arthur conan doyle - o demonio da tanoaria

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  • 7/31/2019 Arthur Conan Doyle - o Demonio Da Tanoaria

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    Arthur Conan Doyle

    O Demnio da Tanoaria

    No foi coisa fcil trazer o Gamecock at a ilha, porque orio arrastara tanta lama que os bancos se estendiam muitas milhas

    pelo Atlnco a dentro. A costa ainda mal se via quando a primeiralinha branca de arrebentao nos preveniu do perigo, e desse pon-to em diante avanamos com muito cuidado com a vela grande ea bujarrona, conservando a arrebentao da gua bem para a es-querda, como estava indicado na carta.

    Mais de uma vez a quilha tocou na areia (estvamos calandoum pouco mais de seis ps, naquela ocasio) mas vemos sempre

    jeito e porte para passar. Finalmente, a gua encheu-se rapidamen-te de bancos, mas nham mandado uma canoa da feitoria e o pilo-to Krooboy levou-nos at uma distncia de duzentas jardas da ilha.

    A lanamos ferro, porque os gestos do negro indicavam queno podamos esperar avanar mais. O azul do mar mudara para

    o castanho do rio e mesmo ao abrigo da ilha a corrente cantavae remoinhava em volta da nossa proa. A mar parecia estar cheiaporque passava acima das razes das palmeiras e, por todos os la-dos, sobre sua supercie barrenta e oleosa podamos ver pedaosde madeira e destroos de toda espcie que nham sido arrastados

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    pela enxurrada.Quando me cerquei de que estvamos rmes em nossa

    ancoragem, pensei que era melhor comear a tomar gua imedia-tamente, porque o lugar parecia inquinado de febres. O rio denso,

    os bancos lamacentos e lodosos, o verde brilhante e venenoso damata, o vapor mido no ar, eram outros tantos sinais para quemsoubesse l-os. Mandei portanto arriar o escaler com dois grandesodres, que seriam sucientes para durar at chegarmos a So Paulode Loanda. Quanto a mim, tomei o bote pequeno e remei para ailha, porque podia ver a bandeira inglesa utuando acima das pal-meiras para marcar a posio do entreposto comercial de Armitage

    & Wilson.Depois de passar para alm do pequeno bosque pude ver o lu-

    gar, uma construo baixa, comprida, caiada, com profunda varan-da na frente e imensas pilhas de barris de leo de palma de ambos

    os lados. Uma la de caques e canoas estava amarrada ao longo dapraia e um simples ponto se projetava pelo rio. Dois homens deroupa branca, com faixas vermelhas em volta da cintura, estavam

    esperando na extremidade para me receber. Um era um camaradagrande e corpulento, de barba grisalha. O outro era magro e alto,de rosto plido, enrugado, meio escondido sob um grande chapuem feio de cogumelo.

    Muito prazer em v-lo disse este lmo, cordialmente. Sou Walker, agente de Armitage & Wilson. Permita-me apresen-tar-lhe o Doutor Severall, da mesma companhia. No muitas ve-

    zes que vemos um iate parcular nestas paragens. o Gamecock expliquei Sou o proprietrio e coman-

    dante. Meldrum o meu nome. Explorador? perguntou ele. Sou um entomologista um caador de borboletas. Esve

    fazendo a costa oeste, do Senegal para baixo. Bom esporte? perguntou o doutor, voltando para mim

    um olhar lento, amarelado. Tenho quarenta caixas cheias. Viemos aqui para tomar

    gua e tambm para ver o que tem na minha especialidade.Estas apresentaes e explicaes tomaram o tempo durante

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    o qual os meus dois Krooboys amarraram o caque. Ento caminheipelo ponto com um dos meus novos conhecidos de cada lado, am-bos crivando-me de perguntas porque no viam um homem brancohavia meses.

    O que fazemos? disse o doutor quando comecei a fazerperguntas por minha vez. Nosso negocio d-nos bastante quefazer, e nas horas vagas discumos polca.

    Sim, por especial merc da Providencia, Severall um radi-cal ferrenho e eu sou um unionista inexvel, e discumos o HomeRule durante duas boas horas todas as tardes.

