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O Trágico5º Centenário do

Descobrimentodo BrasilComemorar,Celebrar,Refletir

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Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria ComercialIrmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção EssênciaLuiz Eugênio Véscio

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O Trágico5º Centenário do

Descobrimentodo BrasilComemorar,Celebrar,Refletir

José Jobson de Andrade Arruda

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Rua Irmã Arminda, 10-50CEP 17044-160 - Bauru - SP - Brasil

Fone: (014) 235-7111 - Fax: (014) 235-7219e-mail: [email protected]

Copyright© EDUSC - 1999

Arruda, José Jobson de Andrade.O trágico 5º Centenário do

Descobrimento do Brasil: come-morar, celebrar, refletir / JoséJobson de Andrade Arruda. --Bauru, SP: EDUSC, 1999.

48 p.; 21 cm. -- (ColeçãoEssência)

ISBN 85-7460-002-4

1. Comemoração históricaI. Título II. Série

CDD - 344.091

A779t

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Por que comemorar?

As comemorações salazaristas

As comemorações da redemocratização

As comemorações oficiais brasileiras

O significado das comemorações

SUMÁRIO

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Nas comemorações, como xamãs da história, in-vocamos o passado. Qual passado? Não qualquer um!Mas um passado preciso, circunstanciado, necessaria-mente parcelar, recortado a partir das representaçõesdo presente, modelagem ideológica que o reduz àssuas mínimas expressões apropriáveis, escoimadas asdimensões que poderiam comprometer a estabilidadedo presente que, por esta via, estabelece as bases daaliança indissolúvel entre passado, presente e futuro.

Numa travessia célere através dos tempos, osDescobrimentos retornam do passado para serem ime-diatamente dissolvidos no presente, assimilados emsua palatabilidade e, de novo, relançados à sua origem,de onde ressurgirão na oportunidade da próxima co-memoração. Faces iluminadas; perfis nublados. Muti-lações inevitáveis operadas pela ação seletiva do pre-sente, que remete para o oblívio os tesouros ocultos doNovo Mundo, que por muitos séculos preservou-se"encoberto" 1 .

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111111111111POR QUE COMEMORAR?

1. A idéia que éramos os “encobertos” emerge nosescritos de João de Barros, quando se refere a “estenovo mundo tantas centenas de anos encoberto”,reiterada pelas argutas ponderações do PadreAntonioVieira sobre “o descobrimento do mesmomundo que tantos mil anos tinha estado incógnitoe ignorado”, expressões recuperadas por GODI-NHO, Vitorino Magalhães. Portugal e os

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Comemorações ritualizadas, celebrações religio-sas e festas cívicas, não eram incomuns no mundo an-tigo. Com o advento do cristianismo, as celebrações damorte e ressurreição de Cristo tornaram-se práticas co-tidianas nos círculos cristãos. No final da Idade Mé-dia, a intensificação da fé e a crise da consciência reli-giosa propiciam a generalização do culto dos santos,intermediários mais acessíveis entre os fiéis e Deus.Mas foi exatamente com a ruptura protestante, com aabolição da hagiografia católica, que se iniciaram ascomemorações de eventos marcantes. O primeiro delesfoi, exatamente, a rememoração de 1617, centenáriodas 95 teses de Martinho Lutero afixadas na porta dacapela de Wittenberg. A prática resistente dos protes-tantes não demorou a ser copiada pelos próprios cató-licos. Em 1640, os jesuítas comemoraram festivamen-te o primeiro século de existência da Companhia.

Contudo, foi no final do século XVIII que emer-giu a forma moderna de comemoração, e a criação deum novo calendário civil pela Revolução Francesa éseu marco emblemático. Significa o nascimento dascomemorações laicizadas, essencialmente diferenciadasem relação às comemorações católicas, mas fundamen-tadas em seus rituais. As festas cívicas inauguradaspela Revolução Francesa, muito particularmente oculto da humanidade, traduzido na idéia de "grandehomem", foram incorporadas por Auguste Comte, ree-

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Descobrimentos. Revista de História Econômica eSocial. Lisboa: 1988, p. 23. No imaginárioeuropeu a expressão Novo Mundo se justificavaplenamente, pois considerava-se que o continenteamericano surgira tardiamente das águas dodilúvio universal, reforçando a tese do “encobri-mento”, Cf. GERBI, Antonello. O Novo Mundo.História de uma polêmica. São Paulo: Ed.Companhia das Letras, 1996.

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laboradas e sistematizadas, de modo a criar um arqué-tipo comemoracionista capaz de fundar um novo ca-lendário de festas cívicas, uma nova hagiografia; emsuma, uma renovada construção da memória nacional.Exatamente neste espaço, abria-se um vasto campo deação para a história entendida em sua dimensão utili-tária, que "teve uma das suas mais marcantes expres-sões no recurso a formas ritualistas de evocar o passa-do, tendo em vista criar representações simbólicas quepudessem funcionar como lições vivas de memoriza-ção"2 . A partir da Revolução Francesa, assume-se queas representações racionais somente seriam mobiliza-doras na medida em que conferissem significado sim-bólico e coletivo ao sentido do tempo e, concomitan-temente, catalisasse as consciências atomizadas "à vol-ta de memória(s) consensualizadora(s). Daí a impor-tância de ritualizar a invocação (e a evocação) do pas-sado e de selecionar de acordo com os interesses dopresente”3 .

Nestes termos, o passado revifica-se; os mortosrenascem, pois suas obras são colocadas a serviço dos

2. CATROGA, Fernando. Ritualizações daHistória. In: TORGAL, Luís Reis, MENDES, JoséAmado, CATROGA, Fernando. História daHistória em Portugal. Sécs. XIX-XX. Lisboa:Editora Círculo, 1996, p. 547.

3. Idem, p. 550. Para RIBEIRO, Maria ManuelaTavares. “O Centenário Henriquino. Imagens eIdeologia”. Revista de História das Idéias, vol. 15,Coimbra, 1993, p. 331, “Celebrações, come-morações e centenários não são inúteis nem inex-pressivos, quer para a instrução do cidadão, querpara a ‘ilustração’ do historiador. São formas deinstrução cívica que assumem um significado realem nossa sociedade”.

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vivos, aos quais se presta uma homenagem reconheci-da, mas dos quais não se deixa de extrair mais valiasimbólica, pois suas ações exemplares caucionam aação dos vivos, inscrevendo-se numa linhagem univer-sal 4. Os heróis leigos substituem os religiosos, cujavida, mais do que a morte, é cultuada. Por isso, as da-tas registradas para memorização, em sua função peda-gógica, podem coincidir com o nascimento ou com amorte. Elogiar os mortos significa solidificar os laçosde sociabilidade entre os vivos e pressupõe, necessaria-mente, uma dimensão religiosa da civilidade, o queleva ao adensamento da comunhão de sentimentos eideais, passo decisivo na constituição da comunidadeimaginária, pelo reforço da noção de pertencimento5 .O Estado Nacional, o nacionalismo, a identidade, sãoos beneficiários diretos das comemorações cívicas que,nas palavras lapidares de Fernando Catroga, "foramcriadas para serem vividas como manifestações simbó-licas em que se reafirmava a continuidade históricados povos e da humanidade, pretensão filha da mesmaconcepção do tempo que encontramos subjacente àshistoriografias da época. A sua importância social exi-gia-as como meio de combate contra a amnésia coleti-va, ou melhor, como forma de luta pela produção (ereprodução) de uma nova memória, assim elevada a

4. GOULEMOT, Jean Marie e WALTER, Eric.Les Centenaires de Voltaire et Rousseau. In:NORA, Pierre et al. Les Lieux de Mémoire, I. La Ré-publique. Paris: Ed. Gallimard, 1984, p. 407.5. A noção de comunidade imaginária foi utilizadaaqui no sentido de ANDERSON, Benedict. Naçãoe Consciência Nacional, Trad. port., Ed. Ática, SãoPaulo, 1989.

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uma espécie de garantia da necessária articulação entreo passado, o presente e o futuro"6 .

