arte plumária dos Índios brasileiros

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Arte plumária dos índios brasileiros Os atavios dos indígenas podem ser comparados ao paletó dos ocidentais como marcas de sua identidade cultural. Os apara- tos dos grandes líderes, por sua vez, são comparáveis em riqueza visual e função simbólica e honorífica aos mantos e coroas das figuras reais europeias, proclamando a dignidade dos persona- gens. A foto do líder da nação Xicrim em 2008 ilustra o impacto visual e a beleza dos ornamentos indígenas. A arte plumária dos índios brasileiros é uma das ex- pressões plásticas mais conhecidas e impactantes das culturas nativas do Brasil. A definição usual de arte plu- mária diz respeito aos objetos confeccionados com penas e plumas de aves, amiúde associadas a outros materiais, e em sua maioria usados como ornamento corpóreo, seja de uso cotidiano seja em funções solenes e ritualizadas. A definição também inclui a fixação de penas diretamente sobre o corpo humano, em geral com os mesmos objeti- vos e significados, e a confecção de objetos emplumados para outros usos além do adorno do corpo. Chamou a atenção dos europeus desde que primeiro che- garam ao território brasileiro no século XVI, e vários exemplares foram coletados e enviados às cortes do além- mar, mas acima de tudo eram na época apresentados à Europa como troféus da conquista americana e como produto estranhamente atraente de povos bárbaros. Até pouco atrás esta fascinante forma de expressão não era considerada mais do que um artesanato exótico, mas hoje a produção plumária dos índios brasileiros é reconhecida como uma verdadeira linguagem visual, um reflexo re- quintado de culturas ricas e complexas, transmissora de mensagens específicas, merecedora do estatuto de arte e digna de sério estudo. Porém, a despeito de sua recente consagração entre os estudiosos e o grande público, esse rico acervo de tradições, significados e formas corre o risco de se desvirtuar pela aculturação das tribos e a trans- formação de objetos simbólicos em produto comercial e turístico, e pode vir mesmo a desaparecer, como desa- pareceram inúmeras etnias que antigamente povoavam o território brasileiro, perdendo-se com elas uma riqueza imensa em visões de mundo e experiências vitais, coisas de que a arte plumária sempre foi veículo privilegiado. 1 Características Pictogramas na Cachoeira Resplendor, Pará, mostrando seres humanos adornados com penas Índio nos Jogos dos Povos Indígenas, com destaque para seu grande cocar São registrados no Brasil pelo menos trinta grupos ét- 1

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arte plumária dos índios brasileiros

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  • Arte plumria dos ndios brasileiros

    Os atavios dos indgenas podem ser comparados ao palet dosocidentais como marcas de sua identidade cultural. Os apara-tos dos grandes lderes, por sua vez, so comparveis em riquezavisual e funo simblica e honorca aos mantos e coroas dasguras reais europeias, proclamando a dignidade dos persona-gens. A foto do lder da nao Xicrim em 2008 ilustra o impactovisual e a beleza dos ornamentos indgenas.

    A arte plumria dos ndios brasileiros uma das ex-presses plsticas mais conhecidas e impactantes dasculturas nativas do Brasil. A denio usual de arte plu-mria diz respeito aos objetos confeccionados com penase plumas de aves, amide associadas a outros materiais, eem suamaioria usados como ornamento corpreo, seja deuso cotidiano seja em funes solenes e ritualizadas. Adenio tambm inclui a xao de penas diretamentesobre o corpo humano, em geral com os mesmos objeti-vos e signicados, e a confeco de objetos emplumadospara outros usos alm do adorno do corpo.Chamou a ateno dos europeus desde que primeiro che-garam ao territrio brasileiro no sculo XVI, e vriosexemplares foram coletados e enviados s cortes do alm-mar, mas acima de tudo eram na poca apresentados Europa como trofus da conquista americana e comoproduto estranhamente atraente de povos brbaros. Atpouco atrs esta fascinante forma de expresso no eraconsiderada mais do que um artesanato extico, mas hojea produo plumria dos ndios brasileiros reconhecidacomo uma verdadeira linguagem visual, um reexo re-quintado de culturas ricas e complexas, transmissora de

    mensagens especcas, merecedora do estatuto de arte edigna de srio estudo. Porm, a despeito de sua recenteconsagrao entre os estudiosos e o grande pblico, esserico acervo de tradies, signicados e formas corre orisco de se desvirtuar pela aculturao das tribos e a trans-formao de objetos simblicos em produto comercial eturstico, e pode vir mesmo a desaparecer, como desa-pareceram inmeras etnias que antigamente povoavam oterritrio brasileiro, perdendo-se com elas uma riquezaimensa em vises de mundo e experincias vitais, coisasde que a arte plumria sempre foi veculo privilegiado.