    E bebemos coquetis de quinino disse o doutor. Ago-

    ra j estamos ambos bem salgados, mas nossa temperatura nor-mal era de 80 graus no ano passado! Como conselheiro imparcial,no lhe recomendaria car aqui por muito tempo, a menos quequeira colecionar bacilos, alm de borboletas. A embocadura do rioOgowai nunca ser um clima saudvel.

    No h nada mais interessante do que a maneira pela qual

    aqueles marcos avanados da civilizao conseguem deslar bom

    humor da situao desolada em que se encontram, e mostram cara

    no s calma como alegre s conngncias que a vida possa trazer.Por toda a parte desde a Serra Leoa para baixo, encontrei os mes-mos pntanos peslentos, as mesmas comunidades isoladas, tortu-radas pelas febres, e os mesmos maus gracejos. H qualquer coisa,que toca as raias do divino naquela forca do homem de erguer-seacima das circunstancias e usar a inteligncia para zombar das mi-

    srias do corpo. O jantar estar pronto dentro de uma meia hora, capito

    Meldrum disse o doutor. Walker foi providenciar a esse res-peito; o encarregado da casa, esta semana. Entretanto, se quiser,poderemos dar uma volta por ai, e eu lhe mostrarei as vistas da ilha.

    O sol j descera abaixo da linha de palmeiras, e a grande ab-bada do cu sobre as nossas cabeas era como o interior de uma

    calote imensa, irisada de cor-de-rosa claro e delicadas nuanas.Ningum que no tenha vivido numa terra onde o peso e o calorde um guardanapo se tornam intolerveis sobre os joelhos, podeimaginar o abenoado alvio que o frescor das tardes traz consigo.

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    Naquele ar mais leve e mais puro o doutor e eu caminhamos emvolta da pequena ilha, ele apontando os armazns e explicando arona do servio.

    O lugar um tanto romnco disse ele, em resposta a

    alguma das minhas observaes sobre a monotonia daquela vida. Estamos vivendo aqui bem no limiar do grande desconhecido. Ali connuou apontando para o nordeste penetrou Du Chaillu eencontrou a terra dos gorilas. o pas de Gabo a terra dos gran-des smios. Naquela direo apontando para o sudeste nin-gum avanou muito. A regio irrigada por este rio pracamentedesconhecida aos europeus. Cada tronco de rvore que passa por

    aqui arrastado pela corrente vem de territrio inexplorado. Desejeimuitas vezes ser melhor botnico quando vi singulares orqudeas eplantas de aspecto curioso que encalharam na extremidade orien-

    tal da ilha.O lugar que o doutor indicava era uma praia em declive, li-

    teralmente coberta pelos destroos arrastados pela corrente. Emcada extremidade havia uma ponta curva, formando uma espcie

    de quebra-mar natural, de modo que havia uma pequena baa en-tre as duas. Esta estava cheia de vegetao utuante, com um nicogrande tronco de rvore atravessado no meio, e de encontro aoqual a correnteza vinha quebrar-se.

    Isto tudo l de cima disse o doutor. Ficam presas emnossa baa at que alguma nova enxurrada desce e so novamentearrastadas para o mar.

    Que rvore aquela? Oh, uma variedade de teca, imagino, mas bastante apo-

    drecida, ao que parece. Chega-nos toda espcie de grandes rvoresde madeira de lei utuando at aqui, para no falar das palmeiras.Venha c, por favor.

    Conduziu-me at um comprido edicio, com enorme quan-dade de aduelas de barris e aros de ferro espalhados l dentro.

    Isto a nossa tanoaria disse Mandam-nos as aduelas

    em amarrados, e ns montamos os barris aqui. Agora, no achanada de parcularmente sinistro neste edicio, pois no?

    Olhei em volta, para o alto do telhado de zinco corrugado,

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    para as paredes de madeiras caiadas e para o cho de terra bada.A um canto havia um colcho e um cobertor.

    No vejo nada de muito alarmante disse eu. E no entanto h qualquer coisa fora do comum, tambm

    observou ele V aquela cama? Bem, tenciono dormir nela estanoite. No quero gabar-me, mas acho que uma boa experinciapara os nervos.

