art as ações afirmativas e os processos de promoção da igualdade efetiva
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5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva
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AS AES AFIRMATIVAS E OS
PROCESSOS DE PROMOO DA IGUALDADE EFETIVAJOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMESFERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA
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Nos ltimos tempos, tm sido
propostos, no CongressoNacional, diversos projetos de
lei visando introduo, no Direito bra-
sileiro, de algumas modalidades de
ao afirmativa. Esses projetos, apre-
sentados por parlamentares das mais
diversas tendncias ideolgicas,2 em
geral buscam mitigar a flagrante desi-
gualdade brasileira atacando-a naquiloque para muitos constitui a sua causa
primordial, isto , o nosso segregador
sistema educacional, que tradicional-
mente, por diversos mecanismos, sem-
pre reservou aos negros e pobres em
geral uma educao de inferior quali-
dade, dedicando o essencial dos recur-
sos materiais, humanos e financeirosvoltados educao de todos os bra-
sileiros, a um pequeno contingente da
populao que detm a hegemonia po-
ltica, econmica e social no Pas, isto
, a elite branca. Outros projetos, con-
cebidos no louvvel af de tentar re-
mediar os aspectos mais visveis e po-
liticamente incmodos da nossa tristeiniqidade, tentam combater a desi-
gualdade e a discriminao em seto-
res especficos da atividade produtiva,
instituindo cotas fixas para negros nes-
se ou naquele setor da vida scio-eco-
nmica.
Esses projetos, como se sabe, vi-
sam a instituir medidas compensat-rias destinadas a promover a implemen-
tao do princpio constitucional da
igualdade em prol da comunidade ne-gra brasileira.
O tema de transcendental im-
portncia para o Brasil e para o Direito
brasileiro, por dois motivos. Primeiro,
por ter incidncia direta sobre aquele
que seguramente o mais grave de
todos os nossos problemas sociais (o
qual, curiosamente, todos fingimos ig-norar), o que est na raiz das nossas
mazelas, do nosso gritante e enver-
gonhador quadro social ou seja, os
diversos mecanismos pelos quais, ao
longo da nossa histria, a sociedade
brasileira logrou proceder, atravs das
mais variadas formas de discriminao,
excluso e ao alijamento dos negrosdo processo produtivo conseqente e
da vida social digna. Em segundo lu-
gar, por abordar um tema nobre de Di-
reito Constitucional Comparado3 e de
Direito Internacional, mas que , curio-
samente, negligenciado pelas letras ju-
rdicas nacionais, especialmente no
mbito do Direito Constitucional.Assim, neste despretensioso ensaio
tentaremos examinar (ainda que sem a
reflexo de long ue haleineque o tema
requer) a possibilidade jurdica de intro-
duo, no nosso sistema jurdico, de
mecanismos de integrao social larga-
mente adotados nos Estados Unidos sob
a denominao de af f irm at ive ac t ion(ao afirmativa) e na Europa, sob o
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nome de discr iminat ion po si t ive(discri-
minao positiva) e de action posi t ive(ao positiva).
Trata-se, com efeito, de tema qua-
se desconhecido4 entre ns, tanto em
sua concepo quanto nas suas mlti-
plas formas de implementao. Da a
necessidade, de nossa parte, de algu-
mas consideraes acerca da sua gne-
se, dos objetivos almejados, da proble-mtica constitucional por ele suscitada,
das modalidades de programas e dos
critrios e condies indispensveis a
sua compatibilizao com os princpios
constitucionais.
1 AO AFIRMATIVA E PRINCPIO DAIGUALDADE
A noo de igualdade, como cate-
goria jurdica de primeira grandeza, teve
sua emergncia como princpio jurdico
incontornvel nos documentos constitu-
cionais promulgados imediatamente
aps as revolues do final do sculoXVIII. Com efeito, foi a partir das experi-
ncias revolucionrias pioneiras dos EUA
e da Frana que se edificou o conceito
de igualdade perante a lei, uma cons-
truo jurdico-formal segundo a qual a
lei, genrica e abstrata, deve ser igual
para todos, sem qualquer distino ou
privilgio, devendo o aplicador faz-laincidir de forma neutra sobre as situa-
es jurdicas concretas e sobre os con-
flitos interindividuais. Concebida para ofim especfico de abolir os privilgios t-
picos do anci en rgim ee para dar cabo
s distines e discriminaes baseadas
na linhagem, no rang, na rgida e imu-
tvel hierarquizao social por classes
(classem ent par ordre), essa clssica con-
cepo de igualdade jurdica, meramente
formal, firmou-se como idia-chave doconstitucionalismo que floresceu no s-
culo XIX e prosseguiu sua trajetria
triunfante por boa parte do sculo XX.
Por definio, conforme bem assinala-
do por Guilherme Machado Dray, o prin-
cpio da igualdade perante a lei consis-
tiria na simples criao de um espao
neutro, onde as virtudes e as capacida-des dos indivduos livremente se pode-
riam desenvolver. Os privilgios, em
sentido inverso, representavam nesta
perspectiva a criao pelo homem de
espaos e de zonas delimitadas, sus-
ceptveis de criarem desigualdades ar-
tificiais e nessa medida intolerveis.5
Em suma, segundo esse conceito deigualdade que veio a dar sustentao
jurdica ao Estado liberal burgus, a lei
deve ser igual para todos, sem distin-
es de qualquer espcie.
Abstrata por natureza e levada a
extremos por fora do postulado da
neutralidade estatal (uma outra noo
cara ao iderio liberal), o princpio daigualdade perante a lei foi tido, durante
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muito tempo, como a garantia da
concretizao da liberdade. Para os pen-sadores e tericos da escola liberal, bas-
taria a simples incluso da igualdade
no rol dos direitos fundamentais para
se ter esta como efetivamente assegu-
rada no sistema constitucional.
A experincia e os estudos de di-
reito e poltica comparada, contudo, tm
demonstrado que, tal como construda, luz da cartilha liberal oitocentista, a
igualdade jurdica no passa de mera
fico. Paulatinamente, porm, susten-
ta o jurista portugus Guilherme Macha-
do Dray, a concepo de uma igualda-
de puramente formal, assente no prin-
cpio geral da igualdade perante a lei,
comeou a ser questionada, quando seconstatou que a igualdade de direitos
no era, por si s, suficiente para tor-
nar acessveis a quem era socialmente
desfavorecido as oportunidades de que
gozavam os indivduos socialmente pri-
vilegiados. Importaria, pois, colocar os
primeiros ao mesmo nvel de partida.
Em vez de igualdade de oportunidades,importava falar em igualdade de condi-
es. Imperiosa, portanto, seria a ado-
o de uma concepo substancial da
igualdade, que levasse em conta em sua
operacionalizao no apenas certas
condies fticas e econmicas, mas
tambm certos comportamentos inevi-
tveis da convivncia humana, como o caso da discriminao. Assim, assi-
nala a ilustre Professora de Minas Ge-
rais, Carmen Lucia Antunes Rocha, con-cluiu-se, ento, que proibir a discrimi-
nao no era bastante para se ter a
efetividade do princpio da igualdade
jurdica. O que naquele modelo se ti-
nha e se tem to-somente o princpio
da vedao da desigualdade, ou da
invalidade do comportamento motiva-
do por preconceito manifesto ou com-provado (ou comprovvel), o que no
pode ser considerado o mesmo que
garantir a igualdade jurdica.6
Como se v, em lugar da concep-
o esttica da igualdade extrada das
revolues francesa e americana, cui-
da-se nos dias atuais de se consolidar
a noo de igualdade material ou subs-tancial, que, longe de se apegar ao
formalismo e abstrao da concep-
o igualitria do pensamento liberal
oitocentista, recomenda, inversamente,
uma noo dinmica, militante de
igualdade, na qual necessariamente so
devidamente pesadas e avaliadas as de-
sigualdades concretas existentes na so-ciedade, de sorte que as situaes de-
siguais sejam tratadas de maneira
dessemelhante, evitando-se assim o
aprofundamento e a perpetuao de
desigualdades engendradas pela pr-
pria sociedade. Produto do Estado So-
cial de Direito, a igualdade substancial
ou material propugna redobrada aten-o por parte do legislador e dos
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aplicadores do Direito variedade das
situaes individuais e de grupo, demodo a impedir que o dogma liberal
da igualdade formal impea ou dificul-
te a proteo e a defesa dos interesses
das pessoas socialmente fragilizadas e
desfavorecidas.
Da transio da ultrapassada noo
de igualdade esttica ou formal ao
novo conceito de igualdade substanci-al surge a idia de igualdade de opor-
tunidades, noo justificadora de diver-
sos experimentos constitucionais pauta-
dos na necessidade de se extinguir ou
de pelo menos mitigar o peso das desi-
gualdades econmicas e sociais e, con-
seqentemente, de promover a justia
social.Dessa nova viso resultou o
surgimento, em diversos ordenamentos
jurdicos nacionais e na esfera do Direi-
to Internacional dos Direitos Humanos,7
de polticas sociais de apoio e de pro-
moo de determinados grupos social-
mente fragilizados. Vale dizer, da con-
cepo liberal de igualdade que capta oser humano em sua conformao abs-
trata, genrica, o Direito passa a perceb-
lo e a trat-lo em sua especificidade,
como ser dotado de caractersticas
singularizantes. No dizer de Flvia
Piovesan, do ente abstrato, genrico,
destitudo de cor, sexo, idade, classe so-
cial, dentre outros critrios, emerge osujeito de direito concreto, historicamente
situado, com especificidades e particu-
laridades. Da apontar-se no mais aoindivduo genrica e abstratamente con-
siderado, mas ao indivduo especifica-
do, considerando-se categorizaes re-
lativas ao gnero, idade, etnia, raa, etc.8
O indivduo especificado, portanto, ser
o alvo dessas novas polticas sociais.
A essas polticas sociais, que nada
mais so do que tentativas de concre-tizao da igualdade substancial ou ma-
terial, d-se a denominao de ao afir-
mativa ou, na terminologia do Direito
europeu, de discriminao positiva ou
ao positiva.