Retórica vazia, exibicionismo balofo, pseudo-rea-lizações, são os males atávicos das comemorações. Oque tem a ver a vida dos homens em sua vivência coti-diana "com as flores de retórica que, quando se con-venciona comemorar algum feito, profusamente sederramam sobre o seu mito ou a sua miragem român-tica?"7. A história nada tem a ver com as comemora-ções, ela é somente esforço de compreensão. Por isso,os centenários somente podem ser úteis desde que en-sejem "estudar problemas, meditar diretrizes, criticarcertezas dogmáticas, caso contrário, mumificam os vi-vos, sem ressuscitar os mortos"8 .

6. CATROGA, Fernando. opus cit., p. 550. Nomesmo sentido, RIBEIRO, Maria Manuela, opuscit., confirma “As cerimônias comemorativas quese sucedem nas décadas finisseculares revelam abusca de um consenso, a procura de outras basesde concórdia, de um movimento de solidariedadee de fraternidade em torno do sentimento nacio-nal. Tudo gira em volta da idéia de Estado-Nação,de Pátria, de patriotismo”. p. 374.7. GODINHO, Vitorino Magalhães. “Comemo-rações e História”, Lisboa, 1947, p. 14-15, citadoem “Portugal e os Descobrimentos”, art. cit., p.23.8. Idem, pag. 23.

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A advertência de Vitorino Magalhães Godinhotinha razão de ser. Fundamentava-se no quadro especí-fico das comemorações portuguesas no âmbito do re-gime salazarista e, apesar de terem sido formuladasem 1947, por ocasião das rememorações sobre a desco-berta da Guiné, adequavam-se perfeitamente ao mo-mento crítico vivido pelo regime ditatorial portuguêsnos inícios dos anos 60. A perda de vitalidade do Im-pério era patente no pós-guerra quando acelerava-se omovimento descolonizador. A guerra colonial na Áfri-ca, em Angola, teve início em março de 1961 e, de-pois de generalizar-se pela Guiné e Moçambique, aca-bou por inviabilizar o Império português, pondo fimao regime salazarista, extinto pelo movimento militarde 25 de abril de 1974. Portanto, cantar o Império,entusiasmar os cidadãos, combater o espírito decaden-tista, apontar para um novo porvir, era o único cami-nho capaz de gestar a revitalização quase impossível.

A idéia não era nova. Despontara com força nascomemorações dos anos 80 e 90 do século XIX. Con-trapunha-se à idéia de decadência veiculada pela inte-lectualidade crítica dos anos 70, exortava o acordarpara as virtudes cívicas, a elevação patriótica e o espí-rito de grandeza, mobilizadas na rememoração de fi-guras exemplares do passado, que pudessem espelhar osentimento nacionalista, antibritânico e antimonár-quico, enquadrados num corolário de ideologia repu-blicana. Nesse contexto, os centenários de Camões

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222222222222AS COMEMORAÇÕES

SALAZARISTAS

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(1880), de Pombal (1882), de Santo Antônio (1890),de D. Henrique (1894) e de Vasco da Gama (1898),ensejam o revigoramento da sensibilidade portuguesa.Vasco da Gama, especialmente, por sua viagem, com-pletada em 1898, por seu falecimento, celebrado em1924, torna-se o símbolo da raça e da ousadia dos por-tugueses nos mares do mundo. O centenário da bata-lha de Aljubarrota, em 1931, envolvendo as figurashistóricas de Nuno Álvares Pereira e D. João I, bemcomo as celebrações duplas de 1940, enlaçando o cen-tenário da fundação do Reino e da Restauração, foramapropriados e aspergidos pelo ideário do Estado Novo.

É nesse processo que se entendem as comemora-ções do sétimo aniversário da morte do Infante D.Henrique, em 1960. Elevado à condição de herói laicoda nacionalidade, torna-se a figura emblemática daação civilizadora dos portugueses por meio da gestados Descobrimentos, forma histórica de ação concretaque viabiliza a difusão dos valores da civilização oci-dental, a ação humana e cristã do gênio português. Ostrabalhos da comissão organizadora dos festejos come-morativos tiveram início em 1954 e, por seu impacto,constituem-se em referência obrigatória para a com-preensão da natureza das comemorações do V Cente-nário do Descobrimento do Brasil, realizadas tanto lá,quanto cá. O elenco das palavras-chave, consagradasem cada uma das comemorações, denota uma simbo-logia reveladora: comemorações salazaristas dos anos60; comemorações da redemocratização dos anos 90; ecomemorações do V Centenário do Descobrimento doBrasil, na viragem do milênio.

Assumido como figura simbólica da era dos Des-cobrimentos e da constituição do Império portuguêse, por decorrência, com seu símile o Estado Novo sala-zarista, reforçou-se substancialmente o mito do Infan-

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te, adensando seu perfil hagiográfico, de homem soli-tário e sábio, empresário exitoso e religioso devoto,cuja ação cruzadista contra os infiéis lembrava a cruza-da do salazarismo contra os novos infiéis vindos doOriente, os comunistas. À semelhança de Salazar, D.Henrique não tivera mulher, filhos ou lar. Casara-secom a nação, o perfil duplicitado do herói casto, lúci-do e obreiro. O passado viajara ao presente. D. Henri-que fora tomado por Salazar. Sua missão, de caráteruniversal, expressava o momento crucial da históriaportuguesa, simbolizando o cumprimento de umideal, quase uma missão, que acaba por unificar a na-ção e o Império, conferindo-lhe um sentido histórico.

Em decorrência, um elenco integrado de expres-sões passou a compor o universo simbólico das come-morações portuguesas, batido por determinações denatureza ideológica, que se enraizaram de forma pro-funda e foram incorporadas acriticamente: civilizaçãoocidental, civilizar, missão, catequese, epopéia, saga, con-quista, heroísmo, descobrimento, império, lusocentrismo, luso-tropicalismo. A este glossário se contrapôs, de forma ra-dical, um novo conjunto de expressões e palavras deordem, um novo ementário, expressão semântica dorenovado código de valores engendrados pela Revoluçãodos Cravos, a partir de 1974.

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Oficialmente, com a instalação da Comissão Na-cional para as Comemorações dos DescobrimentosPortugueses (CNCDP), em 22 de novembro de 1986,com antecipação de mais de uma década em relaçãoaos principais eventos escolhidos para simbolizar oevento, teve início a ação governamental rumo às co-memorações. Conduzida desde sua criação pelo Parti-do Social Democrata, coube ao poeta e ensaísta VascoGraça Moura dirigi-la até finais de 1995, quando a vi-tória nas eleições transferiu o poder no país ao PartidoSocialista, e a liderança na Comissão ao historiadorAntónio Manuel Hespanha.

O Programa Estratégico da Comissão, então vei-culado, representa, definitivamente, a primeira come-moração post mortem do Império português. A inflexãoem relação aos princípios norteadores das comemora-ções salazaristas é explícita. Ênfase na dimensão uni-versal, na integração da humanidade, no avanço cien-tífico e tecnológico, na aproximação de gentes e cultu-ras, passam a ser o centro de suas preocupações. Aconsciência crítica do que significa comemorar trans-parece no reconhecimento de que comemorar é um“exercício de recordação coletiva cujas virtudes peda-gógicas residem justamente no fato de nada, do bom edo mau, se dever esquecer”. Vislumbrava-se o esforçode investir numa comemoração correta, a ponto de re-conhecer que a própria palavra “descobrimento” com-

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333333333333AS COMEMORAÇÕES DA

REDEMOCRATIZAÇÃO

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porta um evidente enviesamento eurocêntrico”, poisse os portugueses foram descobridores, também fo-ram, por outro lado, descobertos. “O seu olhar sobreos outros não deve obliterar a forma como os outrosnos olharam ou como eles se olhavam a si mesmos”.Entendendo os Descobrimentos como confronto inter-cultural, “as comemorações devem ser, portanto, aocasião de restaurar esse complexo jogo de imagens ede reverberações provocado pela interação de váriasculturas, por vezes radicalmente diferentes”, residindoexatamente aí a distinção entre comemoração e propa-ganda, a restauração da “integralidade da memória”9.

