deve ao fato de que o carter efetivamente

    libertador est declaradamente marcado nas atas de batismo, que podem delimitar a

    manuteno da escravido ou demarcar o incio de uma vida como forro.

    6.2 As atas de batismo entre conservao e inovao

    Em termos de organizao textual, as atas de batismo dos setecentos e oitocentos

    apresentam muita regularidade. No h muitas variaes em sua estrutura e em suas frmulas

    tpicas. Nesse sentido, o gnero discursivo ata de batismo um gnero bastante conservador.

    A estrutura desse gnero pode ser representada do seguinte modo:

    (i) data

    (ii)

    e o lugar, i.e. a igreja,(iii)em seguida, o ato de batismo citado,

    (iv)a seguir o batizando citado e caracterizadocomo innocente

    (v)os padrinhos so citados

    (vi)a moradia dos participantes e por fim

    (vii) o ato de registro e a assinatura.

    O conservadorismo desse gnero discursivo advm no somente de sua organizao

    textual rgida, como tambm da fixidez de suas frmulas tpicas, como pode ser observado natabela abaixo, em que a comparao das frmulas utilizadas resulta em uma certa tendncia de

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    reduo de extenso do sculo XVII para o sculo XIX, especialmente com relao ao ato de

    registro de assinatura:

    Tabela 2. Frmulas das atas de batismo dos setecentos e dois oitocentos.

    Partes do texto Frmulas

    Data - Aos vinte e Sinco dias do mes de Novembro de mil e Setecentos e quarenta eSinco annos (1745)

    Lugar - nesta Igreja de Nossa Senhora da Lux, da villa de Curitiba (1745)- nesta Igreja Matriz de noSsa Senhora da Luz da Villa de Curitiba (1796)

    - nesta Igreja Matris do Patrocinio de So Joz (1799)- nesta Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz da Villa de Coritiba (1802)

    Ato do batismo - baptizei, e ps os Santos oLeos a (1745)- baptizei... e lhe puz os Santos oleos (1796)- baptizey, e pus os Santos Oleos a (1799)

    - baptizei, e pus os Santos Oleos a (1802)- batizei a (1810)

    Caracterizao dobatizando

    -

    ... innocente (1745)- a innocente ..., filha Legitima de ... e de ... (1796)- innocente ... filha legitima de ... e ... (1799)- ... innocente, filha legitima de ... e de ... (1802)

    - ... filho de ... e ... (1810)padrinhos - foram Padrinhos ... e Sua mollher ... (1745)

    - forao padrinhos ... e ... (1796)

    - Padrinhos o ... e ... (1799)- foro Padrinhos ... e ... (1802)- foro Padrinhos ... e ... (1810)

    Moradia - todos naturais, e moradores desta freguesia (1745)- todos moradores desta mesma Freguezia (1796)- todos desta freguezia (1799)-

    todos freguezes desta Paroquia (1802)Ato do registro deassinatura

    - e pera constar fis este assento no mesmo dia, e hera vt Supra (1745)- Para constar fiz este aSsento (1796)- Do que par constar fao este aSsento (1802)- Fis e aSigney (1799)- Para constar fiz este (1810)

    Essa tendncia de reduo na extenso das frmulas foi observada tambm nas atas de

    casamento (cf. item 6.1):

    (a) Sintaticamente, encontramos um alto grau de adjetivao, de uso de oraes

    subordinadas adverbiais e adjetivas reduzidas de gerndio e de verbos no pretrito perfeito;

    (b) Com relao ao outros meios lingsticos utilizados nessas atas, percebe-se uma

    interseco dos discursos jurdico e religioso. Essa mistura de estilos est ligada dupla

    funo social do proco de representao do Estado e da Igreja. As seguintes frmulas e

    expresses so encontradas repetidamente nas atas de batismo:

    Discurso jurdico: (1) do que para constar faco este assento

    (2) para constar fiz este accento

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    Discurso religioso: (3) baptizei

    (4) pus os santos oleos

    (5) freguezes desta paroquia

    (6) reverendo

    (7) padrinhos

    (8) innocente

    (9)

    filho legtimo

    O lxico ativado pode ser organizado em um campos semntico da identidade social.

    Campos semnticos podem ser considerados critrios cognitivos, i.e. eles revelam os

    conhecimentos ativados quando da produo e recepo de textos. Nesses campos semnticos,

    so levantadas as expresses utilizadas pelos enunciatrios (procos) no processo de

    referenciao textual.