A consagrao normativa dessas
polticas sociais representa, pois, um
momento de ruptura na evoluo doEstado moderno. Com efeito, como
bem assinala a Professora Carmen L-
cia Antunes Rocha, em nenhum Es ta-
d o Dem o crt ic o , a ta dcad a d e 6 0 ,
e em quase nenhum atesta l t im a
dcad a d o scu lo XX se cu id ou de p ro -
m over a i gu alao e venc erem -se o s
p reconce itos po r com por tam en tos es-
tata is e par t icu lares ob r igatr ios pelos
qu a is se superassem to das as form as
de desi g ual ao i nj ust a. Os neg ro s, os
po bres, os m argin al izado s pela raa,
pelo sexo, p or opo relig io sa, po r co n-
dies econm icas inf er io res, po r d e-
fi cinci as fsic as ou p squ ic as, p o r id a-
de , etc . , con t i nuam em estado d e de -
salento j urdic o em gran de par te do
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m undo . Inob s tan te a ga ran t i a cons t i -
t u c i ona l da d i gn i dade hum ana i gua l
para todo s , da l iberdade igua l para to -
d os , no so po uc o s o s ho m ens e
m ulheres que cont inuam sem ter aces-
so s ig uais o po rt un id ades m nim as de
t rab alh o , d e p art ici pao po lti ca, de
c i d adan i a c r i at i v a e com p r om e t i d a ,
dei xad os q ue so m arg em da co nvi -
vnc ia soci al, da ex perinc ia dem ocr-
ti ca n a soc ied ade p o lti ca.Assim, nes-
sa nova postura o Estado abandona a
sua tradicional posio de neutralida-
de e de mero espectador dos embates
que se travam no campo da convivn-
cia entre os homens e passa a atuar
ativamente na busca da concretizao
da igualdade positivada nos textosconstitucionais.
O Pas pioneiro na adoo das po-
lticas sociais denominadas aes afir-
mativas foram, como sabido, os Es-
tados Unidos da Amrica. Tais polticas
foram concebidas inicialmente como
mecanismos tendentes a solucionar
aquilo que um clebre autor escan-dinavo qualificou de o dilema ameri-
cano: a marginalizao social e eco-
nmica do negro na sociedade ameri-
cana. Posteriormente, elas foram esten-
didas s mulheres, a outras minorias
tnicas e nacionais, aos ndios e aos de-
ficientes fsicos.
As aes afirmativas se definemcomo polticas pblicas (e privadas) vol-
tadas concretizao do princpio
constitucional da igualdade material e neutralizao dos efeitos da discri-
minao racial, de gnero, de idade,
de origem nacional e de compleio
fsica. Na sua compreenso, a igualda-
de deixa de ser simplesmente um prin-
cpio jurdico a ser respeitado por to-
dos, e passa a ser um objetivo consti-
tucional a ser alcanado pelo Estado epela sociedade. (I l semble clair q ue les
d i s c r im i n a t i o n s po s i t i v es i n v i t e n t
pen ser l gal i tcom m e un o bj ect i f
att eind re en so. Le sim ple co nstat qu e
n o s s o c its gnr en t e n c o r e d e
no m b reu ses i ngali ts d e tr ait em en t
dev ra i t ds lors in c i t e r les pou vo i rs
pu b l i cs co m m e les ac t eurs p r ivs
ado p t e r e t m e t t r e en o euv re d es
m esu res su scep t ib les de c rer ou de
m ener p lus d gal i t).9
Impostas ou sugeridas pelo Es-
tado, por seus entes vinculados e at
mesmo por entidades puramente pri-
vadas, elas visam a combater no so-
mente as manifestaes flagrantes dediscriminao, mas tambm a discri-
minao de fato, de fundo cultural, es-
trutural, enraizada na sociedade. De
cunho pedaggico e no raramente
impregnadas de um carter de
exemplaridade, tm como meta, tam-
bm, o engendramento de transfor-
maes culturais e sociais relevantes,aptas a inculcar nos atores sociais a
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utilidade e a necessidade da obser-
vncia dos princpios do pluralismo eda diversidade nas mais diversas es-
feras do convvio humano. Por outro
lado, constituem, por assim dizer, a
mais eloqente manifestao da mo-
derna idia de Estado promovente,
atuante, eis que de sua concepo,
implantao e delimitao jurdica par-
ticipam todos os rgos estatais es-senciais, a se incluindo o Poder J udi-
cirio, que ora se apresenta no seu tra-
dicional papel de guardio da integri-
dade do sistema jurdico como um
todo e especialmente dos direitos fun-
damentais, ora como instituio
formuladora de polticas tendentes a
corrigir as distores provocadas peladiscriminao. Trata-se, em suma, de
um mecanismo sociojurdico destina-
do a viabilizar primordialmente a har-
monia e a paz social, que so seria-
mente perturbadas quando um grupo
social expressivo se v margem do
processo produtivo e dos benefcios
do progresso, bem como a robuste-cer o prprio desenvolvimento econ-
mico do pas, na medida em que a
universa-lizao do acesso educao
e ao mercado de trabalho tem como
conseqncia inexorvel o crescimen-
to macroeconmico, a ampliao ge-
neralizada dos negcios, numa pala-
vra, o crescimento do pas como umtodo. Nesse sentido, no se deve per-
der de vista o fato de que a histria
universal no registra, na era contem-pornea, nenhum exemplo de nao
que tenha se erguido de uma condi-
o perifrica de potncia econmi-
ca e poltica, digna de respeito na cena
poltica internacional, mantendo no
plano domstico uma poltica de ex-
cluso, aberta ou dissimulada, legal ou
meramente informal, em relao a umaparcela expressiva de seu povo.
As aes afirmativas constituem,
pois, um remdio de razovel eficcia
para esses males. indispensvel, po-
rm, uma ampla conscientizao da
prpria sociedade e das lideranas po-
lticas de maior expresso acerca da
absoluta necessidade de se eliminarou de se reduzir as desigualdades so-
ciais que operam em detrimento das
minorias, notadamente as minorias ra-
ciais.10E mais: preciso uma ampla
conscientizao sobre o fato de que a
marginalizao scio-econmico a que
so relegadas as minorias, especial-
mente as raciais, resulta de um nicofenmeno: a discriminao.
Com efeito, a discriminao,
como um componente indissocivel do
relacionamento entre os seres huma-
nos, reveste-se inegavelmente de uma
roupagem competitiva. Afinal, discri-
minar nada mais do que uma tenta-
tiva de se reduzirem as perspectivasde uns em benefcio de outros.11Quan-
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to mais intensa a discriminao e mais
poderosos os mecanismos inerciaisque impedem o seu combate, mais
ampla se mostra a clivagem entre
discriminador e discriminado. Da re-
sulta, inevitavelmente, que aos esfor-
os de uns em prol da concretizao
da igualdade se contraponham os in-
teresses de outros na manuteno do
s t a t u s quo. curial, pois, que as aesafirmativas, mecanismo jurdico con-
cebido com vistas a quebrar essa di-
nmica perversa, sofram o influxo des-
sas foras contrapostas e atraiam con-
sidervel resistncia, sobretudo da
parte daqueles que historicamente se
beneficiaram da excluso dos grupos
socialmente fragilizados.Ao Estado cabe, assim, a opo
entre duas posturas distintas: manter-
se firme na posio de neutralidade, e
permitir a total subjugao dos grupos
sociais desprovidos de voz, de fora po-
ltica, de meios de fazer valer os seus
direitos; ou, ao contrrio, atuar ativa-
mente no sentido da mitigao das de-sigualdades sociais que, como de to-
dos sabido, tm como pblico-alvo pre-
cisamente as minorias raciais, tnicas,
sexuais e nacionais.
Com efeito, a sociedade liberal-
capitalista ocidental tem como uma de
suas idias-chave a noo de neutrali-
dade estatal, que se expressa de diver-sas maneiras: neutralidade em matria
econmica, no domnio espiritual e na
esfera ntima das pessoas. Na maioriadas naes pluritnicas e pluricon-
fessionais, o abstencionismo estatal se
traduz na crena de que a mera intro-
duo, nos respectivos textos consti-
tucionais, de princpios e regras
asseguradoras de uma igualdade for-
mal perante a lei, seria suficiente para
garantir a existncia de sociedadesharmnicas, onde seria assegurada a
todos, independentemente de raa,
credo, gnero ou origem nacional, efe-
tiva igualdade de acesso ao que
comumente se tem como conducente
ao bem-estar individual e coletivo. Esta
era, como j dito, a viso liberal deri-
vada das idias iluministas que con-duziram s revolues polticas do s-
culo XVIII.
Mas essa suposta neutralidade es-
tatal tem-se revelado um formidvel fra-
casso, especialmente nas sociedades que
durante muitos sculos mantiveram cer-
tos grupos ou categorias de pessoas em
posio de subjugao legal, de inferio-ridade legitimada pela lei, em suma, em
pases com longo passado de escravi-
do. Nesses pases, apesar da existncia
de inumerveis disposies normativas
constitucionais e legais, muitas delas ins-
titudas com o objetivo explcito de fazer
cessar o status de inferioridade em que
se encontravam os grupos sociais histo-ricamente discriminados, passaram-se
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os anos (e sculos) e a situao desses
grupos marginalizados pouco ou quasenada mudou.12
Tal estado de coisas conduz a
duas constataes indisputveis. Em
primeiro lugar, convico de que pro-
clamaes jurdicas por si ss, sejam
elas de natureza constitucional ou de
inferior posicionamento na hierarquia
normativa, no so suficientes para re-verter um quadro social que finca n-
coras na tradio cultural de cada pas,
no imaginrio coletivo, em suma, na
percepo generalizada de que a uns
devem ser reservados papis de fran-
ca dominao e a outros, papis
indicativos do s ta tus de inferioridade,
de subordinao. Em segundo lugar,ao reconhecimento de que a reverso
de um tal quadro s vivel mediante
a renncia do Estado a sua histrica
neutralidade em questes sociais, de-
vendo assumir, ao revs, uma posio
ativa, at mesmo radical se vista luz
dos princpios norteadores da socieda-
de liberal clssica.Desse imperativo de atuao ativa
do Estado nasceram as aes afirmati-
vas, concebidas inicialmente nos Esta-
dos Unidos da Amrica, mas hoje j
adotadas em diversos pases europeus,
asiticos e africanos, com as adaptaes
necessrias situao de cada pas.13 14
15O Brasil, pas com a mais longa hist-ria de escravido das Amricas e com
uma inabalvel tradio patriarcal, mal
comea a admitir, pelo menos em nvelacadmico, a discusso do tema.16
2 DEFINIO E OBJ ETIVOS DAS AES
AFIRMATIVAS
A introduo das polticas de ao
afirmativa, criao pioneira do Direito dosEUA, representou, em essncia, a mu-
dana de postura do Estado, que em
nome de uma suposta neutralidade, apli-
cava suas polticas governamentais in-
distintamente, ignorando a importncia
de fatores como sexo, raa, cor, origem
nacional. Nessa nova postura, passa o
Estado a levar em conta tais fatores nomomento de contratar seus funcionri-
os ou de regular a contratao por ou-
trem, ou ainda no momento de regular
o acesso aos estabelecimentos educaci-
onais pblicos e privados. Numa pala-
vra, ao invs de conceber polticas p-
blicas de que todos seriam beneficirios,
independentemente da sua raa, cor ousexo, o Estado passa a levar em conta
esses fatores na implementao das suas
decises, no para prejudicar quem quer
que seja, mas para evitar que a discrimi-
nao, que inegavelmente tem um fun-
do histrico e cultural, e no raro se sub-
trai ao enquadramento nas categorias
jurdicas clssicas, finde por perpetuaras iniqidades sociais.