O mundo de cabeça para baixo. Este é o signifi-cado destas formulações vis a vis às comemorações dosalazarismo. Assimilando os reiterados apelos de Vito-rino Magalhães Godinho10, o Programa Estratégicoacentuava pesadamente a dimensão científica das co-memorações, até mesmo por oposição ao excessivo ce-lebracionismo da programação anterior. Ao rigor dainvestigação científica é atribuída a responsabilidadepela distinção entre propaganda e memória, daí apreferência pelas versões completas de fontes e investi-gações, evitando-se as ações superficiais, os produtosfáceis, de rápida divulgação e consumo. Não se exclui,evidentemente, a dimensão comunitária e cívica, masa ênfase deveria ser carreada para “difundir o conheci-mento do passado português”11. Exorta o rastreio, in-

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9. Programa Estratégico da Comissão Nacional para asComemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa,CNCDP, 1996, p. 23.10. O primeiro destes apelos surgiu a propósito dacomemoração do centenário da Guiné, os quaisforam renovados entre 1960-1962 e de novo reto-mados em 1988, conforme opus cit. 11. Programa Estratégico, p. 2.

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ventário, recolha, conservação, edição, do patrimôniodocumental histórico e artístico dos portugueses ourelativo aos portugueses.

A cartografia das ações previstas pela Comissãorevela notável argúcia nos termos do que se poderiaconsiderar uma comemoração “moderna”. No Índico,pressentem-se dificuldades, pela aguda sensibilidadecultural e política que põe as populações em estado dealerta para qualquer tipo de manifestação que pudesselembrar, mesmo que vagamente, etnocentrismo ou re-vivalismo. Por isso, a referência é o Índico, e não a Ín-dia, por conta da configuração política atual muitodistante da original. Reconhecer que esta identidadeera matizada por diferentes interesses econômicos, porproximidades culturais, religiosas e lingüísticas, quegestavam um sentimento de coesão interna e de aver-são aos estranhos, um espaço definido pela sedimenta-ção secular de hábitos e relações, em meio à qual “osportugueses irrompem com um fator estranho e difi-cilmente classificável no imaginário local”, significanecessariamente valorizar os contextos locais da histó-ria da expansão portuguesa, uma dimensão negligen-ciada, freqüentemente amputada das histórias da ex-pansão12.

É inegável que o foco das atenções concentra-seno Índico. É o olhar para a Ásia, a eterna miragem dahistória portuguesa. O comportamento em relação aoExtremo Oriente, especialmente para o território deMacau que passará aos chineses ainda em 1999, nãodeve ser entendido como marco finalíssimo do “fim deImpério”, mas sim “como uma etapa da evolução deuma comunidade que Portugal ajudou a criar e a evo-

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12. Idem, p. 11.

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luir”. Vê-se aqui, emblematicamente, a nova posturapela qual os portugueses tornam-se os paternais cria-dores de nações modernas. Em relação ao Brasil, pre-sume-se que as dificuldades comemorativas serão me-nores do que o seriam no Índico, mas vislumbra-seque “outras aportações históricas que não a portugue-sa” são valorizadas, além de serem os brasileiros ciososde sua especificidade e originalidade culturais13.

A ressemantização do léxico comemoracionistaestá em curso. Saem de moda as palavras consagradaspelas comemorações salazaristas. Adentram o cenárioum novo conjunto de expressões: cultura, pluralidadecultural, confronto inter cultural, interação de culturas, en-contro do outro, imagens, olhares, sensibilidade, descobertasrecíprocas, policentrismo histórico, consagradas pelo novorito da comemoração. Tal inventário muito se deve,por certo, ao comissário-geral António Manuel Hespa-nha, para quem a escrita da história deve ser pluralis-ta, auscultar fontes diversas, estar atenta aos valorespróprios do passado, desconfiando sempre da lineari-dade das explicações, dos juízos dogmatizados de va-lor, enfim, estar ligada para o fato de que culturas ex-tremamente diversas são postas em contato e que odiálogo entre elas é tecido de mal-entendidos e de de-sencontros, o que reforça a ação compreensiva dos his-toriadores. Para ele, a auto-estima de um povo, o or-gulho por seu passado, exigem o reconhecimento daspróprias falhas e a capacidade de resistir às críticas,única forma de elidir o narcisismo enganador, queafasta o conhecimento de si mesmo e de seu passado.

Inevitavelmente teria início a demolição dos mi-tos erigidos pelo antigo regime. D. Henrique perma-

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13. Idem, p. 10.

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neceu em cena, mas sua hagiografia entrou em fase dedesconstrução. Gradativamente perdeu o cetro que lhefora conferido por Fernando Pessoa, em Mensagem: ode ser o único imperador que teve, deveras, “O globomundo em sua mão”. Ao cartaz comemorativo de1960, quando o Infante, com traços fisionômicos níti-dos, fitava confiante o porvir, se contrapunha a capado catálogo da exposição realizado em Tomar, em1994, onde o rosto oculta-se sob retícula que o dissol-ve, numa clara referência ao nublamento da figura his-tórica, ironicamente rotulado “O Rosto do Infante”.Só que não há rosto. Há uma mancha, através da qualvislumbra-se a silhueta conhecida do Infante. Gra-dualmente, as novas pesquisas foram corrigindo os ex-cessos engastalhados à figura do imperador do mundo:nível de seus conhecimentos, interesses materiais naexpansão, ação solitária na empresa marítima, méritorelativo a outros contemporâneos, a exemplo de D.Pedro, D. Duarte (filhos de D. João I), D. João II eBartolomeu Dias, com a revalorização da passagem doCabo da Boa Esperança. A D. João II passa a ser atri-buído o mérito de ter sido o verdadeiro fundador doImpério Português. A D. Henrique recusa-se a figurade cavaleiro romântico e herói, como foi imortalizadopor Gomes Eanes de Azurara. Não passaria de um em-presário consciente, cujo mérito real foi o de tornar ro-tineira a navegação em alto mar, no Atlântico, porconta de seus interesses nos arquipélagos da Madeira eAçores. O Infante cognominado “Navegador” nevercrossed more than the Strait of Gibraltar”14.

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14. Cf. VERLINDEN, Charles. “Prince Henry inModern Perspective as Father of the ‘Descobri-mentos’”. Portugal, The Pathfinder. Journeys from theMedieval Toward the Modern World 1300-ca. 1600.WINIUS, Georg D. (Ed.). Madison, 1995, p. 87.

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Vasco da Gama, igualmente, não escapou à revi-são historiográfica. Personagem de fôlego histórico in-comparável, pois foi destaque nas comemorações repu-blicanas de 1898 e 1924, retorna ao centro das come-morações ao inspirar o principal evento da agenda fes-tiva, a última exposição mundial do século, a EXPO98, ao mesmo tempo que empresta seu nome à ponteque será, certamente, um dos cartões postais do mo-derníssimo Portugal, que busca ser a plataformaAtlântica da Europa. Bastavam estas duas referênciaspara aquilatarmos a presença indelével de Vasco daGama no imaginário português, expressão, no fundo,da persistência do mito do Oriente. Sua figura históri-ca, porém, não resistiu incólume.

Festejado como expressão maior do aguerrimen-to, do espírito de iniciativa, da capacidade empreen-dedora da raça, da imagem forte e positiva da presençaportuguesa nos outros lugares do mundo em celebra-ções passadas, sofreu fortes restrições no congresso rea-lizado em Nova Deli, em 1998, intitulado significati-vamente Do colonialismo à globalização: cinco séculos de-pois de Vasco da Gama, centrado na temática das rela-ções desiguais e injustas envolvendo europeus e asiáti-cos, cujo ponto de partida teria sido a viagem de1498. Por certo, a catilinária ante Vasco da Gama terácontinuidade nos eventos organizados na Índia, daquiaté o fim das comemorações. Simpósios e congressosprogramados para Calecut e Cochim darão, certamen-te, oportunidade a manifestações de fundo ultranacio-nalista, sentimento extremamente exacerbado na Índianos dias que correm, e que se traduzem em mobiliza-ções antiimperialistas, para as quais as viagens de Vas-co da Gama, sobretudo a segunda, de 1502, é um fes-tim de queixas. Instala-se, ali, um verdadeiro tribunalanticomemoracionismo que ressoa até mesmo em

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grandes eventos patrocinados por instituições portu-guesas, como a Fundação Gulbenkian, realizado emmaio de 1998 em Paris. O congresso Vasco da Gama ea Índia, começou pelas duras críticas à política de con-versão forçada dos hindus ao catolicismo, um retratocruel da ação inquisitorial em Goa, explicitamente de-nunciada pela historiadora indiana Pratima Kamatcomo produto de um tribunal infame, concluiu-secom a frase: “Esse herói é pura ficção”, proferida pelopolêmico historiador indiano, nascido em Nova Deli,Sanjay Subrahmanyam.