    Podemos definir referncia como a relao que se estabelece entre uma determinada

    expresso lingstica e o objeto do mundo extralingstico ao qual essa expresso

    corresponde. Assim, a expresso lingstica [a maior cidade do Brasil] refere-se a um objeto

    extralingstico, i.e. a cidade de So Paulo. Do mesmo modo, [a terra da garoa] tambm

    uma expresso lingstica que aponta a um objeto do mundo extralingstico.

    Coincidentemente, ela aponta ao mesmo referente que [a maior cidade do Brasil]. Portanto, do

    ponto de vista da teoria referencial, ambas as expresses tm o mesmo significado, pois

    estabelecem referncia ao mesmo objeto: a cidade de So Paulo.

    Entretanto, nossas intuies de falantes nativos nos dizem que essas expresses no

    so idnticas. De fato, no podem ser consideradas sinnimas. Embora refiram ao mesmo

    objeto, tais expresses possuem cargas semnticas diversas, i.e. cada uma delas traz

    informaes diferentes a respeito do objeto a que se referem. Dizer de So Paulo que a

    maior cidade do Brasil, diferente de dizer que So Paulo a terra da garoa. As propriedades

    apontadas por essas expresses so, pois, diversas. Elas apresentam, assim, mesma referncia,mas sentidos diferentes.

    Por meio do processo de referenciao, grupos sociais podem ser identificados e

    caracterizados nas atas de batismo analisadas. Nas atas de batismo, podemos identificar trs

    campos semnticos da identidade social, em que negros (i), crianas abandonadas (ii) e ndios

    (iii) so referidos.

    (10) Campo semntico da identidade social (i): parda forra solteira,forra do

    gentio da guine, escrava, liberta, mulatasolteiraescrava

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    (11) Campo semntico da identidade social (ii): emgeitada,patresincogniti, que

    foi exposto/achado

    (12) Campo semnticos da identidade social (iii): antes denominado,prvulo (a),

    indios selvagens que a pouco tempo sahiro dos sertoens vizinhos para esta

    povoao

    A anlise de campos semnticos da identidade social torna possvel investigar os

    conhecimentos ativados pelos procos na produo das atas de batismo. As expresses

    utilizadas no processo de referenciao textual revelam o conhecimento dos enunciatrios a

    respeito da existncia desses grupos sociais e o modo como representavam tais grupos.

    Como discutido anteriormente, todo texto possui uma inteno. Do ponto de vista

    pragmtico, essas atas de batismo realizam algumas intenes cristalizadas. De uma lado,

    registram o ato de fala batizar, por outro lado, criam identidades sociais: de brancos, negros,

    escravos, ndios, mulheres solteiras, crianas expostas. relevante notar que as atas de

    batismo possuem uma forma to cristalizada, que torna pouco provvel a caracterizao

    dessas identidades sociais de outro modo. Isso quer dizer que a forma do gnero discursivo

    contribui para a cristalizao dessas identidades no discurso. Algumas atas podem ser

    consideradas conservadoras. Elas possuem essas intenes cristalizadas de identificar grupos

    sociais:

    (13) Aos dezenove dias do mes de Janeiro do anno de mil Setecentos Setenta e Sete na Capela deNoSsa Senhora da Conceio do Tamandua baptizou, e pos os Santos Oleos o Reverendo FreiJoze dos Santos Pinheiro Religioso do Carmo a Benedito innocente filho de Izabel Maria deJesus parda forra Solteira, e de pay incognito. Foi Padrinho o Capitao Joze dos Santos home[?]cazado todos moradores do termo desta vila de Coritiba. E para Constar fis este asSento pelacertido que Se me Remateo na forma vt. Supra.O Vigr.o Dom.os Roiz Costa(docto. 90 de 1777, p. 26 do dossi de atas paroquiais)

    importante notar que uma das caractersticas do gnero discursivo que ele um

    formato de representao do mundo. Assim, ele no somente reflete um determinado modo de

    representao do mundo, mas ele tambm gera esse modo. Isso quer dizer que o gnero

    discursivo pode ser usado como meio de segmentao social. As expresses parda forra

    solteira e de pay incognito, por exemplo, ajudam a identificar os atores do discurso

    socialmente.

    Como entidade que cultural, social, histrica, o gnero discursivo no imutvel. O

    gnero discursivo possui estabilidade, mas tambm dependente das condies de sua

    produo. No exemplo, a seguir podemos caracterizar esta ata entre conservadorismo e

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    inovao.

