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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM ARNALDO RODRIGUES DE LIMA AS PALAVRAS FUNCIONAIS NA CHAMADA FALA TELEGRÁFICA EM ENUNCIADOS DE SUJEITOS AFÁSICOS CAMPINAS, 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ARNALDO RODRIGUES DE LIMA

AS PALAVRAS FUNCIONAIS NA CHAMADA FALA

TELEGRÁFICA EM ENUNCIADOS DE SUJEITOS AFÁSICOS

CAMPINAS,

2017

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ARNALDO RODRIGUES DE LIMA

AS PALAVRAS FUNCIONAIS NA CHAMADA FALA TELEGRÁFICA

EM ENUNCIADOS DE SUJEITOS AFÁSICOS

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto

de Estudos da Linguagem da Universidade

Estadual de Campinas para obtenção do título de

Mestre em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Rosana do Carmo Novaes Pinto

Este exemplar corresponde à versão

final da Dissertação defendida pelo aluno

Arnaldo Rodrigues de Lima e orientada pela Profa. Dra. Rosana do Carmo Novaes Pinto.

CAMPINAS,

2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 15/07238-8

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem

Crisllene Queiroz Custódio – CRB 8/8624

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Function words in the so-called telegraphic speech in aphasic

subjects’ utterances.

Palavras-chave em inglês:

Neurolinguistics

Aphasia

Aphasiacs

Speech

Language disorders

Order (Grammar)

Área de Concentração: Linguística

Titulação: Mestre em Linguística

Banca Examinadora:

Rosana do Carmo Novaes Pinto [Orientador]

Marcus Vinícius Borges Oliveira

Mirian Cazarotti Pacheco

Data da defesa: 27-06-2017

Programa de Pós-Graduação: Linguística

Lima, Arnaldo Rodrigues de, 1990-

L628p As palavras funcionais na chamada fala telegráfica em enunciados de

sujeitos afásicos / Arnaldo Rodrigues de Lima. – Campinas, SP: [s.n], 2017.

Orientador: Rosana do Carmo Novaes Pinto.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Estudos da Linguagem .

1. Neurolinguística. 2. Afasia. 3. Afásicos. 4. Fala. 5. Distúrbios da

linguagem. 6. Ordem (Gramática). I. Novaes-Pinto, Rosana do Carmo, 19961-. II.

Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III.

Título.

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BANCA EXAMINADORA:

Rosana do Carmo Novaes Pinto

Marcus Vinícius Borges Oliveira

Mirian Cazarotti Pacheco

Maria Irma Hadler Coudry

Roberto Gomes Camacho

IEL/UNICAMP

2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no

processo de vida acadêmica do aluno.

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DEDICATÓRIA

À minha mãe,

por eu tê-la deixado chorando na rodoviária quando

resolvi sair de casa para estudar e, segundo ela, “ganhar o

mundo”

Mãe, sem seu apoio teria sido impossível!

À Rosana Novaes Pinto,

por ter me acolhido de braços abertos, por ter me

orientado, me ensinado e me apoiado desde o princípio,

até quando nem mesmo eu acreditava que seria possível.

Rosana, o resultado desta pesquisa é uma singela

homenagem ao seu incansável esforço e brilhante trabalho

em solidificar a Neurolinguística enunciativo-discursiva.

Se eu for a metade do pesquisador que você é, ficarei

imensamente realizado!

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, que sempre me incentivou a continuar estudando. Mãe, aprendo muito com

você, nos mínimos detalhes. Obrigado por me ensinar a ser gente!

Aos meus irmãos, Mickaelly, Danielle e Juliano, que sempre se mostraram compreensivos

com a minha ausência. E aos meus pequenos, João Pedro e Maria Júlia, por não se

importarem de eu os estar vendo crescer por fotos e vídeo-chamadas. O tio ama vocês!

À Rosana pela orientação, cuidado e carinho. Enquanto tudo era não, você me presenteou

com o seu sim. Desde então, tenho aprendido com você a fazer pesquisa com paixão,

responsabilidade e ética.

Aos meus queridos amigos Ricardo Régis, Wanessa Oliveira e Weber Júnio, por sempre

terem me apoiado estando de alguma forma presentes na minha vida, apesar da distância.

À Enia Pereira, que tem sido meu anjo da guarda desde a primeira vez que eu coloquei os pés

em Campinas. Obrigado, por tudo!

Aos irmãos que a vida me deu – Sérgio Maciel e Lucas Allan. Sem vocês ao meu lado, toda

essa experiência teria sido bem mais dolorosa. Vocês tornaram tudo um pouco mais leve e

harmonioso. Obrigado por terem rido e chorado comigo.

À Milena Nicolas, por ter sido a minha fada madrinha.

Ao meu amigo Márcio Mesquita, que sempre me incentivou e apoiou no que foi preciso.

Ao meu amigo Bernardo Mendes Ribeiro, por ter sempre se preocupado com meu bem-estar e

tentado ao máximo que pôde minimizar os impactos da minha falta de grana. Obrigado por ter

me alimentado!

Às minhas queridas Ana Carolina, Déborah Rangel, Brenda Hada, Gisa, Tereza Rosa e

Marisa Araújo, por todos os momentos inesquecíveis que passamos juntos.

À Juliana Carvalho, pelos seus fortes e calorosos abraços.

Ao meu amigo Felipe Nascimento, por compartilhar tanta coisa boa comigo e tornar tudo um

pedacinho do céu.

Ao meu grande amigo Sérgio Toledo, que como um irmão mais velho cuidou de mim sempre

estando a postos para me fazer companhia quando o medo, a solidão e a saudade de casa me

assolavam.

Aos amigos que o IEL me deu, Vinicius Castro, Ricardo Bezerra, Flávio Benayon, Júlia

Rosa, Mirielly Ferraça, Lilian Braga e Renata Ortiz-Brandão. Vocês farão parte das minhas

mais doces memórias.

Ao querido Alberto Fernando, o Bebetinho, por ser tão fofo, companheiro e presente na

minha vida.

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Ao meu querido amigo Guilherme Rodrigues, o Gui, por todo companheirismo, carinho,

cuidado e atenção. Fico imensamente feliz que as nossas vidas tenham se cruzado.

À Angelina e Ananias, pelo imenso carinho e pelos conselhos. Vocês são indescritíveis!

Ao Lucas Lommez, por ter me ajudado tanto e por sempre ter me feito sentir melhor nos

momentos de angústia e incerteza.

Ao meu amigo Eduardo Barbosa, o Cajuru, por ter sido um dos meus portos fortes desde que

cheguei em Campinas.

Aos amigos que fiz na Alfredianes: Yeda Endrigo, Emerson Andrade, Felipe Nepomuceno, e

Igor Moraes por terem convivido com os meus livros espalhados na mesa da cozinha e por

me terem feito companhia madrugada adentro durante a escrita deste trabalho.

À professora Gláucia Vieira Cândido, por ter me convencido de que a UNICAMP era um

sonho possível – você não sabe o quanto me influenciou com o seu exemplo de professora!

Aos Profs. Drs. Mirian Cazarotti Pacheco e Marcus Vinícius Borges de Oliveira, por toda

contribuição para o desenvolvimento desta pesquisa, por ocasião do exame de qualificação.

Aos parceiros e amigos do GELEP, Thalita, Larissa, Mirian, Maira, Diana, Nívia e João

Pedro por sempre terem compartilhado comigo o que vocês têm de melhor.

Ao Professor Marco Antônio Machado, por ter me proporcionado a primeira oportunidade de

desenvolver uma pesquisa em Linguística.

A todos os sujeitos afásicos que frequentam o Grupo 3 do CCA, por terem despertado o meu

lado mais humano. Tenho aprendido muito com vocês e prometo continuar fazendo

cafezinhos.

Aos sujeitos GB, BM, BS e TR, por terem aceitado participar desta pesquisa.

À TR, por ter me dado seu sorriso todas às terças feiras de manhã.

À Francis, da Secretaria de Projetos, que sempre esteve disposta a me ajudar em tudo o que

foi necessário, com toda a burocracia envolvida nesta pesquisa.

À Rose – in memorian – por tantas vezes ter me recepcionado no corredor do pavilhão dos

docentes com o seu sereno e carinhoso “bom dia!” – Saudades e ótimas lembranças foi o que

me restou.

Ao Matheus Schimidt, Henrique Alves e Felipe Martinelli, em extensão a todos da Gamux,

por terem contribuído e enriquecido o trabalho que fazemos no CCA. Obrigado por terem

aceitado o convite e o desafio!

À FAPESP pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa.

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A menina sem palavra

Mia Couto

A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam

só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um

dialecto pessoal e intransmissível? Por muito que se aplicassem, os pais não

conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia

o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que

fosse muda. Falava em língua que nem há nesta actual humanidade. Havia

quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar.

Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão

tocante que havia sempre quem chorasse.

Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as

mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:

— “Fala comigo, filha!”

Os olhos dele deslizaram. A menina beijou a lágrima. Gostoseou aquela água

salgada e disse:

— “Mar”…

O pai espantou-se de boca e orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os

ombros da filha. “Vês, tu falas, ela fala, ela fala!” Gritava para que se

ouvisse. “Disse mar, ela disse mar”, repetia o pai pelos aposentos.

Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. Mas mais nenhum som

entendível se anunciou.

O pai não se conformou. Pensou e repensou e elaborou um plano. Levou a

filha para onde havia mar e mar depois do mar. Se havia sido a única palavra

que ela articulara em toda a sua vida seria, então, no mar que se descortinaria

a razão da inabilidade.

A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na

areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos.

O mundo que ela pretendera infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou

simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era

preciso regressarem, o mar subia em ameaça.

— “Venha, minha filha!”

Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que

nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no

olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se

admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?

— “Vamos filha! Caso senão as ondas nos vão engolir”.

O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou,

cantou, pulou. Tudo para a distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu

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mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A

miúda ganhara raiz, afloração de rocha?

Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe

fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se

enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só

podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:

Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela.

O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do

horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o

astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um

baloa.

Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um

rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se

encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de

prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário

de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares.

Olhou o horizonte e chamou:

— “Pai!”

Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos

lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se

aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.

Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido

fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés

dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero:

— “Agora, é que nunca”.

A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a

seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda

extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela

inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de

inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo

que eles ambos se escoariam?

— “Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor”…

Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois, parou e

passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. E o mar se

refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo

a casa. No cimo, a lua se recompunha.

— “Viu, pai? Eu acabei a sua história!”

E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam

saído.

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RESUMO

Uma das razões para a Linguística se debruçar sobre as alterações de linguagem nas

patologias é que os dados advindos deste campo ajudam a corroborar e a refutar hipóteses

sobre seu funcionamento em estados normais. Dentre os tipos de afasia mais estudados está o

agramatismo – seja entendido como sintoma ou síndrome –, caracterizado pela presença da

fala telegráfica, objeto central desta pesquisa. Na literatura neuropsicológica, agramatismo e

fala telegráfica estão associados à afasia de Broca. Os estudos dessa categoria enfatizam as

perdas na linguagem verbal, relativas às categorias funcionais: preposições, artigos,

conjunções, bem como à morfologia flexional e derivacional. As classes abertas estariam

relativamente preservadas: substantivos, adjetivos, alguns advérbios e a forma infinitiva dos

verbos. Para Jakobson, o agramatismo se configura como um protótipo das afasias de

combinação, mas apontamos também que há dificuldades relativas à seleção das palavras

funcionais. Avaliamos, também, as hipóteses de Vygotsky, Luria, Leontiev e Akhutina sobre

o papel crucial da linguagem interna para a produção dos enunciados e, sobretudo, as

hipóteses desta autora sobre a relação entre a linguagem interna e a produção dos enunciados

telegráficos. A pesquisa foi desenvolvida integrando pressupostos teórico-metodológicos de

diferentes áreas (i) Neurolinguística enunciativo-discursiva, (ii) as abordagens

Neuropsicológicas sócio-histórico-culturais e (iii) a Gramática Funcional. O trabalho teve

como principal objetivo refletir sobre as dificuldades de sujeitos afásicos não-fluentes com as

palavras funcionais, visando compreender a fala telegráfica – que passamos a conceber como

enunciado de estilo telegráfico – e, também, avaliar as hipóteses explicativas acerca das

variações entre os casos e as que ocorrem nas produções de um mesmo sujeito. Para

atingirmos este objetivo, buscamos analisar, por meio da pesquisa qualitativa de cunho

microgenético, enunciados de estilo telegráfico produzidos por quatro sujeitos afásicos (BM,

BS, TR e GB) que participam das sessões coletivas e individuais do Grupo 3 do Centro de

Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP). Os episódios dialógicos entre afásicos e

não-afásicos foram vídeo-filmados, registrados em diário e discursivamente transcritos. Além

da observação dos episódios nas sessões coletivas do CCA. Outros dados foram obtidos por

meio do uso de expedientes de caráter metalinguístico. Nas análises nos interessou, sobretudo,

compreender as estratégias alternativas desses sujeitos nos processos de significação – isto é,

como lidam com a estruturação dos enunciados, face às dificuldades com a produção das

palavras funcionais. Concluímos que as abordagens dos autores da vertente sócio-histórico-

cultural acima referidos e, principalmente, a reflexão de Akhutina contribuem para a

compreensão dos processos envolvidos na produção dos enunciados telegráficos ao

considerarem tanto os aspectos neurofisiológicos e as áreas impactadas pela lesão quanto os

aspectos neuropsicológicos, com ênfase na linguagem – na produção de enunciados em

situações dialógicas e em seu papel mediador e organizador das demais funções cognitivas e

do desenvolvimento e organização do pensamento. Acreditamos que esta dissertação possa

contribuir também para a prática clínica com sujeitos afásicos, bem como para os estudos

sobre as dificuldades de encontrar palavras, tema central de projetos no âmbito do GELEP

(Grupo de Estudo da Linguagem no envelhecimento e nas patologias).

Palavras-chave: Neurolinguística. Afasia. Afásicos. Fala. Distúrbios da linguagem. Ordem

(Gramática).

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ABSTRACT

One of the reasons that explain the interest of Linguistics on language changes in pathologies is that

data from this field help either to corroborate or refute hypotheses about language functioning in the

so-called normal states. Agrammatism is one of the most studied types of aphasia, either if taken as a

symptom or as a syndrome. It has been described, more specifically, by the presence of a telegraphic

speech, which is the central object of analysis of this research. In neuropsychological literature,

agrammatism and telegraphic speech are associated with Broca's aphasia. The studies on this category

emphasize losses in verbal language, especially regarding the functional categories: prepositions,

articles, conjunctions and the inflectional and derivational morphology. Open classes are usually

relatively preserved: nouns, adjectives, adverbs and the infinitive form of the verbs. For Jakobson,

agrammatism is a prototype of aphasia involving difficulties of combining linguistic elements in the

structuring of an utterance. However, we question whether the most relevant difficulties would not be

with the selection of functional words. We also evaluated the hypotheses of Vygotsky, Luria, Leontiev

and Akhutina about the crucial role of the inner language to the construction of an utterance and,

especially, Akhutina’s hypothesis about the relation between the inner language and the telegraphic

utterances production. This research was developed articulating theoretical and methodological

assumptions of different fields (i) Enunciative-discursive Neurolinguistics, (ii) the socio-historical-

cultural neuropsychological approaches, and (iii) Functional Grammar. The work specially aims to

reflect on the non-fluent aphasic subjects difficulties with the functional words in order to understand

the telegraphic speech – which we began to refer as telegraphic style utterances – and, also, to

evaluate Akhutina’s explanatory hypotheses about the variations of this phenomenon among the

subjects and those that occur in the productions of each subject. In order to reach its goals, we

evaluated – through the microgenetic qualitative research paradigm – telegraphic style utterances

produced by four aphasic subjects (BM, BS, TR and GB) who attend both group meetings and

individual speech therapy sessions at Centro de Convivência de Afásicos (CCA/IEL/UNICAMP). All

the interactive episodes among aphasic and non-aphasic subjects were video-recorded, registered in

diaries and, subsequently, discursively transcribed. Besides observing events in the group sessions of

CCA, other data were obtained through metalinguistic instruments. In the analysis we were interested,

above all, in understanding the alternative strategies in meaning processes – that is, how they deal with

language structures in their utterances – given their difficulties with the functional words. We

concluded that the approaches of the socio-historical-cultural representatives and, mainly, the

reflections of Akhutina, contribute to the understanding of the processes involved in the production of

telegraphic utterances, once they consider both the physiological aspects and the brain areas impacted

by the lesions, as well as the neuropsychological aspects, with emphasis on language – in the

production of utterances in dialogical situations and its mediating role for the development of other

cognitive functions and for the development and organization of thought. We believe that this research

may also contribute to the clinic practice with aphasic subjects as well as for a broader study about the

Word Finding Difficulties, a central theme for the studies in the scope of GELEP (Study Group of

Language in Aging and in Pathologies).

Key-words: Neurolinguistics. Aphasia. Aphasiacs. Speech. Language disorders . Order (Grammar)

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SUMÁRIO

Introdução 15

Capítulo 1 Fala telegráfica: uma reflexão no campo da

Neurolinguística enunciativo-discursiva

18

1. A Neurolinguística enunciativo-discursiva.................................................................. 18

1.1 Sobre a indeterminação da linguagem e a subjetividade nos estudos das afasias.......... 21

2. A fala telegráfica no contexto da semiologia das afasias............................................. 22

2.1. A semiologia das afasias: produto da reflexão teórico-metodológica sobre a relação

cérebro-linguagem..............................................................................................................

22

2.2. A relação entre fala telegráfica e agramatismo............................................................ 24

3. O agramatismo no contexto dos estudos neurolinguísticos de orientação

enunciativo-discursiva.......................................................................................................

31

4. Jakobson e a caracterização das alterações sintagmáticas: o agramatismo como

protótipo da afasia de combinação ou sintagmática........................................................

33

Capítulo 2 A contribuição do paradigma funcionalista para o estudo dos

enunciados de estilo telegráfico

37

1. O paradigma funcional como opção teórico-metodológica de investigação do

enunciado de estilo telegráfico..........................................................................................