    1 Caractersticas

    Pictogramas na Cachoeira Resplendor, Par, mostrando sereshumanos adornados com penas

    ndio nos Jogos dos Povos Indgenas, com destaque para seugrande cocar

    So registrados no Brasil pelo menos trinta grupos t-

    1

  • 2 1 CARACTERSTICAS

    nicos indgenas que possuem marcantes tradies cul-turais expressas atravs da arte plumria, incluindo en-tre eles os Kagwahva, Erekibatsa, Tapirap, Kamaiur,Xavante, Waur, Juruna, Kaingang, Kayap, Tukano,Urubu-Kaapor, Assurini e Karaj, mas so raros os po-vos que no possuem nenhuma tradio deste tipo.[1][2] uma prtica que tem grande antiguidade; h pinturas ru-pestres em alguns stios arqueolgicos do Nordeste onde clara a representao de seres humanos com adornosplumrios; alguns desses registros datam pelo menos dosculo IX.[3] Essa antiguidade e universalidade se mani-festam na variedade imensa da arte plumria nacional,sendo impossvel estabelecer dela um perl seno muitosumrio, pois se espraia em um vasto leque de tcnicas,materiais, formas, usos e categorias.[1][2]

    O que regra geral nessa arte que ela veculo de men-sagens relativas a ritos de passagem, estados de esprito,distines de prestgio e poder, imagens de identidade dapessoa, da famlia, do cl e da nao, no raro de im-portncia vital na economia interna de suas culturas. Nassociedades indgenas no existe uma diviso formal entree arte e artesanato. Todos os objetos produzidos incor-poram elementos de fruio esttica e armaes tnicas.Mais do que mero adorno, a arte plumria forma de co-municao, ela fala, e diz mil coisas, apresenta-se de milmodos e formas. E fosse adorno apenas, j seria rico obastante para exigir detido estudo.[4][1][5][6] Em algumastribos, como os Bororo, a principal forma de arte pls-tica, seu luxo contrastando vivamente com a austeridadedos outros objetos que fabricam.[7] Nas palavras de DarcyRibeiro e Bertha Ribeiro,

    " na plumria que encontramos aatividade mais eminentemente ar-tstica dos nossos ndios, aquela emque revelam os mais elaborados im-pulsos estticos e mais vigorosascaractersticas de criao prpria esingular. E natural que assim seja,porque a plumagem dos pssaros,com sua variedade de formas e ri-queza de colorido, constitui o mate-rial mais precioso e mais acabado,por assim dizer, que a natureza ofe-rece aos ndios para se exprimi-rem artisticamente. o seu maiorinteresse esttico, por outro lado,est voltado para o embelezamentodo prprio corpo. Da combinaodaqueles recursos e desta tendn-cia, resultaria a elaborao de umatcnica requintada que, associandopenas e plumas a diversos outrosmateriais, permitiria criar obras dearte capazes de competir em belezacom os mesmos pssaros.[8]

    O estudo da arte plumria vem recebendo recentemente

    Meninas Tapiraj com diademas e adornos pendentes

    Flechas e outras armas adornadas com plumas, aquarela deJean-Baptiste Debret, 1834

    Meninos Yanomami adornados com plumagem branca direta-mente aplicada nos cabelos

    considervel ateno dos pesquisadores, j havendo di-versas publicaes para tratar do tema, mas ainda existecerta controvrsia em sua categorizao. Jlio Melattiprops a diviso em duas categorias principais: os ob-jetos emplumados e as penas coladas diretamente aocorpo.[9] De acordo com Dorta & Van Velthem, seriamtrs categorias maiores: a primeira fazendo uso de pe-nas longas associadas a suportes rgidos, dando um as-pecto grandioso e monumental ao artefato, destacando-se os grandes toucados ou cocares. Neste grupo estoincludos os Bororo, Karaj, Tapirap, Kayap, Tiriy,Aparai e Wai-Wai, entre outros. O segundo emprega