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2.1 Definio Inicialmente, as
aes afirmativas se definiam como ummero encorajamento por parte do Es-
tado a que as pessoas com poder
decisrio nas reas pblica e privada le-
vassem em considerao, nas suas de-
cises relativas a temas sensveis como
o acesso educao e ao mercado de
trabalho, fatores at ento tidos como
formalmente irrelevantes pela grandemaioria dos responsveis polticos e
empresariais, quais sejam, a raa, a cor,
o sexo e a origem nacional das pesso-
as. Tal encorajamento tinha por meta,
tanto quanto possvel, ver concretizado
o ideal de que tanto as escolas quanto
as empresas refletissem em sua com-
posio a representao de cada grupona sociedade ou no respectivo mercado
de trabalho.
Num segundo momento, talvez em
decorrncia da constatao da ineficcia
dos procedimentos clssicos de comba-
te discriminao, deu-se incio a um
processo de alterao conceitual do ins-
tituto, que passou a ser associado idia,mais ousada, de realizao da igualdade
de oportunidades atravs da imposio
de cotas rgidas de acesso de represen-
tantes de minorias a determinados seto-
res do mercado de trabalho e a institui-
es educacionais. Data tambm desse
perodo a vinculao entre ao afirmati-
va e o atingimento de certas metas esta-tsticas concernentes presena de ne-
gros e mulheres num determinado setor
do mercado de trabalho ou numa deter-minada instituio de ensino.17
Atualmente, as aes afirmativas
podem ser definidas como um conjunto
de polticas pblicas e privadas de car-
ter compulsrio, facultativo ou volunt-
rio, concebidas com vistas ao combate
discriminao racial, de gnero, por
deficincia fisica e de origem nacional,bem como para corrigir ou mitigar os
efeitos presentes da discriminao pra-
ticada no passado, tendo por objetivo a
concretizao do ideal de efetiva igual-
dade de acesso a bens fundamentais
como a educao e o emprego. Diferen-
temente das polticas governamentais
antidiscriminatrias baseadas em leis decontedo meramente proibitivo, que se
singularizam por oferecerem s respec-
tivas vtimas to-somente instrumentos
jurdicos de carter reparatrio e de in-
terveno ex pos t fac to, as aes afir-
mativas tm natureza multifacetria18, e
visam a evitar que a discriminao se
verifique nas formas usualmente conhe-cidas isto , formalmente, por meio de
normas de aplicao geral ou especfi-
ca, ou atravs de mecanismos informais,
difusos, estruturais, enraizados nas pr-
ticas culturais e no imaginrio coletivo.
Em sntese, trata-se de polticas e de
mecanismos de incluso concebidos
por entidades pblicas, privadas e porrgos dotados de competncia
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jurisdicional, com vistas concretizao
de um objetivo constitucional universal-mente reconhecido o da efetiva igual-
dade de oportunidades a que todos os
seres humanos tm direito.
Entre os tericos do Direito Pblico
no Brasil, coube ilustre professora Car-
men Lcia Antunes Rocha o desafio de
traduzir para a comunidade jurdica bra-
sileira, em sublime artigo, a mais com-pleta noo acerca do enquadramento
jurdico-doutrinrio das aes afirmati-
vas. Classificando-as corretamente como
a mais avanada tentativa de concre-
tizao do princpio jurdico da igualda-
de, ela afirma com propriedade que a
definio jurdica objetiva e racional da
desigualdade dos desiguais, histrica eculturalmente discriminados, concebi-
da como uma forma para se promover
a igualdade daqueles que foram e so
marginalizados por preconceitos
encravados na cultura dominante na so-
ciedade. Por esta desigualao positiva
promove-se a igualao jurdica efetiva;
por ela afirma-se uma frmula jurdicapara se provocar uma efetiva igualao
social, poltica, econmica no e segun-
do o Direito, tal como assegurado for-
mal e materialmente no sistema consti-
tucional democrtico. A ao afirmativa
, ento, uma forma jurdica para se su-
perar o isolamento ou a diminuio so-
cial a que se acham sujeitas as minori-as.19Essa engenhosa criao jurdico-
poltico-social refletiria ainda, segundo
a autora, uma mudana compor-tamental dos juzes constitucionais de
todo o mundo democrtico do ps-guer-
ra, que teriam se conscientizado da ne-
cessidade de uma transformao na
forma de se conceberem e aplicarem os
direitos, especialmente aqueles listados
entre os fundamentais. No bastavam as
letras formalizadoras das garantias pro-metidas; era imprescindvel instrumen-
talizarem-se as promessas garantidas
por uma atuao exigvel do Estado e
da sociedade. Na esteira desse pensa-
mento, pois, que a ao afirmativa
emergiu como a face construtiva e cons-
trutora do novo contedo a ser buscado
no princpio da igualdade jurdica. O Di-reito Constitucional, posto em aberto,
mutante e mutvel para se fazer perma-
nentemente adequado s demandas
sociais, no podia persistir no conceito
esttico de um direito de igualdade pron-
to, realizado segundo parmetros hist-
ricos eventualmente ultrapassados. E
prossegue a ilustre autora: O conte-do, de origem bblica, de tratar igualmen-
te os iguais e desigualmente os desiguais
na medida em que se desigualam sem-
pre lembrado como sendo a essncia do
princpio da igualdade jurdica encon-
trou uma nova interpretao no acolhi-
mento jurisprudencial concernente
ao afirmativa. Segundo essa nova in-terpretao, a desigualdade que se pre-
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tende e se necessita impedir para se re-
alizar a igualdade no Direito no podeser extrada, ou cogitada, apenas no mo-
mento em que se tomam as pessoas
postas em dada situao submetida ao
Direito, seno que se deve atentar para
a igualdade jurdica a partir da conside-
rao de toda a dinmica histrica da
sociedade, para que se focalize e se re-
trate no apenas um instante da vidasocial, aprisionada estaticamente e
desvinculada da realidade histrica de
determinado grupo social. H que se
ampliar o foco da vida poltica em sua
dinmica, cobrindo espao histrico que
se reflita ainda no presente, provocan-
do agora desigualdades nascentes de
preconceitos passados, e no de todoextintos. A discriminao de ontem pode
ainda tingir a pele que se v de cor di-
versa da que predomina entre os que
detm direitos e poderes hoje.
2.2 Objetivos das aes afirmati-
vas Em regra geral, justifica-se a ado-o das medidas de ao afirmativa com
o argumento de que esse tipo de polti-
ca social seria apta a atingir uma srie
de objetivos que restariam normalmen-
te inalcanados caso a estratgia de
combate discriminao se limitasse
adoo, no campo normativo, de regras
meramente proibitivas de discrimina-o. Numa palavra, no basta proibir,
preciso tambm promover, tornando ro-
tineira a observncia dos princpios dadiversidade e do pluralismo, de tal sor-
te que se opere uma transformao no
comportamento e na mentalidade co-
letiva, que so, como se sabe, molda-
dos pela tradio, pelos costumes, em
suma, pela histria.
Assim, alm do ideal de concre-
tizao da igualdade de oportunidades,figuraria entre os objetivos almejados
com as polticas afirmativas o de indu-
zir transformaes de ordem cultural,
pedaggica e psicolgica, aptas a sub-
trair do imaginrio coletivo a idia de
supremacia e de subordinao de uma
raa em relao outra, do homem em
relao mulher. O elemento propul-sor dessas transformaes seria, assim,
o carter de exemplaridade de que se
revestem certas modalidades de ao
afirmativa, cuja eficcia como agente de
transformao social poucos at hoje
ousaram negar. Ou seja, de um lado es-
sas polticas simbolizariam o reconhe-
cimento oficial da persistncia e da pe-renidade das prticas discriminatrias
e da necessidade de sua eliminao. De
outro, elas teriam tambm por meta
atingir objetivos de natureza cultural, eis
que delas inevitavelmente resultam a
trivializao, a banalizao, na pol is, da
necessidade e da utilidade de polticas
pblicas voltadas implantao dopluralismo e da diversidade.
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Por outro lado, as aes afirmati-
vas tm corno objetivo no apenas coi-bir a discriminao do presente, mas
sobretudo eliminar os efeitos persis-
tentes (psicolgicos, culturais e
comportamentais) da discriminao do
passado, que tendem a se perpetuar.
Esses efeitos se revelam na chamada
discriminao estrutural espelhada
nas abismais desigualdades sociaisentre grupos dominantes e grupos
marginalizados.20
Figura tambm como meta das
aes afirmativas a implantao de uma
certa diversidade e de uma maior
representatividade dos grupos
minoritrios nos mais diversos domni-
os de atividade pblica e privada.21Par-tindo da premissa de que tais grupos
normalmente no so representados em
certas reas ou so sub-representados
seja em posies de mando e prestgio
no mercado de trabalho e nas ativida-
des estatais, seja nas instituies de for-
mao que abrem as portas ao sucesso
e s realizaes individuais, as polticasafirmativas cumprem o importante pa-
pel de cobrir essas lacunas, fazendo com
que a ocupao das posies do Estado
e do mercado de trabalho se faa, na
medida do possvel, em maior harmo-
nia com o carter plrimo da sociedade.