37

1.1.A relação entre léxico e a sintaxe na Gramática Funcional.......................................... 46

1.1.1. Uma visão funcionalista do conceito de palavra e de suas classes........................ 46

2. As palavras funcionais e a fala telegráfica................................................................. 51

2.1.As preposições.............................................................................................................. 52

2.2.As conjunções............................................................................................................... 54

2.3.Os artigos...................................................................................................................... 56

2.4.As flexões verbais......................................................................................................... 56

3. O paradigma funcional e a Neurolinguística enunciativo-discursiva: pontos de

encontro..............................................................................................................................

58

4. A contribuição dos conceitos bakhtinianos para a abordagem dos enunciados de

estilo telegráfico..................................................................................................................

60

4.1. De fala telegráfica para enunciado de estilo telegráfico: uma movimentação

(semiológica) necessária......................................................................................................

60

4.1.1. O conceito de dialogia............................................................................................... 61

4.1.2. Enunciado: a unidade de comunicação verbal........................................................... 61

4.1.3. O conceito de acabamento......................................................................................... 62

4.1.4. O conceito de querer-dizer........................................................................................ 63

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Capítulo 3 A relação entre fala interna e a produção do

enunciado de estilo telegráfico

64

1. A contribuição da abordagem sócio-histórico-cultural para o estudo do

enunciado telegráfico........................................................................................................

64

1.1. Do pensamento abstrato à produção do enunciado: o papel central da fala

interna..................................................................................................................................

64

1.2. O enunciado de estilo telegráfico: desenvolvendo uma hipótese

explicativa...........................................................................................................................

73

Capítulo 4 Aspetos metodológicos da pesquisa

80

1. A pesquisa qualitativa em Neurolinguística............................................................... 80

2. Sobre o registro e a transcrição de dados.................................................................. 81

3. Centro de Convivência de Afásicos (CCA): relação entre teoria e prática............. 82

4. Sujeitos da pesquisa...................................................................................................... 83

4.1. O sujeito BM................................................................................................................ 83

4.2. O sujeito BS.................................................................................................................. 84

4.3. O sujeito TR................................................................................................................. 84

4.4. O sujeito GB................................................................................................................. 84

5. Descrição das atividades experimentais com os sujeitos TR, BM, BS e GB............ 85

5.1. Jogo de adivinhação: O que é, o que é?........................................................................ 85

5.2. Adivinha o que ele está fazendo?................................................................................. 86

5.3. Provérbios: Não adianta chorar pelo leite derramado................................................ 87

5.4. Atividades de leitura dirigida, desenvolvidas com BS................................................ 88

6. Questões relativas às analises: a análise microgenética dos dados.......................... 89

7. Aprovação da pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).............................. 90

Capítulo 5 O enunciado de estilo telegráfico interpretado via análise

qualitativa/microgenética dos episódios dialógicos

91

Introdução: sobre a organização dos dados................................................................... 91

1. Dados do sujeito BM..................................................................................................... 92

1.1.Dois moço, um nordeste e um jeep............................................................................... 92

1.2.Outros grupos do CCA e Romaneio.............................................................................. 94

1.2.1. Outros grupos do CCA............................................................................................ 94

1.2.2. Romaneio................................................................................................................. 95

1.3.Chorar pelo leite derramado......................................................................................... 102

1.4.Síntese das questões relativas à produção de BM..................................................... 104

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14

1.4.1. Quanto à produção de palavras funcionais e de morfologia flexional.................... 104

1.4.2. Quanto às estratégias alternativas de significação.................................................. 104

1.4.3. Quanto à relação do sujeito com a sua afasia.......................................................... 104

1.4.4. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos........................................... 105

2. Dados do sujeito BS..................................................................................................... 105

2.1.Fala pra mim assim... usando verbo............................................................................. 105

2.2.É DO Brasil ou NO Brasil?.......................................................................................... 108

2.3.Qual é o futuro do “falou”?.......................................................................................... 113

2.4.O vício de segurar uma coisa para pensar.................................................................... 115

2.5.Síntese das questões relativas à produção de BS..................................................... 119

2.5.1. Quanto à produção de palavras funcionais e de morfologia flexional.................... 119

2.5.2. Quanto às estratégias alternativas de significação.................................................. 119

2.5.3. Quanto à relação do sujeito com a sua afasia.......................................................... 120

2.5.4. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos........................................... 120

3. Dados do sujeito TR.................................................................................................... 120

3.1.Isso! Um, dois... ........................................................................................................... 121

3.2.É importante cuidar da saúde....................................................................................... 125

3.3.TR e a compreensão de palavras funcionais................................................................. 127

3.4.O quê ele está fazendo?................................................................................................ 129

3.5.Síntese das questões relativas à produção de TR.................................................... 132

3.5.1. Quanto à produção de palavras funcionais e de morfologia flexional.................... 132

3.5.2. Quanto às estratégias alternativas de significação................................................... 132

3.5.3. Quanto a relação do sujeito com a sua afasia.......................................................... 133

3.5.4. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos........................................... 133

4. Dados do sujeito GB.................................................................................................... 134

4.1.Boca... não... Fala... não................................................................................................ 134

4.2.Ixi, fi... figura... ãh, ajuda............................................................................................. 138

4.3.Filho de peixe... peixinho é!......................................................................................... 139

4.4.Síntese das questões relativas à produção de GB.................................................... 144

4.4.1. Quanto à produção de palavras funcionais.............................................................. 144

4.4.2. Quanto à morfologia flexional................................................................................. 144

4.4.3. Quanto às estratégias alternativas de significação................................................... 145

4.4.4. Quanto à relação do sujeito com a sua afasia.......................................................... 145

4.4.5. Hipótese sobre a produção de enunciados de estilo telegráfico.............................. 145

Considerações Finais: “Eu tô aqui!” .......................................................... 146

Referências Bibliográficas ........................................................................... 153

Anexos............................................................................................................................... 158

Anexo 1 - TCLE aprovado pelo CEP/UNICAMP e assinado pelos sujeitos da pesquisa.. 158

Anexo 2: Parecer de aprovação do CEP/UNICAMP para a realização desta pesquisa...... 161

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Esta dissertação foi desenvolvida articulando os pressupostos teórico-metodológicos

de diferentes áreas: (i) a Neurolinguística enunciativo-discursiva, (ii) as abordagens

neuropsicológicas sócio-histórico-culturais e (iii) a Gramática Funcional e integra uma

pesquisa mais ampla intitulada O funcionamento semântico-lexical: inferências a partir do

estudo das afasias1 desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos da Linguagem no

Envelhecimento e nas Patologias (GELEP)2.

O trabalho tem como principal objetivo refletir sobre as dificuldades de sujeitos

afásicos3 não-fluentes com as palavras funcionais, visando compreender a chamada “fala

telegráfica”, bem como avaliar as hipóteses explicativas acerca desse fenômeno. Buscamos

analisar, por meio da metodologia de cunho microgenético, enunciados de estilo telegráfico

produzidos por quatro sujeitos (GB, TR, BM e BS) que participam das sessões coletivas e

individuais do Grupo 3 do Centro de Convivência de Afásicos (CCA)4. Nos interessa,

também, compreender as estratégias alternativas desenvolvidas por esses sujeitos nos

processos de significação – isto é, como lidam com a estruturação dos enunciados, face às

dificuldades com a produção das palavras funcionais.

Novaes-Pinto, (1999) aponta que dentre as categorias clínicas mais estudadas no

campo das afasias está o agramatismo, cuja principal característica é a presença da fala

1 Projeto elaborado para concessão de Bolsa PQ, Processo 311777/2014-7, atribuída à Profa. Dra. Rosana do

Carmo Novaes Pinto.

2 O GELEP é cadastrado na Plataforma Lattes-CNPq desde 2010, liderado pela Profa. Dra Dra. Rosana do

Carmo Novaes-Pinto. O grupo “visa desenvolver pesquisas acerca dos fenômenos relativos à linguagem no

envelhecimento e nas patologias de origem neurológica (como afasias, demências, epilepsias, atrasos de

desenvolvimento etc) num esforço conjunto para promover discussões críticas que permitam avançar no

conhecimento do funcionamento linguístico-cognitivo. A maioria das pesquisas abrigadas pelo GELEP se

vincula à linha Cérebro, mente & linguagem da área Linguagem e Pensamento (subárea Neurolinguística), da

Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas”. O

GELEP se propõe a abrigar pesquisadores com formações diversas, privilegiando abordagens multidisciplinares

dos fenômenos tematizados nos trabalhos (Novaes-Pinto, 2013). 3 Afasias são alterações de linguagem decorrentes de lesões cerebrais focais, como AVCs (derrames), tumores e

TCEs (traumas crânio-encefálicos) e, geralmente, comprometem a linguagem em todas as modalidades: oral

(produção e compreensão) e escrita (leitura e produção) e em todos os níveis linguísticos: fonético/fonológico,

sintático, semântico-lexical, pragmático-discursivo (Coudry, 1986/1988). Pelo fato dos Acidentes Vasculares

Cerebrais serem os principais fatores etiológicos das afasias, consideramos relevante destacar que, de acordo

com o relatório da PNS (Pesquisa Nacional em Saúde), publicado em 2014 – numa parceria com o IBGE

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o Ministério da Saúde; no Brasil –, 1,5% da população

brasileira foi diagnosticada com algum tipo de AVC, o que representa, aproximadamente, 2,2 milhões de pessoas

a partir dos 18 anos de idade. Para mais informações, acessar:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/pns/2013/ e ftp://ftp.ibge.gov.br/PNS/2013/pns2013.pdf 4 O Grupo 3 do CCA é coordenado pela Profa. Dra. Rosana do C. Novaes Pinto, orientadora desta pesquisa.