    Por que? Oh, tem acontecido umas coisas engraadas. Esve falan-

    do a respeito da monotonia da nossa vida, mas asseguro que ela s vezes to excitante quanto poderamos desej-lo. Seria melhor

    voltarmos para a casa, agora, porque depois do crepsculo comeaa vir-nos o nevoeiro da febre l dos pntanos. Ali, pode v-lo viratravs do rio.

    Olhei e vi longos tentculos de vapor branco subindo em espi-rais de entre o denso matagal verde e arrastando-se em nossa dire-o por sobre a larga supercie crespa do rio barrento. Ao mesmotempo o ar se tornou de sbito mido e frio.

    L est o gongo do jantar disse o doutor. Se este assuntolhe interessa, falar-lhe-ei sobre ele depois.

    Interessava-me muito, porque havia qualquer coisa de srioe contrafeito nas suas maneiras enquanto ele estava parado na ta-noaria deserta, que me excitava fortemente a imaginao. Era umhomem grande, resoluto, aquele doutor, e no entanto vislumbrei-lhe um curioso brilho nos olhos quando os passeava em sua volta

    uma expresso que eu no descreveria como sendo de medo, masantes como a de um homem que est alerta e em guarda.

    Incidentalmente disse eu quanto voltvamos para a casa mostrou-me as cabanas de grande parte de seus auxiliares na-vos, mas no vi qualquer um deles.

    Dormem no batelo, acol respondeu o doutor, apon-

    tando para um dos bancos. De fato. Mas esse caso no me parece que precisem das

    cabanas. Oh, usavam as cabanas at bem recentemente. Pusemo-

    nos no batelo at que recuperem um pouco a conana. Estavam

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    todos meio loucos de medo, e por isso os deixamos ir. Ningumdorme na ilha, exceto Walker e eu.

    O que foi que os assustou?

    Bem, isso nos traz de novo mesma histria. Suponho que

    Walker no far objeo a que oua tudo a esse respeito. No seipor que haveramos de fazer segredo disso, se bem que seja na re-alidade um assunto bem desagradvel.

    No zemos qualquer outra aluso ao caso durante o exce-lente jantar que fora preparado em minha honra. Parecia que, mala vela branca do Gamecock surgira na extremidade do cabo Lo-pez, aqueles hospitaleiros camaradas nham comeado a preparar

    a famosa panela-de-pimenta que o ardente cozido peculiar costa oeste a cozinhar os inhames e as batatas doces. Servimo-nos de um jantar navo to bom quanto se poderia desejar, servi-do por um elegante criadinho da Serra Leoa. Estava j observandocomigo mesmo que ele pelo menos no tomara parte na conversageral quando, tendo colocado a sobremesa e o vinho em cima damesa, ele levou a mo ao turbante.

    Mais alguma coisa para eu fazer, Massa Walker? per-guntou.

    No, acho que tudo, Moussa respondeu o meu an-

    trio. No entanto, no estou me senndo bem esta noite, epreferiria muito que casses na ilha.

    Vi a luta entre o medo e o dever no rosto do negro africano.Sua pele tomara aquele tom lvido-arroxeado que toma o lugar da

    palidez nos pretos, e seus olhos giraram furvamente pela sala. No, no, Massa Walker exclamou por m melhor

    que venha para o batelo comigo, patro. Poderei tomar conta dosenhor muito melhor no batelo.

    Isso no serve, Moussa. Os homens brancos no fogemdos postos onde so colocados.

    De novo vi a luta desesperada no rosto do negro, e de novoseus receios prevaleceram.

    No adianta, Massa Walker! exclamou. Nem que mebatessem, no poderia faze-lo. Se fosse ontem, ou se fosse ama-nha..., mas esta a terceira noite, patro, e mais do que eu posso

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    suportar.Walker encolheu os ombros. D o fora, ento disse. Quando o navio do correio

    vier podes voltar para a Serra Leoa, porque no preciso de um cria-

    do que me abandona quando mais preciso dele. Suponho que istotudo um mistrio para o senhor, ou o doutor j lhe contou, capi-

    to Meldrum?

