arte e ofício de artesão: história e trajetórias de um meio de subsistência

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1 Maria Sylvia Porto Alegre ARTE E OFÍCIO DE ARTESÃO HISTÓRIA E TRAJETÓRIAS DE UM MEIO DE SOBREVIVÊNCIA Tese de doutoramento apresenta- da à Faculdade de Filosofia, Le- tras e Ciências Humanas da Uni- versidade de São Paulo, Área de Antropologia. Orientadora: Profª Dra. Eunice Ri- beiro Durham. São Paulo, maio de 1988

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Arte popular no nordeste do Brasil, em perspectiva histórica.

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  • 1

    Maria Sylvia Porto Alegre

    ARTE E OFCIO DE ARTESO

    HISTRIA E TRAJETRIAS DE UM MEIO DE SOBREVIVNCIA

    Tese de doutoramento apresenta-

    da Faculdade de Filosofia, Le-

    tras e Cincias Humanas da Uni-

    versidade de So Paulo, rea de

    Antropologia.

    Orientadora: Prof Dra. Eunice Ri-

    beiro Durham.

    So Paulo, maio de 1988

  • 2

    SUMRIO

    Introduo 3

    I - Ofcios Artesanais na vida colonial 11

    II - Pecuria e algodo: dois plos geradores de ncleos artesanais 81

    no Cear Colonial

    III - O declnio da escravido e o "trabalhador nacional" no Nordeste 115

    IV - Trabalho artesanal no Cear do Sculo XIX

    V - Consideraes finais: o arteso diante da industrializao

    V- Bibliografia

  • 3

    INTRODUO

  • 4

    O trabalhador nas outrora denominadas "artes e ofcios" ainda

    pouco conhecido no Brasil, tanto do ponto de vista de suas origens como no que

    diz respeito sua condio atual. Entretanto, o trabalho produzido artesanalmente

    e o contingente de artesos existentes, tem tido um papel bem mais significativo,

    ao longo do processo histrico, do que se costuma supor.

    O prprio Estado vem constatando, h algumas dcadas, a impor-

    tncia do artesanato como meio de sobrevivncia de amplas camadas da classe

    trabalhadora, especialmente no Nordeste. Em 1975 o Ministrio do Trabalho criou

    um Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato, com propostas de in-

    centivo que viam nele "uma atividade espontnea, desenvolvida no meio rural e

    bastante explorada. D enorme margem de lucro para os que vendem o produto

    fora da rea rural, deixando queles que o produzem to somente a satisfao da

    criatividade". Tem havido, tambm, uma crescente ateno em torno do produto

    artesanal, da "arte e artesanato popular", como se costuma dizer, por parte dos

    interessados na "cultura popular" e suas manifestaes, e por setores de mercado

    envolvidos de diferentes maneiras com uma "indstria do turismo" em expanso,

    que promove o consumo de objetos artesanais, principalmente aqueles que guar-

    dam caractersticas marcadamente regionais.

    Ao acompanhar a trajetria social do arteso possvel verificar que

    a produo artesanal que sobreviveu aos avanos do capitalismo industrial no

    uma atividade marginal, isolada, que por motivos circunstanciais ainda persiste em

    alguns pontos do pas, em geral nas regies mais pobres. Pelo contrrio, suas

    vinculaes com a sociedade mais ampla so antigas e profundas, mergulham no

    passado colonial e acompanham as mudanas sociais, mesmo quando se concen-

    tram em ncleos aparentemente isolados, geograficamente distantes dos centros

    dinmicos e hegemnicos.

  • 5

    O pressuposto que orienta este estudo o de que no se podem dis-

    cutir questes do tipo "como e porque" o artesanato se mantm, declina ou se ex-

    pande sem antes empreender a tarefa de reconstruir mais de perto sua origem e

    evoluo, ainda pouco conhecidas.

    Como sabido, o artesanato no Brasil distanciou-se, de muitas ma-

    neiras, do modelo clssico europeu, marcada que foi, em sua origem, pelo traba-

    lho escravo e pelo peso das interdies da dominao colonial, mas, por outro

    lado, h uma srie de pontos de confluncia com essa via clssica, decorrentes do

    prprio passado colonial, que transplantou para o Brasil as instituies jurdicas,

    as tcnicas e a organizao social do trabalho que lhe serviram de base.

    A reconstruo da histria dos grupos marginalizados e secundrios

    sempre difcil. No caso do arteso, as dificuldades so ainda maiores, pelas

    condies especficas de realizao do trabalho: os laos de dependncia e com-

    plementaridade entre os pequenos artfices e os setores dominantes eram camu-

    flados, complexos na sua identificao, a produo articulava-se de forma difusa e

    fragmentada economia de mercado, realizando-se atravs da combinao de

    formas variadas de trabalho domstico, familiar e oficinal, largo emprego de mo-

    de-obra feminina e infantil, valendo-se de tecnologias rudimentares, da transmis-

    so prtica da aprendizagem, que se reproduz de gerao a gerao atravs de

    longos processos que a memria social tende a esquecer e cujos registros, quan-

    do existem, vo se perdendo.

    O artesanato ocupou sempre os espaos perifricos e intersticiais da

    vida social, caracterizando-se por uma produo e comercializao dispersa e

    atomizada, baixa produtividade, insuficincia de recursos financeiros e ausncia

    de "racionalidade", do ponto de vista da orientao geral do sistema dominante.

    No Cear, onde foi realizada a maior parte deste estudo, um meio

    de sobrevivncia antigo e bastante diferenciado. Reproduz-se ainda hoje, de for-

    ma continuamente recriada e adaptada, de maneira um pouco semelhante ao que

    ocorre com a agricultura de subsistncia, com a qual possui vnculos tambm an-

    tigos e profundos. Mesmo quando se insere na vida urbana, o arteso, muitas ve-

  • 6

    zes um migrante, conserva prticas e representaes prprias do mundo rural.

    Seus referenciais de vida e trabalho se reportam a uma ordem social cuja base

    est na estrutura rural sertaneja e suas relaes de trabalho e poder. Assim,

    atravs da compreenso do processo histrico das relaes sociais no campo que

    melhor se pode situar o artesanato cearense, e no da perspectiva da economia

    urbana.

    A origem das "artes e ofcios" na cidade fundamental para a re-

    construo do trabalho artesanal em outra reas, como Salvador, por exemplo, ou

    o Rio de Janeiro, centros urbanos onde essas atividades se expandiram e flores-

    ceram no Brasil-colnia.

    Os dois primeiros captulos tratam do arteso colonial. A maior parte

    da documentao foi consultada em Lisboa, no Arquivo Histrico Ultramarino, Ar-

    quivo Nacional da Torre do Tombo e Biblioteca Nacional, entre 1983 e 1984, onde

    permaneci como pesquisadora visitante. O primeiro captulo mostra que os ofcios

    artesanais, embora no sendo um setor essencial, se expandiram e se diversifica-

    ram, sobretudo no sculo XVIII, como parte do crescimento das cidades e das

    prprias necessidades do Estado no empreendimento de construo do aparato

    material administrativo e defensivo.

    A Igreja teve papel importante, no ensino em suas oficinas e controle

    da mo-de-obra artesanal, corresponsvel que foi pela organizao das corpora-

    es de ofcio e confrarias que regulavam o trabalho em moldes semelhantes s

    suas congneres em Portugal.

    O sistema corporativo privilegiou o trabalho dos mestres brancos,

    criando restries a ndios, mulatos e negros aos quais estavam destinados os

    "ofcios vis", formando-se uma pequena oligarquia mesteiral de certo status nas

    principais cidades e vilas. Entretanto, numerosos ofcios eram livres e mesmo os

    que no o eram conseguiam escapar ao controle das regulamentaes, o que ofe-

    receu possibilidades no s de sobrevivncia, mas de ascenso social para os

    homens pobres livres que conseguiam obter uma especializao profissional.

  • 7

    A presena da escravido no artesanato difcil de ser avaliada.

    Apesar do aviltamento que representou nas relaes de trabalho de uma categoria

    cuja caracterstica fundamental o trabalho independente, por conta prpria,

    preciso reconhecer que inmeros ofcios s se expandiram porque lanaram mo

    tanto do escravo negro como do trabalho compulsrio indgena, uma vez que a

    degradao do trabalho manual no atraia trabalhadores brancos em nmero sufi-

    ciente para atender demanda. Por outro lado, o domnio de uma "arte" facilitou a

    compra da liberdade a uma parcela da populao escravizada e constituiu um dos

    raros meios de vida dos ex-escravos.

    O segundo captulo analisa o complexo algodoeiro- pecurio nordes-

    tino e procura verificar a expanso artesanal possvel nesse meio. Embora a in-

    dstria rural domstica estivesse voltada inicialmente para a produo de valores

    de uso e tivesse um carter complementar agricultura, a autonomia e a propala-

    da autarquizao das fazendas deve ser relativizada. difcil avaliar o grau de

    mercantilizao do setor, porm sabe-se que havia, com frequncia, uma escas-

    sez de gneros e necessidades de abastecimento externo.

    As trocas entre litoral e interior eram grandes e se faziam nos nume-

    rosos mercados e feiras locais, por onde passavam no s o gado e o algodo,

    como manufaturados importados e artigos produzidos localmente. No final do pe-

    rodo colonial, o artesanato no campo, assim como a agricultura de alimentos, ha-

    via facilitado no Cear o desenvolvimento da agricultura comercial, pela reprodu-

    o da fora de trabalho a baixo custo. Possibilitara, tambm, a formao de uma

    mo-de-obra especializada, na sua maioria treinada pelos jesutas em suas aldei-

    as e oficinas, nos colgios e fazendas.

    Antes de abordar a expanso do trabalho artesanal no Cear no s-

    culo XIX, era importante situ-lo dentro do processo histrico global das relaes

    de trabalho. O terceiro captulo aborda esse tema, centrando a questo na passa-

    gem do trabalho escravo para o trabalho livre, entre 1830 e 1900. O interesse em

    investigar a posio do chamado "trabalhador nacional" no Nordeste resultou de

    discusses mantidas no curso de ps-graduao de Lcio Kowarick, em 1981. A

  • 8

    partir da, da tentativa de conhecer os meios de sobrevivncia do homem pobre

    livre, que se configurou para mim a necessidade de retroceder na periodizao

    da pesquisa, at chegar s origens coloniais da herana artesanal.

    Finalmente, no quarto captulo, v-se como a diversificao e a "des-

    coberta" do artesanato no Cear acompanha as alternativas de manuteno do

    nvel de emprego da "populao vegetativa", a crescente camada livre nacional

    que, no ltimo quartel do sculo passado havia formado um "excedente populaci-

    onal" forado a migrar em busca de trabalho em reas mais dinmicas do pas. O

    Estado procura controlar essa mo-de-obra, como sempre havia feito; a violncia

    das relaes sociais grande e a submisso no se d de forma passiva.

    O artesanato continua e se expandir como parte da estrutura agrria

    e dela dependente, de forma dispersa e atomizada, em pequenas unidades ofici-

    nais e domsticas. Expandem-se os antigos ramos derivados do couro e do algo-

    do, desenvolvem-se outros como a cermica, a metalurgia, a madeira. Os cat-

    logos das exposies industriais que divulgam a produo a nvel nacional louvam

    a qualidade e criatividade da pequena indstria no Cear, que vai dos objetos de

    uso dirio aos artigos de luxo e at ao suprfluo.

