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Um tema pouco discutido na celebração dos 500 anos da chegada do homem europeu às terras brasileiras é o papel da ciência na epopéia dos descobrimentos. Na verdade, Portugal descobriu novas terras e tornou-se, no século 16, a primeira potência global, com territórios e interesses comerciais nos quatro continentes, graças a um consistente e metodicamente executado projeto nacional de expansão ultramarina. Essenciais para esse projeto foram os esforços prévios de ampliação do conhecimento sobre a natureza e os avanços tecnológicos que permitiram a navegação oceânica por longas distâncias. Tais iniciativas constituíram uma ruptura com o mundo medieval, representando um anúncio prematuro, no século 15 e na península ibérica, dos primórdios do Renascimento. Celso P. de Melo Departamento de Física, Universidade Federal de Pernambuco 16 CIÊNCIA HOJE • vol. 27 • nº 158 H I S T Ó R I A A partir do início do século 15, Portugal embarcou em um Figura 1. O Infante D. Henrique (em detalhe dos painéis de S. Vicente, exibidos no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa, Portugal) iniciou, com a ‘escola de Sagres’, o projeto que levou às grandes navegações portuguesas projeto nacional de exploraçªo da costa atlântica ao norte da `frica, capitaneado pelo quinto filho do rei D. Joªo I, o infante D. Henrique (1394-1460) (figura 1). O plano inicial evoluiu para uma meta mais ambiciosa, a circunavegaçªo do continente africano, que permitiria chegar às ˝ndias, terra das especiarias, por mar. As especiarias pimenta, canela e outras tinham alto preço na Europa porque permitiam conservar alimentos como a car- ne e disfarçar o gosto se a comida jÆ estivesse se deteriorando. O controle do comØrcio desses cobiçados produtos tinha, portanto, elevado va- IMAGENS CEDIDAS PELO AUTOR

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Um tema pouco discutido

na celebração dos 500 anos

da chegada do homem europeu

às terras brasileiras é o papel

da ciência na epopéia dos

descobrimentos. Na verdade,

Portugal descobriu novas

terras e tornou-se, no século

16, a primeira potência global,

com territórios e interesses

comerciais nos quatro

continentes, graças a um

consistente e metodicamente

executado projeto nacional

de expansão ultramarina.

Essenciais para esse projeto

foram os esforços prévios

de ampliação do conhecimento

sobre a natureza e os avanços

tecnológicos que permitiram

a navegação oceânica por

longas distâncias.

Tais iniciativas constituíram

uma ruptura com o mundo

medieval, representando

um anúncio prematuro,

no século 15 e na península

ibérica, dos primórdios

do Renascimento.

Celso P. de MeloDepartamento de Física,Universidade Federal de Pernambuco

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A partir do início do século 15, Portugal embarcou em um

Figura 1. O InfanteD. Henrique (em detalhedos painéis de S. Vicente,exibidos no Museu Nacionalde Arte Antiga em Lisboa,Portugal) iniciou,com a ‘escola de Sagres’,o projeto que levouàs grandes navegaçõesportuguesas

projeto nacional de exploração da costa atlânticaao norte da África, capitaneado pelo quinto filho dorei D. João I, o infante D. Henrique (1394-1460)(figura 1). O plano inicial evoluiu para uma metamais ambiciosa, a circunavegação do continenteafricano, que permitiria chegar às Índias, terra dasespeciarias, por mar. As especiarias � pimenta,canela e outras � tinham alto preço na Europaporque permitiam conservar alimentos como a car-ne e disfarçar o gosto se a comida já estivesse se

deteriorando.O controle do comércio

desses cobiçados produtostinha, portanto, elevado va-

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lor estratégico. Tal comércio, a partir das áreas deprodução nas ilhas do oceano Índico e nas costas daÍndia e regiões vizinhas, era dominado há séculospor mercadores árabes, que traziam as especiarias,pelo mar Vermelho, até o litoral do Egito, de ondeseguiam em caravanas terrestres até o Cairo. Nessacidade, os venezianos � únicos cristãos autorizadospelo Papa a negociar com os muçulmanos � adqui-riam as mercadorias, encarregando-se de sua distri-buição na Europa.