    Mostrei ao capito Meldrum a tanoaria, mas no lhe con-

    tei coisa alguma disse o doutor Several. Est com mau aspec-to, Walker acrescentou, olhando para o companheiro. Vai ter umforte acesso.

    Sim, ve calafrios o dia inteiro e agora a minha cabea estoca como um tambor. Tomei dez gros de quinino, e meus ouvidosesto zumbindo como uma chaleira. Mas quero dormir com vocna tanoaria esta noite.

    No, no meu caro amigo. No me fale em semelhantecoisa. Deve meter-se na cama j, e tenho a certeza de que Meldrumo desculpar. Vou dormir na tanoaria eu, e prometo-lhe que estarei

    aqui com o seu remdio antes do caf.Era evidente que Walker fora atacado por um desses sbitos

    e violentos acessos de febre intermitente que so a praga da costaOeste. Suas faces macilentas estavam vermelhas, os olhos brilha-vam com a febre e, de sbito, ali mesmo sentado como estava, co-meou a bradar uma cano com a voz esganiada do delrio.

    Vamos, vamos, temos de lev-lo para a cama, amigo ve-

    lho disse o Doutor; e com o meu auxlio conduziu o amigo parao quarto de dormir. Ali o despimos e, em seguida, depois de tomarforte sedavo, caiu em profundo torpor.

    Est bem para passar a noite disse o doutor, quando

    nos sentamos e tornamos a encher os copos mais uma vez. Ora a minha vez, ora a dele, mas felizmente jamais camos os dois aomesmo tempo. Teria pena de car inulizado esta noite, porquetenho um pequeno mistrio a desvendar. Disse-lhe que tencionavadormir na tanoaria.

    Disse, sim. Quando disse dormir queria dizer montar guarda, porque

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    no poderei dormir. Tivemos um tal alarme aqui que nenhum na-vo seria capaz de car depois do por-do-sol, e tenciono descobriresta noite qual pode ser a causa disso tudo. Foi sempre nosso cos-tume ter um vigia noturno dormindo na tanoaria para evitar que

    os aros sejam roubados. Bem, h seis dias o camarada que dormial desapareceu, e no pudemos encontrar a menor pista dele. Era,por certo, singular, porque nenhuma canoa fora roubada e estasguas esto to cheias de crocodilos que no seria possvel um ho-mem atravess-las a nado. O que aconteceu ao camarada ou comopoderia ele ter abandonado a ilha, um mistrio. Walker e eu ca-mos surpresos, mas os pretos caram assombrados e estranhas his-

    trias de vudu comearam a circular entre eles. Porm o verdadeiropnico comeou quando, h trs noites, o novo vigia da tanoariadesapareceu tambm.

    Que foi feito dele? perguntei. Bem, no s no sabemos como nem sequer podemos

    ter uma idia que convenha aos fatos. Os negros juram que h umdemnio na tanoaria que exige um homem de trs em trs dias.

    No querem car na ilha nada poderia persuadi-los. At mesmoMoussa, que um rapaz de bastante conana, preferiu abandonar,como viu, o patro com forte acesso de febre a car aqui durantea noite. Se quisermos connuar o negcio neste lugar, teremos detranquilizar os nossos negros, e no conheo outra maneira melhorde faze-lo do que cando eu prprio uma noite l. Hoje a terceiranoite, sabe, de maneira que espero que a coisa venha, seja l o que

    for. No tem qualquer indcio? perguntei No havia qual-

    quer sinal de violncia, qualquer mancha de sangue, pegadas, nadaque lhe possa dar uma idia da espcie de perigo que ter que en-frentar?

    Absolutamente nada. O homem desapareceu, e tudo. Dalma vez foi o velho Ali, que nha sido guarda do cais desde queaqui estamos. Esvera sempre rme como uma rocha e nada senouma desgraa poderia faze-lo abandonar o servio.

    Bem disse eu realmente no acho que isso seja ser-

    vio para um homem s. Seu amigo est cheio de ludano, e haja

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    o que houver, no poder prestar-lhe o menor auxilio. Vai permir-me passar a noite com o senhor na tanoaria.