    Surgem as primeiras fbricas de tecidos em 1880, mas o panorama

    geral de pobreza e insuficincia das condies estruturais impe os limites acu-

    mulao do setor e sua transformao em direo indstria fabril. No h

    qualquer modificao significativa nas tcnicas utilizadas, que continuam rudimen-

    tares e pouco mecanizadas; os grandes capitais locais continuam a ser reinvesti-

    dos na agricultura e no comrcio, no se interessando pela indstria. Chega-se ao

    final do perodo com a constatao, dos prprios contemporneos, que a pequena

    indstria artesanal, to importante no emprego da fora de trabalho, no era, infe-

    lizmente, reconhecida como de "interesse geral".

    A diferenciao entre artesos independentes, os chamados "artis-

    tas", e a nova camada de operrios fabris confusa e difcil, refletindo um momen-

    to de transio em que a categoria aparece de forma hbrida, at mesmo nas pri-

    meiras estatsticas que do conta da sua posio no conjunto das ocupaes no

  • 9

    Brasil. Nas consideraes finais procura-se introduzir, ou, dizendo melhor, sugerir

    a discusso da temtica do arteso diante da industrializao, o que deixa inme-

    ras questes em aberto e a certeza de que h ainda muito a ser desvendado a

    respeito do tema.

    Ao encerrar esta Introduo devo admitir que no decorrer do trabalho

    me senti, inmeras vezes, como que impregnada pelo objeto de estudo. O fazer

    dirio, paciente e lento da pesquisa exigiu momentos de esforo individual e solit-

    rio que se alternavam com outros, em que a cooperao dos companheiros e o

    ensinamento dos mestres se tornavam indispensveis. Nessa convergncia pude

    perceber a importncia dos longos anos de aprendizado, iniciado no curso de Ci-

    ncias Sociais da Universidade de So Paulo, onde me formei, ainda nos tempos

    da antiga Rua Maria Antnia. Ali adquiri os fundamentos da formao terica e

    metodolgica que me tem servido de orientao at hoje, e aos meus professo-

    res de ento que quero registrar meu primeiro agradecimento.

    Ao voltar USP, para o curso de ps-graduao, a experincia pro-

    fissional somara-se formao acadmica e s me senti confiante em abordar o

    tema escolhido em face da convivncia que tive, por mais de dez anos, com artis-

    tas e artesos do Cear, e o progressivo conhecimento que fui adquirindo sobre a

    sociedade nordestina, desde que me vinculei como professora Universidade Fe-

    deral do Cear, em 1976. Os princpios analticos que norteiam a interpretao

    representam, para mim, o conjunto de elementos que se fundiram ao longo desse

    processo, ainda em continuidade.

    Quero expressar o principal agradecimento minha orientadora, Eu-

    nice Ribeiro Durham, pela confiana que depositou em meu trabalho e pela arg-

    cia da anlise penetrante e exigente com que sempre me estimulou. Sou grata ao

    estmulo inicial de Clia Galvo Quirino e Jos Francisco Quirino, que leram a

    primeira verso do projeto e me incentivaram a prosseguir. Ao Departamento de

    Histria da Universidade de Barcelona, ao qual estive vinculada como pesquisado-

    ra visitante em 1983-1984 e onde descortinei novos horizontes na elaborao dos

    dois primeiros captulos.

  • 10

    Igual contribuio me foi dada pelo estgio nos arquivos portugue-

    ses, onde, alm da consulta exaustiva de vasta documentao, aprendi a relativi-

    zar meus conhecimentos sobre a empresa colonial, a partir de historiadores portu-

    gueses, principalmente Oliveira Marques, que me fez ver a dimenso tomada pelo

    Brasil ao se tornar, no sculo XVIII, a "essncia do prprio Portugal". Agradeo

    aos funcionrios do Arquivo Histrico Ultramarino, da Biblioteca Nacional e do Ar-

    quivo Nacional da Torre do Tombo, de Lisboa, pela solicitude com que me recebe-

    ram, bem como a todos os que me atenderam nas bibliotecas brasileiras, especi-

    almente aos funcionrios da Biblioteca do Estado do Cear, onde realizei a se-

    gunda parte da pesquisa.

    Na etapa final do trabalho, foi extremamente valiosa a oportunidade

    que tive de discutir resultados parciais e alguns captulos no grupo de trabalho de

    "Sociologia da Cultura" da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em

    Cincias Sociais - ANPOCS, e no Centro de Estudos Rurais e Urbanos - CERU,

    da USP.

    Foi igualmente valiosa para a reflexo e redao final da tese, a pes-

    quisa que realizei em 1986 para a FUNARTE, sobre arte popular e artesanato no

    Cear hoje, na medida em que serviu de contraponto entre o passado e o presen-

    te da condio do arteso.

    Devo muito ao apoio recebido da famlia e dos amigos, em todos os

    momentos, assim como aos muitos companheiros e colegas com que sempre tive

    o conforto de contar. A Irlys Alencar Firmo Barreira, ouvinte sempre atenta, com-

    panheira generosa e solidria desse percurso acidentado, mas de saldo positivo.

    A Rosemary Conti Furtado, pela ajuda nos momentos difceis. A Maria Helena

    Rossetti, pelo apoio indispensvel que me deu. A Leonidas Adolpho Costa Souza,

    pelos conselhos, sabedoria e energia que me tem transmitido. A Ismael de Andra-

    de Pordeus Jnior, mais do que amigo e colega, um irmo de todas as horas,

    principal cmplice da fase final dessa travessia.

    Quero dirigir um agradecimento coletivo aos bolsistas e estudantes

    que, em diferentes momentos, me auxiliaram na coleta e organizao dos dados

  • 11

    e, ainda, a Carlos Marcos Augusto que me ajudou na produo final do relatrio e

    a Josely Pinto de Almeida pela pacincia na datilografia dos originais.

  • 12

    CAPTULO I

    OFCIOS ARTESANAIS NA VIDA COLONIAL

  • 13

    At meados do sculo XIX, a palavra arte expressava o conjunto de

    regras e mtodos observados na execuo de uma obra. Na sociedade medieval

    portuguesa, incluam-se nela tanto as "artes liberais", isto , o conjunto do saber

    literrio da Idade Mdia, como as "artes mecnicas". Sua evoluo est associada

    a termos como fbrica, indstria, mquina, operrio, tcnica; definia-se o artfice

    como aquele que "exercita alguma arte ou ofcio mecnico" e o artista como o in-

    divduo "destro em alguma arte". No uso corrente, artista era sinnimo de artfice.

    (1)

    A palavra indstria tem evoluo semelhante. Seu sentido antigo ex-

    pressava trabalho, atividade, habilidade. No sculo XVIII equivale a termos como

    arte, manufatura, fbrica e s a partir do sculo XIX que passa a designar pre-

    dominantemente indstria fabril. (2)

    Em fins do sculo XIX o termo artfice havia cado em desuso, substi-

    tudo ora pelo termo operrio ora por artista, conforme se tratasse de um trabalha-

    dor na indstria fabril ou nas artes e ofcios manuais. Entretanto, era cada vez

    mais generalizado o uso da palavra artista no seu sentido contemporneo de "cul-

    tivador de belas-artes". Com efeito, Frei Domingos Vieira, no Tesouro da Lngua

    Portuguesa de 1871, discute a evoluo do termo para concluir:

    "Artista - no sentido moderno, o que cultiva uma arte liberal, e

    assim s compete este nome ao escultor, pintor, arquiteto,

    msico, ator, poeta, ou mesmo ao que tem o sentimento do

    belo". (3)

    As modificaes no contedo semntico exprimem, com muita pro-

    priedade, as grandes transformaes por que passaram as artes e as indstrias

  • 14

    no mundo moderno e contemporneo. Na antiga sociedade medieval europeia, os

    indivduos que nelas trabalhavam faziam parte da mesma categoria social, imer-

    sos na organizao coletiva das corporaes de ofcio e relativamente autnomos

    enquanto autores e criadores.

    As conhecidas transformaes sociais de desenvolvimento do capita-

    lismo trouxeram em seu bojo a formao de duas novas categorias, opostas e mu-

    tuamente excludentes: a arte burguesa e o trabalho operrio. O processo de divi-

    so social do trabalho, a especializao do trabalhador em tarefas parcelarias, a

    ascenso social do artista criador, livre da tutela da Igreja e do Estado, a formao

    do mercado de trabalho, a separao e sobreposio do trabalho intelectual sobre

    o trabalho manual, foram os fatores fundamentais constitutivos da oposio da

    esfera da arte esfera do trabalho produtivo.

    Na produo artesanal, pelo contrrio, o processo de trabalho se ca-

    racterizava pela integrao entre as duas esferas, no havendo uma imposio do

    saber sobre o fazer, mas uma fuso entre elaborao intelectual e percia tcnica,

    entre "engenho e arte", arte e trabalho.

    As "artes e ofcios" encontraram seu pleno florescimento na era do

    capitalismo mercantil, perodo de riqueza e fervilhamento do artesanato, com a

    intensa vida comercial e industrial das cidades europeias, Florena, Milo, Vene-

    za, Amsterdam, Londres, Paris, Sevilha, Barcelona, Lisboa.

    Na Amrica colonial, o peso das interdies, dos monoplios metro-

    politanos, do recrutamento da mo-de-obra compulsria, da dominao sobre as

    sociedades indgenas, tinha necessariamente que conduzir essas atividades por

    caminhos diferentes. Portugal e Brasil, de um lado e do outro do Atlntico, partici-

    param da expanso e declnio das artes e ofcios pr-industriais, entre os sculos

    XVI e XVIII, com as peculiaridades e especificidades impostas pelas relaes en-

    tre metrpole e colnia.

    A historiografia brasileira tende a analisar antes os fatores de entrave

    do que os de expanso artesanal e industrial, no perodo da colonizao portu-

    guesa. So poucos os estudos sobre aspectos concretos, tais como as modalida-

  • 15

    des e ramos de produo, sua estrutura interna, as relaes de trabalho, o recru-

    tamento e aprendizado da mo-de-obra, tcnicas e processos empregados, a fa-

    bricao do produto, sua circulao e consumo. Aspectos importantes para um

    conhecimento mais preciso de uma atividade que, se no era estimulada, tam-

    pouco deixou de fazer parte do projeto de implantao e desenvolvimento do do-

    mnio portugus sobre as novas terras.

    Quanto ao arteso colonial, h uma forte tendncia ao obscureci-

    mento dessa categoria, com base na premissa de que o trabalho escravo desvir-

    tuou o trabalho artesanal naquilo que mais o caracterizava, ou seja, o fato de ser

    exercido por mestres e oficiais livres e autnomos, proprietrios da matria-prima

    e dos instrumentos de trabalho. Assim, no se tem um estudo de conjunto sobre a

    organizao dos ofcios no Brasil, sua estrutura jurdica e administrativa, o funcio-

    namento das corporaes, o controle da prtica artesanal, os artesos que esca-

    pavam a esse controle, o arteso na cidade e no campo, sua posio, status, seu

    lugar, enfim, na sociedade.