Ao mesmo tempo, o bloqueio muçulmano doacesso às terras da Palestina e do caminho terrestrepara as Índias reforçou a idéia de D. Henrique deatingir por mar o mítico reino cristão de Preste João.Segundo relatos de viajantes, esse reino estariaisolado, sem acesso pela costa norte da África,ocupada pelos árabes. Uma possível aliança comesse rei cristão reforçaria a liderança de Portugal naEuropa como promotor da expansão do catolicismo,o que traria benefícios econômicos.

Essa divisão do mundo entre fiéis (os cristãos) einfiéis (os árabes) confundiu o navegador Vasco daGama (1460-1524) e seus tripulantes ao chegarem àÍndia, em 1498. Incapazes de entender uma civiliza-ção avançada que não se encaixasse nesses dois

modelos, eles pensaram ter chegado às terras dePreste João, vendo a religião hindu como umavariedade de seita cristã. Ironicamente, a essaaltura um emissário já alcançara o verdadeiroreino de Preste João, na atual Etiópia. Retido pelosoberano local, só muitos anos mais tarde ele fariacontato com navegadores portugueses que chega-ram até lá, através do mar Vermelho.

A fase inicial da expansãoDurante várias décadas, D. Henrique reuniu emtorno de si, e dos sábios que atraiu para esseesforço, o que havia de mais avançado no conhe-cimento europeu em termos de cartografia, técni-cas de navegação e construção naval. Apesar deser conhecido como �o navegador�, o Infante esteveno mar apenas para cruzar o Mediterrâneo naexpedição de conquista de Ceuta, cidade árabe nonorte da África. A partir de Ceuta, lugar da primei-ra presença européia na África desde a expansãomuçulmana na Sicília e na península ibérica, osportugueses esperavam dominar as rotas de co-mércio marítimo com o continente africano.

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oceânicos. Navegar pelo Atlântico � o então �martenebroso� � significava desafiar o desconhecido.Lendas antigas falavam de uma tórrida e inóspitaregião mais ao sul, onde o mar se transformava emvasto lamaçal, prendendo os navios.

A barreira, mais psicológica que real, do caboBojador (no Saara Ocidental) levou mais de 10 anospara ser vencida (em 1434). Daí em diante, toda acosta ocidental da África foi explorada. O cabo daBoa Esperança só foi contornado em 1488, porBartolomeu Dias (C.1450-1500). Após ser levado,por tempestades, para uma região de mar calmo aoeste, ele seguiu os ventos e ultrapassou sem notaro ponto mais ao sul do continente africano. Poracidente, havia descoberto a �volta do mar� (o con-torno do então cabo das Tormentas por uma rota emsemicírculo pelo Atlântico sul), manobra depoisaperfeiçoada por Vasco da Gama.

A partir do século 16 a �volta do mar� tornou-seum trecho essencial da linha regular de comunica-ção entre Portugal e suas possessões asiáticas. Achegada de Pedro Álvares Cabral (C.1467-1520) àsterras brasileiras surge assim como uma conseqüên-cia natural de ter seguido as instruções que recebeude Vasco da Gama antes de partir para sua viagem,mais de conquista que de exploração, das terras dasÍndias recém-descobertas pelos portugueses.