    (14) Diogo antes denominado Fec (1812)Aos des dias do mes de outubro do anno de mil oitocentos e doze, na Capella desta Povoaodo Atalaya nos Campos de Guarapuaba, baptisei e pus os santos oleos a Diogo, antes

    denominado Fec, parvulo de dous annos, pouco mais ou menos de idade, filho de Pai jafallescido que no quisero declarar segundo o seu costume, e de Cof, India viuva, quejuntamente com outros sahio a pouco tempo dos sertoens vizinhos onde residia, para estaPovoao. Foi padrinho Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, casado, e actualcommandante desta Expedio. Do que para constar fao este a(h)sento.O vigrio Francisco das Chagas Lima(p. 106 do dossi de atas paroquiais)

    Embora, a citao dos pais da criana seja uma caracterstica do gnero discursivo ata

    de batismoem nosso corpus, observa-se acima a adaptao do gnero a uma nova realidade

    cultural: o costume indgena de no se citar os mortos.

    As mudanas nas condies de produo de um gnero discursivo so a causa da

    inovao. No exemplo a seguir, temos uma mudana nas intenes do texto. A ata de batismo

    de Felcia3, que no faz parte do dossi de atas paroquiais dos setecentos e oitocentos, tem

    uma inteno inovadora que a funo de libertao de Felcia. Essa nova funo social do

    gnero discursivo rompe com a estruturas textuais cristalizadas:

    (15) Aos doze dias do ms de junho de mil setecentos e quarenta e cinco anos nesta igreja matriz deJesus-Maria-Jos da povoao do Rio Grande de So Pedro estando eu de cama enfermo dei

    licena ao Reverendo Manuel Henriques para batizar por forra e pr os santos leos a Felciainocente filha natural de Francisca parda escrava do Comissrio Cristvo da Costa Freire e deAntnio Pires homem paisano e dando eu licena ao dito Reverendo padre para batizar porforra no dia onze ele a batizou no dia doze muito cedo por fazer gosto ao dito Comissrio,amigo seu muito particular, que no queria se batizasse por forra a dita criana, e a Pedro daCosta Marim, a quem o dito Comissrio fez a venda da dita sua escrava Francisca para melhorse escusar de forrar a filha e tambm porque no houvesse quem lhe levasse pia batismal odinheiro que o pai dela dava para se forrar conforme o estilo e costume de todas as freguesiasdo Bispado, porque para ele a no levar pia o fez prender o dito Reverendo padre pelogoverno deste estabelecimento e preso esteve at fazer o dito batizado a gosto do Comissrio eAjudante Pedro da Costa Marim e no do pobre pai, que cama me veio trazer o dinheiro paraforrar sua filha e logo a deu por forra pedindo-me assim a mandasse batizar e eu assim amandei batizar por forra e livre como se forra e livre nascesse o dito Reverendo Padre no o

    fez foi por dolo e malcia e se no apareceu pessoa alguma que requeresse na pia o ditobatismo e levasse o dinheiro para tal, foi por estar o pai preso e ele vir muito cedo batizar acriana, a qual, como conheo ser estilo e costume nas mais freguesias do Bispado e o paiquerer dar o valor dela segundo o estado de pequenez, dou por forra e liberta no seu batismo,havendo o senhor a todo o tempo que quiser o valor da dita Felcia no estado da inocncia emque foi batizada, pois a Igreja me e no quer filhos que a ela chegam cativos e por descargode minha conscincia e saber se fez todo o contrrio do que costume por traio, dio emalquerena que contra uns e outros h nesta freguesia, que julgo ser forra a dita Felciainocente, da qual foram padrinhos Manuel Francisco da Costa e Nossa Senhora do Rosrio e

    por verdade de todo e ter batizado e posto os santos leos dita Felcia o dito Reverendo Padrefiz este assento dia e era ut supra.Pe.Joo da Costa Azevedo.(Domingues, 1981: 34-35 apud Hameister 2007)

    3Tal registro batismal da filha de uma parda escrava e de um campnio da Vila do Rio Grande apresentado porHameister (2007).