Nesse sentido, o efeito mais visvel des-
sas polticas, alm do estabelecimentoda diversidade e representatividade pro-
priamente ditas, o de eliminar as bar-
reiras artificiais e invisveis queemperram o avano de negros e mulhe-
res, independentemente da existncia ou
no de poltica oficial tendente a
subalterniz-los.22
Argumenta-se igualmente que o
pluralismo que se instaura em decorrn-
cia das aes afirmativas traria inegveis
beneficios para os prprios pases quese definem como multirraciais e que as-
sistem, a cada dia, ao incremento do fe-
nmeno do multicultura-lismo. Para es-
ses pases, constituiria um erro estrat-
gico inadmissvel deixar de oferecer
oportunidades efetivas de educao e de
trabalho a certos segmentos da popula-
o, pois isto pode revelar-se, em m-dio prazo, altamente prejudicial
competitividade e produtividade eco-
nmica do Pas. Portanto, agir afirmati-
vamente seria tambm uma forma de
zelar pela pujana econmica do Pas.
Por fim, as aes afirmativas cum-
pririam o objetivo de criar as chamadas
personalidades emblemticas. Noutraspalavras, alm das metas acima menci-
onadas, elas constituiriam um mecanis-
mo institucional de criao de exemplos
vivos de mobilidade social ascendente.
Vale dizer, os representantes de minori-
as que, por terem alcanado posies
de prestgio e poder, serviriam de exem-
plo s geraes mais jovens, que veri-am em suas carreiras e realizaes pes-
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soais a sinalizao de que no haveria,
chegada a sua vez, obstculos intrans-ponveis realizao de seus sonhos e
concretizao de seus projetos de vida.
Em suma, com esta conotao, as aes
afirmativas atuariam como mecanismo
de incentivo educao e ao aprimora-
mento de jovens integrantes de grupos
minoritrios, que invariavelmente assis-
tem ao bloqueio de seu potencial deinventividade, de criao e de motiva-
o ao aprimoramento e ao crescimen-
to individual, vtimas das sutilezas de um
sistema jurdico, poltico, econmico e
social concebido para mant-los em si-
tuao de excludos.
3 A PROBLEMTICA CONSTITUCIONAL
As aes afirmativas situam-se no
cerne do debate constitucional contem-
porneo, e interferem em questes que
remontam prpria origem da demo-
cracia moderna, suscitando questiona-
mentos acerca de temas fundamentaisdo modelo de organizao poltica pre-
ponderante no hemisfrio ocidental. A
presente reflexo no visa a examinar
com profundidade esses temas. Sobre
eles faremos, portanto, apenas un tou r
dhor izon. Vejamos.
As afirmaes afirmativas suscitam,
em primeiro lugar, o debate crucial acercada destinao dos recursos pblicos.
Recursos, frise-se, escassos por defini-
o. O Estado Moderno, como se sabe,resulta do imperativo iluminista de que
o conjunto dos recursos da Nao deve
ser convertido em prol do interesse de
todos, do bem-estar geral da coletivida-
de ( The We l f a r e o f l h e Na t i on , De r
Wohlstand).A Histria e o Direito Com-
parado a esto para nos fornecer algu-
mas pistas e nos alertar contra o perigoda inrcia neste domnio. Com efeito,
at enfadonho relembrar que a ruptura
brutal com o an ci en rgim ese materia-
lizou precisamente na abolio dos pri-
vilgios que, por lei, eram atribudos a
certas classes de cidados. A Democra-
cia que se seguiu, sobretudo na concep-
o ulterior que deu margem aosurgimento do Estado de bem-estar so-
cial, tem como um dos seus pilares a
tentativa de distribuio equnime e ge-
neralizada dos recursos originrios do
labor coletivo.
Por outro lado, no se deve perder
de vista que a amoldagem do atual Es-
tado promovente (uma realidade quaseuniversal) em grande parte tributria
desse rigoroso zelo que as verdadeiras
democracias tm para com o correto
manuseio de recursos pblicos. De fato,
questes-chave do constitucionalismo
moderno derivam dessa matriz: qual se-
ria o propsito legtimo do dispndio
de recursos nacionais? Em que medidase pode questionar a constitucionalidade
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de certos programas governamentais
luz da exata relao deles extravel entredispndio de recursos pblicos e incre-
mento do bem-estar coletivo? At que
ponto pode o rgo representante da
Nao compelir atores pblicos e priva-
dos beneficirios desses recursos a se
conformarem s regras de eqidade
nsitas a toda e qualquer democracia?
Das mltiplas respostas a essas ques-tes, como se sabe, emergiu o Estado
interventivo e regulador e o seu corolrio
o Estado de Bem-Estar Social.
Ora, o pas que ignora essas no-
es bsicas e reserva a uma pequena
minoria os instrumentos de aprimora-
mento humano aptos a abrir as portas
prosperidade e ao bem-estar individuale coletivo, e, alm disso (e tambm em
conseqncia disso), adota, ainda que
informalmente, uma poltica de empre-
go impregnada de visvel e insuportvel
hierarquizao social, pratica nada mais
nada menos do que uma nova forma de
tirania.
Sim, disso que se trata. Uma ti-rania legal, eis que formalmente anco-
rada em normas emanadas dos rgos
legislativos e executada por rgos que
supostamente encarnam a soberania
popular. No caso brasileiro, no preci-
so muito esforo para se convencer dis-
so. Vejamos. No estado atual das coisas,
a excluso social de que os negros soas principais vtimas no Brasil deriva de
alguns fatores, dentre os quais figura o
esquema perverso de distribuio derecursos pblicos em matria de educa-
o. A Educao a mais importante
dentre as diversas prestaes que o in-
divduo recebe ou tem legtima expecta-
tiva de receber do Estado. Trata-se, como
se sabe, de um bem escasso. O Estado
alega no poder fornec-lo a todos na
forma tida como ideal, isto , em carteruniversal e gratuito. No entanto, esse
mesmo Estado que se diz impossibilita-
do de fornecer a todos esse bem indis-
pensvel, institucionaliza mecanismos
sutis atravs dos quais proporciona s
classes privilegiadas aquilo que alega
no poder oferecer generalidade dos
cidados. Com efeito, o Estado finan-cia, com recursos que deveriam ser ca-
nalizados a instituies pblicas de aces-
so universal, a educao dos filhos das
classes de maior poder aquisitivo, por
meio de diversos mecanismos. Isto se
d principalmente atravs da renncia
fiscal de que so beneficirias as esco-
las privadas altamente seletivas eexcludentes. Certo, no seria justo ne-
gar s elites (supostas ou verdadeiras) o
direito de matricular os seus filhos em
escolas seletivas, onde eles se sintam
chez eux, longe da popu lace. O direito
de escolher uma educao diferencia-
da para os filhos constitui, a nosso sen-
tir, uma liberdade fundamental a ser ga-rantida pelo Estado. O que questionvel
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o compartilhamento do custo desse
luxo com toda a coletividade: atravsdos tributos de que essas escolas so
isentas, das subvenes diversas que
lhes so passadas pelos Governos das
trs esferas polticas, pelo abatimento
das respectivas despesas no montante
devido a ttulo de imposto de renda! Es-
ses so alguns dos elementos que com-
pem a formidvel m ach ine excl ur eque tem nos negros as suas vtimas pre-
ferenciais. Essa forma de excluso or-
questrada e disciplinada pela lei produz
o extraordinrio efeito de contrapor, de
um lado, a escola pblica, republicana,
aberta a todos, que deveria oferecer en-
sino de boa qualidade a pobres e ricos,
a uma escola privada, elitista,discriminatria e... largamente financia-
da com recursos que deveriam benefi-
c iar a todos.Este o primeiro aspecto
da excluso.
O segundo aspecto ocorre na sele-
o ao ensino superior. A todos j sa-
bem: os papis se invertem. O ensino
superior de qualidade no Brasil est qua-se inteiramente nas mos do Estado. E
o que faz o Estado nesse domnio? Ins-
titui um mecanismo de seleo que vai
justamente propiciar a exclusividade do
acesso, sobretudo aos cursos de maior
prestgio e aptos a assegurar um bom
futuro profissional, queles que se be-
neficiaram do processo de excluso aci-ma mencionado, isto , os financeira-
mente bem aquinhoados. O vestibular,
este mecanismo intrinsecamente intilsob a tica do aprendizado, no tem
outro objetivo que no o de excluir.
Mais precisamente, o de excluir os soci-
almente fragilizados, de sorte a permitir
que os recursos pblicos destinados
educao (canalizados tanto para as ins-
tituies pblicas quanto para as de ca-
rter comercial, como j vimos) sejamgastos no em prol de todos, mas para
benefcio de poucos. Em suma, trata-se
de uma subverso total de um dos prin-
cpios informadores do Estado moder-
no, sintetizado de forma lapidar em feliz
expresso cunhada pela Corte Suprema
dos EUA: the po w er o f Cong ress to
author ize expendi ture of publ ic m oneys
for pu bl ic pu rpo ses.
Esta , pois, a chave para se enten-
der por que existem to poucos negros
nas universidades pblicas brasileiras, e
quase nenhum nos cursos de maior pres-
tgio e demanda: os recursos pblicos
so canalizados preponderantemente
para as classes mais afluentes,23 24 res-tando aos pobres (que so majoritaria-
mente negros) as migalhas do sistema.
Este o aspecto perverso do siste-
ma educacional brasileiro. Os negros so
suas principais vtimas. E este , sem
dvida, um problema constitucional de
primeira grandeza, pois nos remete
noo primitiva de democracia, a saber:em que, por quem e em benefcio de
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quem so despendidos os recursos fi-
nanceiros da Nao.Agir afirmativamente significa ter
conscincia desses problemas e tomar
decises coerentes com o imperativo
indeclinvel de remedi-los. Alm da
vontade poltica, que fundamental,
preciso colocar de lado o formalismo t-
pico da nossa praxis jurdico-institucional
e entender que a questo de vital im-portncia para a legtima aspirao de
todos de que um dia o Pas se subtraia
ao oprbrio internacional a que sempre
esteve confinado, e ocupe o espao, a
posio e o respeito que a sua histria,
o seu povo, suas realizaes e o seu
peso poltico e econmico recomendam.