    No Brasil colonial, essencialmente agrrio e rural, onde as cidades

    eram, sobretudo, entrepostos comerciais e centros de administrao e controle

    poltico metropolitano, no se pode negar que o trabalho artesanal tenha tido es-

    cassa importncia, do ponto de vista da orientao geral do sistema. Os efeitos

    negativos da poltica mercantilista portuguesa sobre as atividades artesanais, ma-

    nufatureiras e industriais fizeram com que elas se desenvolvessem apesar de e

    quase revelia do governo portugus. Seu peso foi insignificante, se julgado em

    termos do valor monetrio ou quantidades produzidas, em uma relao colnia-

    metrpole que se assentava na exportao de produtos primrios, no monoplio e

    na importao de manufaturas.

    Entretanto, acreditamos ser possvel demonstrar que o trabalho arte-

    sanal no Brasil teve uma presena bem maior do que a que lhe tem sido atribuda,

    atingindo, para os padres da poca, um grau elevado de diferenciao e comple-

    xidade. Isso ocorreu, sobretudo, no sculo XVIII, quando o crescimento demogr-

    fico e a expanso da vida urbana deram impulso no s s artes, aos ofcios ma-

  • 16

    nuais e mecnicos e s manufaturas, como tambm ao pequeno comrcio e aos

    servios, destinados ao mercado interno, ocupando espaos deixados vagos pelo

    setor mercantil exportador e compondo um espectro profissional bem mais amplo

    e diversificado do que sugerem as abordagens que, partindo do sistema colonial

    como um todo, chegam concluso de que fora do setor dominante da agricultu-

    ra e do comrcio para o mercado externo, a vida produtiva da colnia se limitava a

    atividades vegetativas e de subsistncia.

    Tais espaos consistiam, basicamente, na produo de bens, artigos

    e servios para consumo local e regional, um mercado ainda embrionrio, formado

    por diferentes camadas sociais, cujas necessidades no podiam ser totalmente

    preenchidas, quer com a importao de manufaturados, quer com a produo do-

    mstica para autoconsumo.

    Crescimento demogrfico e expanso das atividades artesanais.

    Um estudo de conjunto sobre o trabalho artesanal no Brasil colonial

    se v limitado por uma srie de lacunas, a comear pelas dificuldades de reconsti-

    tuio das caractersticas demogrficas da populao, seu tamanho, disperso

    territorial, distribuio etria e sexual, composio tnica, ocupao e empregos,

    que so elementos bsicos para situar a questo do trabalho e, dentro dela, o se-

    tor artesanal.

    Pode-se, entretanto, constatar que as dificuldades iniciais de povoa-

    mento comearam a ser superadas a partir do sculo XVII. A populao do pas,

    que se situava, em 1576, entre 57.000 e 100.000 habitantes, por volta de 1600

    havia subido para cerca de 200.000, (4) registrando-se um processo crescente de

    atrao da populao de Portugal em direo ao Brasil. Para evitar a sada exces-

    siva, o governo portugus d incio a medidas restritivas emigrao j em 1670,

    pois as perspectivas de enriquecimento com as descobertas de ouro passaram a

    atrair milhares de pessoas, sobretudo da Madeira, dos Aores e do norte de Por-

  • 17

    tugal, provocando, segundo Charles Boxer, a primeira grande corrida do ouro da

    idade moderna. (5)

    A partir de 1720 a colnia j se consolidara como centro econmico

    do imprio portugus, com implicaes sociais e polticas de tal ordem, diz o histo-

    riador Oliveira Marques, que se poderia considerar o Brasil como "essncia do

    prprio Portugal". O autor estima que nas duas primeiras dcadas do sculo XVIII,

    cerca de cinco a seis mil pessoas haviam sado de Portugal para tentar sorte e

    fortuna no Brasil. Essa evaso era to elevada para o pequeno pas que resultou

    na proibio da emigrao de toda pessoa "que no fosse provida em governo ou

    ofcio da justia ou fazenda, e devidamente munida de passaporte". (7)

    O crescimento demogrfico se mantm elevado para os padres da

    poca at fins do sculo XVIII, contribuindo para isso a entrada de portugueses e

    outros imigrantes europeus, o aumento do trfico de escravos africanos, a incorpo-

    rao dos ndios e o prprio crescimento vegetativo da populao.

    As primeiras estatsticas gerais datam de 1775, quando o governo da

    metrpole introduz medidas para obter informaes mais seguras, que permitis-

    sem no s conhecer, mas controlar essa crescente populao. A importncia

    desses levantamentos pode ser avaliada pelo comentrio do governador da Bahia

    em minucioso mapa estatstico enviado ao Ministro da Marinha, em Lisboa, o qual

    "d muitas luzes a quem governa":

    "... de suma utilidade para se conseguir a felicidade da

    tranquilidade pblica... tanto mais se faria preciso em as po-

    pulaes maiores das cidades, e muito mais necessrio, co-

    mo indispensvel nas Cortes, no Juzo da Intendncia da Po-

    lcia, porque pelo meio dele se vem no pronto conhecimento

    dos indivduos, das suas ocupaes, modos de vida, empre-

    gos, dos seus estabelecimentos, das idades, dos vadios, va-

    gabundos, e ociosos". (8)

  • 18

    Nessa poca a populao total do pas se situava entre 1.500.000 e

    1.900.000 habitantes, espalhados por quinze capitanias. A mais povoada era Mi-

    nas Gerais, vindo em seguida Bahia, Pernambuco, Rio de janeiro e, mais abaixo,

    So Paulo.

    Populao do Brasil, por capitanias, 1772-1782.

    Capitania Total Por cento

    Rio Negro 10.386 0.6

    Par 55.315 3.5

    Maranho 47.410 3.0

    Piau 26.410 1.7

    Pernambuco 239.713 15.4

    Paraba 52.468 3.4

    Rio Grande do Norte 23.812 1.5

    Cear 61.408 3.9

    Bahia 288.848 18.5

    Rio de Janeiro 215.678 13.8

    Santa Catarina 10.000 0.6

    Rio Grande de S.

    Pedro

    20.309 1.3

    So Paulo 116.975 7.5

    Minas Gerais 319.769 20.5

    Gois 55.514 3.5

    Mato Grosso 20.966 1.3

    Total 1.564.981 100

    Fonte: Alden, Dauril. Population of Brazil in the

    Late Eighteenth Century: A Preliminary Study.

  • 19

    Hispanic American Historical Review. V. XLIII,

    1963, P. 191.

    Por volta de 1820, a populao brasileira, que era aproximadamente

    4.000.000 habitantes, j havia suplantado a de Portugal, que tinha 3.100.000 habi-

    tantes. (9)

    Um dos aspectos mais caractersticos do sculo XVIII no Brasil foi o

    incremento do que se poderia chamar um segundo circuito econmico, fora dos

    quadros predominantes da agricultura de "plantation" do litoral e do binmio "se-

    nhores e escravos", que dominava as relaes de trabalho. Esse circuito desen-

    volve-se ligado interiorizao da colonizao e ao mercado interno, atravs da

    pecuria extensiva, do fornecimento de gneros alimentcios e de bens de consu-

    mo para o setor dominante.

    A multiplicao dos ncleos urbanos e o fortalecimento dos merca-

    dos locais e regionais favoreceram o artesanato e o pequeno comrcio, tanto nos

    grandes centros como Salvador, Recife e Rio de janeiro, como nas inmeras vilas,

    aldeias e povoados por onde transitavam os gneros de troca entre o litoral e o

    interior. Isso ocorreu notadamente nas reas da minerao, onde a rpida expan-

    so provocou a escassez dos gneros e a alta dos preos, gerando grandes lu-

    cros no comrcio de mantimentos e mercadorias de importao e de produo

    interna, conforme nos d conta Antonil:

    "... mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, ou-

    tras em mandar catar nos ribeiros do ouro; e outras em ne-

    gociar, vendendo, e comprando o que se ha mister no s

    para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar...

    logo se fizeram estalagens e logo comearam os mercadores

    a mandar s minas o melhor que chega nos navios do reino,

    e de outras partes, assim de mantimentos, como de regalo, e

    de pomposo para se vestirem, alm de mil bugiarias de

    Frana, que l tambm foram dar. E a este respeito, de todas

  • 20

    as partes do Brasil se comeou a enviar o que d a terra,

    com lucro no somente grande mas excessivo. E no haven-

    do nas minas outra moeda mais que ouro em p; o menos

    que se podia, e dava para qualquer coisa, eram oitavas. Da-

    qui se seguiu mandarem-se s Minas Gerais as boiadas do

    Paranagu, e as do Rio das Velhas, as boiadas dos campos

    da Bahia, e tudo o mais que os moradores imaginavam pode-

    ria apetecer-se, de qualquer gnero de coisas naturais, e in-

    dustriais, adventcias, e prprias". (10)

    As condies pareciam, assim, estimulantes ao florescimento das

    oficinas artesanais e da pequena produo domstica, na medida em que a pros-

    peridade do setor exportador abria para o setor de subsistncia a possibilidade de

    uma mercantilizao que transcendia o consumo local, favorecendo a circulao

    interna de mercadorias, notadamente na produo txtil de panos de algodo. (11)

    O aprendizado de um ofcio, o domnio de uma arte manual ou me-

    cnica, a utilizao de tcnicas trazidas pelos colonos e adaptadas s condies

    locais, mescladas s prticas artesanais indgenas e de origem africana, passa-

    ram a ocupar um contingente no desprezvel de trabalhadores, como se pode

    depreender de alguns mapas estatsticos que sero examinados adiante. No

    porque esses ofcios tivessem sido favorecidos por qualquer incentivo da poltica

    metropolitana, mas simplesmente porque constituam, alm da agricultura e do

    pequeno comrcio, um dos raros meios de sobrevivncia de uma populao que,

    de outra forma, tendia a engrossar a fileira dos ociosos que tanto preocupavam os

    governantes, na ameaa que representavam para a "tranquilidade pblica".

    O trabalho artesanal domstico e as pequenas oficinas, assim como

    o comrcio ambulante das ruas, feiras e estradas so citados de passagem pelos

    primeiros historiadores que descrevem as condies de vida dos bairros pobres da

    cidade, da periferia e das zonas rurais. (12) Eram atividades de escassa importn-

    cia econmica, que no atraiam os setores dominantes, ocupados com o empre-

    endimento agroexportador, mas sim as camadas mais pobres da populao - ho-

  • 21

    mens livres e forros, brancos, mulatos, negros e ndios, marginalizados da estrutu-

    ra produtiva dominante, alm de escravos de aluguel ou trabalhando para seus

    senhores.

    A mencionada atrao de imigrantes portugueses e, em menor grau,

    de outras partes da Europa, no sculo XVIII, trouxe uma mudana qualitativa na

    composio da populao branca da colnia que tambm viria a influenciar a ex-

    panso das artes e ofcios. Joel Serro faz uma distino entre o "colonizador" dos

    dois primeiros sculos, que deixava o pas por iniciativa do Estado ou integrado a

    uma empresa ou Companhia e esse novo tipo de imigrante, que se dirigia espon-

    taneamente e apesar das restries e proibies, para tentar a sorte e buscar ri-

    queza no novo mundo. (13) Entre eles vinham inmeros artfices, alm de comer-

    ciantes e agricultores, que acabavam por se integrar com seus ofcios vida pro-

    dutiva, j que a iluso do ouro nem sempre se concretizava para os que no dis-

    punham de grandes capitais.