O espaço dado a Sanjay pelas lideranças portu-guesas responsáveis pelo programa das comemorações,especialmente por seu comissário-geral, António Ma-nuel Hespanha, é bem uma prova de abertura em rela-ção aos que foram sempre os “outros”, a oportunidadepara que suas vozes se fizessem ouvir, numa demons-tração inequívoca de que as diretrizes inclusas no Pro-grama Estratégico não eram mera propaganda sem maisconseqüência, anúncios vazios destinados a ficar nopapel. Tarefa difícil, como se vê, pois não foram pou-cos os constrangimentos provocados pelas revisões crí-ticas, que se traduziram em ataques acérrimos às lide-ranças da Comissão, pelo que consideravam sua excessi-va liberalidade e, até mesmo, falta de patriotismo.Afinal de contas, a herança do ideário salazarista emPortugal mantem-se fortemente enraizada nos setoresmais conservadores da sociedade, enraizamento esteque um quarto de século não foi ainda capaz de erradi-car.

Por tudo isto, é altamente significativo que umhistoriador indiano, com passagens por universidadesamericanas, que lecionou em Portugal e, atualmente,encontra-se na École des Hautes Études en SciencesSociales, que escreveu um livro extremamente crítico

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sobre a presença portuguesa na Índia, O Império Portu-guês na Ásia, 1500-1700, seja interlocutor permanentedos pesquisadores e da media portuguesa. O livro porele escrito, The Career and Legend of Vasco da Gama, de199715, persegue a demolição do mito, ou mitos, poisVasco da Gama teria sofrido numerosas reapropriaçõeshistóricas e historiográficas em Portugal. Em seu pró-prio tempo, funcionou como um catalisador, um sím-bolo da unidade inexistente no seio da própria elite,em relação aos destinos da expansão. Ele representa ailusão de um acordo, que recobre as fortes dissençõesentre os defensores de uma visão messiânica e outramais pragmática. Particularmente, Vasco da Gama de-fendia a minimalização da presença portuguesa na Ín-dia, reduzindo-se o número de fortalezas estrategica-mente posicionadas, a exemplo de Goa e Cochim, dei-xando-se as demais praças ao encargo de particulares.Um dos aspectos mais polêmicos da personagem re-construída pelo historiador indiano, que abre fissurasna figura monolítica do herói, é o destaque para seusinteresses privados em relação aos públicos. Apontadocomo um mercador dos serviços régios que visava ex-clusivamente benefícios pessoais e familiares, um casode busca incontida por ascensão social, que o projeta-ram ao escalão dos senhores mais poderosos do reinoportuguês. Um exemplo de privatização precoce daação coletiva mobilizada pelo Estado Português, que olevou ao limite de chantagear a coroa em benefíciopessoal.

A escassez de informações sobre a trajetória his-tórica de Vasco da Gama sobreleva a força interpreta-

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15. SUBRAHMANYAM, Sanjay. The Career andLegend of Vasco da Gama. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1997.

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tiva. Na falta de dados, recorre-se à contextualizaçãoe, sobretudo, à imaginação. Em decorrência, os retra-tos são contrastados, dilacerados mesmo. EnquantoSanjay escovava a contrapelo a biografia de anti-herói,a historiadora francesa Geneviève Bouchon realiza umtour de force em seu livro Vasco da Gama, de 199816,para transformar os parcos e rudimentares fragmentoshistóricos disponíveis numa biografia centrada naidéia de recriar a trajetória do navegador, dando mar-gem, necessariamente, a um desmedido esforço inter-pretativo, resultando numa espécie de biografia ro-manceada, porque ultrapassa em muito as possibilida-des contidas no material empírico disponível. Como oterreno documental é cediço, impõe-se a força da cria-ção literária. Mais contido, plenamente consciente dasdificuldades de sua tarefa, o emérito historiador por-tuguês, Luís Adão da Fonseca, com amplo descortínioe conhecimento dos problemas relacionados com a te-mática das comemorações, pois presidiu a comissãocientífica da Comissão dos Descobrimentos entre 1991 e1995, além de ter sido por muitos anos presidente doInstituto Camões, publicou o alentado estudo Vasco daGama – O Homem, a Viagem, a Época, em 199817. Comoo próprio título indica, recorre mais ao contexto e me-nos à interpretação das parcas evidências existentes,acautelando-se contra os excessos criativos, seja naperspectiva mais crítica, seja na sua dimensão roman-ceal. O profundo conhecimento que tem das ordensmilitares em Portugal, especialmente da Ordem deSantiago, à qual pertencia Vasco da Gama, leva-o acontrapor-se à interpretação de Sanjay Subrahman-

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16. BOUCHON, Geneviève. Vasco da Gama.Paris: Fayard, 1998.17. FONSECA, Luís Adão da. Vasco da Gama – OHomem, a Viagem, a Época. Lisboa: EdiçãoEXPO’98, 1997.

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yam, ponderando que era da natureza do tempo, práti-ca comum na época, militares profissionais a serviçoda realeza beneficiarem-se com os proveitos da expan-são, não se podendo, portanto, atribuir esta faceta deVasco da Gama a uma falha de caráter18.

É extremamente interessante notar que, apesardas revisões em curso, o mito do grande herói Vascoda Gama ainda se propaga, sem restrições, sem jaça,na forma de sua primeira criação. O celebrado histo-riador norte-americano David Landes, em seu best-seller recente, A Riqueza e a Pobreza das Nações, exaltaos feitos de “homens como Vasco da Gama, afeito àslides do mar desde a infância, temperamento inflexí-vel e capaz de decisões duras”19, um verdadeiro empre-sário shcumpeteriano, capaz de iniciativas arrojadas eoriginais. Nada fica a dever ao elogioso retrato debu-xado por Diogo de Couto, em 1599, para quem Vascoda Gama deveria ser apelidado “o Índico”, por ter rea-lizado tarefas só assemelhadas a Jacob, que por seu va-lor e esforço mereceu ser chamado “Israel”. De fato,por ter comunicado o Tejo e o Ganges, o Minho e oEufrates, o Douro e o Nilo, o Guadiana e o Tigre, aÍndia deveria passar a chamar-se “Gama”20. Retratosunívocos, como se vê, e que fluem da mesma fonte, o

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18. As comemorações ensejaram uma das primei-ras iniciativas editoriais a propósito dos descobri-mentos, na forma de uma coleção, Cf. BETHEN-COURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti. His-tória da Expansão Portuguesa. Lisboa: Ed. Círculode Leitores, 1998.19. CF. LANDES, David. A Riqueza e a Pobrezadas Nações. Trad. port., Editora Campus, Rio deJaneiro, 1998, p. 95.20. Cf. COUTO, Diogo do. Tratado dos Feitos deVasco da Gama e seus Filhos na Índia (1599, 1ª ed.),reeditado pela CNCDP, 1998.

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elã eurocentrista que informa os dois textos, mesmoque separados por quatro séculos de história.