O príncipe ganhou seu �título� por ter comandadoa primeira e decisiva fase da expansão portuguesa(ver �A escola de Sagres�). A exploração e omapeamento da costa ocidental da África exigiu deinício enfrentar e estudar as correntes e os ventos

A escola de SagresA escola de Sagres não foi uma entidade formal de ensino e treinamento,e sim uma ‘escola’ de pensamento e ação. Em seu castelo, e sob o lema“O talento do bem-fazer”, D. Henrique reuniu cartógrafos e matemáti-cos para desenvolver as técnicas astronômicas que permitiriam a nave-gação oceânica. Ao mesmo tempo, nos estaleiros de Lagos, centenas dehomens dedicavam-se à construção naval, usando técnicas cada vezmais aperfeiçoadas de escolha e preparo de madeiras para as diversaspartes dos navios (figura 2) e de vedação e selagem dos cascos.

A cada expedição na costa africana, as informações coletadas servi-am para aprimorar mapas, técnicas de navegação e o desenho dos na-vios. O Infante, para quem o conhecimento era a fonte “de onde emergetodo o bem”, mantinha o título de ‘protetor’ da Universidade de Lisboa epatrocinava cátedras de ciências. Agindo contra o costume da época,mostrava tolerância para com outros credos e raças, ao escolher seuscolaboradores prioritariamente por seu conhecimento. Com isso, atraiupara seu esforço vários sábios judeus, que sofriam menos restrições queos cristãos para viajar e obter informações no mundo árabe. D. Henriquemorreu em 1460, sem ver a África circunavegada (o que só ocorreria em1492), mas teve em vida o reconhecimento internacional por seus feitos.

Figura 2. Para construir os navios, os artesãos portuguesesseguiam estritas recomendações técnicas quanto ao tipo de madeira,época de corte apropriada e tratamento das peças antes do uso

A influência de Marco PóloNo planejamento da expansão marítima, uma estratégia de D.Henrique foi a de previamente recolher o máximo de informaçõesdisponíveis sobre o comércio no Extremo Oriente. Para isso, seuirmão D. Pedro percorreu por terra, entre 1419 e 1428, diversospaíses da Europa, coletando junto a viajantes e sábios estrangeirosdados sobre as terras do Oriente e do norte africano. Duas informa-ções tiveram especial relevância para o projeto português de circu-navegação da África. O ‘mapa catalão’, elaborado por AbraãoCresques em 1375, revelava um rico comércio por terra ao sul doSaara e ainda sugeria a possível localização do reino de Preste João.Já o diário de viagem de Marco Pólo indicava a existência de ricasterras no Oriente. Embora não se possa fazer uma inferência direta,a descrição de Marco Pólo dos barcos de junco chineses, com váriosmastros e só um leme na popa, pode ter influenciado a evolução daarquitetura naval portuguesa: tais avanços foram logo incorporadosàs versões mais modernas das caravelas.

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Os avanços quepermitiram as viagensDurante o século 15 os portugueses realizaram su-cessivos desenvolvimentos nas técnicas de constru-ção naval e navegação (ver �A influência de MarcoPólo�). A necessidade de embarcações mais velozese mais fáceis de conduzir levou à caravela de velalatina (ver �A caravela e a vela latina�). Ao mesmotempo, fugindo à tradição medieval de meracontemplação da natureza, os portuguesesviram-se forçados a criar métodos de medi-ção e de orientação em pleno mar.

A velocidade dos barcos, por exemplo,passou a ser determinada com o uso da

�barquinha�. Ao ser jogada da proa, a barquinhaflutuava e deixava desenrolar uma corda em quehavia nós, separados por uma distância igual aocomprimento do barco. O número de nós quepassava pela mão do marinheiro em certo tempo,estimado com ampulhetas, indicava a velocidade(figura 5) � daí a origem da unidade náutica utili-zada até hoje. Já a bússola exigia treinamentosofisticado, pois precisava ser calibrada em função

de desvios magnéticos causados pela variaçãoda longitude, por peças metálicas(como canhões) e até pelo içamento da