No plano estritamente jurdico (quese subordina, a nosso sentir, tomada
de conscincia assinalada nas linhas an-
teriores), o Direito Constitucional vigente
no Brasil, perfeitamente compatvel com
o princpio da ao afirmativa. Melhor di-
zendo, o Direito brasileiro j contempla
algumas modalidades de ao afirmati-
va, inclusive em sede constitucional.A questo se coloca, claro, no ter-
reno do princpio constitucional da igual-
dade. Este princpio, porm, comporta
vrias vertentes.
3.3. Igualdade formal ou
procedimental x igualdade de resulta-
dos ou material O cerne da questoreside em saber se na implemen-tao
do princpio constitucional da igualda-
de o Estado deve assegurar apenasuma certa neutralidade processual
(procedura l due pro cess of law )ou, ao
contrrio, se sua ao deve se encami-
nhar de preferncia para a realizao de
uma igualdade de resultados ou igual-
dade material. A teoria constitucional
clssica, herdeira do pensamento de
Locke, Rousseau e Montesquieu, res-ponsvel pelo florescimento de uma con-
cepo meramente formal de igualdade
a chamada igualdade perante a lei.
Trata-se em realidade de uma igualda-
de meramente processual (process-
regard ing equal ity). As notrias insufi-
cincias dessa concepo de igualdade
conduziram paulatinamente adoode uma nova postura, calcada no mais
nos meios que se outorgam aos indiv-
duos num mercado competitivo, mas
nos resultados efetivos que eles podem
alcanar. Resumindo singelamente a
questo, diramos que as naes que
historicamente se apegaram ao concei-
to de igualdade formal so aquelas ondese verificam os mais gritantes ndices
de injustia social, eis que, em ltima
anlise, fundamentar toda e qualquer
poltica governamental de combate
desigualdade social na garantia de que
todos tero acesso aos mesmos ins-
trumentos de combate corresponde, na
prtica, a assegurar a perpetuao dadesigualdade. Isto porque essa opo
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processual no leva em conta aspec-
tos importantes que antecedem en-trada dos indivduos no mercado com-
petitivo. J a chamada igualdade de re-
sultados tem como nota caracterstica
exatamente a preocupao com os fa-
tores externos luta competitiva tais
como classe ou origem social, nature-
za da educao recebida , que tm ine-
gvel impacto sobre o seu resultado.25
Vrios dispositivos da Constituio
Brasileira de 1988 revelam o repdio do
constituinte pela igualdade processual
e sua opo pela concepo de igualda-
de dita material ou de resultados.
Assim, por exemplo, os artigos 3o,
7o, XX; 37, VIII, e 170 dispem:
Art. 3o. Constituem objetivos fun-
damentais da Repblica Federativa do
Brasil:
I construir uma sociedade livre,
justa e solidria;
(...)
III erradicar a pobreza e a
marginalizao e reduzir as desigual-dades sociaise regionais.
Art. 170. A ordem econmica, fun-
dada na valorizao do trabalho huma-
no e na livre iniciativa, tem por fim asse-
gurar a todos existncia digna, confor-
me os ditames dajustia social, obser-
vados os seguintes princpios:(...)
VII reduo das desigualdades
regionais e sociais (...)
IX tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constitu-
das sob as leis brasileiras e que tenham
sua sede e administrao no Pas.26
Art. 7o. So direitos dos trabalha-
dores urbanos e rurais, alm de outros
que visem melhoria de sua condiosocial:
(...)
XX proteo do mercado de tra-
balho da mulher, mediante incentivos
especficos, nos termos da lei;
Art. 37 (...)
VIII A lei reservar percentual doscargos e empregos pblicos para as pes-
soas portadoras de deficincia e defini-
r os critrios de sua admisso.
patente, pois, a maior preocu-
pao do legislador constituinte origi-
nrio com os direitos e garantias fun-
damentais, bem como com a questoda igualdade, especialmente a
implementao da igualdade substan-
cial. Flvia Piovesan assinala como sm-
bolo dessa preocupao (a) topogra-
f iade destaque que recebe este grupo
de direitos (fundamentais) e deveres em
relao s Constituies anteriores; (b)
a elevao, clusula ptrea, dos di-reitos e garantias individuais (art. 60,
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4o, IV); (c) o aumento dos bens mere-
cedores de tutela e da titularidade denovos sujeitos de direito (coletivo),
tudo comparativamente s Cartas an-
tecedentes27Some-se a isso a previ-
so expressa, em sede constitucional,
da igualdade entre homens e mulhe-
res (art. 5o, I) e, em alguns casos, da
permisso expressa para utilizao das
aes afirmativas, com o intuito deimplementar a igualdade, tais como o
artigo 37, VIII (reserva de cargos e em-
pregos pblicos para pessoas portado-
ras de deficincia) e art. 7o, XX (prote-
o do mercado de trabalho da mu-
lher, mediante incentivos especficos,
nos termos da lei).
V-se, portanto, que a ConstituioBrasileira de 1988 no se limita a proi-
bir a discriminao, afirmando a igual-
dade, mas permite, tambm, a utiliza-
o de medidas que efetivamente
implementem a igualdade material. E
mais: tais normas propiciadoras da
implementao do princpio da igualda-
de se acham precisamente no Ttulo Ida Constituio, o que trata dos princ-
pios fundamentais da nossa Repblica,
isto , cuida-se de normas que infor-
mam todo o sistema constitucional, co-
mandando a correta interpretao de
outros dispositivos constitucionais.
Como bem sustentou a ilustre Profes-
sora de Direito Constitucional da PUCde Minas Gerais, Carmen Lcia Antunes
Rocha, a Constituio Brasileira de
1988 tem, no seu prembulo, uma de-clarao que apresenta um momento
novo no constitucionalismo ptrio: a
idia de que no se tem a democracia
social, a justia social, mas que o Direito
foi ali elaborado para que se chegue a
t-los (...) O princpio da igualdade res-
plandece sobre quase todos os outros
acolhidos como pilastras do edifcionormativo fundamental alicerado.
guia no apenas de regras, mas de quase
todos os outros princpios que informam
e conformam o modelo constitucional
positivado, sendo guiado apenas por
um, ao qual se d a servir: o da dignida-
de da pessoa humana (art. 1o, III, da
Constituio da Repblica).28E prosse-gue a ilustre jurista, fazendo aluso ex-
pressa aos dispositivos constitucionais
acima transcritos: Verifica-se que todos
os verbos utilizados na expresso
normativa con strui r, errad icar, redu-
zir , prom over so de ao, vale dizer,
designam um comportamento ativo. O
que se tem, pois, que os objetivosfundamentais da Repblica Federativa
do Brasil so definidos em termos de
obrigaes transformadoras do quadro
social e poltico retratado pelo constitu-
inte quando da elaborao do texto
constitucional. E todos os objetivos con-
tidos, especialmente, nos trs incisos
acima transcritos do art. 3oda Lei Fun-damental da Repblica, traduzem exa-
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tamente mudana para se chegar
igualdade. Em outro dizer, a expressonormativa constitucional significa que a
Constituio determina uma mudana
do que se tem em termos de condies
sociais, polticas, econmicas e regio-
nais, exatamente para se alcanar a re-
alizao do valor supremo a fundamen-
tar o Estado Democrtico de Direito
constitudo. Se a igualdade jurdica fos-se apenas a vedao de tratamentos
discriminatrios, o princpio seria abso-
lutamente insuficiente para possibilitar
a realizao dos objetivos fundamen-
tais da Repblica constitucionalmente
definidos. Pois daqui para a frente, nas
novas leis e comportamentos regulados
pelo Direito, apenas seriam impedidasmanifestaes de preconceitos ou co-
metimentos discriminatrios. Mas como
mudar, ento, tudo o que se tem e se
sedimentou na histria poltica, social e
econmica nacional? Somente a ao
a f i r m a t i v a , vale dizer, a atuao
transformadora, igualadora pelo e se-
gundo o Direito possibilita a verdade doprincpio da igualdade, para se chegar
igualdade que a Constituio Brasi-
leira garante como direito fundamental
de todos. O art. 3otraz uma declarao,
uma afirmao e uma determinao em
seus dizeres. Declara-se, ali, implcita,
mas claramente, que a Repblica Fede-
rativa do Brasil no livre, porque nose organiza segundo a universalidade
desse pressuposto fundamental para o
exerccio dos direitos, pelo que, no dis-pondo todos de condies para o exer-
ccio de sua liberdade, no pode ser jus-
ta. No justa porque plena de desi-
gualdades antijurdicas e deplorveis
para abrigar o mnimo de condies dig-
nas para todos. E no solidria por-
que fundada em preconceitos de toda
sorte (...) O inciso IV do mesmo art. 3omais claro e afinado, at mesmo no ver-
bo utilizado, com a ao afirmativa. Por
ele se tem ser um dos objetivos funda-
mentais prom over o bem de todo s, sem
preconceito s de o rigem , raa, sexo, co r,
idade e quaisquer outras form as de dis-
cr im inao.Verifica-se, ento, que no
se repetiu apenas o mesmo modeloprincipiolgico que adotaram constitu-
intes anteriormente atuantes no Pas.
Aqui se determina, agora uma ao afir-
mat iva:aquela pela qual se promova o
bem de todos, sem preconcei tos (de)
qu aisqu er... fo rm as de d iscrim inao.