A escolha de novos temas para a comemoração,muitos deles relegados ao esquecimento e, sobretudo,divididos com competidores históricos, como é o casodo Tratado de Tordesilhas, que exige uma rememoraçãoconjunta com a Espanha, sinaliza o redirecionamentoda agenda da Comissão implícito nos numerosos con-gressos realizados na Espanha, em Portugal e no Bra-sil, passando pelas publicações, dentre as quais desta-ca-se o Corpus Documental do Tratado de Tordesilhas21,até o ato simbólico de medição do meridiano de Tor-desilhas, realizado por equipe científica instalada abordo de uma frota de navios que partiu de Portugalem 26 de junho de 1994, integrada por barcos portu-gueses, espanhóis, brasileiros, argentinos e venezuela-nos. A abertura para a cooperação internacional, co-meçando pela Espanha, era uma antiga demanda deVitorino Magalhães Godinho, que pensava ser esta aúnica forma pela qual as comemorações poderiam re-vitalizar a historiografia dos descobrimentos22. Os 450anos da chegada dos portugueses ao Japão foram co-memorados em 1993 com uma série de eventos e pu-

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21. Corpus Documental do Tratado de Tordesilhas,FONSECA, Luís Adão da e ASCENSIO, José Ma-nuel, coordenadores científicos, Edição SociedadV Centenario Tratado de Tordesilhas, Valladolid,1995.22. Vitorino Magalhães Godinho sempre enten-deu as comemorações como forma de revitalizaçãoda historiografia dos descobrimentos, abrindo-senecessariamente à colaboração internacional, espe-cialmente com os espanhóis, pois, peremptoria-mente afirmava, como é de seu temperamento,“Recusamos assim sacralizar sequer a nação, quere-mos homens conscientes da sua dignidade na cida-dania”. Opus cit., p. 35.

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blicações, sendo, contudo, as comemorações previstaspara o ano 2000 inteiramente dedicadas ao Brasil, ele-gendo-se as cidades do Porto e Salvador como referên-cias para a celebração. Finalmente, vale a pena ressaltaro enorme esforço de mobilização interdisciplinar, espe-cialmente desenvolvido pelos seminários realizados noCentro de Estudos Gerais da Arrábida.

O viés universalizante da comemoração do finaldo milênio pressupõe, como já vimos, o afastamentoda visão lusocêntrica e eurocêntrica, descartando, defi-nitivamente, a celebração dos Descobrimentos em ter-mos de sua vocação cruzadista. Em seu lugar emerge aqualificação de Portugal como parceiro e interlocutorprivilegiado das nações que foram ex-colônias em rela-ção à União Européia, impregnando com uma utilida-de nova a comemoração em curso: “lembrar aos nossosparceiros a posição privilegiada que podemos ocuparno diálogo da Europa com importantes regiões desco-lonizadas. Faz assim sentido lutar pelo prolongamentoda nossa presença cultural (a língua, os monumentos)nas antigas colônias, tarefa cada vez mais difícil por-que se terá de concretizar no contexto da concorrênciamundial, e no interior de um bloco político-econômi-co onde existem várias heranças coloniais concorrentesentre si (Espanha, França, Inglaterra).”23

Por essa via, Portugal se despe, definitivamente,da roupagem colonialista. Abdica da condição de “me-trópole”. Põe no esquecimento a exploração colonialrealizada durante muitos séculos em vários continen-tes. Revaloriza, nas entrelinhas, sem assumir explici-tamente, a idéia de fomento, tão cara à historiografiado Estado Novo, pois o exercício do novo papel pres-supõe enfatizar um certo paternalismo, que teria leva-do as colônias a se transformarem em nações indepen-dentes, aproximando o universalismo dos Descobri-

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23. CATROGA, Fernando, opus cit., p. 619.

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mentos com o mundo da Globalização. Nesse contex-to, mais uma vez, torna-se indispensável nublar asrupturas traumáticas, muito especialmente as guerrascoloniais tão recentes, aplicando nas feridas abertas olenitivo das promessas inscritas no futuro, muito espe-cialmente, no fortalecimento da comunidade que falaportuguês, dispersa por cinco continentes, comunida-de pensada como solidária, mas necessariamente di-versa, com diferentes sensibilidades perante a história,mas que, através da Lusofonia, poderá criar um futurocomum. Mais uma vez, foi necessário reforçar as apos-tas no presente, exorcizando os fantasmas do passadoque continuam a rondar a mãe-pátria.

Isto explica a escolha dos Oceanos como símbolomaior das comemorações, pois, a par do visível apeloecológico, significa remeter a gênese do processo deglobalização para a era dos Descobrimentos; o poten-cial português no diálogo com as regiões descoloniza-das em virtude de seu capital histórico-cultural; e oreforço do diálogo Portugal-Brasil como condição sinequa non da aproximação Mercosul-União Européia,função para a qual Portugal está sobejamente vocacio-nado. A relação do homem com o mar, de uma formaintemporal ressalta a grande metáfora da globalização,as águas integram os continentes e os homens, sãolímpidas e transparentes, portanto, universais. Nofundo, a simbologia da comemoração dos Centenáriosem Portugal é um hino ao seu lugar no mundo daglobalização.

Um Portugal que se quer desenvolvido, demo-crático e europeu, transparece no esforço em transmi-tir modernidade, de valorizar a dimensão científicados Descobrimentos, “a precursora aplicação de crité-rios de racionalização e de gestão planificada”24, que setraduziu na preparação meticulosa, na execução racio-

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24. Idem, p. 617.

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nal, na ação estratégica que revaloriza o significado deSagres. Que o mito do cruzadismo não seja simples-mente substituído pelo mito do cientificismo. Destar-te, ao glossário elencado algures, teríamos que aduziras expressões: dimensão científica, inovação tecnológica,gestão planificada, execução racional, ação estratégica.

Notável, portanto, a responsabilidade com a qualo governo português enfrentou o complexo problemadas comemorações dos Descobrimentos. Pode-se dis-cordar de muitas coisas, mas não da qualidade das dis-cussões, da condução democrática, da enorme visibili-dade e, por certo, dos resultados até aqui alcançados,que se traduzem, modestamente, em mais de 300 li-vros publicados. Por certo, escudados nas experiênciasanteriores, os portugueses começaram cedo, pois olançamento oficial da Comissão é de 22 de novembrode 1986, quer dizer, dez anos antes de sua congênerebrasileira. De fato, a Comissão Nacional para as Comemo-rações do V Centenário do Descobrimento do Brasil foi cria-da por decreto Presidencial de 12 de maio de 1993,portanto, sob a presidência de Itamar Franco, que deua sua condução ao Ministério da Educação e Despor-tos, então sob a responsabilidade do Ministro MuriloHingel. Mas foi somente sob o governo FernandoHenrique Cardoso, a 6 de fevereiro de 1996, que aComissão foi reformulada e transferida para a seara doMinistério das Relações Exteriores, depois de ter sidorecusada por outros Ministérios. A presidência da Co-missão Nacional coube ao representante do Ministériodas Relações Exteriores, que indica o Secretário-Exe-cutivo, no momento um embaixador de carreira.

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Somente em 16 de junho de 1997 foi publicadono Diário Oficial o programa de ação denominado Di-retrizes e Regulamento, que poderia ter se beneficiadoenormemente do Programa Estratégico da Comissão por-tuguesa. Mas isto não aconteceu e o resultado é nefas-to, como se verá a seguir, o que poderia ter sido evita-do socorrendo-se da presença de historiadores de pro-fissão na Comissão de Apoio, ou, o que seria mais pró-prio, chamando uma discussão mais ampla para ouvirsugestões, especialmente de associações altamente re-presentativas, a exemplo da ANPUH (Associação Na-cional dos Profissionais Universitários de História).

As Diretrizes começam por definir o objeto dascomemorações: “a chegada da esquadra de Pedro Álva-res Cabral às costas” brasileiras. Privilegia-se dessemodo, o descobrimento, apesar das reservas contidasna unidade VI A questão do “descobrimento”, onde se re-conhece o possível corolário eurocêntrico que a expres-são encerra, mas insiste que a “mera troca de nomes”não desmontará os mitos construídos, que preservar otermo descobrimento não significa aceitar o eurocen-trismo e que a Comissão poderá apoiar projetos “queprocurem ampliar o conhecimento daquela realidade eque poderão levar à própria superação do conceito dodescobrimento”25. Descobrimento não é um conceito.