âncora.O aperfeiçoamento do astrolábio e da

balestilha, instrumentos árabes usadospara determinar a posição das estrelas, le-

vou os portugueses a um progressivo domí-nio da navegação oceânica. Em águas equa-toriais, a orientação pela estrela Polar, prati-cada desde a Antigüidade, tornava-se impre-cisa, e foi substituída pela determinação da po-sição do Sol em diferentes latitudes. Após

viagens de teste dos novos métodos, a navega-ção por instrumentos tornou-se rotineira para os

A caravela e a vela latinaDurante séculos, a navegação costeira foi dominante no Mediterrâneo, o mare nostrumdos romanos. Cruzá-lo era uma aventura incerta, que dependia da experiência da tripula-ção. Para a conquista de Ceuta, no lado africano do estreito de Gibraltar, os pilotosportugueses tiveram que aplicar noções básicas de trigonometria para manter o rumocorreto, já que a travessia era feita ‘à bolina’ (em ziguezague), por causa dos ventoscontrários. O controle da rota tornou-se mais importante na exploração da costa atlânticada África, que exigiu ainda barcos com autonomia para viagens longas em mar alto ecapazes de navegar em águas ra-sas na área litorânea. Para isso,D. Henrique mandou construiruma embarcação de menor cala-do e dotada de velas triangulares(velas latinas), adaptada de bar-cos portugueses e tunisianos.

Surgia a caravela (figura 3). O uso da vela latina permitiu navegar ‘contrao vento’ com um ângulo de 55° em relação ao rumo decidido – antes, comvelas quadradas, o ângulo era de 67° (figura 4). A diferença de 12 grausrepresentava uma economia de semanas, ou até meses, para trajetosoceânicos de longo curso.

Figura 5.Ao ser lançadaao mar, a‘barquinha’ (A)permitia medira velocidadedos navios,pelo númerode nós quepassavampelos dedos deum marinheirodurante certotempo, medidocom umaampulheta (B)

A

B

Figura 3. Réplica de uma caravela do tempo dos descobrimentos,exibindo nas velas a cruz da Ordem de Cristo,como acontecia naquela época

Figura 4. A introdução da vela latina aumentou a dirigibilidadedos barcos e tornou mais eficiente a navegação ‘à bolina’(em ziguezague, contra o vento), reduzindo o tempo de percurso

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O domínio da latitudeO reconhecimento de que a Terra tem forma esférica levou à dedução deque duas coordenadas – latitude (posição norte-sul) e longitude (posiçãoleste-oeste) – seriam suficientes para definir com precisão a posição de umnavio no mar. Os estudos astronômicos dos sábios de Portugal permitirampela primeira vez calcular a latitude de um barco, através da posição (emrelação ao eixo da Terra) do Sol e de certas estrelas, usando instrumentoscomo a balestilha, o astrolábio e, depois, o karmal (figura 6). A estrela Polarera usada para orientação no hemisfério Norte, mas ao cruzar a linha doEquador os pilotos portugueses precisaram de outros pontos de referên-cia. O primeiro mapeamento do céu noturno no hemisfério Sul foi feitopor Mestre João, o astrônomo da expedição de Cabral, que indicou aconstelação do Cruzeiro do Sul para a orientação no mar. A partir daí,cartógrafos e matemáticos portugueses elaboraram – em português, enão em latim, rompendo com a tradição medieval – livros (os ‘regimen-tos de marinharia’) para orientar seus navegadores, contendo dados astro-nômicos, regimes de marés, ventos e correntes oceânicas em várias re-giões do mundo (figura 7). Nas primeiras décadas do século 16, para obtercartas de habilitação, os pilotos portugueses tinham que se submeter aexames práticos e teóricos aplicados pelo cartógrafo-mor do reino.

Figura 6. A latitude era calculada como astrolábio (A), aperfeiçoado em Portugal,em operação conhecida como ‘pesagem do Sol’,e o karmal (B) era uma versão simplificadado astrolábio usada pelos mercadoresmuçulmanos.