Significa que se universaliza a igualda-
de e promove-se a igualao: somentecom uma conduta ativa, positiva, afir-
mativa, que se pode ter a transfor-
mao social buscada como objetivo
fundamental da Repblica... Se fosse
apenas para manter o que se tem, sem
figurar o passado ou atentar hist-
ria, teria sido suficiente, mais ainda,
teria sido necessrio, tecnicamente, queapenas se estabelecesse ser objetivo
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manter a igualdade sem preconceitos,
etc. No foi o que pretendeu a Consti-tuio de 1988. Por ela se buscou a
mudana do conceito, do contedo, da
essncia e da aplicao do princpio da
igualdade jurdica, com relevo dado
sua imprescindibilidade para a trans-
formao da sociedade, a fim de se
chegar a seu modelo livre, justa e soli-
dria. Com promoo de mudanas,com a adoo de condutas ativas, com
a construo de novo figurino scio-
poltico que se movimenta no senti-
do de se recuperar o que de equivoca-
do antes se fez.29
Esta, portanto, a concepo mo-
derna e dinmica do princpio constitu-
cional da igualdade, a que conclama oEstado a deixar de lado a passividade, a
renunciar sua suposta neutralidade e
a adotar um comportamento ativo, po-
sitivo, afirmativo, quase militante, na bus-
ca da concretizao da igualdade subs-
tancial.
Note-se, mais uma vez, que este
tipo de comportamento estatal no estranho ao Direito brasileiro ps-Cons-
tituio de 1988. Ao contrrio, a
imprescindibilidade de medidas correti-
vas e redistributivas visando a mitigar a
agudeza da nossa questo social j foi
reconhecida em sede normativa, atravs
de leis vocacionadas a combater os efei-
tos nefastos de certas formas de discri-minao. Nesse sentido, importante fri-
sar, o Direito brasileiro j contempla al-
gumas modalidades de ao afirmativa.No obstante tratar-se de experincias
ainda tmidas quanto ao seu alcance e
amplitude, o importante a ser destaca-
do o fato da acolhida desse instituto
jurdico em nosso Direito.
4 AO AFIRMATIVA E RELAES DEGNERO
A discriminao de gnero, fruto de
uma longa tradio patriarcal que no
conhece limites geogrficos tampouco
culturais, do conhecimento de todos
os brasileiros. Entre ns, o statusde in-
ferioridade da mulher em relao aohomem foi por muito tempo considera-
do como algo qui va de soi, normal, de-
corrente da prpria natureza das coi-
sas. A tal ponto que essa inferioridade
era materializada expressamente na nos-
sa legislao civil.
A Constituio de 1988 (art. 5o, I)
no apenas aboliu essa discriminaochancelada pelas leis, mas tambm,
atravs dos diversos dispositivos
antidiscriminatrios j mencionados,
permitiu que se buscassem mecanismos
aptos a promover a igualdade entre ho-
mens e mulheres. Assim, com vistas a
minimizar essa flagrante desigualdade
existente em detrimento das mulheres,nasceu, entre ns, a modalidade de ao
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afirmativa hoje corporificada nas Leis nos
9.100/1995 e 9.504/1997, que estabe-leceram cotas mnimas de candidatas
mulheres para as eleies30.
As mencionadas leis representam,
em primeiro lugar, o reconhecimento
pelo Estado de um fato inegvel: a exis-
tncia de discriminao contra as bra-
sileiras, cujo resultado mais visvel a
exasperante sub-representao femini-na em um dos setores-chave da vida
nacional o processo poltico. Com
efeito, o legislador ordinrio, conscien-
te de que em toda a histria poltica
do Pas foi sempre desprezvel a partici-
pao feminina, resolveu remediar a si-
tuao atravs de um corretivo que nada
mais do que uma das muitas tcnicasatravs das quais, em Direito Compa-
rado, so concebidas e implementadas
as aes afirmativas: o mecanismo das
cotas.
As Leis nos9.100/1995 e 9.504/1997
tiveram a virtude de lanar o debate em
torno das aes afirmativas e, sobretu-
do, de tornar evidente a necessidade pre-mente de se implementar de maneira
efetiva a isonomia em matria de gne-
ro em nosso pas. As cotas de candida-
turas femininas constituem apenas o pri-
meiro passo nesse sentido. Se certo
que preciso tempo para se fazer ava-
liaes mais seguras acerca da sua efi-
ccia como medida de transformaosocial, no h dvida de que j se anun-
ciam alguns resultados alvissareiros,
como o incremento significativo, em ter-mos globais, da participao feminina
nas instncias de poder31.
Assim, as mencionadas leis consa-
gram a recepo definitiva pelo Direito
brasileiro do princpio da ao afirmati-
va. Ainda que limitada a uma forma es-
pecfica de discriminao, o fato que
essa poltica social ingressou nosmoeurspol i t iques da Nao, uma vez que foi
aplicada sem contestao em dois plei-
tos eleitorais.
5 AO AFIRMATIVA E PORTADORES
DE DEFICINCIA
O mesmo princpio tambm vem
sendo adotado pela legislao que visa
a proteger os direitos das pessoas por-
tadoras de deficincia fsica.
Com efeito, a Constituio Brasilei-
ra, em seu artigo 37, VIII, prev expres-
samente a reservas de vagas para defi-
cientes fsicos na administrao pblica.Neste caso, a permisso constitucional
para adoo de aes afirmativas em
relao aos portadores de deficincia f-
sica expressa. Da a iniciativa do legis-
lador ordinrio, materializada nas Leis nos
7.835/89 e 8.112/1990, que regulamen-
taram o mencionado dispositivo consti-
tucional. De fato, a Lei no 8.112/1990(Regime J urdico nico dos Servidores
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5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva
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Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 107
Pblicos Civis da Unio) estabelece em
seu art. 5o, 2o, que s pessoas porta-doras de deficincia assegurado o di-
reito de se inscrever em concurso pbli-
co para provimento de cargo cujas atri-
buies sejam compatveis com a defici-
ncia de que so portadoras; para tais
pessoas sero reservadas at 20% (vin-
te por cento) das vagas oferecidas no
concurso.Comentando o dispositivo transcri-
to, Mnica de Melo32, com muita proprie-
dade, afirma:
Desta fo rm a, qua lquer co ncurso
pbl ic o q ue se dest in e a preen -
chim ento de vag as para o serv io
pbl ico feder al d ever co nt er em
seu ed it al a p reviso das v agas r e-
servadas para os po r tad ores de
defi c inci a. Not e-se qu e o art ig o
fa la em at20% (v inte po r cent o)
das vagas , o q ue poss ib i l i ta um a
reserva m enor e o ou t ro requ is i to
leg al que as at ri b uies a se-
rem d esem penhadas sejam com -
pa tveis com a d efic inc ia ap re-
sen tad a . H en t end im en t os n o
sent id o de qu e 10% (dez po r cen-
t o ) d a s v a g a s s e r i a m um
pe rcent ual razovel, m ed id a que
no Br as i l haver ia 10% d e pessoas
po r tad or as de d ef ic incia segu n-
do d ado s da O rg ani zao Mu nd i-
al d e Sade.
Esta outra modalidade de discri-
minao positiva tem recebido o be-neplcito do Poder J udicirio. Com efei-
to, tanto o Supremo Tribunal Federal
quanto o Superior Tribunal de J ustia
j tiveram oportunidade de se mani-
festar favoravelmente sobre o tema,
verb is:
Ementa:
Sendo o art. 37, VII, da CF, norma
de eficcia contida, surgiu o art. 5o,
2o, do novel Estatuto dos Servi-
dores Pblicos Federais, a toda evi-
dncia, para regulamentar o citado
dispositivo constitucional, a fim de
lhe proporcionar a plenitudeeficacial. Verifica-se, com toda a fa-
cilidade, que o dispositvo da lei
ordinria definiu os contornos do
comando constitucional, assegu-
rando o direito aos portadores de
deficincia de se inscreverem em
concurso pblico, ditando que os
cargos providos tenham atribui-es compatveis com a deficin-
cia de que so portadores e, fi-
nalmente, estabelecendo um
percentual mximo de vagas a
serem a eles reservadas. Dentro
desses parmetros, fica o adminis-
trador com plena liberdade para
regular o acesso dos deficientesaprovados no concurso para provi-
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5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva
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Srie Cadernos do CEJ , 24108
mento de cargos pblicos, no ca-
bendo prevalecer diante da garan-tia constitucional, o alijamento do
deficiente por no ter logrado clas-
sificao, muito menos por recusar
o dec isum afrontado que no te-
nha a norma constitucional sido re-
gulamentada pelo dispositivo da lei
ordinria, to-s, por considerar
no ter ela definido critrios sufici-entes. Recurso provido com a con-
cesso da segurana, a fim de que
seja oferecida recorrente vaga,
dentro do percentual que for fixa-
do para os deficientes, obedecida,
entre os deficientes aprovados, a
ordem de classificao, se for o
caso. (RMS no 3.113-6/DF, 6a T.,6.12.1994, cujo Relator foi o Min.
Pedro Acioli).
Conc u r s o p b l i c o e vaga p a r a
de f i c i en t e s
Por ofensa ao art. 37, V, da CF (a
lei reservar percentual d os cargo s
e empreg os pblico s para as pes-
soas po rt ado ras de defi c inc ia e
defi n ir os cr itri os de sua adm is-
so), o Tribunal deu provimento a
recurso extraordinrio para refor-
mar acrdo do Tribunal de J ustia
do Estado de Minas Gerais que ne-
gara portadora de deficincia o
direito de ter assegurada uma vagaem concurso pblico ante a impos-
sibilidade aritmtica de se destinar,
dentre as 8 vagas existentes, a re-serva de 5% aos portadores de de-
ficincia fsica (LC no 9/1992 do
Municpio de Divinpolis). O Tribu-
nal entendeu que, na hiptese de
a diviso resultar em nmero
fracionado no importando que
a frao seja inferior a meio , im-
pe-se o arredondamento paracima. RE no227.299-MG, rel. Min.
Ilmar Galvo, 14.6.2000.
(RE no227.299).
Como se v, a destinao de um
percentual de vagas no servio pblico
aos deficientes fsicos no viola o prin-
cpio da isonomia. Em primeiro lugar,porque a deficincia fsica de que essas
pessoas so portadoras traduz-se em
uma situao de ntida desvantagem em
seu detrimento, fato este que deve ser
devidamente levado em conta pelo Es-
tado, no cumprimento do seu dever de
implementar a igualdade material. Em
segundo, porque os deficientes fsicosse submetem aos concursos pblicos,
devendo necessariamente lograr apro-
vao. A reserva de vagas, portanto, re-
presenta uma dentre as diversas tcni-
cas de implementao da igualdade
material, consagrao do princpio b-
blico segundo o qual deve-se tratar
igualmente os iguais e desigualmenteos desiguais.