    Bom, isso na realidade muita bondade sua, sr. Meldrum disse ele cordialmente. No coisa que eu me vesse atrevido

    a propor, pois seria exigir muito de um mero visitante casual, masse de fato quer...

    Por certo que quero. Se me der licena um momento, cha-marei fala o Gamecock e avis-lo-ei de que no precisam meesperar.

    Quando voltvamos da outra extremidade do ponto, camosespantados com o aspecto da noite. Enorme montanha de nuvens

    cor de chumbo elevara-se do lado da terra, e vento vinha daque-la direo em pequenas baforadas quentes que baam nos nossosrostos como as baforadas de uma fornalha aberta. Sob o ponto orio fazia redemoinhos e escachoava, arando pequenos salpicos deespuma branca por cima das pranchas.

    Com os diabos! disse o doutor Severall. Estamos ar-riscados a ter uma cheia, por cima de todos os nossos embarao.

    Essa subida de nvel do rio signica chuvas pesadas no interior, equando comea ningum sabe at onde ir. J vemos a ilha quasecoberta, antes, bem, vamos ver se Walker est passando bem e de-pois, se quiser, iremos para a nossa viglia.

    O doente estava mergulhado em profundo torpor e deixamosalgumas limas espremidas em um copo ao lado dele, para o casoque acordasse com a sede da febre. Depois nos encaminhamos

    atravs da escurido inslita lanada pelas nuvens ameaadoras.O rio subira tanto que a pequena baa que descrevi, e que cavana extremidade da ilha, estava quase obliterada pela submersoda pennsula lateral. A grande balsa de detritos de madeira com aenorme rvore escura no meio estava derivando para cima e parabaixo na corrente engrossada.

    Isso uma boa coisa que a cheia far por ns disse o

    doutor. Arrasta todo este lixo vegetal que trazido para a extre-midade leste da ilha. Veio com a correnteza no outro dia e aqui ca-r at que uma cheia o arraste para o meio do rio. Bem, aqui est onosso quarto e aqui esto alguns livros, e a minha bolsa de tabaco e

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    vamos tentar passar a noite da melhor maneira possvel. luz de nossa nica lanterna, o grande salo solitrio parecia

    muito vazio e triste. Salvo as pilhas de aduelas e montes de aros,no havia absolutamente nada nele, exceto o colcho preparado

    a um canto para o doutor. Fizemos dois assentos e uma mesa comas aduelas e iniciamos, juntos, uma longa viglia. Severall trouxeraum revlver para mim e estava ele prprio armado com uma es-pingarda de caa de dois canos. Carregou as armas e deixou-as aoalcance da mo. O pequeno crculo de luz e as sombras negras quenos envolviam eram to melanclicas que ele foi at a casa e trouxeduas velas. Um dos lados da tanoaria era, porm, rasgado por vrias

    janelas, e foi somente protegendo as nossas luzes com o auxilio deaduelas que conseguimos mant-las acesas.

    O doutor, que parecia ser um homem com nervos de ferro,dedicara-se leitura de um livro, mas eu observei que de vez emquando o pousava sobre os joelhos e passeava um olhar atento sua volta. Pelo meu lado, embora tentasse uma ou duas vezes ler,achei impossvel concentrar os pensamentos no livro. Voltavam

    sempre a vaguear por aquele grande salo vazio e silencioso e aprender-se naquele sinistro mistrio que o envolvia. Torturei o c-rebro procurando qualquer teoria possvel que pudesse explicar odesaparecimento daqueles dois homens. Havia o fato posivo quese nham sumido e nem o menor ponto de referncia de comonem para onde. E ali estvamos ns, esperando no mesmo lugar esperando sem a menor idia sobre aquilo que espervamos.

    Tivera razo em dizer que no era empresa para um s homem. Jera bastante excitante naquelas condies, porm fora alguma nomundo me teria feito car ali sem um companheiro.