  • 3ndio Patax com variados adornos plumrios

    penas diminutas xas em suportes exveis, com um as-pecto delicado, incluindo braadeiras, tangas, cintos, co-lares, pulseiras, tornozeleiras, protetores penianos, etc.Seus mais tpicos representantes so os Munduruku, osUrubu-Kaapor e outros grupos Tupi. Ainda alguns gru-pos comporiam um terceiro estilo, com elementos dasduas grandes divises.[10] J Darcy e Bertha Ribeiro con-sideram como digna do estatuto de arte plumria apenasaquela em que ca evidente o trabalho da imaginao, dasensibilidade e de uma artesania requintada. S assim oobjeto poderia adquirir autonomia como arte, tornando-se capaz de suscitar uma resposta esttica no observadoratravs da harmonia da forma, da felicidade na combi-nao cromtica e, ainda, por uma consistncia tctil su-ave e atrativa, ultrapassando o valor plstico das plumasem si. Ficariam, pois, excludas as formas que simples-mente agregam ao corpo e outros objetos um materialem estado bruto ou pouco trabalhado.[8] E outros ainda,como Els Lagrou e Maria Castilho Costa, questionam aatribuio do nome de arte para essa expresso, j queo conceito corrente de arte uma importao europeiaque no encontra paralelo nas atividades das comunida-des indgenas.[11][12]

    Tradicionalmente a confeco de objetos plumrios uma tarefa dos homens adultos, e suas tcnicas so apren-didas depois dos ritos de iniciao. A manufatura en-volve vrias atividades preliminares: caa das aves ouretirada das penas de aves cativas, seleo e classica-

    o, preparo do material e coleta e preparao de mate-riais acessrios.[13] Grande parte da arte plumria parti-cipa da natureza da tecelagem, pois a xao das penas feita atravs de amarrao e tranamento de bras. Ou-tras formas xam as penas diretamente ao corpo atravsde resinas e colas, como fazem os Kayap e Yanomami,que usam a plumagem na e branca dos urubus-rei co-lada diretamente no cabelo, ou por um sistema de per-furaes corporais (piercing). Outros objetos tambmpodem ser adornados com penas, como armas, objetoslitrgicos, distintivos de guerra, brinquedos infantis, bol-sas e instrumentos musicais e de trabalho.[10][13] O ma-terial usado de diversas formas: em estado natural outransformando suas caractersticas originais com cortes,deformaes, desamentos e tingimentos. Tambm noraro as penas so usadas em associao com outros ma-teriais, como couros e peles, ossos, sementes, garras deanimais, bras diversas.[1]

    Embora alguns artefatos emplumados possam ser usadoscotidianamente, os mais elaborados e importantes se des-tinam s grandes festividades.[14] , pois, uma arte de ca-rter cenogrco, usada em ritos pblicos onde partici-pam integradamente outras formas de expresso, como ocanto, a declamao, a narrativa teatralizada e a dana, etransgurando a aparncia de quem a usa de uma formamgica e teatral.[15] A pesquisadora Lux Vidal deu elo-quente depoimento sobre as formas de uso da arte plum-ria na Festa do Tatu, um ritual Kayap-Xikrm, tratandodos aspectos recm mencionados:

    Importante tambm ver que no s a pintura, no s a plumria,mas tem tambm os cantos, as dan-as, os gestos e especialmente a pa-lha.... Os Js so as sociedades dapalha... usada no s em contrastede cores, mas tambm nesse desa-mento amarelo; quando depois elesse movimentam, eles danam, essacoisa se mexe, se move, extre-mamente leve e faz contraste como preto e com o vermelho, e tam-bm o verde e o azul da mscara.Isso de uma beleza extraordin-ria.... (Importa) realmente todo omomento, acompanhado da danae do canto, essas coisas que se mo-vimentam e formam esse todo es-pecial. E so coisas extremamenteefmeras, no so coisas que du-ram. A palha jogada fora, a penu-gem depois guardada e reutilizadade uma outra forma, mas so coisastransitrias. O momento de belezacerto do ritual, quantas coisas acon-teceram! Isto que o belo.[16]

    A arte plumria uma arte tradicional, ou seja, tem ori-

  • 4 1 CARACTERSTICAS

    gem popular e pertence grande categoria do folclore,pois segue padres culturais herdados ao longo das ge-raes, mais ou menos xos e distintivos de cada grupotnico ou social que a produz, mas no descarta a contri-buio individual na introduo de variaes. No , porisso, repetitiva, mas reiterativa. Por exemplo, um cocarde determinada tribo em tudo semelhante a outros coca-res de mesma origem e funo, mas os membros daquelaaldeia no teriam diculdade em apontar o indivduo quecriou cada pea, o que as torna criaes nicas.[17]