    A esses contingentes somavam-se os escravos artesos, tambm

    notados com frequncia pelos viajantes e cronistas e cuja presena nas oficinas

    representou uma diferena fundamental nas relaes de trabalho no artesanato

    colonial, em comparao com a forma clssica segundo a qual esse setor se

    constituiu, ou seja, a partir do trabalhador livre e proprietrio dos instrumentos de

    produo. A servio do dono ou trabalhador de aluguel, o escravo que dominava

    um ofcio especializado encontrava a possibilidades de comprar sua liberdade ou,

    pelo menos, fugir ao jugo mais pesado do trabalho na agricultura e nas minas.

    As oscilaes do setor exportador e suas frequentes crises e instabi-

    lidade tambm tiveram efeitos sobre a expanso das atividades artesanais, na

    medida em que provocavam movimentos de migrao interna, seja de uma regio

    para outra, seja da costa para o interior, seja nas frentes mveis da fronteira terri-

    torial. o caso, por exemplo, do desenvolvimento dos ncleos de tecelagem de

    algodo no interior de Minas Gerais, Mato Grosso, Gois e Bahia, gerados pelos

    mineiros da primeira metade do sculo XVIII e do crescimento das manufaturas de

  • 22

    couro e algodo no serto nordestino, nos perodos em que a produo aucareira

    entrava em crise na zona da Mata.

    A queda das exportaes e o empobrecimento dos grandes proprie-

    trios, segundo Celso Furtado, tendiam a favorecer o crescimento do setor artesa-

    nal interno devido diminuio da capacidade de importao. (14)

    A poltica monopolista portuguesa no ficou indiferente a um possvel

    desenvolvimento industrial na colnia. A partir do governo do Marqus de Pombal,

    o esforo industrial do prprio Portugal, tambm ele um pas agrrio, atuou no

    sentido de frear o processo manufatureiro no Brasil para no prejudicar a exporta-

    o de produtos do Reino. A preocupao se justificava, uma vez que, em fins do

    sculo XVIII, nove dcimos das exportaes portuguesas tinham por destino o

    Brasil. (15)

    A manifestao mais evidente dessa poltica o conhecido Alvar de

    1785, que proibia todas as fbricas, manufaturadas e teares de tecido, exceto a

    fabricao de panos de algodo destinados ao enfardamento e empacotamento

    de mercadorias. Fernando Novais chama ateno para o escasso desenvolvimen-

    to que tinham, na realidade, as manufaturas proibidas: sedas, veludos, cetins, ta-

    fets, fustes, linhos, uma vez que as tendncias estruturais da colnia no favo-

    reciam o surgimento de fbricas que pudessem competir com os txteis importa-

    dos.

    O que, sim, havia em muitas capitanias eram manufaturas de fazen-

    das grossas, permitidas e toleradas pelo prprio Alvar. As condies locais pode-

    riam at ter estimulado essa produo de tecidos grosseiros, acrescenta Novais,

    na medida em que, como j foi observado, a prosperidade do setor exportador

    abria para o setor de subsistncia a possibilidade de uma produo que transcen-

    dia o consumo local, favorecendo a circulao interna de mercadorias. (16)

    O arrazoado que serve de base s medidas proibitivas do Alvar de

    1785 deixa patente tambm, a preocupao do governo portugus com o desvio

    de mo-de-obra da agricultura e da minerao para as fbricas e manufaturas e o

    prejuzo que isso poderia representar para seus interesses:

  • 23

    "... evidente que quanto mais multiplicar o nmero de fabri-

    cantes, mais diminuiro o dos cultivadores, e menos braos

    haver que se possam empregar no desenvolvimento e rom-

    pimento de uma grande parte daqueles extensos domnios,

    que ainda se acha inculta e desconhecida. nem as sesmari-

    as, que formam outra considervel parte dos mesmos dom-

    nios podero prosperar, nem florescer por falta do benefcio

    da cultura, no obstante ser esta a essencialssima condio

    que foram dadas aos proprietrios delas. E at nas mesmas

    terras minerais ficar cessado de todo, como j tem conside-

    ravelmente diminudo a extrao do ouro e diamantes, tudo

    procedido da falta de braos que devendo empregar-se nes-

    tes teis e vantajosos trabalhos, ao contrrio, os deixam, e

    abandonam, ocupando-se em outros totalmente diferentes,

    como so os das referidas fbricas e manufaturas. E consis-

    tindo a verdadeira e slida riqueza nos frutos e produo da

    terra as quais somente se conseguem por meio de colonos e

    cultivadores, e no de artistas e fabricantes ...". (17)

    De fato, apesar da expanso demogrfica, havia ainda no Brasil, no

    final do perodo colonial "uma grande e conhecida falta de populao", como reco-

    nhecia o Alvar. Era, pois, inteiramente coerente que o Estado portugus procu-

    rasse concentrar a mo-de-obra nos setores que lhe eram essenciais. Isso signifi-

    ca dizer que as possibilidades de expanso do artesanato e da indstria estavam

    intrinsecamente relacionadas com a questo do trabalho e encontravam nela um

    de seus principais limites.

    Tipos de produo artesanal.

    A economia colonial permite distinguir trs formas bsicas de organi-

    zao do trabalho industrial no Brasil: a utilizao de uma mo-de-obra especiali-

    zada, em nmero reduzido, nas indstrias extrativas e manufatureiras de base

  • 24

    escravista, que necessitavam de tcnicos nas diferentes etapas de fabricao ou

    processamento dos produtos; a pequena produo artesanal domstica e familiar

    no campo, complementar agricultura e criao de gado e de carter sazonal; e

    os agrupamentos de artfices propriamente ditos, dedicados s artes e ofcios, li-

    vres ou organizados, nas vilas e cidades.

    A indstria extrativa e manufatureira, disseminada pela costa e pelo

    interior, estava na dependncia direta das fontes de matria-prima e do tipo de

    explorao econmica predominante em cada regio. Inclua, basicamente, os

    seguintes setores produtivos:

    - fabricao de acar.

    - curtio de couros e peles, fabricao de solas e produo de char-

    que.

    - minerao de ouro e lapidao de diamantes e pedras preciosas.

    - preparao de tabaco em fumos de rolo.

    - extrao de tinturas e corantes da madeira.

    - extrao de sal.

    - extrao de azeite de baleia.

    - fabricao de anil.

    - fabricao de ferro.

    A produo industrial colonial no Brasil pode ser comparada, em ter-

    mos da explorao do trabalho, ao que ocorria nas minas de prata, cobre e mer-

    crio e nas obrajes da Amrica espanhola, onde a mo-de-obra compulsria tra-

    balhava nas manufaturas de l, algodo, linho e seda. (18) preciso lembrar que

    essas formas de produo industrial se formaram em um perodo de grandes

    transformaes, a nvel internacional, na esfera da diviso social do trabalho e da

  • 25

    organizao produtiva, sob cujas determinaes se constituiu a moderna indstria

    fabril.

    As anlises sobre a formao do capitalismo, entre os sculos XVI e

    XVIII, acentuam as mudanas na base tcnica e material como elemento decisivo

    para o predomnio do capital industrial sobre os processos de trabalho. Assim

    que Marx aponta o fato de que as atividades subsidirias, como a fiao e a tece-

    lagem no campo, so as primeiras a serem submetidas manufatura, por implica-

    rem em um tipo de trabalho que requer menor habilidade e treinamento, ao passo

    que necessrio um alto grau de progresso tcnico para orientar os ofcios urba-

    nos em direo indstria fabril. (19)

    Na Idade Mdia, quando a maioria da populao vivia no campo, a

    pequena indstria e as artesanias locais, voltadas para a produo de valores de

    uso, proviam os mercados locais dos artigos necessrios vida cotidiana. O sur-

    gimento de novas formas de organizao do processo manufatureiro e o aumento

    da demanda de produtos pelo mercado externo alteraram a estrutura da indstria

    rural, subordinando-a as determinaes do capital comercial. (20)

    A notvel expanso do comrcio externo de manufaturas txteis se

    d, sobretudo, na Inglaterra. "Provavelmente, nenhum pas dependia tanto da ex-

    portao de txteis durante os sculos quinze, dezesseis e dezessete como a In-

    glaterra... A principal funo do comrcio externo ingls era vender tecidos ingle-

    ses e exportar l inglesa". (21)

    As transformaes do setor agrrio europeu deram origem ao que

    tem sido denominado recentemente de protoindustrializao, para diferencia-la do

    artesanato tradicional da economia camponesa. (22) A protoindstria estabeleceu

    amplas redes de conexo dos trabalhadores rurais europeus, em diferentes est-

    gios de produo, com os mercados regionais e internacionais e sua diferena da

    pequena indstria rural envolvia os seguintes aspectos: aparecimento de uma

    produo destinada ao mercado extra regional e extra nacional e no mais ao

    mercado local; participao crescente da populao rural nessa produo para o

    mercado, geralmente sazonal, que supunha recursos suplementares para a sub-

  • 26

    sistncia e pagamento dos trabalhadores; operaes finais e especializadas da

    produo feitas na cidade; predomnio do capital varivel, salrios principalmente,

    sobre o capital fixo; inter-relao entre protoindustrializao e desenvolvimento da

    agricultura mecanizada.

    Tentando operar com esse conceito em nvel da estrutura colonial,

    seria possvel situar a explorao extrativa e manufatureira no Brasil como uma

    protoindstria no sentido de que seu carter era essencialmente rural e disperso,

    havia a intermediao do capital mercantil, uso extensivo da mo-de-obra e desti-

    nao da produo ao mercado exportador, com produo em larga escala.

    Essa produo diferia bastante do segundo tipo mencionado, ou se-

    ja, a pequena produo artesanal no campo, que se realizava como atividade

    complementar agricultura aucareira, plantao de algodo e criao de ga-

    do.

    A indstria domstica que se desenvolveu nas zonas rurais brasilei-

    ras inclua, por exemplo, os pequenos engenhos de rapadura, mel e aguardente, a

    fabricao da farinha de mandioca, olarias de telhas, tijolos e loua utilitria, a ces-

    taria, a fabricao de objetos de madeira (bancos, mesas, cadeiras, etc.), de metal

    (facas, instrumentos de trabalho e utenslios), de couro (calados, vestimentas,

    mveis) a produo de sabo, velas cordas, a fabricao de redes de dormir, a

    fiao e tecelagem de panos de algodo, enfim a produo de uma variedade de

    artigos necessrios manuteno interna dos engenhos e fazendas e reprodu-

    o da fora de trabalho, tanto escrava como livre.

    A venda do excedente produzido era feita nos mercados e feiras lo-

    cais, da mesma forma que a de gneros alimentcios. Dado o carter local dessa

    produo, sua heterogeneidade, e o fato de que se trata de um tema muito pouco

    estudado at o momento, a indstria rural s pode ser avaliada, por hora, atravs

    da anlise de casos especficos, o que ser feito, no captulo seguinte, em relao

    aos ncleos artesanais gerados no interior da estrutura algodoeiro-pecuria do

    Cear. Somente o acmulo de estudos de caso dessa natureza para as diversas

  • 27

    regies do pas, permitir a obteno de uma viso de conjunto sobre o real de-

    senvolvimento da pequena produo artesanal rural no Brasil colnia.