    Que noite inndvel e tediosa aquela! L fora ouvamos omurmrio e rumorejo do grande rio e o soluar do vento em as-censo. L dentro, salvo a nossa respirao, o virar das pginas pelodoutor e o zumbido agudo e no de algum ocasional mosquito, ha-via um silncio pesado. Em certo momento sen o corao subir-me boca ao mesmo tempo que o livro de Severall caa ao choe ele se punha em p de um pulo com os olhos tos em uma das

    janelas.

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    Viu alguma coisa, Meldrum? No. E voc? Bem, ve a vaga sensao de movimento do lado de fora

    daquela janela Pegou na espingarda e aproximou-se dela.

    No, no se v nada, e contudo eu seria capaz de jurar que algumacoisa passou lentamente por junto dela.

    Uma folha de palmeira, talvez disse eu, porque o ventose estava tornando mais forte a cada momento.

    Muito provavelmente concordou ele, e voltou de novoao seu livro, mas seus olhos desde ento lanavam de vez em quan-do rpidas olhadelas desconadas para a janela. Pus-me a observ-

    la tambm, mas l fora estava tudo quieto.E ento, de sbito, nossos pensamentos foram desviados em

    outra direo, pelo desabar da tempestade. Um relmpago encan-deador foi seguido por um trovo que abalou o prdio. Mais umavez e mais outra vinha o vvido claro e o estrondo de uma pea dearlharia. E ento desabou a chuva tropical, renindo e roncandono telheiro de zinco corrugado da tanoaria. O vasto espao oco res-

    soava como um grande tambor. Da escurido ergueu-se estranhamistura de rudos, um gorgolejar, respingar, pingar, borbulhar, esco-ar, gotejar todos os sons lquidos que a natureza pode produzir,desde o desabar e cantar da chuva at ao surdo escachoeirar dorio. Hora aps hora o tumulto se tornou mais forte e mais connuo.

    Palavra, disse Severall vamos ter a me de todas ascheias, desta vez. Bem, a vem a aurora, anal, e isso uma bno.

    Estamos quase acabando de exrpar a superso da terceira noi-te, de qualquer maneira.

    Uma luz cinzenta ia invadindo a tanoaria e o dia raiou poucodepois. A chuva esara, mas o rio cor de caf rugia como uma cata-rata. Sua fora me fez recear pela ancoragem do Gamecock.

    Tenho de ir a bordo disse eu. Se ele desgarrar, nuncamais ser capaz de subir o rio outra vez.

    A ilha um mo quebra-mar respondeu o doutor Posso dar-lhe uma xcara de caf se vier at a casa.

    Sena-me enregelado e deprimido, e a sugesto foi bem aco-lhida. Deixamos a agourenta tanoaria com seu mistrio ainda por

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    desvendar e panhamos pela lama at a casa. Temos ali o fogareiro de lcool. Se quiser acend-lo, irei ver

    como Walker se sente esta manh disse Severall.Deixou-me, mas voltou logo em seguida com uma cara as-

    sombrada. Foi-se! exclamou, com voz rouca.Aquelas palavras deram-me um calafrio de terror. Fiquei pa-

    rado com a lmpada na mo, olhando para ele. Sim, foi-se! repeu Venha ver.Segui-o sem uma palavra e a primeira coisa que vi quando en-

    trei no quarto foi o prprio Walker deitado na cama, com o pijama

    de anela cinza que eu ajuda a vesr-lhe na vspera. No est morto, decerto! gaguejei.O doutor estava terrivelmente agitado. Suas mos tremiam

    como folhas ao vento. Morreu h vrias horas. Foi a febre? Febre! Olhe para o p dele.

    Lancei um olhar para baixo e um grito de horror escapou-medos lbios. Um dos ps estava no somente deslocado, mas torcidocompletamente na mais grotesca contoro.

    Santo Deus! exclamei O que ter podido fazer isto?Severall pousara a mo sobre o peito do morto. Apalpe aqui! sussurrou.Coloquei a minha mo no mesmo lugar. No houve resistn-

    cia. O corpo estava absolutamente fofo e mole. Era como apalparum boneco de serragem.

    O osso esterno desapareceu disse Several no mesmomurmrio assustado. Graas a Deus que ele nha tomado o luda-no. Pode ver-lhe pelo rosto que morreu dormindo.