    1.1 Alguns exemplosDada a diversidade da arte plumria dos ndios do Brasil,que torna impossvel uma descrio em detalhe, algunsexemplos concretos podem pelo menos ajudar a formar-mos uma ideia mais clara da importncia que esta formade expresso pode assumir em diferentes comunidadesindgenas. Essa importncia transparece no lamento deum Tupinamb capturado em 1616, registrado pelo freicapuchinho Yves d'vreux: Quando eu penso em comoas pessoas escutavam o meu pai, que era um grande ho-mem, quando falava na casa dos homens, e quando olhoagora para mim mesmo, um escravo sem pinturas, semum ornamento de penas na cabea, nos braos e nos pul-sos , eu preferia estar morto.[18]

    Aplique plumrio Wayana

    Entre os Wayana a procriao comparada tcnica daarte plumria. Para eles as crianas so feitas atra-vs da justaposio de partculas de smen em sucessi-vos intercursos, partculas que tecem a pele do bebda mesma forma que uma pena enleirada a outra naconfeco de um adorno. Tambm acreditam que as coi-sas e pessoas so parte de quem as criou, assim a arteplumria vista como uma extenso do prprio corpode quem a usa.[10] As penas usadas pelos Guarani paraadornar seus ponchos kayov pretendem imitar as coi-sas de andedjra", a divindade celeste identicada ao

    Deus cristo. Eles tambm consideram as penas do to-pete do pica-pau e as penas caudais da tesourinha comomgicas, e as usam em testeiras exclusivas para certos ri-tuais religiosos.[19] Os Urubu-Kaapor confeccionam umgrande cocar de penas amarelas, cujo prottipo lhes te-ria sido dado pelo heri-criador Mara como um sm-bolo do sol, sendo usado nas festas de nominao mascu-lina, e os Tapirap criam uma mscara de madeira reves-tida de penas de arara e gavio, representando o espritodo inimigo morto em combate, usada nas festas que oshomenageiam.[20]

    Entre os Kaxinaw a plumria uma arte masculina, e adecorao corporal com plumas est em certos casos as-sociada a uma admirao e um desejo de fuso pessoalcom o mais belo dos seres, a divindade celeste chamadaInka, sendo reexo da sua beleza, poder, conhecimento esade. O mesmo povo considera as penas possuidores devirtudes especiais, e seu uso est na dependncia de com-binaes e contextos apropriados. Da mesma forma, so-mente certas pessoas podem confeccionar determinadosobjetos, sempre dentro de uma estrutura ritual estrita-mente controlada. Quando associada ao canto, a arte plu-mria criada pelo cantor-chefe, que tambm especia-lista no trabalho com penas, numa ligao evidente entreo canto dos pssaros e a arte de memorizar os cantos tri-bais, cuja origem atribuda aos mesmos pssaros.[10] Acomunidade inteira contribui com penas especcas paraa fabricao dos trajes do lder do canto e do seu aprendiz,e cada um que contribuir poder usar a veste cerimonialtpica da festa, que assume assim um carter agregador ecoletivo. Nos ritos de fertilidade so usados cocares indi-viduais, que por isso podem servir de distintivos de pres-tgio social. Um estudo de Rabineau nos anos 60 relataque o cocar fabricado pelo cacique era uma obra sosti-cada, demonstrando seu domnio da tcnica e sabedoriana escolha do material adequado. O seu lho, porm,ao criar seu prprio cocar, o fez com tcnica igualmenteboa mas com maior economia de material, indicando queera hbil mas no possua ambio de suplantar seu pai.Por outro lado, um rival do cacique usou penas proibidasna cerimnia, e por isso, em vez de ganhar o respeito datribo, foi desaprovado por todos.[21]

    Para os Kayap, a plumria usada principalmente nosgrandes rituais coletivos, como na nominao e iniciaomasculina, no casamento e na paramentao do morto.No cotidiano, porm, prevalece a pintura corporal comonico adorno. O vistoso cocar chamado krokrok ti pos-sui grande signicado simblico, podendo representar umolho ou o sol, mas acima de tudo simboliza a prpria al-deia. As penas azuis, colocadas no centro, representama praa, que o local masculino e pblico por exceln-cia, enquanto que as penas vermelhas, perifricas, repre-sentam o mundo feminino e domstico. Como acaba-mento, so colocadas penugens brancas, representativasda oresta.[22]