Figura 7. As viagens marítimas da épocadependiam das correntes marítimas (azul)e do regime de ventos (laranja) – a rota de Vascoda Gama mostra (verde), entre a África e a Américado Sul, a manobra conhecida como ‘volta do mar’

pilotos portugueses (ver �O domínio da latitude�).A expedição de Cabral não só se tornou a primei-

ra a integrar terras de quatro continentes, mas tam-bém marcou nova etapa tecnológica nas viagens ma-rítimas. Sendo uma expedição de conquista das ter-ras da Índia recém-alcançadas, tinha um poder de

fogo que permitiu a Cabral exercer o domínio navalsobre os portos de interesse, bombardeando-os domar se preciso. Além disso, também pela primeiravez levava um astrônomo e cartógrafo, Mestre João,encarregado de mapear com precisão a rota seguida,além de exercer a função de médico de bordo.

Uma característica do esforço de expansão econquista de Portugal foi o de mapear as terrasdescobertas. Com isso, seus cartógrafos logo passa-ram a ser os melhores da época (figura 8). Suascontribuições são usadas até hoje. Pedro Reinelcriou a rosa-dos-ventos moderna, com a graduaçãoem graus e a flor de lírio marcando o norte (figura 9).E Pedro Nunes (1492-1578), matemático e cartógrafo-

A

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Pioneirosda globalizaçãoA integração das terras con-quistadas no além-mar fez dePortugal o primeiro agenteglobalizador do planeta (fi-gura 10). Com as primeirasviagens regulares entre osquatro continentes, no iníciodo século 16, animais e ve-getais da Europa e das Amé-ricas, que tinham evoluídoisoladamente, tiveram seushábitats repentinamente ex-postos à invasão por outras

As linhas de rumoUm fato curioso aconteceu com Martim Afonso de Souza em 1533.Após sua viagem exploratória ao sul do Brasil, na qual fundou SãoVicente, foi chamado de volta a Lisboa. Com base no conhecimentonáutico da época, decidiu navegar na direção perpendicular aomeridiano de São Vicente, convicto de que seguiria ao longo de umcírculo máximo terrestre e logo cruzaria a linha do Equador. Masapós vários dias notou que continuava na mesma latitude, contra-riando as noções de ‘linhas de rumo’ então adotadas na navegaçãooceânica. Chegando a Portugal, relatou o fato ao cartógrafo-morPedro Nunes, que estudou o assunto e percebeu a dificuldade detraçar um rumo reto em uma superfície esférica. A solução apareceuem seu Tratado da esfera, de 1537, que contém as equações funda-mentais para o triângulo esférico e o conceito de loxodromia (repre-sentação plana de superfícies curvas). O cartógrafo flamengoGerardus Mercator (1512-1594) sistematizou essas idéias, criandoas ‘projeções de Mercator’, empregadas até hoje em mapas.

Figura 8.Os mapasda IdadeMédia (A)exibiamapenas umordenamentorelativodas idéias,tradição queos cartógrafosportuguesesajudarama romper,com seus mapasmais precisose detalhados (B)

mor do rei D. João III, resolveu em meados do século16 o problema de assinalar em um mapa plano asrotas de navegação na superfície esférica da Terra(ver �As linhas de rumo�).

A superioridade de Portugal pode ser medidapela cobiça por seus barcos e manuais. Os capitãesportugueses tinham ordens para incendiar os bar-cos que precisassem ser abandonados, e seus ma-nuais e instrumentos de navegação eram alvos pre-ferenciais dos corsários estrangeiros. Ao mesmotempo, a sofisticação da tecnologia lusitana é bemexemplificada pela previsão de suprimentos parareforma e manutenção dos navios meses após apartida. Já em sua viagem pioneira, Vasco da Gamapôs seus barcos em dique seco (fora da água) paramanutenção nas costas de Moçambique, a meiocaminho da rota para as Índias.

espécies. Teve início assim um intenso intercâmbiode plantas tropicais, em especial entre as colônias efeitorias portuguesas no Brasil, África e Ásia. Trazi-dos de Goa, o coco e a manga adaptaram-se rapida-mente às terras brasileiras, enquanto o caju saiu doNordeste e tornou-se uma cultura comum na Índia.