Introdução

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telegráfica. Na literatura neuropsicológica, o agramatismo e a fala telegráfica estão associados

à afasia de Broca (ou afasia de expressão). O próprio nome – agramatismo – revela a hipótese

de que é o funcionamento gramatical (entendido como sintático) que estaria impactado de

forma relevante nessa afasia. Os estudos enfatizam as perdas na linguagem verbal,

principalmente relativas às categorias funcionais ou classes gramaticais fechadas:

preposições, artigos, conjunções, pronomes5, bem como a morfologia flexional e derivacional.

As classes abertas, segundo a maioria dos estudos, estariam relativamente preservadas, com a

presença de substantivos, adjetivos, alguns advérbios e a forma infinitiva dos verbos.

Com a finalidade de organizar a discussão, apresentamos a estrutura da dissertação,

sintetizando o objetivo de cada um dos capítulos.

No Capítulo 1, discutimos os conceitos de fala telegráfica e sua relação com o

agramatismo, traçando um breve histórico sobre esses fenômenos nas teorias afasiológicas

clássicas. A partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Neurolinguística enunciativo-

discursiva, desenvolvemos uma crítica à noção de déficit que é bastante presente em trabalhos

mais recentes que tentam descrever e analisar o agramatismo.

No Capítulo 2, apresentamos os pressupostos da Gramática Funcional, aproximando

alguns conceitos desse campo à Neurolinguística que desenvolvemos, defendendo que a

abordagem funcional é a que melhor se adequa tanto teórica, quanto metodologicamente às

nossas pesquisas, uma vez que privilegia questões pragmático-discursivas na descrição e

explicação dos enunciados telegráficos. Ao final do capítulo, discutimos criticamente a

formulação do termo “fala telegráfica”, que aparece recorrentemente na literatura sobre a

semiologia das afasias, contrapondo-o a variações terminológicas como fala de estilo

telegráfico e fala reduzida, sugerindo a expressão “enunciado de estilo telegráfico”, mais

coerente com nossas abordagens.

No Capitulo 3, abordamos a relação entre pensamento e linguagem, destacando a

importância da fala interna no processo de produção dos enunciados, na tentativa de avaliar

hipóteses clássicas e correntes. A partir dos modelos propostos por Vygotsky, Luria, Leontiev

e das mais recentes reflexões de Akhutina (1975, 2003), tentamos relacionar o processo de

produção dos enunciados (fala externa) que se inicia com a formulação do pensamento verbal

(querer-dizer), mediado pela fala interna. Apresentamos e discutimos esses conceitos, assim

como sua relação com as noções de sentido e de significado, culminando com as hipóteses

5 Vale salientar que, embora os pronomes façam parte dessas categorias fechadas, eles não serão objeto desta

pesquisa. Esta decisão foi tomada considerando-se a especificidade que os pronomes têm nos enunciados.

Avaliamos que não seria possível dar conta dessas questões no período de desenvolvimento desta dissertação,

mas sem dúvida, trata-se de tema relevante para pesquisas futuras. .

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desenvolvidas por Akhtutina, mais intimamente relacionadas às afasias, com destaque para o

agramatismo, termo que, para a autora, equivale à produção da fala telegráfica.

No Capítulo 4, apresentamos as questões referentes à metodologia da pesquisa,

apresentando os sujeitos GB, BM, BS e TR, bem como os expedientes metalinguísticos

desenvolvidos para abordar os enunciados telegráficos produzidos nas sessões coletivas e

individuais do Grupo 3 do CCA.

No Capítulo 5, propomos a análise dos enunciados de estilo telegráficos produzidos

pelos sujeitos, visando contribuir para a compreensão dos processos linguístico-cognitivos

envolvidos na sua produção, dentre os quais as dificuldades com as palavras funcionais e as

estratégias desses afásicos para se fazerem compreender.

Nas Considerações Finais da dissertação, buscamos avaliar criticamente a

contribuição desta pesquisa no âmbito dos trabalhos já produzidos na temática, na área de

Neurolinguística, tanto do ponto de vista das propostas teórico-metodológicas, bem como para

a prática clínica com sujeitos afásicos. Apontamos, também, para a necessidade de

aprofundamento futuro de algumas questões, sobretudo relativas aos modelos mais recentes

como os propostos por Akhutina.

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Capítulo 1

Fala telegráfica: uma reflexão no campo da

Neurolinguística enunciativo-discursiva

Introdução

Antes de apresentarmos as questões relativas à fala telegráfica7, tema central desta

dissertação, traremos alguns conceitos teórico-metodológicos da Neurolinguística de

orientação enunciativo-discursiva, essenciais para explicitar o cenário no qual desenvolvemos

a pesquisa. Essas questões terão fundamental relevância ao longo do trabalho, mas em

especial para as discussões apresentadas no Capítulo 3.

1. A Neurolinguística enunciativo-discursiva

Entender as relações entre cérebro e linguagem é uma das questões mais desafiadoras

na área das neurociências e se tornou a preocupação central da neurolinguística, também

denominada em alguns centros de pesquisa como “neuropsicologia da linguagem”. Os

6 Trecho de um episódio dialógico entre a pesquisadora Its e o afásico BM, em atividade dialógica no Grupo 3 do

Centro de Convivência de afásicos (CCA).. 7 A literatura neuropsicológica, desde o princípio dos estudos sobre as dificuldades com as palavras funcionais

por sujeitos afásicos, tem se utilizado do termo fala telegráfica para se referir ao fenômeno. No entanto, pelos

pressupostos teórico-metodológicos que norteiam esta pesquisa propomos o termo enunciado de estilo

telegráfico. Nossa opção será justificada, mais adiante, no capítulo 2. Sendo assim, o termo fala telegráfica

deverá ser visto em nosso trabalho como uma moeda linguística, (Porter 1993), sobretudo, quando estamos

fazendo referência aos estudos que assim o definem.

BM

Leite derramado6

Its Chorar ...

BM Chorar leite derramado

Its Pelo leite derramado ... O que

isso significa? Quando você usa

isso?

BM Leite derramado ... puta!

Nossa, faz tempo cara ...

Its Que que significa quando

alguém fala assim pra você...

Ah, não adianta chorar pelo

leite derramado!?

BM Não! ... Ah, tá! É:... tido o AVC,

mas vambora, vamo... vamo

seguir a frente

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primeiros trabalhos que mostram a preocupação com os distúrbios de linguagem são datados

de aproximadamente 1700 a.C., nos relatos do chamado Surgical Papyrus of Edwin Smith,

documento que já postulava o estabelecimento de correlações anátomo-funcionais (Priens &

Bastiaanse, 2006).

Apesar dessas correlações terem sido abordadas há tanto tempo, os termos

Neurolinguística e Afasiologia Linguística surgiram apenas nas décadas de 60 e 70 do século

XIX, referindo-se às áreas que se debruçam sobre questões voltadas tanto para a linguagem e

sua relação com o cérebro, quanto para a natureza específica dos déficits linguísticos nas

afasias (Caplan, 1998[1987]8).

Nos anos 80, Coudry (1988 [1986]) postulou uma abordagem neurolinguística de

orientação enunciativo-discursiva das afasias – também referida, atualmente, como

Neurolinguística Discursiva – respaldada nos estudos de Lordat, Vygotsky e Luria –

representantes do campo da Neurologia e da Neuropsicologia; em Benveniste, Jakobson,

Osakabe e Franchi, dentre outros, na Linguística. A esse respeito, Novaes-Pinto (2012)

esclarece:

One of the main features that differentiates our research from the work

developed in other centers in Brazil and abroad is its strong connection with

linguistic theories, especially the ones developed in the second half of the 20th

century, such as Enunciative Semantics, Pragmatics and Discourse Analyses,

which strongly influence the way we approach theoretically and

methodologically the aphasia phenomena. From a unique locus, we believe

Linguistics may contribute to a better description and understanding of how

language and its several functions and speech genres can be impacted by brain

injuries, considering what has been learnt about normal functioning for almost

a century of development of this field as a Science (Novaes-Pinto, 2012, p.

219).

Coudry criticou a aplicação direta de modelos linguísticos formais aos estudos das

alterações da linguagem em estados patológicos e o fato de que a complexidade da linguagem

é geralmente reduzida à analise das estruturas da língua (aspectos fonético-fonológicos,

sintáticos e lexicais). Essa concepção formal deu origem aos protocolos de avaliação de

linguagem de natureza exclusivamente metalinguística, expedientes que visam não apenas

classificar as afasias e os afásicos, mas também orientar condutas terapêuticas. Segundo a

autora, esse tipo de tarefa objetiva “medir” a competência linguística de sujeitos afásicos e

revelar os sintomas ou as síndromes afasiológicas (o grupo de sintomas), mas não explicam os

processos subjacentes aos fenômenos (Coudry, 1988 [1986]).