    Os Tukano praticam um ritual secreto relacionado aoJurupari, cujo principal objetivo invocar a serpente gi-

  • 5Arara-canga, veculo de um ser mtico para os Yanomami

    gante Anaconda, de cujo ventre a humanidade teria nas-cido. Todos os objetos usados no ritual se unem, atravsda magia do xam, para formar o corpo da criatura sa-grada, entre eles uma auta emplumada com penas dearara e mutum, que se considera representar os jarretesda serpente. Para os ndios Palikur as retrizes vermelhasdas araras so particularmente poderosas, sendo o assentode espritos protetores. So por isso usadas em inmerosobjetos e espaos a m de afugentar inuncias malig-nas. J os Yanomami, nos ritos ligados entidade m-tica Wasulumani, representada pela colorida arara-canga(Ara macao), evitam o uso de penas multicores para noofend-la, competindo com seu esplendor, e seus adornosse limitam a penas de cores preta e branca. OsWaipi an-tigamente confeccionavam um cocar vertical com penasde vrias aves, onde se destacavam as grandes penas cau-dais de araras. O cocar era usado em rituais de danaonde ndios personicavam aves de vo alto, smbolos desade e bem-estar da tribo, ao mesmo tempo em que aspenas maiores simbolizavam os pilares com que os seresmticos haviam sustentado a abbada celeste, para queela no desabasse sobre o mundo.[23]

    2 Histria do seu estudo e situaoatual

    Desde a Descoberta do Brasil, j sendo citada na Cartade Pero Vaz de Caminha,[24] a arte das plumas vem cha-

    Tupinambs em gravura de Theodor de Bry para o livro de HansStadenDuas Viagens ao Brasil, 1557. Ao centro ndios com seusmantos emplumados

    Dom Pedro I com seu manto de coroao decorado com umagola de penas de tucano. Detalhe de pintura de Debret

    mando a ateno do homem branco, a despeito dos maustratos que ele historicamente dispensou ao ndios, dizi-mando suas populaes, apossando-se de suas terras erelegando-os a um estado que s recentemente vem dei-xando de ser o mais completo abandono e desprezo. Ex-ploradores e naturalistas europeus desde logo coletaramexemplares de arte plumria e os levaram Europa comotrofus da conquista, uma prtica que continuou at o s-culo XIX, que at hoje enriquece as colees de impor-

  • 6 2 HISTRIA DO SEU ESTUDO E SITUAO ATUAL

    tantes museus. Por outro lado, essa atividade preservouna Europa exemplares nicos, sem paralelos no acervoremanescente no prprio Brasil. o caso dos famososmantos plumrios Tupinambs, uma etnia praticamenteextinta no sculo XVII. Foram registrados desde o sculoXVI em gravuras e relatos de viajantes europeus, mas osnicos exemplares que restam desse tipo de artefato es-to conservados no Museu Nacional da Dinamarca e noMuseu do Homem emParis. Eram usados em cerimniasde iniciao masculina e reservados somente aos ndiosdo mais elevado status social.[25]

    Quando Dom Pedro I foi sagrado imperador, mandouadornar seu manto cerimonial com uma mura de pe-nas de papo de tucano, ao mesmo tempo uma homena-gem aos chefes ndios do pas e um ato de armao depoder imperial, agregando simbolicamente as foras na-tivas ao universo europeizado dominante.[26] Seu lho,Pedro II, continuaria o costume, tambm como parte deum projeto poltico-cultural de modernizao e unica-o nacional.[27] Mas no Brasil as tradies indgenas scomearam a despertar mais interesse nos crculos ilus-trados em meados do sculo XIX, a partir dos primeirosestudos sobre o folclore nativo embutidos no movimentoromntico, o qual prestigiava as singularidades e as dife-renas, denindo os vrios povos e tradies como ob-jetos dignos de ateno intelectual.[28][29] Notvel foi otrabalho de pesquisa de Emlio Goeldi, coletando mate-rial e dando importantes subsdios para o incio do estudoda arte plumria de forma particular e sistemtica.[30]