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    Tematicamente, a ata de batismo de Felcia inovadora em sua revelao de uma

    corrente de pensamento vigente dentro da Igreja Catlica na poca que reconhecia um direito

    de costume: Segundo Hameister (2007: 2),

    -direito de CostaFreire, que o nomeara para o cargo de Ajudante, era desnecessria. Era direito de um proprietrio deescravos negar a alforria sem necessitar tamanha mobilizao de recursos sociais. Entretanto estamosdiante de um tempo em que o direito costumeiro tambm assume fora de lei. O padre Joo da CostaAzevedo apresnta como argumento para a alforria de Felcia o fato de ser estilo costume de todas asfreguesias do bispado dar a alforria a uma criana a pia batismal mediante o valor compatvel com oestado de pequenez oferecido por quem quer que fosse. Eram dois direitos que competiam em

    paralelo em uma questo na qual o proco, autoridade moral da pequena localidade, arbitrara em favorda menina e do desejo de sua famlia.

    A anlise das atas de batismo torna necessria a observao das relaes temticas

    dessas atas com outros textos que tambm discutem as idias de libertao e escravido, tais

    como oEtope Resgatado, de Manoel Ribeiro Rocha (1756) e As Constituies Primeiras do

    Arcebispado da Bahia (1707).

    A realizao de uma inteno comunicativa e social inovadora

    -se a ata de

    batismo de Felcia um carter narrativo e argumentativo ausente nas outras atas.

    Como indicadores lingsticos desse carter narrativo, encontramos elementos que

    comprovam uma progresso temporal de eventos (estando eu de cama enfermo, dei

    licena ao Reverendo Manuel Henriques para batizar, ele a batizou no dia doze muito cedo

    por fazer gosto ao dito Comissrio, o fez prender o dito Reverendo padre pelo governo

    deste estabelecimento, cama me veio trazer o dinheiro para forrar sua filha, eu assim a

    mandei batizar por forra e livre, etc.).

    O carter argumentativo da ata reflete-se na diretividade que o padre Joo da Costa

    Azevedo imprime em seu discurso. Constri uma rede de argumentos a favor da libertao de

    Felcia, relatando os motivos ocultos que impediram a libertao da menina anteriormente, a

    saber, o desejo do padre Manuel Henriques de agradar ao seu amigo o Comissrio Cristvo

    da Costa Freire (por fazer gosto ao dito Comissrio, amigo seu muito particular), o desejo

    do comissrio de manter a menina cativa (que no queria se batizasse por forra a dita

    criana), os esquemas criados para impedir o pai de Felcia de levar o dinheiro pia batismal

    (porque para ele a no levar pia o fez prender o dito Reverendo padre pelo governo deste

    estabelecimento e preso esteve at fazer o dito batizado a gosto do Comissrio e Ajudante

    Pedro da Costa Marim). Por fim, o padre Joo da Costa Azevedo apresenta o pensamento

    cristo de escravido e liberdade que circulavam dentro da Igreja Catlica ( pois a Igrejame e no quer filhos que a ela chegam cativos).

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    As atas de batismo de Benedito, Diogo e Felcia provam que a mudana e a

    continuidade das formas comunicativas no podem ser dissociadas de um quadro mais amplo

    de mudanas e continuidades sociais e histricas.

    Consideraes finais

    Ao longo deste ensaio, procuramos enumerar algumas contribuies que a Lingstica

    de Texto pode oferecer para a anlise dos registros paroquiais, estabelecendo uma interface

    entre os estudos lingsticos e os trabalhos de histria social. Embora ofeream algumas

    limitaes do ponto de vista lingstico, decorrentes da estrutura rgida do texto, que no

    permite entrever marcas de uma norma lingstica cotidiana (sonho de todo lingista) e,

    tambm, embora restrinjam a anlise da argumentatividade, em funo de uma malha sinttica

    e uma tessitura textual muito rasas, verificamos que os documentos paroquiais possibilitam

    verificar a manuteno e os movimentos na evoluo da norma culta do portugus falado no

    Brasil nos sculos XVIII e XIX. A exemplo do que se tem feito nos estudos de Lingstica

    Histrica, observamos que a anlise da histria do gnero vai alm dos limites da lngua

    particular e que necessrio investigar a gnese dos textos e sua relao com outras lnguas e

    tradies culturais. Notamos, ainda, que as mudanas na organizao social ajudam os

    lingistas a compreenderem mudanas nos processos comunicativos. Para lingistas, as atas

    paroquais so, portanto, uma fonte importante de pesquisa, que comprovam que a anlise da

    histria social ajuda a compreender as mudanas internas da lngua, alm de possibilitar a

    anlise do uso ideolgico da linguagem.

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