8 Nesta dissertação, iremos utilizar os colchetes para nos referirmos à primeira data de publicação de uma obra.

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Na abordagem enunciativo-discursiva, fatores extralinguísticos e subjetivos são

levados em conta tanto para compreender as alterações de linguagem nas diferentes formas de

afasia, como para orientar a conduta terapêutica. A linguagem é concebida como resultado de

um trabalho coletivo – com e sobre a linguagem (Coudry, 1988 [1986), 2002; Novaes-

Pinto,1999, 2012, 2015), que é contemplada não apenas em seus aspectos sistêmicos –

fonético-fonológico, morfológico, sintático e semântico-lexicais –, mas também em suas

dimensões pragmáticas e discursivas. Os aspectos históricos e sociais são deslocados para o

centro das discussões e são essenciais para o desenvolvimento teórico da área.

A Neurolinguística enunciativo-discursiva, desde sua criação, questiona justamente a

correlação direta entre lesão e sintoma, sem análises linguísticas abrangentes, o que leva os

pesquisadores a descreverem as afasias em termos de sintomas e déficits (Novaes-Pinto,

1999). Nessa perspectiva, consideramos que aspectos pragmáticos e discursivos sejam

relevantes para compreender cada nível linguístico afetado pela afasia.

Segundo Gregolin-Guindaste (1996), a Neurolinguística enunciativo-discursiva

considera os resultados obtidos pelo desenvolvimento da linguística e os mobiliza para a

análise dos fenômenos de ordem patológica. Nessa perspectiva, se constitui como uma área de

entremeio, que articula a Ciência da Linguagem e a Ciência Médica. Na defesa de uma

abordagem que lide com a complexidade da linguagem em contextos patológicos, Coudry faz

a seguinte afirmação, que optamos por transcrever em seguida, pela sua relevância para esta

pesquisa:

Em relação à avaliação de sujeitos cérebro-lesados, segundo nosso ponto de

vista, não se trata somente de inventariar os desvios de linguagem em

relação ao sistema linguístico utilizado pelos sujeitos que não são

portadores de lesão: não existe, com a prática da linguagem, nenhum sujeito

médio ideal, que possa ser tomado como padrão para uma bateria fixa de

estratégias. Não se trata somente de um viés de linguista para o qual a

linguagem é certamente, além de uma prática, um objeto de conhecimento.

Trata-se sobretudo de apreender no discurso verbal e mental (mesmo

quando fragmentário) os modos pelos quais ele organiza e estrutura os

recursos expressivos de que dispõe ou os mecanismos alternativos pelos

quais ele supre suas próprias dificuldades, descobrir pelos indícios de sua

fala e pelas suas manifestações explícitas, as hipóteses que ele mesmo faz a

respeito dessa estruturação e dos mecanismos que ele põe em jogo para

produzir significações, de definir com acuidade o lugar de suas dificuldades,

sobre as quais deve operar. Adotando a hipótese da indeterminação radical

da linguagem e, portanto, a de que muitos fatores se aliam na produção da

significação, não se pode, porém, chegar à posição radical insustentável de

que essa significação se produz sem expressões linguísticas, ou que essas

expressões se produzem sem regras construídas em uma práxis histórica e

social: um discurso sem discurso (Coudry, 1988, p. 78 grifos nossos).

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Coudry (1988) afirma que o foco do trabalho com os sujeitos afásicos não deve ser o

déficit. O pesquisador e também o terapeuta devem estar sensíveis àquilo que os sujeitos

afásicos revelam nos processos de significação por meio da linguagem que lhes resta. A

autora chama a atenção para o fato de que nosso olhar deve alcançar um sujeito e não um

paciente.

1.1 Sobre a indeterminação da linguagem e a subjetividade nos estudos das afasias

A Neurolinguística enunciativo-discursiva enfatiza, como um de seus principais

pressupostos teóricos, a natureza indeterminada da linguagem. A língua não é um sistema

acabado e estável, que se esgota em si mesmo. Não basta combinar elementos linguísticos,

seguindo uma ordem gramatical previamente estabelecida, para que se tenha um enunciado.

Os sujeitos operam com os elementos linguísticos de que dispõem para a construção da

significação. Coudry (1988) destaca que a significação só é possível se fatores co(n)textuais e

intersubjetivos forem mobilizados na produção do discurso, já que as expressões linguísticas

não carregam em si todos os elementos necessários para a sua interpretação. Nas palavras da

autora:

Devo rejeitar uma concepção de teoria linguística que, por razões metodológicas,

exclua sejam os aspectos históricos e sociais da linguagem, seja a atividade do

sujeito na situação efetiva da fala. É necessário, portanto, superar dicotomias como

língua e fala, sistema e uso, competência e performance para integrar em uma

concepção abrangente de linguagem o seu funcionamento, na dimensão contextual e

social em que os homens, por ela, atuam sobre os outros, na dimensão subjetiva em

que, por ela, os homens se constituem como sujeito, na dimensão cognitiva em que,

por ela, os homens atuam sobre o mundo estruturando a realidade (COUDRY, 1988,

p. 47 grifo nosso).

Coudry, portanto, destaca os aspectos subjetivos para os quais a Neurolinguística lança

seu olhar: “O sujeito não é alguém que é soberano em relação à língua, nem seu criador. Mas,

também não é um repetidor ou reprodutor. Nem deus nem máquina”. Segundo a autora, “o

sujeito é sempre incompleto, imaturo, e ao mesmo tempo múltiplo: ao mesmo tempo social,

histórico, psicológico e psicanalítico, biológico, linguístico” e todos esses aspectos convivem

no sujeito, apesar da especificidade de cada um (Coudry, 1988, p. 67).

A autora fundamenta-se, com relação a esses aspectos, nas afirmações de Franchi

(1977), para quem “não há nada universal na linguagem, exceto o processo (sua força criadora

e constitutiva)”. Nas palavras do autor,

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A linguagem, pois, não é um dado ou um resultado; mas um trabalho que dá

forma ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção,

de retificação do vivido que, ao mesmo tempo, constitui o sistema simbólico

mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como um

sistema de referências em que aquele se torna significativo. Um trabalho

coletivo, em que cada um se identifica com os outros e a eles se contrapõe,

seja assumindo a história e a presença, seja exercendo suas opções solitárias

(Franchi, 1977 apud Coudry, 1988, p. 55 grifo nosso).

A linguagem é concebida como uma práxis, uma atividade que integra o sujeito com o

seu meio, com a cultura e com a história. Conforme aponta Franchi (1986), é o lugar único de

realização e construção social, histórica, cultural e cognitiva de um sujeito, seja ele afásico ou

não, como vemos na seguinte passagem:

Mergulhar nesse processo dialético, de que todos fazemos parte, constituindo

as condições de interação, não como um limite dos acontecimentos

discursivos, mas como o lugar (e único) “onde eles podem ocorrer”.

Contextualização: porque “o reverso dessa atitude, isto é prescindir de quem

diz, para quem diz, em que situação se diz, como se diz, etc., coloca uma

distância enorme entre os participantes, anula o sujeito afásico que não se

integra no processo senão como ‘paciente’ ou objeto de investigação”.

Anula, na verdade, as possibilidades mesmas da linguagem (FRANCHI,

1986, p. XIV; aspas do autor).9

Como já afirmamos anteriormente, consideramos essas questões essenciais para explicitar

a perspectiva que orienta a reflexão sobre a fala telegráfica, no contexto da Neurolinguística

enunciativo-discursiva.

2. A fala telegráfica no contexto da semiologia das afasias

2.1. A semiologia das afasias: produto da reflexão teórico-metodológica sobre a relação

cérebro-linguagem

Como vimos no item anterior, a origem da semiologia das afasias é marcada pela

preocupação em correlacionar áreas cerebrais lesadas às alterações de linguagem, visando

agrupar os sintomas em síndromes e classificar as afasias e os afásicos. As primeiras

descrições das afasias foram feitas na segunda metade do século XIX. Em 1861, Broca

correlacionou as alterações de linguagem do sujeito Leborgne10

a uma lesão na terceira

9 A reflexão é feita por Franchi como prefácio para o livro Diário de Narciso: discurso e afasia, de Coudry,

publicado em 1988, e que deriva de sua tese de Doutorado homônima, defendida em 1986. 10

Leborgne tinha 51 anos de idade e ficou conhecido como Tan Tan, pois essa era a única forma de expressão

oral que produzia, repetidamente, embora variasse a entonação. Segundo Broca, era capaz de compreender tudo

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circunvolução frontal do hemisfério esquerdo, que ficou conhecida como área de Broca,

responsável por transformar as imagens mentais em imagens motoras das palavras. O autor

utilizou o termo afemia para se referir à perda da linguagem articulada. Alguns anos após o

trabalho de Broca, Wernicke (1984) afirmou ter localizado o centro de processamento da

imagem sonora das palavras na primeira circunvolução temporal do hemisfério esquerdo,

posteriormente nomeada área de Wernicke.