Plantas cultivadas na Europa (como alho, cebolae outras) espalharam-se em regiões tropicais, e plan-tas das Américas (milho, tabaco, batata, tomate e ou-tras) passaram a ser produzidas em todo o mundo.Hoje, cerca de 500 milhões de pessoas na África e naÁsia têm como sua cultura de subsistência a mandio-ca, planta que os indígenas brasileiros aprimoraramseletivamente durante séculos. Em todo o mundo, aintrodução de espécies estranhas significou a senten-ça de morte para inúmeros animais e plantas, em es-pecial os confinados a limitados nichos ecológicos

A

BBBBB

Figura 9.A rosa-dos-ventosmoderna,que indicaas direçõesdas linhasde rumo em grau,facilitandoa navegaçãocom o usoda bússola,foi desenvolvidapelo cartógrafoportuguêsPedro Reinel

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(ver �Dodo: um símbolo da extinção das espécies�).A descoberta das civilizações ameríndias trouxe,

além de debates teológicos sobre a existência da almaentre povos de outras raças, a esperança do paraísoperdido, representada pelo homem em seu estado pu-ro, antes de ser contaminado pelo mal da civilização.Muitos exemplos dessa idéia do �bom selvagem� sur-giriam na literatura e na filosofia dos séculos seguin-tes. Passou-se a crer que a utopia da sociedade per-feita, em que a procura do bem comum e a busca doconhecimento seriam as fontes do progresso, pode-ria ser construída com base nos princípios observa-dos nas comunidades encontradas em terras tropicais.

Enquanto imaginava-se o mundo perfeito, sob ojugo dos colonizadores os nativos da América come-

çaram a morrer em proporções dramáticas.A exploração dos índios pelos espanhóis jáera denunciada na primeira metade do sé-culo 16 pelo frade dominicano Bartolomeude Las Casas (1474-1566), que defendia a res-tituição das terras ocupadas a seus ocupan-tes originais.

Nas primeiras décadas após a chegadados europeus, a população indígena dasAméricas foi reduzida de modo drástico,em todas as frentes de contato, por brutaisgenocídios, motivados pela cobiça por ouro,prata ou terras, e por novos micróbios, trazi-dos pelo homem branco. Os nativos, isola-dos por milênios do resto da humanidade,não tinham resistência imunológica a doen-ças comuns entre os europeus. Epidemiasde gripe, varíola e outras doenças podiamexterminar tribos inteiras. Infelizmente, aténo século 20 alguns invasores usaram cons-

cientemente essa vulnerabilidade para erradicarpopulações indígenas e controlar suas terras. Mas ooposto também aconteceu: a sífilis, endêmica emcertas regiões da América, foi levada para a Europa edisseminada por marinheiros e viajantes a partir decidades portuárias, tornando-se um grave problemade saúde pública por séculos.

O declínio do poder portuguêsA perda do domínio dos mares por Portugal teve vá-rias razões. A primeira, e talvez a mais determinanteno longo prazo, foi a brutal exaustão de vidas exigidapelo esforço ultramarino. Na época, eram péssimasas condições sanitárias nos navios e pouco se podiafazer contra as doenças que atingiam os marujos, co-mo o escorbuto (mal típico da vida embarcada, emgeral fatal, causado pela falta de certas vitaminas nadieta de bordo).