    No incio do sculo XX intelectuais modernistas comoMrio de Andrade lanaram novos olhares sobre o as-sunto, sem deter-se nele em profundidade, e nesta al-tura muito j se havia perdido para sempre ou havia so-frido inuncias da cultura branca.[31][32][33] Eruditos eu-ropeus tambm desenvolviam pesquisas, mas a arte plu-mria ainda no era considerada uma arte de direito pr-prio, com caractersticas e funes especcas, como caaparente no trabalho de Claude Lvi-Strauss,[34] e rara-mente atraa a ateno que deveria como uma das maissosticadas criaes estticas dos ndios brasileiros. Ouera includa como uma subcategoria da indumentria, oraera vista como simples artesanato primitivo, quando nomero exotismo sem signicado profundo.[35] Os irmosVilas-Boas recolheram grande conjunto de artefatos[36] enos anos 50 Darcy Ribeiro deu inuente contribuio es-crevendo um livro sobre a plumria dos Kaapor.[37] Nosanos 60 em diante foram realizados mais estudos especia-lizados e comearam as exposies, mas foi somente em1983 que aconteceu sua consagrao denitiva, quandorecebeu uma sala especial na Bienal de So Paulo, acom-panhada pela publicao de ensaios crticos.[32]

    Atualmente a arte plumria indgena do Brasil presti-giada em todo o mundo, e est presente em muitos mu-seus nacionais e estrangeiros, mas est correndo o riscode desaparecer e ter sua autenticidade deturpada. Face aculturao de muitas tribos, os costumes vo se dis-solvendo, e segundo Dorta & Cury, nenhuma das 206 et-

    nias sobreviventes no Brasil a pratica em sua plenitudeoriginal.[24] Onde so mais preservados, justamente pelaadmirao que hoje desperta, a arte plumria vem se tor-nando produto comercial, perdendo seus signicados eusos tradicionais e passando a ser simples objeto deco-rativo para consumo dos turistas, constituindo at umaimportante fonte de renda para vrias tribos. Alm disso,fazendo uso de material biolgico obtido de aves muitasvezes ameaadas de extino, a continuidade dessa tradi-o como fonte de renda encontra impedimentos legais.De acordo com a legislao brasileira os indgenas tm odireito de caar a fauna silvestre com ns exclusivos dealimentao e confeco de objetos cerimoniais, mas pe-as com produtos ou subprodutos da fauna silvestre, ca-tegoria onde entram os objetos plumrios, no podem sercomercializadas. A proibio est em vigor desde 1998, es abre excees para a pesquisa acadmica e a preserva-o emmuseus. No obstante, o comrcio j atinge gran-des propores e o controle difcil.[32][2][38] Ao mesmotempo, a combinao de restries e propaganda gover-namental causa uma situao de paradoxo. Na apresen-tao do livro Povos Indgenas no Brasil 2001/2005, osautores disseram:

    Vale destacar a imagem do cocarKayap que aparece na lombadadeste volume, confeccionado coma tcnica de praxe, porm com ca-nudinhos de plstico no lugar dastradicionais penas de arara, papa-gaio e mutum. Proibidos de comer-cializar artesanato com matrias-primas oriundas de animais silves-tres, essa recente e criativa soluoKayap simboliza a contradio deum pas campeo mundial do des-matamento e bem colocado no topoda lista do trco e da extino deaves, cuja diplomacia costuma exi-bir no exterior a arte plumria in-dgena como smbolo primeiro daidentidade nacional.[38]

    Alm do estudo por antroplogos e etnlogos, e da suamaior divulgao entre o grande pblico, a arte plumriaindgena vem exercendo algum impacto tambm na artecontempornea brasileira de carter erudito, um fen-meno que se observa desde os anos 60 atravs da obra deartistas destacados como Lygia Pape e Ben Fonteles,[39]alm de inspirar o trabalho de decoradores e designers demoda e jias.[40][41]

    Peitoral Kayap. American Museum of NaturalHistory.

    Cocar Wayana. American Museum of Natural His-tory.

    Cocar Guarani. Museu Etnolgico de Viena.

  • 7 Maracas decoradas com penas, provenientes doMato Grosso. Museu Etnolgico de Viena.

    Colar Tikuna. Museu Etnolgico de Viena. Vestimenta cerimonial Munduruku. Museu Etnol-

    gico de Viena.

    Adereo de cabea Makuna. Museu Etnolgico deViena.

    Cocar Apiak. Museu Etnolgico de Viena.