    Quanto ao terceiro tipo, isto , a categoria dos artfices dedicados s

    artes e ofcios urbanos, trata-se da forma mais desenvolvida de trabalho artesanal

    na colnia. O artesanato urbano aparece de maneira mais diversificada nos gran-

    des centros litorneos como Salvador, Recife, Olinda e Rio de Janeiro e nas cida-

    des mineiras de Vila Rica, Mariana, Sabar e So Joo d'El Rei, sobretudo no s-

    culo XVIII.

    Alguns dos ofcios estavam organizados dentro do sistema das cor-

    poraes, trazidas pela administrao portuguesa e por ela controlada. Obedeci-

    am a uma hierarquia profissional vertical e horizontal que, em parte, representava

    uma transposio da instituio jurdica corporativa e, em parte, reproduzia em

    seu interior as barreiras de classe e de cor da sociedade colonizada.

    Historicamente, a organizao corporativa do artesanato urbano sur-

    giu nas vilas medievais europeias do sculo XI. A repartio dos grupos profissio-

    nais em corporaes de ofcio consuma-se em meados do sculo XII em pases

    como a Frana e a Inglaterra e na regio de Flandres. (23) Do ponto de vista da

    organizao interna, as oficinas tinham um carter domstico, onde produo,

    comercializao e reproduo da fora de trabalho se davam em um mesmo es-

    pao, misto de oficina, loja e lar. Por possurem esse carter de indstria familiar,

    produzindo e vendendo diretamente para os mercados locais, os ofcios urbanos,

    diz Braudel, "podem escapar s normas do mercado", resistir s inovaes do ca-

    pitalismo industrial e sobreviver at fins do sculo XIX e primeiras dcadas do s-

    culo XX. (24)

    Nem todos os ofcios eram controlados pelas agremiaes. Muitos se

    desenvolviam livremente, de forma independente. No Brasil, inmeros ramos fugi-

    ram totalmente organizao corporativa, especialmente aqueles desenvolvidos

    pelos ndios e pelos negros.

    Nas ruas de Salvador, "negros de ganho" misturavam-se a trabalha-

    dores livres, tecendo chapus de palha, fazendo cestos, gaiolas de passarinho,

  • 28

    colares e pulseiras de contas, reunidos nos "cantos" de rua, onde aguardavam

    clientela. (25) No Recife, no Bairro de Santo Antnio e da Boa Vista, habitados

    "por muitos brasileiros brancos natos e mulatos e negros livres..." Tollenare viu em

    cada casa almofadas de fazer renda e as mulheres ocupadas nessa indstria. (26)

    Ainda em Salvador, no bairro de Rio Vermelho, o viajante se surpreende com a

    importncia de certos ofcios livres:

    "... E h um estabelecimento de pesca que ocupa 200 negros

    em uma cordoaria que s fabrica redes e cordas necessrias

    pesca: da se pode julgar a sua importncia... Quem acredi-

    tar que h 100% a ganhar s em levar loua de barro da

    Bahia para o Rio de Janeiro?". (27)

    Os ofcios urbanos.

    Uma das principais fontes de informaes sobre a organizao das

    profisses no Brasil se encontra nos Catlogos da Provncia do Brasil e da Provn-

    cia do Maranho e Gro-Par, de 1549 a 1769 (28), dos jesutas. As profisses

    foram ordenadas pelo Pe. Serafim Leite nos seguintes agrupamentos:

    a) artes e ofcios de construo

    (1) arquitetos e mestres de obra; (2) pedreiros, canteiros e marmorei-

    ros; (3) carpinteiros, entalhadores, embutidores, marceneiros, tornei-

    ros, tanoeiros e serradores; (4) construtores navais; (5) ferreiros, ser-

    ralheiros e fundidores; (6) oleiros.

    b) belas artes

  • 29

    (7) escultores e estaturios; (8) pintores e douradores; (9) cantores,

    msicos, regentes de coro; (10) oleiros, barristas e ceramistas.

    c) manufaturas

    (11) alfaiates e bordadores; (12) sapateiros, artfices de sola e curti-

    dores de pelo; (13) teceles.

    d) ofcios de administrao

    14) administradores de engenho, fazendas, pastores, agricultores e

    procuradores; (15) salinas; (16) pescarias.

    e) ofcios de sade

    (17) enfermeiros e cirurgies; (18) boticrios e farmacuticos.

    f) outros ofcios

    (19) mestres de meninos e diretores de congregaes marianas;

    (20) bibliotecrios, encadernadores, tipgrafos e impressores; (21) pi-

    lotos; (22) barbeiros e cabeleireiros; (23) ofcios domsticos; (24) of-

    cios singulares.

    No h fontes catalogadas nos arquivos coloniais, quer no Brasil,

    quer em Portugal, que permitam um inventrio direto dos ofcios urbanos. Seria

    preciso pesquisar, para cada capitania, as informaes dispersas nos documen-

    tos administrativos, como decretos, leis, alvars e provises que regulamentavam

    as profisses, e que podiam variar de uma capitania para outra. As atas das c-

    maras municipais so as principais fontes locais, pois cabia s cmaras conceder

    licenas para o exerccio da profisso, estabelecer controles e recolher os impos-

    tos e taxaes. Outras fontes so os Regimentos e Compromissos das confrarias

    que congregavam os artfices, os arquivos paroquiais e das ordens religiosas, par-

    ticularmente os dos jesutas, alguns mapas estatsticos contendo arrolamentos

    das profisses dos moradores e os relatos de viajantes e cronistas.

  • 30

    Os arquivos da Companhia de Jesus so particularmente relevantes

    porque os jesutas foram os responsveis pelo ensino das artes e ofcios mo-

    de-obra que trabalhava nas oficinas da Companhia, sob a direo de mestres e

    oficiais, religiosos e leigos, recrutados na Europa.

    De acordo com os Catlogos, havia os chamados "ofcios mecni-

    cos", dos quais faziam parte os pedreiros, carpinteiros, marceneiros, torneiros,

    serradores, construtores navais, ferreiros, oleiros, ceramistas, alfaiates, sapatei-

    ros, teceles, tipgrafos, impressores, entre outros. Em outra categoria estavam

    as "profisses liberais", arquitetos, entalhadores, escultores e pintores. Os "libe-

    rais" estavam isentos das obrigaes legais estabelecidas pelas corporaes (da

    a origem do termo "liberal"), mas trabalhavam em estreita colaborao com os

    mecnicos, ou mesmo exerciam simultaneamente uma profisso "liberal" como a

    escultura e o entalhe e outra "mecnica" como a carpintaria e a marcenaria, por

    exemplo.

    As atas das cmaras municipais podem complementar o inventrio

    dos ofcios existentes. As da cidade de Salvador, por exemplo, registram uma s-

    rie de ofcios no mencionados nos catlogos jesutas, como os de cerieiro, latoei-

    ro, caldeireiro, ourives, armeiro, polieiro, anzoleiro e padeiro. (29) Em algumas

    cidades, pequenos comerciantes, marchantes de carne e vendeiros de porta tam-

    bm estavam includos entre os mecnicos, assim como os servios domsticos,

    os barbeiros e cabeleireiros, o que d margem a uma srie de dificuldades na de-

    limitao da categoria artesanal propriamente dita.

    De uma cidade para outra a distribuio ocupacional podia variar

    bastante, conforme o tipo de produo dominante na regio. Em So Paulo, a te-

    celagem foi o principal ofcio dos sculos XVI e XVII, entrando em declnio com a

    crescente importao de tecidos estrangeiros no sculo XVIII. (30) O nmero de

    ferreiros, serralheiros e fundidores em Vila Rica era enorme, enquanto em Salva-

    dor esses ofcios eram quase inexistentes. Nas inmeras vilas que floresceram

    com a minerao, Mariana, Sabar, So Joo d'El Rei, a utilizao de instrumen-

  • 31

    tos e mquinas relativamente complexas pode ter sido um fator de contribuio

    para o desenvolvimento dos ofcios. (31)

    Certamente, a existncia de matrias-primas era de fundamental im-

    portncia nesse contexto, como se observa na evoluo do mobilirio baiano, per-

    nambucano e do barroco mineiro, beneficiados pela abundncia de madeiras no-

    bres, (32) e na "civilizao do couro" das vilas sertanejas da pecuria extensiva,

    de que fala Capistrano de Abreu. (33)

    Como j foi mencionado, os mercados ampliaram-se no sculo XVIII,

    houve grande expanso demogrfica e a multiplicao das vilas e cidades. A Ba-

    hia, zona de urbanizao mais antiga e ampla, contava com o maior nmero de

    vilas do pas. Por volta de 1730, o Brasil tinha apenas 67 ncleos urbanos na ca-

    tegoria de vila, 30 dos quais localizados na Bahia. (34) Salvador pode, sem dvi-

    da, ser considerado o maior centro de artes e ofcios do perodo colonial, pelo me-

    nos at a transferncia da sede do poder poltico-administrativo para o Rio de Ja-

    neiro em 1763, e l que vamos encontrar um certo florescimento e prosperidade

    da camada de artfices urbanos.

    As artes e ofcios prosperaram tambm segundo o grau de iniciativa

    de dois agentes: o Estado e a Igreja, o governo portugus e a Companhia de Je-

    sus. Ambos trabalharam em estreita colaborao, nos sculos XVI e XVII, no re-

    crutamento e formao da mo-de-obra especializada, necessria para a constru-

    o, preservao e defesa do patrimnio material, trazendo mestres europeus,

    quando preciso, religiosos e leigos, para ensinar, dirigir e controlar a mo-de-obra

    local, recrutada entre a populao negra e ndia.

    Alguns ofcios da construo civil, como os de pedreiro, carpinteiro,

    marceneiro, telheiro, expandiram-se em estreita relao com a criao dos centros

    de administrao ao longo da costa. A folha de pagamento das pessoas que vie-

    ram com Tom de Sousa, na fundao da cidade da Bahia, em 1549, inclua 70

    artfices, (alm de funcionrios civis e militares, homens de armas, padres, senho-

    res de engenho, marinheiros e trabalhadores). A maioria dos artesos vinha para

    trabalhar na construo dos edifcios pblicos, casa de audincia, cmara e ca-

  • 32

    deia, erigir muros e fortificaes, pontes, aquedutos, estradas e construir embar-

    caes.

    Artfices vindos na fundao da cidade da Bahia, 1549.

    Pedreiro 20

    Carpinteiros da Ribeira 9

    Calafate 6

    Serrador 6

    Telheiro 6

    Carpinteiro 5

    Carvoeiro 4

    Cavouqueiro 3

    Fabricante de cal 2

    Ferreiro 2

    Serralheiro 2

    Carapina 1

    Caldeireiro 1

    Tanoeiro 1

    Ferrador 1

    Taipeiro 1

    Total 70

    Fonte: Relao das pessoas que vieram na funda-

    o da cidade da Bahia... A.N.T.T., Manuscritos do

    Brasil, Avulsos, 3.