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Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 109
Pois bem. Se esse princpio ple-
namente aceitvel (inclusive na esferajurisdicional, como vimos) como meca-
nismo de combate a uma das mltiplas
formas de discriminao, da mesma for-
ma ele haver de ser aceito para com-
bater aquela que a mais arraigada for-
ma de discriminao entre ns, a que
tem maior impacto social, econmico e
cultural a discriminao de cunho raci-al. Isto porque os princpios constitucio-
nais mencionados anteriormente so
vocacionados a combater toda e qual-
quer disfuno social originria dos pre-
conceitos e discriminaes incrustados
no imaginrio coletivo, vale dizer, os pre-
conceitos e discriminao de fundo his-
trico e cultural. No se trata de princpi-os de aplicao seletiva, bons para cu-
rar certos males, mas inadaptados a re-
mediar outros.
6 AO AFIRMATIVA E DIREITO INTER-
NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
O problema aqui tratado, como se
sabe, transcende o Direito interno brasi-
leiro e envolve o Direito Internacional,
especialmente o chamado Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos. Ele tra-
duz perfeio o fenmeno que Hlne
Tourard com muita propriedade classifi-
cou como I n t e r na t i o na l i s at i on desconst i tu t ions.33
Com efeito, no obstante as diver-
gncias doutrinrias e jurisprudenciaisque pairam sobre o assunto, no po-
demos deixar de consignar a contribui-
o trazida matria por uma avana-
da inteligncia do artigo 5oda Consti-
tuio de 1988, que em seus 1oe 2o
traz disposies importantssimas para
a efetiva implementao dos direitos e
garantias fundamentais. Com efeito, o 1o estabelece que as normas
definidoras dos direitos e garantias fun-
damentais tm aplicao imediata no
pas. J o 2odispe que os direitos e
garantias expressos nesta Constituio
no excluem outros decorrentes do re-
gime e dos princpios por ela adotados,
ou d os t ra tados in ternac iona is em que
a Repbl i ca Federat iva d o Brasi l seja
parte.
Como resultado da conjugao do
1o com o 2odo artigo 5o do texto
constitucional, uma interpretao siste-
mtica da Constituio nos conduz
constatao de que estamos diante de
normas da mais alta relevncia para aproteo dos direitos humanos (e, con-
seqentemente, dos direitos das mino-
rias) no Brasil, quais sejam: os tratados
internacionais de direitos humanos, que,
segundo o dispositivo citado, tm apli-
cao imediata no territrio brasileiro,
necessitando apenas de ratificao.
Com efeito, esse o ensinamentoque colhemos em dois dos nossos mais
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Srie Cadernos do CEJ , 24110
eruditos scholars, especialistas na ma-
tria, os Professores Antnio AugustoCanado Trindade34 e Celso de
Albuquerque Mello, verbis:
O d i s p o s t o no a r t . 5 o, 2o, d a
Consti tu io Brasi leir a d e 198 8 se
in sere na no va ten dnc ia de Con s-
t i t u ies lat in o- am ericanas r ecen-
t e s de concede r um t r a t am en to
especial ou di feren ciad o tam bm
no p lano do d i re it o in te rno aos d i -
re i tos e garan t ias ind iv idua is in -
t e r n a ci o na lm en t e c on s ag r a do s .
A especi f i c id ad e e o carter es-
pe cia l d o s tra ta do s de p ro teo
in te rnac iona l do s d i rei tos hum a-
no s encont ram -se , com efe ito , re -
conhec i dos e sanc i onados p e l a
Con sti tu io Br asilei ra d e 19 88 :
se, para os t ratados int ernac ionais
e m g e r a l , se t e m e x ig i d o a
i n t e r m ed i ao pe l o p o d e r
Legislativo de ato com fora de lei,
de m odo a outorgar a suas d ispo-
sies vignc ia ou obr ig ato ried ade
no plano do ord enam ento jurdi -
co in te rno , d is t in tam ente no caso
do s trat ado s de p ro teo i nt ern a-
c iona l dos d i re i tos hum anos em
qu e o Bras i l parte, o s di re i to s
f u nd am en t a i s ne l e s ga r a n t i d o s
passam , consoante o ar t igo 5o,
2oe 1o, da Const it u io Brasil eir a
de 1988, a in tegrar o e lenco d os
d i re i tos const i tuc iona lm ente con-
sagrado s di reta e im ediatam ente
exigveis no p lano do ord enam ento
ju rd ico in terno.35
A Con st it u io de 1 988, no 2o
d o a r t . 5 ocons t i t u c i o na l i zou as
norm as de d i rei tos hum anos con-
sagrad as nos tratado s. Sign i f ican-
do isto qu e as referidas norm as so
norm as cons t i tuc iona is, com o d iz
Flvia Piovesan cit ada acim a. Con -
sid ero est a p o sio j com o um
grand e avano. Cont ud o, sou ain-
da m ais rad ical no sent ido d e que
a norm a in te rnac iona l prevalece
s o b r e a n o rm a co n s t i t u c i o n a l ,
m esm o naque le caso em que um a
no rm a c on s t i t u c i o n a l po s t e ri o r
ten te revogar um a norm a in terna-
c ional con st i tuc ion al izada. A nos-
sa p o sio a q ue est consag ra-
da n a jur ispru dncia e t ratado in-
t e r n a c i o na l eu r o p eu de que s e
deve apli car a no rm a m ais benfi-
ca ao ser hum ano, seja ela inter -
na o u i nt ern acio nal. A t ese de Fl-
via Piovesan tem a grand e vanta-
gem de ev itar que o Suprem o Tr i-
b un a l Fede r a l v enha a j u l g a r a
cons t i tuc iona- l idade dos t ra tados
internacionais. 36
Assim, luz desta respeitvel dou-trina, pode-e concluir que o Direito Cons-
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titucional brasileiro abriga, no somen-
te o princpio e as modalidades implci-tas e explcitas de ao afirmativa a que
j fizemos aluso, mas tambm as que
emanam dos tratados internacionais de
direitos humanos assinados pelo nosso
pas. Com efeito, o Brasil signatrio dos
principais instrumentos internacionais de
proteo dos direitos humanos, em es-
pecial a Conveno sobre a Eliminaode Todas as Formas de Discriminao
Racial e a Conveno sobre a Elimina-
o de Todas as Formas de Discrimina-
o contra a Mulher, os quais permitem
expressamente a utilizao das medidas
positivas tendentes a mitigar os efeitos
da discriminao.
De fato, a Conveno sobre a Eli-minao de Todas as Formas de Discri-
minao Racial (1968), ratificada pelo
Brasil em 27 de maro de 1968, dispe
em seu artigo 1o, no4, verbis:
Art. 1o. No sero consideradas dis-
criminao racial as medidas espe-
ciais tomadas com o nico objetivode assegurar o progresso adequa-
do de certos grupos raciais ou t-
nicos ou de indivduos que neces-
sitem da proteo que possa ser
necessria para proporcionar a tais
grupos ou indivduos igual gozo ou
exerccio de direitos humanos e li-
berdades fundamentais, contantoque tais medidas no conduzam,
em conseqncia, manuteno de
direitos separados para diferentesgrupos raciais e no prossigam
aps terem sido alcanados os seus
objetivos.
Dispositivo de igual teor tambm
figura no artigo 4oda Conveno sobre
a Eliminao de Todas as Formas de Dis-
criminao contra a Mulher (1979),ratificada pelo Brasil em 1984, com re-
servas na rea de Direito de Famlia, re-
servas estas que foram retiradas em
1994, verbis:
Ar t i g o 4 o. A ad oo pelos Esta-
do s-partes de m edidas especiais de
carte r tem po rri o d esti na d as a
acelerar a igualdade de fato entre
o h om em e a m ulher no se consi-
derar d iscr im inao na fo rm a d e-
fin id a ne sta Conv eno , m as de
nenhum a m aneira im pl icar, com o
co nseqnci a, a m anu teno de
nor m as desigua is ou separadas;
essas m edi das cessaro q uando os
objet ivos de igualdade de opo r tu-
nidade e tratamento hou verem sido
alc anados.
, portanto, amplo e diversificado
o respaldo jurdico s medidas afirmati-
vas que o Estado brasileiro resolva em-
preender no sentido de resolver esse quetalvez seja o mais grave de todos os nos-
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5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva
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Srie Cadernos do CEJ , 24112
sos problemas sociais o alijamento e a
marginalizao do negro na sociedadebrasileira. A questo se situa, primeira-
mente, na esfera da Alta Poltica. Ou seja,
trata-se de optar por um m odle d e
socit, um ch o ix po li t iq ue, como diri-
am os juristas da escola francesa. No pla-
no jurdico, no h dvidas quanto sua
viabilidade, como se tentou demonstrar.
Resta, to-somente, escolher os critri-os, as modalidades e as tcnicas adap-
tveis nossa realidade, cercando-as das
devidas cautelas e salvaguardas.