    3 Referncias[1] Dolabella, RenatoMelo et alii. Arte Plumria: ndios Bra-

    sileiros. Grupo de Estudo do Projeto Experimental Arte-sanato. UFMG. s/d

    [2] John, Liana. A Arte Plumria Indgena sustentvel?".In: Estado de So Paulo, 05.10.2000

    [3] Martin, Gabriela. Pr-histria do Nordeste do Brasil. Edi-tora Universitria UFPE, 2008. pp. 223-224

    [4] Cartilha apresenta a arte plumria dos povos Kagwahva.INPA, Secretaria de Estado de Cincia e Tecnologia, Por-tal Ocial do Governo do Estado do Amazona, 2009

    [5] Sedoguch, Fabiana Barbosa. Tecelagem, Tranado e ArtePlumria. Um paralelo entre a artxtil indgena e a artecontempornea. Museu do ndio Instituto de Histria UFU, s/d.

    [6] Hamada, Katsue e Zenun, ValeriaMaria Alves Adissi. Serndio hoje. Edies Loyola, 1999. pp. 59-62

    [7] Passetti, Dorothea Voegeli. Papagenos Tropicais. In:Brait, Beth & Bastos, Neusa Barbosa. Imagens do Brasil:500 anos. Editora da PUC-SP, 2000. pp. 107-108

    [8] Ribeiro, Darcy & Ribeiro, Bertha. Arte plumria dos n-dios Kaapor. IN Educao em Linha: ndios, os primeirosbrasileiros. Secretaria de Estado de Educao do Rio deJaneiro. Ano IV, n. 13, jul/set de 2010. p. 51

    [9] Melatti, Julio Cezar. ndios do Brasil. EdUSP, 2007. p.225

    [10] Silva, Aracy Lopes da & Grupioni, Luis Donizete Benzi(orgs). A temtica Indgena na Escola: novos sub-sdios para professores de 1 e 2 graus. Braslia:MEC/MARI/UNESCO, 1995. pp. 394-397

    [11] Costa, Maria Castilho. A imagem da mulher: um estudode arte brasileira. Senac, 2002, p. 53

    [12] Lagrou, Els. Arte ou artefato? Agncia e signicado na-sartes indgenas. In: Revista Proa, n 2, vol. 01, 2010,p. 2

    [13] Dorta, Sonia Ferraro & Cury, Marlia Xavier. A plumriaindgena brasileira no Museu de Arqueologia e Etnologiada USP. EdUSP, 2000. pp. 36-37

    [14] Dorta & Cury, p. 37

    [15] Arruda, Rinaldo. Mitos Rikbaktsa: Histria, Sociedadee Natureza. In: Silva, Ana Amlia da; Chaia, MiguelWady & Junqueira, Carmen. Sociedade, cultura e pol-tica: ensaios crticos. Universidade Ponticia de Comillas,2004. p. 48

    [16] Dorta & Cury, pp. 409-410

    [17] Ribeiro & Ribeiro, p. 53

    [18] Hemming, John. Red Gold: The Conquest of BrazilianIndians. Papermac, 1995. p. 39

    [19] Dorta & Cury, pp. 423-424

    [20] Silva, Fabola Andra; Neves, Eduardo Ges & De Bla-sis, Paulo Antonio Dantas. Beleza, Rigor e Dignidade: ACultura Material Tupi no Tempo e no Espao. In: Mu-seu de Arqueologia e Etnologia da USP / Caixa Econ-mica Federal. Brasil Tupi, catlogo de exposio. CentroCultural da Caixa Econmica Federal, 3 de julho a 7 denovembro de 2004, pp. 25-28

    [21] Lagrou, Elsje Maria. O que nos Diz a Arte Kaxinawa so-bre a Relao entre Identidade e Alteridade?". In: Mana8(1):29-61, 2002, pp. 41-43

    [22] Silva & Grupioni, p. 396

    [23] Dorta & Cury, pp. 174; 330; 380; 396

    [24] Dorta & Cury, pp. 35-38

    [25] Hamada e Zenun, pp. 62-63

    [26] Malerba, Jurandir. A independncia brasileira: novas di-menses. FGV Editora, 2006. p. 285

    [27] Schwarcz, Llia Moritz. As barbas do imperador. Com-panhia das Letras, 1998. pp. 16-17

    [28] Frade, Cscia. Folclore/Cultura Popular: Aspectos de suaHistria. UNICAMP, s/d.