    Mas quem pode ter feito isso?

    J tenho bastante disso disse o doutor, enxugando a tes-ta. No sei se sou mais cobarde do que os meus vizinhos, masisto vai alm das minhas foras. Se vai para o Gamecock...

    Venha da! disse eu, e seguimos. Se no corremos foiporque cada um de ns queria conservar uma lma sombra de

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    respeito perante o outro. Era perigoso arriscar-se em uma leve ca-noa sobre as guas do rio engrossado, mas no paramos um ins-tante para pensar isso. Ele ao leme e eu remando, conseguimosmant-la tona dgua e chegamos coberta do iate. Ali, com du-

    zentas jardas de gua entre ns e aquela maldita ilha, senmos queramos ns mesmos de novo.

    Voltaremos dentro de uma hora ou duas disse ele mas precisamos de algum tempo para nos refazer. No consenriaque os negros me vissem no estado em que eu estava ainda agoranem por um ano de salrio.

    Eu disse ao despenseiro para preparar o caf. Depois volta-

    remos disse eu. Mas, em nome de Deus, doutor, que concluiude tudo isto?

    Vai alm da minha compreenso; simplesmente alm daminha compreenso. Tenho ouvido falar da feiaria dos vudus, eria-me disso, com os outros. Mas que o pobre velho Walker, um ci-dado ingls decente, temente a Deus, do sculo dezenove, vessede ser enterrado assim, sem um nico osso no corpo isso me

    abalou, no nego. Mas olhe para ali, Meldrum; estar aquele seuhomem maluco, bbado, ou que que ele tem?

    O velho Paerson, o homem mais ango da tripulao, e cal-mo como as pirmides, esvera de quarto popa com um croquepara afastar os troncos utuantes que desciam arrastados pela cor-renteza. Agora estava de ccoras, com os olhos esgazeados olhandopara a frente e o dedo indicador agitando-se furiosamente no ar.

    Olhem para ela! gritava Olhem para ela!E no mesmo instante vimo-la.Um enorme tronco de rvore preto vinha descendo rio abai-

    xo, com a parte superior apenas lambida pelas guas. E na frentedele cerca de trs ps a frente arqueando-se para cima como

    a gura de proa de um navio, via-se uma cabea terrvel, balanan-do devagar de um lado para o outro. Era achatada, malvola, dotamanho de um pequeno barril de cerveja, cor de fungo desbota-da, mas o pescoo que a sustentava era mosqueado de amarelo epreto. Enquanto passava ao longo do costado do Gamecock arras-tada no torvelinho das guas, vi duas imensas roscas distenderem-

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    se de dentro de um grande buraco no tronco, e a horrenda cabeaergueu-se de sbito altura de oito ou dez ps, tando o iate comolhos sombrios, cobertos de escamas.

    Que aquilo? exclamei.

    o nosso demnio da tanoaria disse o doutor Severalltornando-se em um instante o mesmo homem resoluto, conanteem si prprio que fora antes Sim, aquilo o diabo que andouassombrando nossa ilha. a grande serpente pton do Gabo.

    Pensei nas histrias que ouvira ao longo de toda a costa sobreos monstruosos constritores do interior, do apete peridico, e osefeitos assassinos de seu aperto mortal. Ento, tudo tomou forma

    no meu esprito. Houvera uma inundao na semana anterior. Trou-xera rio abaixo aquele enorme tronco com seu horrendo ocupante.Quem sabe de que distante oresta tropical teria vindo? Ficara de-do na pequena baa a leste da ilha. A tanoaria era a construomais prxima. Duas vezes, com a volta do apete peridico, carre-gara um vigia. Nessa noite voltara sem dvida, quando Severall jul-gou ver qualquer coisa movendo-se na janela, mas as nossas luzes

    nham-na afastado. Seguira para diante e matara o pobre Walker. Por que no o carregou? perguntei. Os troves e

    relmpagos devem ter assustado o bruto. A vem o despenseiro,Meldrum. Quanto mais depressa tomarmos caf e voltarmos ilha,melhor, porque alguns negros poderiam pensar que vemos medo.