O estudo das afasias só atingiu seu estatuto científico e sistemático a partir desses

trabalhos pioneiros, considerados divisores de águas nos estudos da relação entre cérebro e

linguagem. As alterações descritas por Broca e por Wernicke correspondem, respectivamente,

aos dois tipos clássicos de afasias – motoras e sensoriais (Novaes-Pinto, 1999; Novaes-Pinto e

Santana, 2009).

A visão clássica sobre essa relação trouxe, consequentemente, uma vasta nomenclatura

para os sintomas – ou sinais – das afasias. Na literatura neuropsicológica, cada alteração é

designada por um item semiológico, ou seja, um nome que a identifica, geralmente como um

déficit (Novaes-Pinto, 1999; Novaes-Pinto & Santana, 2009, p. 413). O termo semiologia,

segundo Novaes-Pinto e Santana, “abarca diferentes sistemas que priorizam aspectos

relacionados às ciências em que são criados; sistemas que se entrecruzam na busca de um

equilíbrio entre as abordagens de cunho orgânico e as de caráter social das funções

complexas, como a linguagem humana”, o que justifica nossa opção pela Neurolinguística de

orientação discursiva para fundamentar a análise de fenômenos afasiológicos.

Conforme aponta Novaes-Pinto (2013), uma das razões para a Linguística se debruçar

sobre as alterações de linguagem nas patologias é que os dados advindos desse campo ajudam

tanto a corroborar quanto a refutar hipóteses sobre o seu funcionamento em estados

considerados normais. Segundo Canguilhem (1995[1943], apud Novaes-Pinto, 2013), seria

impossível sabermos o que se sabe hoje a respeito do normal sem as lições da doença. Nessa

mesma perspectiva, Coudry (1988 [1986]) compara o funcionamento da linguagem nas

afasias a uma imagem exibida em “câmera lenta”, por meio da qual é possível observar

melhor os aspectos de sua composição e que não poderiam ser percebidos na sua dinâmica

natural.

que lhe era dito. O sujeito já apresentava problemas na produção da fala cerca de vinte anos antes de ter sido

examinado por Broca (Morato, 2001).

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2.2. A relação entre fala telegráfica e agramatismo

Novaes-Pinto (1999 p. 65) destaca que “dentre as categorias clínicas mais estudadas

no campo das afasias está o agramatismo, cuja principal característica é a presença da fala

telegráfica”, objeto central de análise desta pesquisa. Esse fenômeno foi inicialmente descrito

como uma característica marcante na fala de sujeitos afásicos, sobretudo por sua natureza

telegráfica. Novaes-Pinto (1999) sintetiza o que a neuropsicologia destaca como seus

principais “sinais”, desde o início de sua teorização:

(i) apagamento de palavras funcionais no discurso, ou seja, de preposições,

pronomes, artigos, conjunções, etc. (ii) predominância de substantivos em

detrimento dos verbos (iii) perda da flexão verbal e de marcas de concordância

nominal, dentre outros (Novaes-Pinto, 1999, p. 76)

Segundo a autora, essa tendência justificaria que o agramatismo tenha sido

compreendido, em grande parte dos estudos, como a “perda da gramática”. Apesar de

concordarem quanto a um grupo de sintomas (co)ocorrentes que o definem como síndrome,

pesquisadores discordam quanto a questões centrais envolvidas nesse fenômeno.

Menn & Obler (1990) destacam que a diversidade de hipóteses emerge dos diferentes

interesses dos pesquisadores, dentre os quais questões topográficas das lesões. Outras dizem

respeito aos déficits linguísticos específicos. A depender da teoria que o descreve, ora o

agramatismo está relacionado a questões fonológicas (Kean, 1985), ora a questões sintáticas

(Grozinsky, 1985), além das abordagens que o compreendem como dificuldades com o acesso

lexical (Bradley, 1985).

Segundo Goodglass & Menn (1985), os primeiros relatos clínicos de pacientes

agramáticos eram apenas pautados pelas características da fala do sujeito, ou seja, pela sua

produção oral. No entanto, a partir do momento em que os pesquisadores começaram a

perceber indícios de outras dificuldades linguísticas além da fala (compreensão e

leitura/escrita), começaram a questionar se o agramatismo não seria um fenômeno bem mais

complexo, que ultrapassa os limites de um sintoma e passaram a concebê-lo como síndrome.

Goodglass & Menn (1985), por exemplo, utilizam-se do termo distúrbio panlinguístico para

caracterizá-lo.

Grande parte dos neurocientistas passaram a assumir, a partir dos estudos do

agramatismo, que há um centro de representação gramatical responsável pelo processamento

da sintaxe e da morfologia. Uma lesão cerebral que impactasse esse centro comprometeria

toda a organização sintática e, portanto, todas as modalidades seriam envolvidas. O

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agramatismo, nessa concepção, é tido como um Déficit Sintático Central e entendido como

síndrome.

Segundo Luzzatti &Whitaker (1996, apud Prins & Bastiaanse, 2006), o primeiro

registro de um caso de agramatismo foi feito por Johannes Wepfer, em 1683. As dificuldades

do paciente de Wepfer estavam relacionadas ao acesso das palavras (WFT – Word Finding

Difficiulties) e à estruturação sintáticas, mais especificamente com as palavras funcionais e

com as estruturas sintáticas da língua, conforme vemos na passagem a seguir:

R.N.N is a 53-year-old man […]. In July 1683 he complained he had

suddenly forgotten all names, and in fact he could not even express his own

name. He could not designate any object with his name, neither in Latin nor

in German. He gave the impression he could recognize things and people,

but names did not occur; he tried and tried with all his will to explain what

he was thinking on various topics, but he was destitute of his words; those

he could utter were alien and incoherent […]. [August 14th] Sometimes,

however he could not find proper names for people and places as quickly as

customary, and from time to time he could not find some of the little

words. [August 17th]. When he was talking, I could observe him from time to

time to violate syntactic rules and against the structure of German sentences,

he would pre-pose one word to another and sometimes he could not

complete a word (Luzzatti & Whitaker, 1996, p. 161-162 apud Prins &

Bastiaanse, 2006, p. 773 grifos nossos).

Para Deleuze (1819), a quem a neurolinguística moderna atribui a primeira descrição

de um caso típico de agramatismo (Goodglass & Menn, 1985; Grodzinsky, 1990), essa falta

de palavras gramaticais resultava em enunciados com características marcantes na fala de

alguns afásicos. O autor descreveu o caso de uma senhora que falava apenas verbos na sua

forma infinitiva – em formas nominais/substantivadas – e que não usava pronomes. Nessa

época, o fenômeno não tinha recebido ainda um nome para designá-lo.

Segundo Grodzinsky (1990), foi Kussmaul, em 1876, quem criou o termo

“akataphasia” para se referir à incapacidade de produzir palavras gramaticais e construir

frases lógicas e sintaticamente bem organizadas. A partir da criação do termo, desenvolveu-se

uma vasta discussão no campo da afasiologia sobre as questões envolvidas na dificuldade de

formular sentenças, por sujeitos afásicos.

Alguns anos depois, em 1898, Pitres propôs que a afasia resulta em um problema de

memória. Fez esse estudo baseado na descrição da paciente de Deleuze e de um de seus

pacientes. Para ele, a dificuldade com a formação de sentenças seria, na verdade, um

problema com a memória envolvida na construção de frases.

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De acordo com Eling & Whitaker (2010), o linguista Steinthal (1823-1899)

desenvolveu uma teoria psicolinguística e a aplicou aos casos de afasia. A linguagem seria um

meio para expressar ideias através de sentenças. Uma ideia (ou mensagem) é indissociável de

processos psicológicos e requer palavras. Nessa linha de raciocínio, para Steinhal, a afasia

causaria uma interrupção nos processos psicológicos relacionados ao nível de representação e

seria, portanto, uma desordem no nível da palavra. Já a akataphasia seria uma desordem no

nível da sentença e relacionada à dissolução da ordenação lógica do pensamento.

Arnald Pick, autor que cunhou o termo agramatismo em 1913, deu à sentença um

papel mais central nas questões de processamento da linguagem e se interessou pelos

“defeitos” na formação das frases – ou, seja, a falta das palavras. Pick se baseou nos

postulados de Jackson (1874), autor que acreditava que a linguagem se organizava por

proposições. Para Jackson, os sentidos das proposições não estavam centrados nas palavras

que as compõem, mas nas relações que essas palavras estabelecem entre si, dentro de uma

frase. Por isso, segundo o autor, a sentença deveria ser vista como a unidade de análise nas

afasias.

Pick postulou um modelo de produção de sentença que colocava a sintaxe de um lado

e a morfologia de outro. A partir disso, afirmou que a ordem das palavras nas sentenças

construídas pelos sujeitos estava intacta. Para ele, os enunciados agramáticos são mais curtos

e sintaticamente simplificados, o que requer menos esforço na sua formulação. Ou seja, Pick

chegou à conclusão de que o sujeito que produzia essas frases “defeituosas” não tinha nenhum

problema com o raciocínio e com a formação lógica das sentenças. Postulou uma explicação

psicológica para o fenômeno, segundo a qual a formulação de uma sentença precede a seleção

dos itens lexicais e funcionais. As palavras de classes abertas seriam selecionadas primeiro e

as palavras de classe fechada selecionadas posteriormente. Friederici (1994) sintetiza o estudo

de Pick e conclui:

[Pick assumes] that the schematic formulation of the sentence precedes the

choice of words, as well as the syntactic formulation and the portion of the

grammatical functions that corresponds to it, is shown by the fact that the

meaning of a single word, whatever it may be, is determined only by the

position it takes or interacts with; therefore the mental framework should in

principle to be ready in a grammatical sense as well: before the choice of

words ensues, the plan has to be determined before the different pieces are

put together (Friederici, 1994, p. 267).