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4444444444444AS COMEMORAÇÕESOFICIAIS BRASILEIRAS

25. Diretrizes e Regulamento, Comissão Nacionalpara as Comemorações do V Centenário do Desco-brimento do Brasil, Brasília, 1997, p. 9-10.

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É uma expressão que recobre determinada realidadehistórica contida num recorte temporal. O conceitopressupõe sempre uma elaboração teórica e contémuma elevada dosagem de abstração. Portanto, se pen-sarmos na expressão descobrimento, como referida aum evento ou conjunto de eventos aproximados, queinclui a chegada ao continente americano de um nave-gador português, Pedro Álvares Cabral, é preciso reco-nhecer que estamos aquém dos próprios e presumíveisdescobridores, pois o decreto instituinte da Comissãoportuguesa utilizava a expressão descobrimento com pu-dor, substituindo-a por descoberta. O Programa Estraté-gico de 1996 era ainda mais explícito, ao afirmar que aexpressão descobrimento comportava um evidente envie-samento eurocêntrico e que, portanto, se os portugue-ses foram descobridores, foram também descobertos. Istosignifica que as populações autóctones habitantes dascercanias da Coroa Vermelha fizeram igualmente, aseu modo, seu próprio descobrimento.

Mais grave ainda é recordar que a expressão des-cobrimento liderava o inventário das palavras-chaveconsagradas pelas comemorações salazaristas, o quenos coloca numa posição nada confortável. E não é quefaltassem lições no sentido contrário. Desde que Ca-pistrano de Abreu publicou seus Capítulos de HistóriaColonial26, em 1907, já se delineara uma inversão mar-cante na escrita de nossa história, pois começa suaobra a partir do descobrimento de um quadro humanoe ambiental que precede a chegada de Cabral. Nemmesmo os livros didáticos de 5ª série atuais partem da

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26. ABREU, Capistrano de. Capítulos de HistóriaColonial, (1907 1ª. ed.), 3ª. ed. Revista e anotadapor José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed.Briguiet, 1954.

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chegada dos europeus. Começam com a pré-históriabrasileira, um descobrimento maravilhoso que resultados avanços significativos das pesquisas arqueológicas,que transformam São Raimundo Nonato num berçonordestino do nascimento do povo brasileiro. Por quenão partir do nosso próprio autodescobrimento?

O segundo tema em destaque é caracterizar a na-ção “pela pluralidade étnica e pela diversidade cultu-ral”. Escudadas na herança portuguesa, agregada poroutras contribuições, “a cultura brasileira demonstra,tanto em sua matriz erudita como na popular, essapluralidade que se manifesta antes pela agregação quepela segregação e conflito. Como resultado desse cal-deamento de etnias e culturas, o Brasil se apresentahoje como uma inédita experiência de civilização tro-pical, com traços próprios e singulares”. Reconhecen-do a existência de tensões, de fortes desníveis econô-micos e sociais, “onde se identificam dois, se não mais,Brasis”, não se exclui que esteja “destinado a ser o paísdo futuro e visto como gigante adormecido”27.

O que está implícito? O pressuposto sistematica-mente reavivado de que a identidade Brasil se definepela exaltação da comunhão de diferentes etnias, obranco, o negro, o índio, cujo caldeamento tropicali-zado constrói a diversidade sincrética e contrastada, eaponta para a construção do que a cultura eruditasempre entendeu como a nação do futuro, quando nãodo requentado aforismo fabular do gigante adormeci-do. Presentes estão, nesta elaboração intelectual, osfundamentos ontológicos lastreados na mestiçagemsolidária de Gilberto Freyre, na sexualidade extremadade Paulo Prado, na heroicidade sem caráter de Mário

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27. Diretrizes e Regulamento, p. 9-10.

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de Andrade, na malandragem tática de Roberto daMatta, na perene cordialidade de Sérgio Buarque deHolanda e, até mesmo, nos Brasis dos contrastes deum brasilianista como Jacques Lambert. Resulta umaplainamento das diferenças, uma exaltação da unida-de do diverso, uma antropologização do discurso co-memoracionista do V Centenário dos Descobrimentos,que recalca profundas diferenças de classes, de flagran-tes exclusões sociais, de inaceitáveis privilégios viamecanismos de Estado perdulário, buscando o inexis-tente consenso, a transformação de distanciamentossociais incontornáveis em meros contrastes, questão detonalidade, facilmente superável pela convivência cor-dial. Mais uma vez vale lembrar a proximidade com oideário comemoracionista do regime salazarista nosanos 60. Gilberto Freyre viu em D. Henrique o pio-neiro da construção do luso-tropicalismo, pois o “colo-nialismo do Infante ter-se-á baseado na criação de so-ciedades ‘cristocêntricas’, experiência interétnica e demiscigenação cultural”28. Em decorrência, o espíritode igualdade e fraternidade presidia as comemoraçõeshenriquinas, “exemplo vivo da diversidade das raçasque compõem, em vários continentes, a Nação Portu-guesa”.29

O terceiro ponto do programa recusa a comemo-ração meramente passadiça, presa ao evento Descobri-mento. Propõe a reflexão sobre a trajetória da nação nodecurso dos 500 anos, “as realizações do povo brasilei-ro” e as “prospectivas do Brasil no terceiro milênio”;em suma, definir “os rumos da Nação”. De forma pe-remptória, busca-se “estabelecer as aspirações do povo

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28. CATROGA, Fernando. op. cit., p. 608.29. Idem, p. 617.

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brasileiro para a evolução nacional nos diversos setoresda vida nacional” e, enfaticamente, “determinar queproblemas nacionais deverão ser superados”. Exorta aprojeção de uma “imagem correta da realidade brasi-leira no exterior”, ou seja, na sua ótica positiva, sebem que os aspectos negativos não devam ser omiti-dos, mas deverão fazer-se acompanhar das “metas doGoverno brasileiro para o ano 2000”30. A vocação au-toritária do texto é indescartável. É possível determi-nar que problemas nacionais deverão ser superados?Não se dá ordem unida aos problemas. Muito menosdeve-se confundir comemoração com propaganda dasmetas governamentais, por mais próprias e viáveis quesejam, como, aliás, bem entenderam os portuguesesem seu Programa Estratégico. No seu conjunto, estas di-retrizes não se constituem em novidade para quem co-nhece a história das comemorações, sobretudo, as hen-riquinas, cuja memória não está voltada “exclusiva-mente para o passado, como mera manifestação dosaudosismo histórico, mas serão a demonstração do va-lor e das possibilidades das gerações de hoje e comoque um ato de fé nos destinos da Pátria”31.

O texto exala uma postura evolucionista, não sópela repetida presença da palavra evolução, mas peloque considera “caráter equilibrado, objeto e não-parti-dário” de enfrentamento dos “fatos da História doBrasil”. Numa só página, a 14, refere-se a “fatos rele-vantes”, “renovada visão dos fatos históricos funda-mentais”, apontando como metas: “a) uma interpreta-ção contemporânea dos principais fatos; b) a correçãode versões distorcidas ou inexatas desses fatos; e, c) a

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30. Diretrizes e Regulamento, p. 9, 13, 15, 17.31. CATROGA, Fernando. op. cit., p. 606.

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divulgação de eventos históricos desconhecidos...”32.Os fatos são petrificados: ou são falsos ou são verdadei-ros. Não se assimila a idéia de que os “fatos” são cons-truções e passíveis de diferentes apreensões, consoanteo próprio movimento da história. O máximo de atua-lização historiográfica a que chega o texto é invocarJaime Cortesão e atribuir-lhe a formulação de que“toda história escrita tende a tornar-se uma interpreta-ção atual do passado”, na verdade uma formulaçãoclássica de Benedetto Croce, da qual se extrai a máxi-ma “cada geração escreve, à sua maneira, a História.Assim é, e assim deve ser”33. Mas que história é esta?Uma história regida por mandamentos!