    Em todo o Brasil, o desenvolvimento das cidades exigiu a presena

    de um contingente treinado de artfices na construo de obras pblicas. Durante

    a ocupao holandesa Recife registrou uma expanso do mesmo tipo de ofcios,

    tendo o governo de Nassau estimulado a formao de mo-de-obra local para

    servir nos estaleiros e ferrarias. Favoreceu a construo de olarias, uma vez que a

    demanda era to grande que, inicialmente, os tijolos tinham que ser trazidos no

  • 33

    lastro dos navios que vinham da Holanda. (35) O nmero de pedreiros, carpintei-

    ros e serralheiros em Pernambuco era insuficiente ainda no sculo XVIII. Em

    1729, por exemplo, o governador da capitania pedia ao rei de Portugal que envi-

    asse oficiais para atender s necessidades de reparo das fortificaes e para a

    construo de obras particulares. (36) No Rio de Janeiro, a demanda maior se

    verificou com a transferncia da sede do vice-reinado, em 1763, e depois com a

    vinda da corte portuguesa, em 1808.

    A populao quase triplicara entre fins do sculo XVIII e 1821, pas-

    sando de 40.000 para 110.000 habitantes. O movimento de exportao de ouro

    pelo porto do Rio de Janeiro j havia provocado um grande aumento das funes

    urbanas e da densidade populacional da cidade. O crescimento material se acele-

    rou com as mudanas na ordem poltico-administrativa, de tal sorte que, por volta

    da Independncia, a nova capital havia tomado a dianteira a Salvador.

    As artes e ofcios no se expandem apenas nos grandes centros do

    litoral. No sculo XVIII eles se multiplicam tambm em Vila Rica e nas inmeras

    vilas que floresceram com a minerao - Mariana, Sabar, So Joo d'El Rei, on-

    de se edifica o maior patrimnio artstico e arquitetnico setecentista no Brasil,

    com a construo das inmeras obras civis e religiosas do barroco mineiro. No

    setor da construo, as relaes de arremetao de obras do Arquivo Colonial de

    Ouro Preto registra um grande nmero de carpinteiros e pedreiros trabalhando na

    edificao de prdios, pontes, caladas, chafarizes, etc. alm de ofcios correlatos,

    como oleiros, telheiros, latoeiros e caldeireiros. (37) A formao de mestres e ofi-

    ciais chegou a ultrapassar o espao das oficinas e da aprendizagem prtica, para

    alcanar o nvel do ensino terico, ministrado nas Aulas de arquitetura e desenho.

    (38)

    Quanto atuao da Igreja, os jesutas tiveram grande ascendncia

    sobre a coroa portuguesa, at sua expulso do Reino e seus domnios pelo Mar-

    qus de Pombal. Monopolizando o ensino do Colgio Real das Artes e dos cha-

    mados "estudos menores" em Portugal desde o sculo XVI, (39) a Companhia de

    Jesus estabeleceu verdadeiros territrios livres e intocveis na colnia. Foram os

  • 34

    principais beneficirios do controle da mo-de-obra indgena que administravam

    nos aldeamentos espalhados por todo o pas e exerceram a tutela do trabalho ar-

    tesanal, atravs da organizao das confrarias e da criao de oficinas de trabalho

    nos Colgios, Igrejas, fazendas e hospitais da prpria Companhia. (40)

    As oficinas de trabalho no se limitavam apenas ao suprimento da

    Companhia, mas tambm a aumentar suas rendas. No Colgio de So Paulo, em

    1736, o maior rendimento provinha das trs oficinas, de fundio, ferraria e farm-

    cia. Nas duas primeiras fabricavam-se caldeiras de cobre, estanho e lato, utens-

    lios, arados, grades e fornos. (41) O raio de alcance do trabalho organizado pelos

    jesutas era bem mais extenso do que o do prprio governo, pois alm de col-

    gios, residncias, fazendas e engenhos, contavam com os aldeamentos j menci-

    onados, numerosssimos em todo o territrio, do Amazonas ao Rio da Prata, da

    costa Atlntica ao Mato Grosso.

    De acordo com os Catlogos do Brasil vieram 648 oficiais, padres,

    portugueses e de outras partes da Europa, para trabalhar na Companhia, sendo

    210 artfices especializados.

    Padres Jesutas nas Artes e Ofcios Coloniais, 1549-1760.

    Categorias Nmero de padres

    Artes e ofcios de construo

    - arquiteto, mestres de obra 21

    - pedreiro, canteiro, marmoreiro 16

    - carpinteiro, entalhadores, embutidor,

    marceneiro, tanoeiro, torneiro,

    serrador.

    59

    - construtor naval. 5

    - ferreiro, serralheiro, fundidor. 3

  • 35

    Belas Artes

    - escultor, estaturio. 11

    - pintor e dourador. 25

    - cantor, msico, regente de coro. 12

    - oleiro, barrista, ceramista. 9

    Manufaturas

    - alfaiate, bordador. 27

    - sapateiro, curtidor de pele. 20

    Ofcios de administrao

    - administrador de engenho e fazenda,

    pastor, agricultor, procurador.

    120

    - salineiro. 6

    - pescarias 7

    Ofcios da sade

    - enfermeiro, cirurgio. 109

    - boticrio, farmacutico. 45

    Outros ofcios

    - mestre de meninos, diretor de con-

    gregao mariana.

    29

    - bibliotecrio, encadernador, tipgrafo,

    impressor.

    9

    - piloto. 11

    - barbeiro, cabeleireiro. 5

    - ofcios domsticos: despenseiro, co-

    zinheiro, porteiro, roupeiro, sacristo,

    soto-ministro.

    84

  • 36

    - artes e ofcios singulares: recoveiro,

    calgrafo, mestre de aritmtica, ge-

    grafo, ourives de prata, qumico, fa-

    bricante de cal, cereeiro e escultor,

    diretor do relgio, fabricante de pa-

    pel.

    15

    Total 648

    Fonte: Leite, Serafim. Artes e ofcios dos Jesutas no Brasil,

    1549-1760. Lisboa, Livros de Portugal, 1950.

    Setores importantes de atuao da Companhia foram as oficinas de

    marcenaria e carpintaria, metalurgia, couro, cermica e tecelagem. Marceneiros e

    carpinteiros trabalhavam ao lado de escultores e entalhadores, pois alm das fron-

    teiras tnues que separavam os "liberais" dos "mecnicos", a pobreza do meio, a

    escassez de recursos e de mo-de-obra obrigava todos a subsistirem e trabalha-

    rem em conjunto. Era grande o nmero de ferrarias, onde se fabricava principal-

    mente instrumentos de trabalho de alta demanda, como machados, foices, enxa-

    das, facas, anzis, pregos, ferramentas, chaves, etc.

    Os padres tinham seus prprios curtumes, fabricando solas, arreios,

    selas e outros apetrechos de montaria, alm de cadeiras e mveis de couro.

    Construram tambm olarias para a fabricao de tijolos, telhas, ladrilhos, loua

    utilitria e peas de cermica religiosa e decorativa. Alm da fiao e tecelagem

    de panos de algodo que empregavam grande nmero de teceles, havia nume-

    rosos alfaiates, bordadores e costureiras trabalhando para a Companhia que, com

    semelhante estrutura, era capaz de garantir um funcionamento quase que total-

    mente autrquico de seu patrimnio. (42)

    Alm de padres e irmos leigos, um nmero elevado de mestres in-

    dependentes atuou a servio dos jesutas, notadamente na execuo de obras

    religiosas - altares, retbulos, imagens sacras, talhas, crucifixos, portais e facha-

    das, mveis, oratrios. Apesar das inmeras influncias (italiana, espanhola, fran-

  • 37

    cesa) a arte da madeira veio para o Brasil atravs de Portugal e quase sempre da

    Igreja, vindo a se criar aqui escolas regionais caractersticas, como o caso do

    mobilirio baiano e pernambucano dos sculos XVI e XVII e do barroco mineiro do

    sculo XVIII. (43) Com o desenvolvimento das oficinas que trabalhavam com ma-

    deira, chegou-se a estabelecer uma serra hidrulica no Colgio da Bahia, para

    abastecer o colgio e obter rendimentos em dinheiro, atravs da serraria e corte

    de madeira para terceiros.

    A Companhia possua tambm um estaleiro em Salvador, dirigido por

    cinco irmos construtores navais, (trs portugueses, um francs e um italiano) e

    onde trabalhavam um grande nmero de carpinteiros da ribeira.

    Arquitetos, mestres de obra, escultores, pintores, douradores, mar-

    ceneiros e carpinteiros, tanto de origem portuguesa como nascidos no pas, es-

    tenderam sua atuao para alm do mbito das artes luso-brasileiras. Na regio

    do Rio da Prata, sobretudo em Buenos Aires e Montevidu, muitos artistas e arte-

    sos do Brasil e de Portugal trabalharam em obras de arquitetura, escultura, ouri-

    vesaria, marcenaria e carpintaria. Sua presena, segundo um estudioso argentino,

    "foi to importante que modificou a fisionomia de nossas artes, criando uma escola

    regional na qual os elementos espanhis e lusitanos se fundiram em harmnica

    conjuno, at lograr caractersticas prprias, modestas, mas originais, dentro do

    vasto panorama da arte hispano-americana dos sculos XVII e XVIII". (44)

    Outros elementos para uma tipologia dos ofcios urbanos podem ser

    encontrados nos Censos do sculo XVIII, que oferecem uma ideia, ainda que in-

    completa, da demografia profissional da poca, da diversidade de ocupaes, da

    relao entre profisso e cor, renda, status social, diviso sexual e composio

    familiar.

  • 38

    O censo da Freguesia de So Pedro da Cidade da Bahia.

    O mapa dos moradores da Freguesia de So Pedro, de Salvador, re-

    alizado em 1775, (45) embora se refira apenas a uma parquia da cidade e no

    tenha, portanto, validade estatstica que permita consider-lo representativo de

    toda salvador, bastante interessante pela riqueza de detalhes que apresenta.

    O mapa indica um total de 24.201 habitantes para a cidade de Sal-

    vador, e de 2.689 habitantes para a freguesia de So Pedro, sendo 1.626 homens

    livres e 1.063 escravos. A populao livre compreendia os pais de famlia, suas

    mulheres e filhos. O mapa discrimina as ocupaes apenas dos indivduos livres,

    chefes de famlia e alguns agregados, no total, 604 moradores, e no arrola as

    ocupaes dos escravos.

    Como o levantamento desses dados tinha por principal objetivo o

    controle policial dos desocupados, conforme j foi comentado, explica-se que o

    mapa tivesse a preocupao de arrolar apenas o trabalho dos homens livres, dei-

    xando de lado o trabalho escravo. O organizador do mapa deixa claro, na introdu-

    o, que interessava a identificao dos ociosos, sua vigilncia e coero:

    "dos vadios, vagabundos e ociosos, de todos aqueles que

    no perturbam por ocupados, e entretidos o sossego pblico,

    e daqueles outros, que so capazes e que esto dispostos

    para o perturbar, os que sendo dignos de coero pelo me-

    nos enquanto ela no chega, devem ser vigiados, e tidos por

    suspeitosos para tudo quanto ha mo, e prejudicial tranqui-

    lidade dos bons por onde costuma entrar a prevaricao, e o

    pssimo exemplo".