Essa formulação de Pick, apesar de considerada pré-moderna por alguns (Thompson e

Bastiaanse, 2012), rompeu com crenças clássicas e bem difundidas desde o início dos

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questionamentos sobre a localização da linguagem no corpo do homem. A partir desse

raciocínio, que não considera o agramatismo como resultado de um déficit cognitivo causado

por uma lesão cerebral, a concepção sobre a natureza do fenômeno também teve que ser

reformulada.

Pick afirmou que o agramatismo deveria ser entendido como “Notsprache” (do alemão

fala emergencial) ou, em outras palavras, como um recurso adaptativo em função do déficit

com a seleção de palavras gramaticais. Partindo dessa concepção, o termo fala telegráfica11

foi cunhado como uma metáfora para se referir a uma produção econômica e simplificada,

principais características do gênero textual telegrama (Thompson e Bastiaanse, 2012).

Segundo Thompson e Bastiaanse (2012, p. 2), Pick sugeriu que a gramática “mais

empobrecida” dos agramáticos seria uma “regression from conventional syntax to the syntax

of thoughts and the typical telegraphic speech was the consequence of an economy principle

of the damaged cerebral organ resulting in omission of reductant elements [...]”. Nesse

sentido, suas ideias podem ser concebidas como predecessoras da Teoria da Adaptação

formulada por Kolk (1990) e têm muito em comum com a interpretação de Vygotsky,

retomada e reinterpretada mais recentemente por Akhutina (2003,2014), que discutiremos no

Capítulo 3. Vale lembrar que Kolk (1985) ainda afirma que os sujeitos seriam

overgrammatics, considerando que se fazem compreender pelos seus interlocutores pela

competência que têm para selecionar as palavras de conteúdo e colocá-las em uma ordem

adequada.

Kolk (1985) acredita que, em consequência da dificuldade com a seleção de morfemas

gramaticais, os sujeitos afásicos produziriam enunciados de estilo telegráfico para driblar suas

dificuldades comunicativas; ou seja, a fala telegráfica seria resultado de uma operação

(pragmática) do afásico para se comunicar. Nessa perspectiva, a fala telegráfica é um recurso

que o sujeito utiliza para se aproximar o máximo possível da interface da sintaxe

convencional, apesar de ela ser apresentada de forma “defeituosa” pela falta dos elementos

gramaticais que não foram selecionados.

Atualmente, tanto na neuropsicologia como na neurolinguística, ainda se recorre à

metáfora de fala telegráfica para se referir aos enunciados produzidos no contexto das afasias.

Conforme apontam Tesak & Niemi (1997), a própria metáfora se relaciona à fala elíptica

gerada por sujeitos com agramatismo. Muitos autores na neuropsicologia criticam essa

11

Termo originário do alemão Telegrammstilagrammatismus. Como o alemão é uma língua aglutinadora, há três

palavras na formação desse termo: Telegramm – telegrama stil – estilo agrammatismus – agramático.

Corresponderia, então, em português à fala de estilo telegráfico, termo utilizado por Novaes-Pinto (1999), em

sua tese de doutorado, para explicar os enunciados de sujeitos considerados agramáticos em sua pesquisa.

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metáfora por não verem uma correspondência direta entre a produção afásica e a escrita de um

telegrama (Tesak & Dittmann, 1991 Niemi et al. 1992 Menn & Obler, 1990a Tesak & Niemi,

1997 e Kleppa, 200812

). Kleppa (2008), por exemplo, propõe o termo fala reduzida, pela

semelhança com as small clauses que caracterizam os enunciados de crianças em processo de

aquisição da linguagem e porque, com o advento das novas tecnologias, ninguém mais

escreve “telegramas”. Novaes-Pinto (1992; 1999) prefere o termo fala de estilo telegráfico

para se referir à dificuldade com esses morfemas funcionais na produção dos enunciados

pelos sujeitos afásicos, tal como o fez Pick.

Na literatura neuropsicológica, o agramatismo e a fala telegráfica estão associados à

afasia de Broca (ou afasia de expressão). Por conceber o agramatismo, em geral, como um

déficit sintático central, os estudos enfatizam as perdas na linguagem verbal, principalmente

relativas às classes gramaticais fechadas, sejam morfemas livres: preposições, artigos,

conjunções, seja a morfologia flexional e derivacional.

Na Neuropsicologia e na Linguística há uma diversidade de propostas para a

compreensão do que seja a fala telegráfica e sobre sua relação com o fenômeno do

agramatismo. A esse respeito, seguem algumas definições clássicas, a fim de demonstrar a

variedade de perspectivas teóricas subjacentes aos estudos:

Definição 1:

The deletion of function words in discourse, that is, the deletion of

conjunctions, prepositions, articles, pronouns, and auxiliary verbs, and

copulas (notable exceptions to this are the conjunctions and and because) 2.

The predominance of nouns, at the expense of verbs, in some forms of

agrammatic speech. 3. The loss of verb inflection, with substitution of the

infinitive for finite verb forms. 4. Loss of agreement of person, number, and

gender, most notable in inflected languages (Tissot et al 1973 apud

Goodglass & Menn, 1985, p. 2; grifos nossos).

Definição 2:

Agrammatism is hard to define other than by the essential fact which the

patient’s speech makes evident: reduction of the sentence to its skeleton,

relative abundance of substantives, almost invariable use of verbs in the

infinitive, with the suppression of the small words (the function words of

a language) and loss of grammatical differentiation of gender, number.

(Alajouanine, 1968, p. 84 apud Goodglass & Menn, 1985, p. 4; grifos

nossos).

12

O trabalho de Kleppa (2008), também desenvolvido no âmbito da Neurolinguística enunciativo-discursiva,

buscou entender o funcionamento das preposições ligadas a verbos na fala de sujeitos agramáticos, comparando

seus achados aos que foram obtidos por crianças em processo de aquisição de linguagem. Baseada nos resultados

do estudo, Kleppa (2008) questiona a hipótese do espelho invertido proposta por Jakobson (1954).

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29

Definição 3:

Agramatic aphasia is an aspect of Broca’s aphasia, one of the classical

syndromes of aphasia, and it is the aspect which has been given the most

theoretical and experimental attention in recent years. Some variation is to

be found among definitions of agrammatism depending on the general

framework of individual investigators […] we will describe it

[agrammatism] as a language disorder due to acquired brain damage,

characterized by slow, halting speech, by short and/or fragmentary

sentences and by limited output use of the syntactic and morphological

resources of a language (Menn & Obler, 1985, p. 03; grifos nossos).

Definição 4:

Pierre Paul Broca (Broca, 1961) first described the prototype of nonfluent

aphasia characterized by impaired speech production, omission or misuse

of inflections and other closed-class morphemes and relatively intact

language comprehension. Studies in the 1970s showed that Broca’s area i.e.

the inferior frontal gyrus of the language dominant hemisphere, subserves

the computation of grammar at both the receptive and expressive levels

(Vandenborre & Marien, 2014, p. 18; grifos nossos).

Definição 5:

Damage to the left inferior frontal lobe frequently results in a pattern of

performance characterized by agrammatic production and asyntactic

comprehension so called Broca’s aphasia. Agrammatic speech is

characterized by the omission or misuse of free and bound grammatical

morphemes and the tendency to omit or nominalize verbs, resulting in

incomplete, fragmented sentences […] there is general agreement that a

morphosyntactic processing deficit is one of the major components in the

complex disorder clinically classified as Broca’s aphasia. This view is based

on the assumption that one of the functions of the left inferior frontal lobe is

to carry out morphosyntactic operations in sentence processing (Balaguer, et

al., 2004, p. 212; grifos nossos).

Tanto agramatismo quanto fala telegráfica são termos que sofreram alterações em

seus sentidos na literatura neurolinguística e neuropsicológica. A definição 1 pode ser

considerada como a mais clássica. Nela – mas também na definição 2 – vemos que os

fenômenos se confundem e o agramatismo é descrito, predominantemente pelas dificuldades

com as palavras funcionais, com uma relativa preservação das classes abertas. Já nas

definições 4 e 5, os autores buscam também estabelecer uma relação com as áreas cerebrais

lesadas, sobretudo com a área de Broca. Em 4, os autores concebem o agramatismo como um

déficit no processamento morfossintático. Em geral, entende-se que há dificuldades com o

funcionamento lógico-gramatical. A definição 3 nos parece a mais abrangente na explicação

do fenômeno, pois além de descrever a omissão das palavras funcionais e a produção sintática

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reduzida, menciona outros aspectos subjacentes à produção oral do sujeito, como a presença

de fala laboriosa e cheia de hesitações.