    [29] Cavalcanti, Maria Laura. Entendendo o Folclore. CentroNacional de Folclore, maro/2002

    [30] Pedrosa, Israel. O universo da cor. Senac, 2003. p. 24

    [31] Batista, Marta Rossetti. Coleo Mrio de Andrade: reli-gio e magia, msica e dana, cotidiano. EdUSP, 2004,p. 34

    [32] Costa, p. 54

    [33] Peixoto, Fernanda Aras. Dilogos brasileiros: uma an-lise da obra de Roger Bastide. EdUSP, 2000, p. 117

    [34] Passetti, Dorothea Voegeli. Lvi-Strauss, antropologia earte: minsculo - incomensurvel. Editora da PUC-SP,2008. pp. 74-77

    [35] Ribeiro & Ribeiro, p. 50

    [36] Swarc, Samuel. Marketing: heri ou vilo?. Summus Edi-torial, 2003. p. 23

    [37] Mota, Loureno Dantas. Introduo ao Brasil: um ban-quete no trpico. Senac, 1999. p. 409

  • 8 5 LIGAES EXTERNAS

    [38] Comrcio de arte plumria est proibido no Brasil. Crianado Futuro: Wakpnska Karipuna!, 24 de abril de 2007

    [39] Vessani, Maria Ceclia Fittipaldi. Objetos Plumrios naArte Contempornea Brasileira. Dissertao de Mestrado(resumo). Universidade Federal de Gois, 2005.

    [40] Benatti, Luciana. Arte indgena inuencia as cores do appaulistano. Casa.com, 2010

    [41] Freire, Jos R. Bessa. O Patrimnio Cultural Indgena.Prndio - Programa de Estudos dos Povos Indgenas,s/d., s/pp.

    4 Ver tambm ndios do Brasil Arte indgena brasileira

    5 Ligaes externas Visita virtual exposio A Presena do Invisvel,

    organizada pelo Museu do ndio da Funai, sobre ospovos do Oiapoque

  • 96 Fontes, contribuidores e licenas de texto e imagem6.1 Texto

    Arte plumria dos ndios brasileiros Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Arte%20plum%C3%A1ria%20dos%20%C3%ADndios%20brasileiros?oldid=37563208 Contribuidores: Sturm, Luan, Luiza Teles, CommonsDelinker, Tetraktys, Aleph Bot, Hallel, Leytor e An-nimo: 4

    6.2 Imagens Ficheiro:Alto_orinoco5.jpg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/df/Alto_orinoco5.jpg Licena: CC-BY-SA-3.0

    Contribuidores: ? Artista original: ? Ficheiro:Brazil_16thc_tupinamba.gif Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a4/Brazil_16thc_tupinamba.gif Li-

    cena: Public domain Contribuidores: ? Artista original: ? Ficheiro:Cachoeira_resplendor_pintura_rupestre.jpg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e9/Cachoeira_

    resplendor_pintura_rupestre.jpg Licena: Public domain Contribuidores: [1] Artista original: desconhecido Ficheiro:Commons-logo.svg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4a/Commons-logo.svg Licena: Public domain

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    Ficheiro:Jean-Baptiste_Debret_-_Coroao_de_D._Pedro_I_(detalhe).jpg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e5/Jean-Baptiste_Debret_-_Coroa%C3%A7%C3%A3o_de_D._Pedro_I_%28detalhe%29.jpg Licena: Public domainContribuidores: Scanned from Itamaraty Safra catalogue (1993). Artista original: Jean-Baptiste Debret

    Ficheiro:Jogos_dos_Povos_Indgenas2.jpg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ef/Jogos_dos_Povos_Ind%C3%ADgenas2.jpg Licena: CC BY 3.0 br Contribuidores: Agncia Brasil [1] Artista original: Foto: Valter Campanato/ABr

    Ficheiro:Pataxo_1170a.JPG Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a6/Pataxo_1170a.JPG Licena: CC BY-SA 3.0Contribuidores: Obra do prprio Artista original: http://veton.picq.fr

    Ficheiro:Scarlet_Macaw_(Ara_macao)_-Leeds_Castle-8.jpg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/96/Scarlet_Macaw_%28Ara_macao%29_-Leeds_Castle-8.jpg Licena: CC BY-SA 2.0 Contribuidores: originally posted to Flickr as Whos a prettyboy then???...HFF...Everybody..:O)) Artista original: Keven Law

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    Ficheiro:Tropenmuseum_Royal_Tropical_Institute_Objectnumber_403-170_Veren_dansversiering.jpg Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7d/Tropenmuseum_Royal_Tropical_Institute_Objectnumber_403-170_Veren_dansversiering.jpg Licena: CC BY-SA 3.0 Contribuidores: Tropenmuseum Artista original: Desconhecido

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    CaractersticasAlguns exemplos

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