    Os moradores distribuam-se por 83 profisses. Agregando-se os

    dados por tipo de profisso, verifica-se que o grupo mais numeroso era o das ati-

    vidades manuais e mecnicas, vindo a seguir os proprietrios, os militares, as pro-

    fisses liberais, os comerciantes e os funcionrios da administrao pblica. Havia

    ainda um nmero destacado de "ganhadeiras", mulheres pretas, livres, exercendo

  • 39

    atividades semelhantes a dos "negros de ganho" escravos, ou seja, o comrcio

    ambulante e pequenos servios dirios, alm de pescadores, marinheiros e outros

    trabalhadores, como criados, jardineiros e empregados no servio domstico.

    Distribuio profissional dos homens livres de So

    Pedro da Bahia.

    Categorias Moradores

    Profisses manuais e me-

    cnicas

    261

    Proprietrios 51

    Profisses comerciais 44

    Profisses liberais 48

    Administrao pblica 42

    Militares 71

    Ganhadeiras 31

    Pescadores e marinheiros 27

    Outros 29

    Total 604

    Apesar de se tratar de uma nica freguesia, pode-se inferir que a vi-

    da profissional em Salvador era bastante diversificada, rica em atividades de todo

    tipo, sendo a predominncia do setor artesanal um indcio dessa vitalidade.

    As profisses manuais e mecnicas distribuam-se em 17 ofcios: 18

    alfaiates, 1 anzoleiro, 4 calafates, 15 carpinteiros, 1 cerieiro, 144 costureiras, 7

    entalhadores, 1 ferrador, 1 imaginrio, 1 lapidrio, 1 latoeiro, 2 marceneiros, 4 pa-

    deiros, 12 pedreiros, 7 pintores, 9 rendeiras e 33 sapateiros. As profisses liberais

    incluam as de bacharel, boticrio, capelo, cirurgio, clrigo, cnego, desembar-

    gador, mdico, meirinho, mestre-escola, msico, organista e presidente do coro.

    As comerciais, as de caixeiro, mercador, negociante, traficante de escravos, ven-

    dedor e vendeiro. As da administrao pblica, as de aferidor, agente de Relao,

  • 40

    chanceler, coadjutor, cobrador, dizimeiro, escrevente, escrivo, feitor do contrato,

    guarda da alfndega, intendente do ouro, oficiais da inspeo e da intendncia,

    porteiro da Cmara, procurador e requerente. As militares, os postos de alferes,

    artilheiro, cabo, capito, coronel, major, sargento, soldado, tambor e tenente.

    O arrolamento das ocupaes dos homens livres foi feito segundo a

    cor dos indivduos (brancos, pardos, pretos e cabras) e a posio de chefe de fa-

    mlia ou agregado. O mapa discrimina, ainda, o nmero de escravos em cada do-

    miclio, o que serve de indicador da classe social, se considerarmos que a renda e

    o status eram mantidos, em grande parte, em termos do nmero de escravos pos-

    sudos.

    Os indivduos de maiores posses, donos de dez ou mais escravos,

    eram comerciantes, altos funcionrios civis e militares, alguns proprietrios, alguns

    liberais (um cirurgio e um msico), um cnego. Dois artfices, um carpinteiro e um

    cerieiro (fabricante de cera, velas e archotes), estavam dentro desse grupo, que

    representava 3% dos fogos da freguesia. Todos eram brancos, com exceo de

    trs, pardos, entre os quais se destacava a parda Maria Nunes. Essa mulher, vi-

    va e chefe de famlia, era padeira, me de quatro filhos e proprietria de 24 escra-

    vos, que com seu ofcio rompia a barreira da cor e do sexo, incluindo-se no grupo

    de maior fortuna de S. Pedro da Bahia.

    Os que possuam entre um e nove escravos representavam cerca de

    30% dos fogos. Estrato de menor fortuna, mas ainda assim de boa posio social,

    a maioria tambm era constituda de brancos. O leque de profisses mais amplo

    nesse grupo, incluindo comerciantes, proprietrios, membros da administrao

    pblica, militares, religiosos, mdicos, bem como os ofcios de pedreiro, carpintei-

    ro, entalhador, costureira, rendeira, calafate, pintor, alfaiate, sapateiro, ferrador e

    selador. O nmero de pardos e pretos era relativamente alto, a maioria dedicada

    s artes e ofcios (pintor, carpinteiro, alfaiate, costureira, calafate, sapateiro, padei-

    ro) alm de um mestre escola, um capito, um proprietrio, um vaqueiro e um cor-

    tador de carne. Inesperado nesse grupo o grande nmero de "ganhadeiras" pre-

  • 41

    tas, donas de vrios escravos, como Quitria Nogueira, de 50 anos, solteira, me

    de cinco filhos e proprietria de seis escravos.

    Quanto ao estrato mais pobre, no possuidor de escravos, embora a

    maioria ainda fosse constituda de brancos era numeroso o contingente de negros

    e, em menor grau, de pardos.

    A barreira da cor estava presente em algumas profisses de maneira

    bastante ntida. O pequeno comrcio, por exemplo, era exercido sobretudo por

    brancos, negociantes, vendeiros, caixeiros, escreventes. O mesmo sucedia com

    as profisses liberais - bacharis, clrigos, mestre escolas, msicos, pilotos. Os

    militares - tenentes, sargentos, soldados, cabos, capites tambm eram brancos

    em sua maioria, embora houvesse muitos cabos e soldados negros, esses ltimos

    do batalho Henrique Dias. Outras profisses eram marcadamente exercidas por

    pardos e negros, especialmente mulheres livres empregadas no servio domstico

    - engomadeiras, cozinheiras, lavadeiras e doceiras, alm das numerosas "ganha-

    deiras" mais pobres, do comrcio ambulante. Quanto a estas ltimas, importante

    destacar que se tratava de ocupaes reservada exclusivamente s mulheres ne-

    gras, no aparecendo nenhuma parda ou branca nas estatsticas.

    Um dado importante sobre a mo-de-obra livre feminina, branca e

    pobre, a presena das costureiras, que constituam a categoria mais numerosa

    no rol das profisses artesanais. Diante da rigidez da diviso sexual do trabalho,

    ser costureira era uma das poucas alternativas de sobrevivncia para o grande

    nmero de mulheres obrigadas a ganhar a vida - solteiras, vivas ou mesmo ca-

    sadas cujos maridos estavam ausentes, e que apareciam no Mapa como "chefes

    de famlia" ou agregadas. significativo a esse respeito o fato de haver mais mu-

    lheres brancas na categoria de "pobres", isto , sem ocupao, do que pardas ou

    negras.

    A condio da mo-de-obra feminina na Bahia em fins do sculo

    XVIII parece coincidir em vrios aspectos com aquela encontrada por Odila Silva

    Dias em So Paulo no sculo XIX, (46) especialmente no que se refere luta pela

  • 42

    sobrevivncia das mulheres ss, sem escravos, de renda mais baixa, que viviam

    de atividades do artesanato caseiro, muitas delas tecels e costureiras.

    A se julgar pelo censo de S. Pedro, as atividades artesanais repre-

    sentavam uma das poucas possibilidades de trabalho para ex-escravos e mestios

    livres. Tomando-se apenas o segmento das artes e ofcios e analisando-o inter-

    namente verifica-se que, apesar da predominncia de brancos, era grande a pre-

    sena de pardos e negros artesos. No ofcio de alfaiate, por exemplo, o nmero

    de pardos e negros era superior ao de brancos. Carpinteiros, pedreiros, pintores e

    sapateiros no brancos tambm eram numerosos. O ofcio de padeiro era exerci-

    do apenas por pardos e negros. Em contrapartida, nos ofcios que requeriam mai-

    or especializao, como o de cerieiro, entalhador, lapidrio e marceneiro, era difcil

    o acesso dos negros e predominavam os artesos brancos.

    Artes e ofcios dos homens livres em So Pedro da Bahia, segundo a cor.

    Brancos Pardos Pretos Cabras Indeterm. Total

    Alfaiate 3 8 7 18

    Anzoleiro 1 1

    Calafate 2 2 4

    Carpintei-

    ro

    9 4 2 15

    Cerieiro 1 1

    Costureira 92 33 12 1 6 144

    Entalhador 5 2 7

    Ferrador 1 1

    Imaginrio 1 1

    Lapidrio 1 1

    Latoeiro 1 1

    Marcenei-

    ro

    1 1 2

    Padeiro 2 2 4

  • 43

    Pedreiro 5 1 6 12

    Pintor 3 4 7

    Rendeira 6 3 9

    Sapateiro 16 5 9 1 2 33

    Total 147 62 42 2 8 261

    Quanto posse de escravos, verifica-se que cerca de 70% dos artfi-

    ces no possua nenhum escravo. Entre os que possuam escravos e que perten-

    ciam, portanto, a estratos sociais mais altos, estavam os calafates, os carpinteiros,

    os entalhadores e os pintores, ou seja, as profisses consideradas mais "nobres".

    A maior parte dos artfices eram chefes de famlia. Apenas um pequeno nmero

    vivia agregado a outro domiclio, sobretudo alfaiates e sapateiros mais pobres.

    Novamente chama ateno a posio do numeroso grupo das costu-

    reiras. Uma grande parte dessas mulheres, chefes de famlia, possua escravos e,

    curiosamente, mesmo entre as que moravam como agregadas em domiclios que

    no eram seus, existiam aquelas que tinham seus prprios escravos. V-se, por-

    tanto, que a profisso perpassava todas as camadas sociais, embora fosse uma

    ocupao frequente de mulheres pobres.

    Artes e ofcios de chefes de famlia e agregados, em So Pedro

    da Bahia, segundo a posse de escravos.

    Chefe de Famlia Agregado

    com es-

    cravo

    sem es-

    cravo

    com es-

    cravo

    sem es-

    cravo

    Alfaiate 2 11 5

    Anzoleiro 1

    Calafate 4

  • 44

    Carpinteiro 9 4 1 1

    Cerieiro 1

    Costureira 25 55 5 59

    Entalhador 4 3

    Ferrador 1

    Imaginrio 1

    Lapidrio 1

    Latoeiro 1

    Marceneiro 1 1

    Padeiro 2 2

    Pedreiro 4 7 1

    Pintor 4 2 1

    Rendeira 6 3

    Sapateiro 5 18 10

    Total 62 113 6 80

    O Censo de So Pedro da Bahia de 1775, apesar de suas limitaes,

    uma fonte importante para a rediscusso de algumas questes, na medida em

    que mostra a diversificao profissional dos homens livres e as diferenas sociais

    dentro do estrato artesanal, sugerindo, portanto, a existncia de um quadro de

    relaes de trabalho bem mais complexo do que tem sido suposto.

    Em particular, sugere que preciso reexaminar a questo de que o

    trabalho escravo teria desvirtuado e corrompido irremediavelmente as relaes de

    trabalho no artesanato, na medida em que essa atividade deveria ser caracteriza-

    da pelo livre exerccio da profisso, por parte de artesos independentes e pro-

    prietrios dos meios da produo.

    Uma vez que a presena de escravos representou um fator funda-

    mental de diferenciao no artesanato colonial, torna-se necessrio verificar mais

    de perto como se deu sua insero, sem o que no se pode tentar obter um qua-

    dro representativo das artes e ofcios urbanos em sua formao.

  • 45

    As relaes de trabalho e a presena de escravos e homens li-

    vres nas artes e ofcios urbanos.