Contraditoriamente, desde que perfilado numalinhagem de gosto positivista, sente-se a falta de umaênfase maior na questão documental. Ao invés de apa-recer no âmbito das reflexões, surge em meio a et cater-va que integra as celebrações, as festas cívicas propria-mente ditas, ao lado de “construções de réplicas denaus da esquadra de Pedro Álvares Cabral, a realizaçãode regata que observe a rota do navegador português,torneios esportivos comemorativos, documentárioshistóricos, etc.”34. Documentários, não constituição deacervos documentais que dêem às futuras gerações aoportunidade de reavaliar crítica e cientificamentenosso passado. Até mesmo as comemorações henriqui-nas deram origem a publicações de vulto, a exemplo,da Portugaliae Monumenta Cartographica, da Monumenta

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32. Diretrizes e Regulamento, p. 14.33. Idem, p. 19. A baixa densidade intelectual dasDiretrizes e Regulamento é constrangedora, especial-mente quando posta vis a vis com o Programa Es-tratégico.34. Diretrizes e Regulamento, p. 24.

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Henriciana, da Biblioteca Henriquina e da IconografiaHenriquina, que, apesar tônus panegirístico, represen-tavam significativos aportes documentais que enseja-ram mesmo uma certa abertura intelectual do regimesalazarista, por integrarem a participação de intelec-tuais adversos ao regime, como Jaime Cortesão ou Da-mião Peres.

Por isso mesmo, iniciativas como o Projeto Resgatede Documentação Histórica Barão do Rio Branco, coorde-nado por Esther Bertoletti, do Ministério da Cultura,tem um significado especial. Não é um projeto da Co-missão. Foi arrolado entre as centenas de projetos quereceberam a sua chancela. É um projeto pensado hámuitos anos, executado dispersamente por vários ato-res individuais, mas somente organizado de modo sis-temático a partir de 1994. Organizar, microfilmar epublicar em CD-ROM 250 mil peças documentaisbrasileiras, existentes no Arquivo Histórico Ultrama-rino de Lisboa, que correspondem a cerca de 80% dosdocumentos relativos ao período colonial da históriado Brasil, existentes no exterior, este é o ambiciosoprojeto, a melhor forma de comemorar o V Centená-rio, pois há casos de regiões brasileiras em que 90%da documentação era desconhecida35. “Esta maneira decomemorar radica na atitude científica, crítica, por-tanto investigação rigorosa e lúcida, numa criação cul-tural que não seja de circunstâncias”, que seja umaverdadeira elevação cultural36.

Assim como nas comemorações henriquinas dosanos 60 e nas comemorações dos descobrimentos por-

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35. “O começo de uma Nova História do Brasil”.Notícias Fapesp, agosto, nº. 34, 1998, p. 6-8.36. GODINHO, Vitorino Magalhães, op. cit., p. 35.

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tugueses atuais, o programa da Comissão Nacional en-seja um conjunto coerente de expressões-chave que re-fletem, necessariamente, uma determinada linhagemhistoriográfica, uma moldagem ideológica, uma visãode Brasil e de sua trajetória histórica, a saber: descobri-mento, herança lusitana, pluralidade étnica, caldeamentoétnico, agregação social, diversidade cultural, civilizaçãotropical, convivência pacífica. Em suma, nascemos pelodescobrimento, crescemos pelo caldeamento de etnias eculturas amparadas no substrato lusitano, vingamoscomo experiência inédita de civilização tropical, maispela agregação do que pela segregação ou conflito,numa convivência relativamente pacífica. Raízes fin-cadas, como se vê, numa visão da cordialidade de Ho-landa e nas sociedades cristocêntricas de Freyre.

Estamos mais próximos da primeira fórmula co-memoracionista portuguesa do que da segunda. Nãose repudia o descobrimento, não se fala em descobertasrecíprocas do outro, nem muito menos de reverbera-ções culturais. Mas subsume-se, nas entrelinhas, osímbolo globalizante da comemoração portuguesa, osOceanos, visível no projeto do Memorial do Encontro,que será construído na Coroa Vermelha em Santa CruzCabrália, de acordo com projeto do arquiteto WilsonReis Neto. O monumento ficará sobre o istmo, comoum falso pórtico, a 180 metros da praia. Compõe-sede três lâminas finas de concreto, interligadas na basee revestidas de mármore branco, servindo de suporte auma cruz de pau-brasil. Seu formato sugere as asas deuma gaivota, que lembra os oceanos, ou a nau do des-cobrimento, especialmente quando a maré estiver alta,pois o monumento tocará de leve a água e pareceráflutuar. A caravela, sabemos, é o símbolo maior daepopéia portuguesa, marca histórica em todas as cele-brações, mesmo das atuais.

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O projeto comemoracionista do V Centenário es-tende uma ponte entre 1500 e 2000, no qual aplaina atrajetória, escoima os conflitos, expurga as diferenças;no fundo, lança a história ao ostracismo e remete alonga duração das visões antropologizadas à linha defrente das comemorações. Caberá à elite intelectuali-zada a realização de seminários científicos e depois atransmissão do resultado dessas reflexões “aos demaissegmentos sociais”37. Esta é a pedagogia comemoracio-nista que “instruirá” o povo brasileiro, numa visão de-turpada do que seja cultura popular. A pretensa come-moração se transforma em reconhecimento da exclu-são. De fato, o que há para comemorar, do ponto devista dos não incluídos?

Para os aproximadamente 340 mil índios, rema-nescentes dos 5 milhões existentes no momento dachegada dos portugueses, o projeto comemoracionistaé absolutamente neocolonialista. Suas lideranças repu-diam a concepção edulcorada do “encontro de cultu-ras”. Rejeitam a palavra descobrimento, preferindo utili-zar invasão. Mesmo que os índios pataxós, atuais habi-tantes do local onde haverá a maior intervenção come-moracionista, - terras pertencentes aos tupiniquins notempo do descobrimento -, aceitem os presentes ofere-cidos pela Comissão Nacional, na forma de uma tabapara exposições, praça para comerciar artesanato e vilahabitacional, ONGS indígenas, especialmente o Insti-tuto Nova Tribo, com sede em Itapecerica da Serra, li-derado pelo índio de origem txucarramãe Kaka WeraJacupé, declaram uma guerra simbólica às celebraçõesque terão lugar na praia da Coroa Vermelha. Dela de-verão participar representantes de várias tribos indíge-

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37. Diretrizes e Regulamento, p. 15.

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nas, num exercício de exorcismo simbólico, no qual,pela dança ritual, buscar-se-á afastar os espíritos mausque chegaram com os portugueses em 1500.

São, na verdade, tímidas ações de resistência aosimbolismo das comemorações. Nada que se compareàs fortes manifestações ocorridas na América Latinacontra as comemorações em torno de Cristóvão Co-lombo, que passou a ser responsabilizado pelos 60 mi-lhões de índios mortos somente nos primeiros 50 anosda descoberta. O dia 12 de outubro, Dia de Colomboou Dia do Hispanismo, transformou-se em data sím-bolo da resistência, onde não faltam julgamentos pós-tumos todos os anos renovados, pois considera-se queos delitos cometidos não prescrevem e os julgamentosrealizam-se em esfinge. Em Honduras, em 1998, onavegante genovês foi sentenciado à morte, depois queum júri de dez membros consideraram-no culpado pordez crimes: seqüestro, roubo de patrimônio cultural,estupro, escravidão, tortura, assassinato em massa,destruição de culturas, invasão de povoados, tráfico dealimentos e genocídio contra as etnias do país.

Certamente, Pedro Álvares Cabral está a salvo dejulgamentos semelhantes no Brasil, diferentemente doque se passa na Índia, como já vimos, onde a identifi-cação entre as comemorações e um neocolonialismo éimediata, particularmente pela ação dos revigoradospartidos nacionalistas, vencedores das últimas elei-ções. Assim mesmo, o olhar das comemorações portu-guesas volta-se preferencialmente para o levante,atraído por seu mistério e por seu desprezo. Isto tudo,num momento em que as caravelas dos investimentosportugueses de novo rondam as costas brasileiras, embusca de portos seguros para suas aplicações de capitalpropiciados pela globalização. Voltar-se para o Atlân-

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tico, não como forma de exclusão da Europa, mascomo ponte segura de sua própria inserção na UniãoEuropéia, cumprindo tardiamente o desejo de Joa-quim Barradas de Carvalho, inscrito em seu premoni-tório Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico?38.