Mesmo em bem-sucedidas viagens de longo cur-so, a taxa de mortalidade a bordo podia atingir cercade 50%. Durante a fase de expansão ultramarina,dizia-se que a típica mulher portuguesa de 45 anosjá seria viúva e teria perdido os pais, os irmãos e pelomenos dois de seus filhos. O sacrifício de vidas eraagravado pela ação dos corsários, autônomos ou aserviço de potências estrangeiras. A limitação dasrotas oceânicas a estreitas faixas (no sentido leste-oeste), graças à incerteza na determinação da longi-tude (ver �As ilhas flutuantes�), facilitava os ataques.

Portugal tinha em torno de um milhão de habitan-tes na época da partida de Cabral, e cada viagem exi-gia a convocação de jovens da área rural � analfabe-tos, assustados e sem experiência � para compor astripulações. Naquele período, a educação básica não

Figura 11.O dodo(Raphuscucullatus),que habitavaas ilhasMaurício, nacosta orientalda África, foirapidamenteextinto apósa chegadados primeiroscolonizadores

Dodo: um símboloda extinção das espécies

Em um continente, as adaptações da fauna e da flora àinvasão por espécies estranhas ocorrem em geral de modo

quase imperceptível. Em uma ilha, porém, os efeitospodem ser drásticos, como no caso do dodo (Raphus

cucullatus). Nativa das ilhas Maurício, próximas à costa ocidentalafricana, essa ave aparentada dos pombos evoluiu sem predadores,chegando ao porte de um ganso e perdendo a capacidade de voar(figura 11). Por mostrar-se curioso, sem medo dos humanos, eraabatido com facilidade. Tal docilidade originou seu nome: ‘doido’,no português da época). Com a captura das ilhas Maurício pelosholandeses, em 1638, em poucas décadas os dodos foram extintos.Os animais domésticos trazidos para as ilhas participaram desseprocesso, eliminando as colônias de reprodução da ave, hoje umsímbolo das campanhas de preservação da diversidade biológica.

Figura 10.O sucesso dasnavegaçõesportuguesasfez de Lisboa(na ilustração,o portoda cidadeno século 16)uma cidadecosmopolita,com umcomércioativo e filiaisde casasbancáriasde diversasnacionalidades

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As �ilhas flutuantes�Apesar do sucesso das técnicas portuguesas de na-vegação por latitude, a imprecisão na determinaçãoda longitude continuou a ser um grande problemapara as viagens em mar aberto. Mestre João, porexemplo, calculou a latitude de Porto Seguro comprecisão de décimos de grau, mas errou a longitudepor cerca de 10 graus, o que colocaria as terras des-cobertas na área da atual cidade de Brasília. Duran-te séculos, a localização de ilhas e bancos de coraispermaneceu incerta nas cartas navais. Daí surgiu alenda das ‘ilhas flutuantes’, que mudariam de posi-ção entre as expedições exploratórias ou se escon-deriam de viajantes indesejados. Por razões de se-gurança, viajava-se em mar aberto apenas duranteo dia ou por rotas estreitas (na direção leste-oeste),o que facilitava a ação de piratas e corsários.

Os repetidos choques com recifes que não po-diam ser localizados durante mau tempo fizeram comque as potências navais oferecessem prêmios milio-nários para quem criasse um método prático de de-terminação da longitude em alto mar, iniciando umacorrida científica e tecnológica. Galileu Galilei (1564-1642) chegou a sugerir o uso dos eclipses dos saté-

Sugestõespara leitura

ANDRADE, M. C. &FERNANDES, E. M.(Eds.). O mundoque o portuguêscriou, Recife,Fundação JoaquimNabuco, 1998.

CHANDEIGNE, M.(Ed.). Lisboaultramarina,1415-1580:a invenção domundo pelosnavegadoresportugueses,Rio de Janeiro,Jorge Zahar, 1992.

NOVAES, A. (Ed.).A descobertado homeme do mundo,São Paulo, Ed.Schwarcz, 1998.