7 CRITRIOS, MODALIDADES E LIMI-
TES DAS AES AFIRMATIVAS
Ao debruar-se sobre o tema, o Pro-
fessor J oaquim Falco sustentou que
se, por um lado, tranqila a
constatao de que o princpio da igual-
dade formal relativo e convive com
diferenciaes, nem todas as diferenci-
aes so aceitas. A dificuldade de-
terminar os critrios a partir dos quaisuma diferenciao aceita como cons-
titucional.37O autor apresenta soluo
ao problema, afirmando que a justifica-
o38do estabelecimento da diferena
seria uma condio s ine qua no npara
a constitucionalidade da diferenciao,
a fim de evitar a arbitrariedade. Esta jus-
tificao deve ter um contedo, basea-do na razoabilidade, ou seja, num fun-
damento razovel para a diferenciao;
na racionalidade, no sentido de que amotivao deve ser objetiva, racional e
suficiente; e na proporcionalidade, isto
, que a diferenciao seja um reajuste
de situaes desiguais. Aliado a isto, a
legislao infraconstitucional. deve res-
peitar trs critrios concomitantes para
que atenda ao princpio da igualdade
material: a diferenciao deve (a) decor-rer de um comando-dever constitucio-
nal, no sentido de que deve obedincia
a uma norma programtica que deter-
mina a reduo das desigualdades so-
ciais; (b) ser especfica, estabelecendo
claramente aquelas situaes ou indiv-
duos que sero beneficiados com a
diferenciao, e (c) ser eficiente, ou seja, necessria a existncia de um nexo
causal entre a prioridade legal concedi-
da e a igualdade socioeconmica pre-
tendida39. Entendimento semelhante
esposado por B. Renauld no artigo j
mencionado: Tro i s lm en t s n o u s
perm et ten t d e don ner um cont enu Ia
not ion de discr im inat ion po s i t ive tel le
quell e sera ut ili se par l a su it e. Pour
ident i f ier une discr im inat ion p os i t ive, i l
fau t q ue l o n so i t en p rsenc e du n
grou pe dindiv idu s suffi samm ent dfrni ,
d une discr im inat ion struc ture l le do nt
ls mem bres de ce grou pe sont vict im es
e t en f i a d un p l an tab l i s s an t d es
ob ject i fs et dfenissant des m oy ens
m ett re en oeu vre visant co rrig er la
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Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 113
di scrim in ati on en visage. Selon les cas,
le p lan est ad op t, vo ir e im pospar une
auto r i tpub l ique o u est le fru i t d une
in it ia t ive p ri ve.
Sem dvida, os critrios acima es-
tabelecidos so um timo ponto de par-
tida para o estabelecimento de aes
afirmativas no Brasil. Porm, falta ao Di-
reito brasileiro um maior conhecimento
das modalidades e das tcnicas que po-dem ser utilizadas na implementao de
aes afirmativas. Entre ns, fala-se qua-
se exclusivamente do sistema de cotas,
mas esse um sistema que, a no ser
que venha amarrado a um outro critrio
inquestionavelmente objetivo 40, deve ser
objeto de uma utilizao marcadamente
marginal.Com efeito, o essencial que o Es-
tado reconhea oficialmente a existn-
cia da discriminao racial, dos seus
efeitos e das suas vtimas, e tome a de-
ciso poltica de enfrent-la, transfor-
mando esse combate em uma poltica
de Estado. Uma tal atitude teria o sau-
dvel efeito de subtrair o Estado brasi-leiro da ambigidade que o caracteriza
na matria: a de admitir que existe um
problema racial no Pas e ao mesmo
tempo furtar-se a tomar medidas srias
no sentido minorar os efeitos sociais
dele decorrentes.
Em segundo lugar, preciso ter cla-
ra a idia de que a soluo ao problemaracial no deve vir unicamente do Esta-
do. Certo, cabe ao Estado o importante
papel de impulso, mas ele no deve sero nico ator nessa matria. Cabe-lhe tra-
ar as diretrizes gerais, o quadro jurdi-
co luz do qual os atores sociais pode-
ro agir. Incumbe-lhe remover os fato-
res de discriminao de ordem estrutu-
ral, isto , aqueles chancelados pelas
prprias normas legais vigentes no Pas,
como ficou demonstrado acima. Mas aspolticas afirmativas no devem se limi-
tar esfera pblica. Ao contrrio, devem
envolver as universidades, pblicas e
privadas, as empresas, os governos es-
taduais, as municipalidades, as organi-
zaes governamentais, o Poder J udici-
rio, etc.
No que pertine s tcnicas deimplementao das aes afirmativas,
podem ser utilizados, alm do sistema
de cotas, o mtodo do estabelecimen-
to de preferncias, o sistema de bnus
e os incentivos fiscais (como instrumen-
to de motivao do setor privado). De
crucial importncia o uso do poder
fiscal, no como mecanismo deaprofundamento da excluso, como
da nossa tradio, mas como instrumen-
to de dissuaso da discriminao e de
emulao de comportamentos (pblicos
e privados) voltados erradicao dos
efeitos da discriminao de cunho his-
trico.
Noutras palavras, ao afirmativano se confunde nem se limita s cotas.
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Srie Cadernos do CEJ , 24114
Confira-se, sobre o tema, as judiciosas
consideraes feitas por Wania SantAnnae Marcello Paixo, no interessante traba-
lho intitulado Muit o Alm da Senzala :
Ao Afirm at iva no Brasi l, verbis:
Segun do Hun tl ey , Ao afirm ati -
va um conceito que inclu i di fe-
ren tes t ip os de est ra tgias e prt i-
cas. To das essas est ra tgias e pr-
tic as esto dest inad as a aten der
pro blem as histr icos e atuais que
se constatam nos Estados Unidos
em re lao s m ulh eres, aos afro -
am er icanos e a out ros grupos que
tm sido alvo de d iscr im inao e,
con seqentem ente, aos quais se
tem negado a op or tun idade de de-
senvolver plenam ente o seu talen-
to , de part ic ipar em to das as esfe-
ras da sociedad e am ericana. (. . .)
Ao afirm ati va um co nc eit o que ,
usualm ente, requer o que ns cha-
m amos m etas e cronogram as. Me-
tas so um pad ro d esejado p elo
qu al se m ede o pro gr esso e no se
confund e com cotas. Opositores da
ao afirm ati va nos Estados Unidos
freqentem ente caracter izam m e-
tas com o sendo cotas , suger indo
que elas so in flexvei s, ab so lu tas,
qu e as pessoas so ob rig adas a
atingi- las.
A po lt ica d e ao af irm at iva no
exige, necessariam ente, o estabe-
lec im ento de um percentual de va-
gas a ser preenchido po r um dado
gr up o da po pu lao. Entr e as es-
tr atgias p revistas, inc luem -se m e-
canism os que estim ulem as em pre-
sas a buscarem pessoas de ou tro
gnero e de g ru po s tn icos e raci -
ais especfico s, seja para com po r
seus qu adros, seja para fins de p ro-
m oo ou q uali fi cao pro fi ssio nal.
Bu sca- se, tam bm , a ad eq uao
do elenco de p ro fission ais s reali-
dad es verificad as na reg io d e op e-
rao da em pr esa. Essas m ed id as
estim ulam as unidades empresari-
ais a dem onst rar sua pr eoc up ao
com a divers idade hum ana de seus
quadros.
Isto no sign i f ica qu e um a dada
em presa deva ter um percen tua l
f i xo de em pregados negros , por
exemp lo, m as, sim , que esta em -
presa est dem on strand o a preo -
cupao em cri ar f o rm as de aces-
so ao em preg o e ascenso pro fis-
sion al para as pessoas no lig adas
a o s g r u p o s t r a d i c i o n a l m e n t e
hegemn i c o s em de t e rm i n ada s
funes (as m ais qu alif icad as e re-
m uneradas) e cargo s (os hierarqu i-
cam en te su peri o res). A ao afi r-
m at iva par te do reconhec imento de
qu e a com petnci a para exercer
funes de resp onsab ili dade no
exc lusiva de um determ inado gru-
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Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 115
po tn ico , racia l o u de gner o . Tam -
bm consid era que o s fato res qu e
im pedem a ascenso so cial d e de-
term inado s gru po s esto im brica-
dos num a com plexa rede de m ot i -
vaes, exp lcit a ou im pl ic it am en-
te, preconceitu osas.41
Por fim, no que diz respeito s cau-
telas a serem observadas, valho-memais uma vez dos ensinamentos da Prof.
Carmem Lcia Antunes Rochas, verbis:
im po rt ant e salien tar que no se
quer verem p rod uzidas novas dis-
cr im inaes com a ao afi rm at iva,
agora em desfavor das m aior ias,
que, sem serem m arginalizadas his-
to ricam ente, perdem espaos qu e
antes det inham face aos m emb ros
do s grup os afirm ado s pelo pr inc-
pio igualador no Direito . Para se evi-
tar que o extrem o op osto sobrevi-
esse que os planos e prog ram as
de ao afirm ativ a ad ot ado s no s
Estados Unido s e em out ros Esta-
do s, pr im aram sempre pela fixao
de percent uais mnim os garant ido -
res da p resena das m ino rias que
por eles se buscavam igualar, com
o objet ivo de se rom perem precon-
cei tos contra elas ou pelo m enos
pr op ic iar em -se con dies par a a
sua su pe rao em face da co nv i-
vncia ju rid icam ente o bri gada. Por
ela, a m aioria teria que se acostu-
m ar a trabalhar, a estudar, a se di-
vertir, etc., com os negros, as m u-
lheres, os jud eus, os orientais, os
velho s, etc., hab itu ando- se a v-lo s
pro duzir, viver, sem inferioridade ge-
nti ca d eterm inada pel as suas ca-
ract ersticas pessoai s resul tan tes do
grup o a qu e pertencessem . Os pla-
nos e pro gram as das entidades p-
b licas e par ti cu lares de ao af irm a-
tiva d eixam sempre dispu ta livre
da m aioria a m aior parcela de va-
gas em escolas, emp regos, em lo-
cais de lazer, etc., com o form a de
garan ti a dem ocrti ca do exer ccio
da li berd ade pessoal e da realizao
do pri ncpio da no-d isc rim in ao
(conti do no p rincpio con stitucio nal
da ig uald ade ju rdica) pela prp ria
sociedade.
J OAQUIM BENEDITO BARBOSA GO-
MES: Professor da Universidade Esta-
dual do Rio de J aneiro e Procurador
Regional da Repblica, Rio de J aneiro.
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5/28/2018 ART as aes afirmativas e os processos de promoo da igualdade efetiva
32/69
Srie Cadernos do CEJ , 24116
1 Doutor em Direito Pblico pela Universidade
de Paris-II (Panthon-Assas), Frana. Professor da
Faculdade de Direito da UERJ . Foi Visi t ing Scholar
da Faculdade de Direito da Universidade de
Columbia-NY, EUA. Membro do Ministrio Pblico
Federal (RJ ). Autor das obras La Cou r Sup rm e
dans le Svs tm e Poli t iq ue Brsil ien, editada pela
Librairie Gnrate de Droit et J urisprudence (LGDJ),
Paris, 1994; e Ao Afirm ativ a & Prin cip io Cons-
t i tuc io nal da Igualdade,