    O arteso urbano, tal como aparece caracterizado no sistema euro-

    peu medieval e pr-industrial , antes de mais nada, um trabalhador livre. Os mes-

    tres constituem a camada dominante, da qual dependem aprendizes e jornaleiros,

    as duas categorias subordinadas. So os donos da oficina, proprietrios da mat-

    ria-prima e dos instrumentos de trabalho. O produto fabricado lhes pertence, assim

    como o lucro obtido. Os aprendizes, dois ou trs por oficina, iniciam-se no ofcio

    sob orientao do mestre, uma vez que ningum pode exercer a profisso sem

    estar habilitado. Os jornaleiros, tambm em nmero limitado, so assalariados

    com diferentes nveis de habilitao, desde o simples auxiliar de tarefas braais

    at o oficial que passou por toda a aprendizagem, mas no alcanou ainda o es-

    tgio de mestre. O capital de um mestre arteso, tpico "empresrio independente"

    como o qualifica Henri Pirenne (47), no inclui mais que a casa ou oficina e as fer-

    ramentas necessrias sua profisso. A venda limitada ao mercado local e suas

    exigncias de demanda. A disciplina no trabalho rgida - repetir uma tarefa da

    mesma maneira, sem inovaes, serve ao propsito de assegurar a qualidade do

    produto fabricado, proteger o consumidor e, sobretudo, dar segurana ao prprio

    produtor, garantindo a igualdade de todos mediante a estrita subordinao de ca-

    da um aos regulamentos profissionais (48).

    Procurar demonstrar a inviabilidade da reproduo de um modelo de

    tal rigidez no sistema colonial brasileiro de base escravista , a nosso ver, desne-

    cessrio. Evidentemente, as condies especficas das relaes de trabalho es-

    cravo e livre interferiram na produo artesanal, configurando sua evoluo de

    forma diversa do processo clssico europeu.

    O emprego de escravos nas oficinas artesanais nada tinha, em si, de

    excepcional. Na Idade Mdia eles foram usados, no s nos ofcios como no tra-

    balho domstico, registrando-se inclusive a prtica do aluguel de escravos arte-

  • 46

    sos nas cidades do mediterrneo. Em Gnova, Siclia e Npoles os escravos

    ainda eram encontrados nas oficinas nos sculos XIV e XV. Em Barcelona e em

    Lisboa era limitado por lei o nmero de escravos que cada mestre podia ter e cer-

    tos ofcios eram proibidos aos negros. (49)

    Entretanto, no Brasil, a venda e aluguel do escravo arteso tornou-se

    rapidamente atividade rendosa, largamente praticada. O arteso independente,

    vindo do Reino para tentar a sorte na colnia, transformou-se com frequncia no

    arteso dono de escravos. Um mestre marceneiro, pedreiro, carpinteiro ou ferreiro,

    como os viu Tollenare em Olinda e Recife, que ao invs de assalariar operrios

    livres comprava negros para instru-los em um ofcio. Muitos desses escravos, ao

    comprar sua alforria custa do ofcio exercido, passavam por sua vez a adquirir

    novos escravos para substitu-los na oficina.

    V-se, assim, que a prtica de utilizar escravos extrapola o nvel das

    relaes internas de trabalho na oficina, para inserir-se no movimento geral do

    sistema, onde a circulao da mercadoria-escravo-especializado era fonte gerado-

    ra de bons lucros. V-se, mais, que a escravido no constituiu, necessariamente,

    um impedimento expanso das atividades manufatureiras. Pelo contrrio, ela foi,

    em muitos casos, a nica forma de viabiliz-la, dada a extrema escassez de mo-

    de-obra livre especializada.

    O artesanato e as manufaturas coloniais lanaram mo no s da

    escravido negra, mas de outra forma de trabalho compulsrio que nada tinha em

    comum com o trabalho dos artesos europeus - a mo-de-obra indgena.

    Os ndios foram empregados, sob formas incompletas de escravido,

    tanto pelos colonos, como pelo Estado e pela Igreja, sobretudo os jesutas. A res-

    peito do trabalho dos ndios deve-se mencionar que o controle da mo-de-obra

    indgena foi objeto de complicado jogo de interesses entre a Igreja e o Estado e

    fonte permanente de litgios e conflitos entre estes e os colonos brancos. As for-

    mas de trabalho livre e compulsrio e sua regulamentao, fortemente influencia-

    da pelas doutrinas dos telogos contrrios a escravido dos ndios, demonstram a

  • 47

    ao da Igreja, at meados do sculo XVIII, na estrutura institucional (Leis, Bulas

    e Tratados) (50).

    Os jesutas foram os principais beneficirios dessa legislao, exer-

    cendo o governo temporal dos ndios do Brasil nos aldeamentos sob "administra-

    o" da Companhia de Jesus. A populao indgena era administrada de forma

    anloga ao sistema de encomienda da colonizao espanhola, ficando sob a tute-

    la dos padres, a quem deviam tributar com trabalho a proteo recebida. (51) A

    ruptura dessa condio vai se dar com a expulso da Companhia em 1759, logo

    aps a extino da escravido dos ndios em todas as suas formas, por lei de

    1758, quando ento a populao indgena colocada na mesma situao do res-

    tante da populao pobre e destituda.

    No se pode afirmar, entretanto, que as artes e ofcios urbanos te-

    nham estado totalmente submetidos sociedade escravista dominante, nem que a

    presena do escravo e do ndio nas oficinas tenha significado um total aviltamento

    das relaes de trabalho.

    Em primeiro lugar, preciso descartar a viso simplificadora que ge-

    neraliza o argumento da "indignidade do trabalho manual em uma sociedade de

    escravos". O que sim existiu, foi uma hierarquia bastante definida dentro dos di-

    versos ofcios.

    A condio social do artfice no era homognea, antes pelo contr-

    rio, havia uma pluralidade de vnculos e uma insero vertical no trabalho. Fatores

    relacionados, sem dvida, com a condio de escravo ou homem livre, mas no

    exclusivamente com ela. O prprio contexto histrico de evoluo dos ofcios em

    Portugal influenciou as diferenas de posio do artfice na colnia.

    Alguns ofcios eram considerados "mais dignos", prprios dos bran-

    cos, se situavam prximos s profisses liberais. Caso dos pedreiros e mestres de

    obra, cujas funes se confundiam com as dos engenheiros e arquitetos. Outros,

    "menos dignos", estavam cercados de desprestgio social, eram relegados aos

    escravos e aos homens mais pobres. Caso dos teceles e dos ferreiros, ofcios

    desprezados na prpria sociedade medieval portuguesa.

  • 48

    Vrios ofcios que desfrutavam de considerao e prestgio eram

    terminantemente proibidos de serem exercidos por no brancos. Na ourivesaria,

    por exemplo, os negros, mulatos e ndios, mesmo forros, s eram admitidos nas

    oficinas para tanger os foles das forjas e martelar o ouro e a prata, sendo legal-

    mente proibidos de aprender o ofcio, especialmente na execuo dos objetos de

    culto religioso. (52) Tambm os marceneiros, torneiros e carpinteiros brancos, que

    ocupavam o topo da hierarquia artesanal, tentavam levantar barreiras legais para

    impedir o acesso profisso por parte de negros e mulatos escravos.

    Para garantir seus privilgios, os mestres admitiam, no mximo, a

    presena de mulatos forros como aprendizes, conforme o Regimento dos Pedrei-

    ros e Carpinteiros de Salvador da Bandeira de So Jos, de 1780, que condenava

    em oito mil ris de multa:

    "qualquer mestre que tomar aprendiz que seja negro; nem

    ainda mulato cativo; pois s ensinar brancos, ou mulatos

    forros". (53)

    A defesa dos privilgios dos mestres brancos, garantida juridicamen-

    te pelas corporaes, esbarrava, na prtica, nas dificuldades de controle e vigiln-

    cia e na presso exercida pelos no brancos em certos ofcios. Negros, ndios e

    mestios, fossem escravos ou livres, que lutavam por espaos dentro da rgida

    sociedade escravocrata, aproveitavam-se das brechas disponveis para tentar as-

    cender socialmente. O caso dos ourives particularmente ilustrativo nesse senti-

    do, porque grande parte das proibies visava impedir o desvio do ouro e da prata

    largamente praticado. o que se depreende das queixas contra mulatos e pretos

    de Olinda e Recife, encaminhados metrpole em 1732:

    "Do excessivo nmero de oficiais ourives que h na cidade

    de Olinda, neste Recife e mais lugares da Capitania, sendo

    os mais deles mulatos e negros contra uma Lei Extravagante

    de Vossa Majestade e o que pior ainda sendo escravos:

    resultam gravssimos danos Repblica, a saber, aparecem

  • 49

    moedas de prata de uma e duas patacas falsas, cuja falsida-

    de se reconhece somente com o reparo e observao de que

    so fundidas em forma de ourives distinguindo-as das verda-

    deiras com no serem to lisas, e assim passam muitas de

    que algumas me tem vindo mo... Acontecem grandes fur-

    tos de ouro e prata e se no podem descobrir as peas ainda

    que se manifestem os ladres; porque h semelhantes ouri-

    ves que sendo os mesmos que furtam, ou seus scios e to-

    dos da mesma qualidade, do nova forma a coisas furtadas e

    desse modo se extinguem os sinais pelos quais seriam co-

    nhecidas de sue donos. Aos quais danos pblicos justo que

    V. Majestade faa ateno, aos danos e ao remdio conve-

    niente de se taxar nas Cmaras o nmero destes ofcios

    permitindo-os somente s pessoas que as Cmaras julgarem

    idneas de cabedal e sangue, com proibio aos mulatos e

    negros ainda que sejam forros, como se pratica em toda a

    bem governada Repblica. V. Majestade procure do remdio

    que for mais conveniente ao seu real servio.". (54)

    Assim, a instabilidade das instituies recm implantadas , as dificul-

    dades de controle jurdico-administrativo, a escassez de mo-de-obra e a prpria

    desorganizao social, decorrentes dos perodos de crise ou expanso da econo-

    mia, favoreceram a mobilidade e a ascenso nos ncleos urbanos, no s da ca-

    mada de artfices como de pequenos comerciantes e prestadores de servios,

    abrindo oportunidades para setores das camadas mais pobres de homens livres

    que possuam alguma especializao profissional e dando ao escravo de aluguel a

    possibilidade de comprar sua emancipao. (55)

    No topo da hierarquia artesanal estava uma camada pequeno bur-

    guesa formada por mestres e oficiais proprietrios de oficinas. A maior parte era

    branca, de origem europeia, muitos vinculados s ordens religiosas e ao Estado.

    Constituam mo-de-obra rara e disputada que fazia parte daquela "terceira condi-

  • 50

    o de gente", a que se referiu o cronista Ambrsio Fernandes Brando no incio

    do sculo XVII. "Brandonio" estabelece cinco categorias: martimos, mercadores,

    oficiais mecnicos, vaqueiros e os da lavoura e assim se refere aos mecnicos:

    "a terceira condio de gente so oficiais mecnicos de que

    h muitos no Brasil de todas as artes, os quais procuram

    exercitar, fazendo seu proveito nelas, sem se lembrarem por

    nenhum modo do bem comum". (56)

    A crtica de Brandonio se reporta ao cdigo de tica corporativa que

    orientava a prtica dos ofcios na Europa pr-industrial, sugerindo que os valores

    dos artesos na colnia, seu individualismo e a perspectiva de "proveit