arquivopessoa 3506

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Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3506 Fernando Pessoa Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro. Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro. Nem as vamos buscar aos movimentos filosóficos profundos do estrangeiro; vamos buscá-las à superfície, ao jornalismo de ideias. E assim as ideias que adoptamos, sem alteração nem crítica, são ou velhas ou superficiais. Falamos a sério nas ideias políticas de León Blum ou de Edouard Herriot, nenhum dos quais teve alguma vez ideias — políticas ou outras — em sua vida. Falamos a sério em Bourget, Maurras [. . .]. Plagiamos o fascismo e o hitlerismo, plagiamos claramente, com a desver- gonha da inconsciência, como a criança imita sem hesitar. Não reparamos que fascismo e hitlerismo, em sua essência, nada têm de novo, porventura nada de aproveitável, como ideias; o que não sabemos imitar, porque seria mais difícil, é a personalidade de Mussolini. As ideias de Maurras, que qualquer raciocinador hábil desfaz sem dificul- dade, se tiver a paciência de vencer o tédio quase insuportável de o ler, passam por leis da natureza, por tão indiscutíveis como, não direi já a teoria atómica, que tem elementos discutíveis, mas o coeficiente de dilatação do ferro, ou a lei de Boyle ou de Mariotte. Temos poetas de mérito. Que fazem eles? Quanto a cultura, não sabem nada de nada, e assim estagnam, repetindo-se indefinidamente, papagaios perenes do seu primeiro, e único, impulse original. Temos um ou outro homem capaz de pensamento filosófico. Que faz? Submerge esse pensamento em retórica e divagação, incapaz de coordenar logicamente ideias, de dispor ordenadamente materiais. Tenho perante mim, ao dizer estas coisas, exemplos concretos: omito os nomes por uma razão que não é mister explicar. s. d. Sobre Portugal — Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979: 8. Obra Aberta · 2011-02-09 05:50

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Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3506

Fernando Pessoa

Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro.

Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro. Nem as vamosbuscar aos movimentos filosóficos profundos do estrangeiro; vamos buscá-lasà superfície, ao jornalismo de ideias. E assim as ideias que adoptamos, semalteração nem crítica, são ou velhas ou superficiais. Falamos a sério nas ideiaspolíticas de León Blum ou de Edouard Herriot, nenhum dos quais teve algumavez ideias — políticas ou outras — em sua vida. Falamos a sério em Bourget,Maurras [. . .].

Plagiamos o fascismo e o hitlerismo, plagiamos claramente, com a desver-gonha da inconsciência, como a criança imita sem hesitar. Não reparamos quefascismo e hitlerismo, em sua essência, nada têm de novo, porventura nada deaproveitável, como ideias; o que não sabemos imitar, porque seria mais difícil, éa personalidade de Mussolini.

As ideias de Maurras, que qualquer raciocinador hábil desfaz sem dificul-dade, se tiver a paciência de vencer o tédio quase insuportável de o ler, passampor leis da natureza, por tão indiscutíveis como, não direi já a teoria atómica,que tem elementos discutíveis, mas o coeficiente de dilatação do ferro, ou a leide Boyle ou de Mariotte.

Temos poetas de mérito. Que fazem eles? Quanto a cultura, não sabem nadade nada, e assim estagnam, repetindo-se indefinidamente, papagaios perenesdo seu primeiro, e único, impulse original. Temos um ou outro homem capazde pensamento filosófico. Que faz? Submerge esse pensamento em retórica edivagação, incapaz de coordenar logicamente ideias, de dispor ordenadamentemateriais. Tenho perante mim, ao dizer estas coisas, exemplos concretos: omitoos nomes por uma razão que não é mister explicar.

s. d.

Sobre Portugal — Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos deMaria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa:Ática, 1979: 8.

Obra Aberta · 2011-02-09 05:50