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38. CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo dePortugal. A Europa ou o Atlântico? Lisboa: LivrosHorizonte, 1974, p. 78-82.

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O que significa comemorar? O que significam ascomemorações no tempo presente? As comemoraçõessão manifestações vivas da história. Mas são tambémdimensões explícitas do lembrar e do esquecer – por-tanto, da memória. Há momentos históricos de forteexaltação do sentimento comemoracionista. Como osanos 30 e 40, especialmente no contexto dos totalita-rismos, de forte apelo emocional e passadiço. A buscadesenfreada, nas longínquas raízes do passado, da jus-tificativa para as tresloucadas ações do presente. Damesma forma, os regimes de exceção trabalhavam in-tensamente no obscurecimento da história inconve-niente, da história que não se ajustava aos padrões éti-cos, estéticos e ideológicos almejados. O desmorona-mento destes regimes nos anos 40, no pós-segundaguerra mundial, promoveram, por outro lado, a explo-são incontida da memória, o esforço dos silenciadospor lembrar, para não esquecer, exatamente para evitarque o pesadelo de novo assomasse as sociedades desa-percebidas e desprotegidas. “Nos exercícios de reme-moração, a história recordada esgarça a cronologia,desborda o espaço, preenche as lacunas entre os acon-tecimentos, presentifica as ausências. Por isso, apesarde a memória ensejar uma história narrada, a recons-

5555555555555O SIGNIFICADO DAS

COMEMORAÇÕES

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trução memorialística ‘não precisa de matéria’, no sen-tido preciso de que ela fia a própria substância”39.

A urdidura do tecido histórico se faz a partir dosimpulsos do presente. É o presente, em sua fugacidadeincontrolável, que num átimo de tempo torna o pre-sente em passado, ao mesmo tempo que ilumina-obs-curece, silencia-exalta, congela-reaquece, mas tambémoblitera o lugar de onde se fala, transformando perma-nentemente o passado “sob os influxos do presente,uma vez que as trajetórias pessoais e coletivas são in-cessantemente repostas”40. Cria-se um tecido imaginá-rio, por força do “sujeito que lembra e significa o quefoi previamente significado, num processo de ressigni-ficação permanente que constitui o próprio tecido doimaginário”41. O presente destrói o passado, dele sealimenta, mas prescinde de sua experiência social con-creta. Por isso, as comemorações são mais eficazesquanto mais legítimas se configurarem, por força desuas durações. O que se recupera do passado é o míni-mo assimilável pelo presente com força de tradição esingularidade. O que não se enquadra é resíduo exóti-co.

Nas comemorações, portanto, o evento passado éplenamente reorganizado e assimilado pelo presente,exprimindo, nesta ação, a busca de unificação do pre-sente pelo evento pretérito, reduzindo o passado às

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39. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento.“Prismas da Memória: Emigração e Desenraiza-mento”. Revista do CEPFAM, Faculdade de Letrasda Universidade do Porto, vol. 4, 1998, p. 17.40. Idem, p. 18.41. Idem, ibidem.

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suas expressões mínimas, apreensíveis e validadas pelopresente42. Reversamente, as reconstruções memoria-lísticas do passado revelam o tecido esgarçado da so-ciedade que comemora, porque comporta discursos econtradiscursos, construções e desconstruções, queapontam para a dimensão fugaz do presente históricoe a validade das comemorações como espaços criativosde reflexão histórica que enlaçam, vigorosamente, atríplice temporalidade numa unidade de sentido. Éexatamente a pletora de possibilidades que permite aimensa variedade de apropriações identitárias do pas-sado. O que é nocivo para o presente torna-se, sim-plesmente, “cultura da diferença”, e não “alteridade”.

A comemoração do V Centenário opera nos limi-tes extremos da cultura da acomodação, da perda desentido da história, da memória e do acontecimento.A comemoração não visa lembrar. Pelo contrário, nosentido de reificar a permanência, comemora-se, emúltima instância, o próprio presente. O passado não seconstitui como alteridade em relação ao presente. Oreforço do tempo presente significa o esmaecimentoda memória, da própria história, e assim, repõe-secontinuamente uma nova história. O presente torna-sesingular em relação ao passado, e sua identidade é de-senhada por oposição ao “outro”, encontradiço nasprofundezas do passado. Não é a alteridade de umpovo em relação a outro; mas de uma experiência his-tórica, vivida em diferentes temporalidades, que bus-ca, descobre, encontra, identifica, nega, assimila, ela-bora e renega, permanentemente, o outro.

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42. CARDOSO, Irene. “A Comemoração Impossí-vel.” Tempo Social, Revista de Sociologia da USP,Vol. 10, nº. 2, outubro de 1998, p. 11.

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O descobrimento, como mito fundador da nação,encerra uma profunda contradição. Se ele é mito fun-dador na memória dos descobridores, os portugueses,pois é o ato inicial que conduziria as terras descobertasà condição de futuras nações independentes, ele tam-bém o é para os ‘descobertos’ e para os que ainda per-manecem ‘encobertos’. Este é o nosso drama. Quere-mos comemorar, mas não como os ‘outros’, os portu-gueses, os europeus. Mas os liames dessa memória co-letiva são indissolúveis. Não podemos negá-los semnos negarmos. Isto explica nossa fuga ao celebracionis-mo; procuramos escapulir às ritualizações e refugia-mo-nos na dimensão especulativa, crítica, reflexiva,propriamente científica, que recorre ao source minning,à constituição de acervos que garantam a continuidadeda investigação e da procura última de nosso autoco-nhecimento, única forma possível de combate à amné-sia coletiva reiterada pela ritualização celebrativa, quenos permitirá cruzar as fronteiras do incontornavel-mente ‘outro’. O ‘outro’ que não somos nós; o ‘outro’que são ‘eles’. É preciso estar alerta contra a comemo-ração dos descobrimentos como metáfora do passado,que significa o esgarçamento da tradição, a recupera-ção da humanidade de forma naturalizada, coartada desua experiência histórica real, experiências estas quepoderiam apontar para dramas, tragédias e farsas quenão sejam simplesmente homogeneizadas na linha dotempo, mas se constituam em condições de nossaconsciência histórica.

Por mais que insistamos que a oportunidade dacomemoração dos 500 anos seja também a oportuni-dade para pensar todos os descobrimentos havidos emnossa trajetória histórica, inclusive os ‘encobrimentos’,o que comemoramos de fato é o próprio presente. Paratanto, depuramos o evento ‘descobrimento’ de tudo

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que possa representar uma afronta ao presente: genocí-dio indígena, devastação ambiental, destruição de cul-turas; e incorporamos os aspectos palatáveis, reforçoinsofismável do presente, tais como, mistura interét-nica, encontro de culturas, nascimento de nações, ges-tação do mundo globalizado. Faz-se tábula rasa dopassado. Reforça-se a intervenção da media, do merca-do de bens simbólicos, com todos os suprimentos ne-cessários à amoldagem do passado ao tempo presente,que age nos interstícios do vazio da memória e da his-tória. Tudo se reduz ao simbolismo do tempo. Somossubjugados por um relógio que, inexoravelmente,marca a contagem regressiva rumo ao grande festejo e,a propósito, produtos comuns e desgastados da indús-tria cultural são requentados e, sob novas roupagens,das vestes celebrativas do V Centenário, consumidosavidamente pela população nacional. É o show dos 500anos: sob a farsa da elevação do povo brasileiro, come-mora-se metafórica e tragicamente a sua degradação.

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EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Formato: 12 x 21 cm

Mancha: 19 x 40 paicas

Tipologia: Garamond 3 11.5 / AvanGarde 18

Coordenadora Executiva

Luzia Bianchi

Revisão

Carlos Valero Mariza Inês Mortari Renda

Criação da capa

Renato Valderramas

Projeto Gráfico

Cássia Leticia Carrara Domiciano

Catalogação

Valéria Maria Campaneri

Diagramação

Carina Cristina do Nascimento

SOBRE O LIVRO