URE, J. DomHenrique,o Navegador,Brasília,Editora UnB, 1985.

era uma preocupação dos governantes. Apesar da téc-nica sofisticada dos comandantes, os navios de Por-tugal passaram a ter suas laterais (bombordo e esti-bordo) identificadas por réstias de cebola e de alho,para que os marinheiros distinguissem, com a rapi-dez necessária, o lado direito do esquerdo.

Mais grave, porém, é que a busca do conhecimen-to, precursora do método científico, começou a serabandonada em função da intolerância religiosa. Aofinal do século 15, os judeus de Portugal foram ex-pulsos ou forçados à conversão. Boa parte dos sábiosenvolvidos no projeto ultramarino era de origem ju-daica, nascidos em Portugal ou lá refugiados dianteda perseguição religiosa em outras nações, em espe-cial na Espanha. Tanto que, já no século 16, várioscristãos-novos (judeus convertidos), como os mate-máticos José Vizinho e Pedro Nunes, ainda teriamum papel importante na solução de diversos proble-mas práticos das navegações.

O obscurantismo atingiu o ápice no reinado (de1521 a 1577) de D. João III, e o projeto de busca daexcelência no conhecimento foi rapidamente aban-donado. A Inquisição estabeleceu-se em Portugal eproibiu-se em definitivo a livre circulação de idéias.O monopólio da educação pública foi entregue aosjesuítas e aboliram-se das universidades as cátedrasde ciências físicas e matemáticas.

O ano de 1543 marca o início da ciência moderna,com a publicação dos livros Sobre a revolução dasesferas celestes, do polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), e A natureza do corpo humano, do flamengoAndreas Vesalius (1514-1564). Em Portugal, que atédécadas antes detinha a liderança da astronomia e de-batia as novidades científicas em suas universidades,a vigilância do Santo Ofício impediu qualquer reper-cussão dessas idéias novas e �perigosas� sobre o uni-verso e o corpo humano. Na segunda metade do sé-culo 16, a decadência do ensino das ciências era talque os instrumentos científicos da Universidade deCoimbra foram fundidos para a confecção de grades.

A perda da independência, com a ascensão ao tro-no, em 1580, de Felipe II da Espanha, filho de umaprincesa portuguesa, cristalizou essa situação de atra-so. Ao ser restaurada a soberania, em 1640, os maresjá eram dominados por nações então mais moder-nas, como Holanda e Inglaterra, e a nova lógica da ex-pansão mercantilista excluía projetos nacionais co-mo o que Portugal iniciara dois séculos antes. O su-cesso das navegações portuguesas, porém, ainda hojemostra como um consistente plano de investimen-tos de longo prazo no conhecimento nacional autô-nomo pode ter retorno substancial para uma socie-dade. Executado durante todo o século 16, o projetonacional português inaugurou o mundo moderno. n

lites de Júpiter para esse cálculo. Cedo deduziu-seque a longitude de um barco seria obtida conhecen-do-se de modo preciso o desvio entre a hora a bordo(medida pelo Sol ou pelas estrelas) e a de um portode referência. Como o método científico ainda não es-tava plenamente estabelecido, chegaram a ser con-sideradas propostas hoje absurdas, como o uso deum ‘pó de simpatia’ para a comunicação instantâneaentre o navio e o porto de partida.

O problema começou a ser resolvido com o tra-balho do físico holandês Christiaan Huygens (1629-1695) sobre o movimento dos pêndulos, que levou àconstrução de relógios mais confiáveis, mas o pri-meiro cronômetro de alta precisão só foi criado em1759 pelo inglês John Harrisson (1693-1776). Seusrelógios náuticos, feitos de madeiras tropicais, queliberavam óleos naturais, dispensando assim a lu-brificação dos mecanismos, trouxeram inovaçõescomo a grelha (pêndulo feito com tiras de bronze eaço ajustadas para evitar o problema da dilataçãodos metais com o calor) e o mecanismo de escapa-mento (que mantinha o período de oscilação cons-tante, independentemente da energia ainda arma-zenada na mola propulsora).