A questão comum em todas essas definições, como vemos, é a presença do conceito de

déficit. A noção de perda de morfemas e/ou de competência é a principal característica

presente. Essa perspectiva se respalda, principalmente, em descrições gramaticais formais, nas

teorias linguísticas clássicas. É evidente que há perdas, mas a análise deve considerar,

também, a linguagem que resta aos sujeitos, como afirmou Coudry já em seu primeiro

trabalho. A aproximação entre fala telegráfica e agramatismo pode ser observada também nas

definições que diversos autores contemporâneos vem dando para esses fenômenos no decorrer

de sua teorização. Para sintetizar a discussão sobre a natureza dos fenômenos, citamos o

questionamento feito por Nespolous & Dordain (1993, apud Novaes-Pinto, 1992, 1997, 1999;

grifos nossos)13

:

1- Seria o agramatismo um déficit central, que compromete de igual forma a

produção e a compreensão, de um dos componentes da gramática da língua

falada pelo paciente ou trata-se de um déficit seletivo que só afeta o bom

funcionamento de um ou de outro componente (produção mais do que

compreensão)?

2- Qual o componente da gramática que se encontra alterado – se é que

apenas um componente está alterado? Seria um componente sintático, como

sugere a maioria dos autores? Ou seria o componente fonológico (Kean,

1979)? Há ainda a hipótese de uma dificuldade de acesso ao léxico

gramatical (Bradley, 1983);

3- Os déficits observados (mesmo se considerarmos apenas a produção) são

estáveis e constantes qualquer que seja a tarefa proposta ao paciente ou é

possível observar uma variabilidade significativa entre as tarefas

importantes? Se há variabilidade, como podemos interpretá-las?

4- Como abordar a questão da diferença existente na semiologia afásica

“oficial” entre agramatismo – característica dos afásicos de Broca (que os

leva a omitir um bom número de palavras gramaticais) e o

paragramatismo – característica dos afásicos de Wernicke (levando-os a

trocar as palavras funcionais entre si)?

5- Como diferenciar no comportamento verbal do paciente com agramatismo

os efeitos diretos do déficit subjacente e os efeitos de uma eventual entrada

em jogos de estratégias adaptativas, às vezes a tal ponto de ser um

quadro clínico de evolução?

Segundo Novaes-Pinto (1999, 2017), com os trabalhos realizados a partir de 1985

(como os de Menn & Obler), principalmente em consequência do aumento do número de

línguas estudadas e de estudos de casos, a questão da variação entre os casos passou a chamar

a atenção dos estudiosos do agramatismo. As variações que eram descartadas pelos modelos

13

Tradução de Nespolous & Dordain (1993) feita por Novaes-Pinto (1999).

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teóricos levaram pesquisadores a afirmarem que o estudo das categorias clínicas não poderia

revelar pistas sobre o funcionamento linguístico-cognitivo. Novaes-Pinto (1999, 2017)

considera que as variações sejam constitutivas do funcionamento da linguagem. Nas palavras

da autora:

a variação individual observada na análise dos dados, tanto no padrão de co-

ocorrência de sintomas, quanto no padrão de realização ou emissão de

palavras funcionais e morfemas flexionais, levou pesquisadores como

Miceli, et al. (1989) a afirmarem que o agramatismo não pode ser tomado

como uma categoria relevante para o estudo de processos mentais (Novaes-

Pinto, 1999, p. 75 grifo nosso).

Sobre a questão da variabilidade intra- e inter- casos, com relação aos sintomas do

agramatismo, a autora afirma:

O que muito me incomoda na literatura é ainda não ter encontrado um

trabalho que tenha procurado responder a estas questões como se não fossem

importantes. [...] as variações observadas podem ser compreendidas quando

incorporamos outras variáveis no estudo de distúrbios afásicos [...] as quais

não são consideradas em estudos quantitativos de fenômenos linguísticos,

postura teórica que deriva de uma certa concepção de linguagem (Novaes-

Pinto, 1997, p. 76).

Veremos adiante o modo como a neurolinguística enunciativo-discursiva tem

abordado essas questões referentes ao estudo do agramatismo e sua relação com a produção

de enunciados de estilo telegráfico.

3. O agramatismo no contexto dos estudos neurolinguísticos de orientação enunciativo-

discursiva.

Um dos afásicos acompanhados por Coudry – o sujeito P14

– apresentava dificuldades

típicas do chamado “agramatismo”. A autora criticou, a partir da análise dos dados produzidos

por ele, a hipótese de que teria perdido a gramática da língua.

A autora buscou demonstrar como P ainda operava com os recursos da língua e da

linguagem para a produção de seus enunciados. No decorrer do seu acompanhamento, foi

14

P, nascido em 02-12-1935, era brasileiro, funcionário público e solteiro. Em 30-10-81, P foi encaminhado ao

Serviço de Neurologia e Neurocirurgia Dr. Nubor Facure, diagnosticado de aneurisma e submetido à cirurgia.

Em março de 1982 começou a ser acompanhado por um fonoaudiólogo a quem se manteve ligado até dezembro

de 1983. Em 14-12-82, apresentou novo episódio neurológico – Acidente Cerebral Vascular (AVC),

diagnosticado pela arteriografia cerebral como rotura de aneurisma arterial (artéria cerebral média esquerda –

ACM). O diagnóstico tomográfico revela área de enfarto cerebral têmporo-parieto-occipital esquerdo. P foi

encaminhado a nosso serviço de avaliação de linguagem em 15-12-83 e acompanhado até hoje. Descrição feita

por Coudry (1988, p. 95), em Diário de Narciso: discurso e afasia.

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possível perceber uma grande variabilidade na linguagem de P, que ora produzia e ora omitia

os morfemas gramaticais. Mesmo com uma dificuldade marcante na estruturação sintática dos

enunciados, a autora chama a atenção para as sofisticadas estratégias meta- epilinguísticas

que o sujeito lança mão nos processos de significação.

Com o objetivo de ilustrar as análises feitas por Coudry sobre o trabalho linguístico

realizado por P, segue um dado do trabalho da autora:

Dado [23-05-86: investigador e P conversam, vendo um álbum de retratos do investigador.

Na foto, a investigadora se encontra ao lado de uma fonte, em Tivoli.]

Segundo Coudry (1986/1988), P passa a compreender suas dificuldades devido às

práticas de linguagem desenvolvidas em seu acompanhamento e a compreender qual o

trabalho a ser realizado por ele nos processos dialógicos. Aprende com a investigadora as

regras do jogo conversacional, percebendo o propósito de reelaboração de seus enunciados,

passando a transferir esse processo para outras situações discursivas de seu cotidiano (Coudry,

1986/1988). A visão discursiva do complexo funcionamento da linguagem deixa entrever o

trabalho que os sujeitos realizam nos processos de produção de sentidos.

Ainda com o objetivo de dar visibilidade para a abordagem discursiva na compreensão

dos processos linguístico-cognitivos impactados pelas afasias, apresentamos outro dado

analisado por Novaes-Pinto (2012), produzido pelo sujeito afásico OJ, quando solicitado a

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Inv Como é que está essa água aqui? Mostrando o espelho de água

formado pela fonte

02 P Essa aqui é [...] barra .... barada,

parada.

03 Inv Essa aí é parada.

04

P

Agora, essa aqui é [...] Caiu, está

caiu, né?

Alongando “caiu” mais do que

necessário, como se estivesse

buscando a forma “caindo”

05 Inv Já caiu?

06 P Ainda não.

07 Inv Então como ela tá?

08 P Parada tá aqui. (mostrando o espelho d água)

09 Inv Ela vai ...

10 P Vai cair, vai cair.

11 Inv Então ela está ...

12 P Caindo, caindo.

13 Inv Isso.

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contar ao grupo (CCA) um fato ocorrido durante as suas férias, em 2007, quando sofreu um

enfarte15

. Irn é a mediadora da interação entre OJ e o grupo e orientava sua narrativa.

A autora chama a atenção para o fato de que as dificuldades do sujeito OJ são

evidentes, no tocante à descrição dos sinais (sintomas) da fala telegráfica, mais

especificamente quanto à (não) produção de palavras funcionais e de verbos. O afásico produz

apenas palavras de classes abertas (na maioria das vezes substantivos) e não produz

conectores (preposições e conjunções). Contudo, mesmo com poucos recursos lexicais,

produz enunciados que não violam as regras sintáticas (de combinação das estruturas) e utiliza

adequadamente a ordem dos elementos selecionados, de forma competente, possibilitando que

seja compreendido pelo seu interlocutor, como quando diz: [...] Peito. Frio. Muito frio.

Hospital. São Sebastião do Paraíso. A autora enfatiza que essa competência de sujeitos

afásicos “agramáticos” para selecionar e combinar recursos lexicais de forma ordenada levou

Kolk et al. (1985) a sugerirem que se trata, na verdade, de um sujeito supergramático16

.

4. Jakobson e a caracterização das alterações sintagmáticas: o agramatismo como

protótipo da afasia de combinação ou sintagmática

As teorias desenvolvidas no âmbito dos estudos de linguagem se mantiveram distantes

da discussão sobre as afasias até 1954, quando o linguista Roman Jakobson deu início a uma

reflexão propriamente linguística sobre o tema, convocando os cientistas da linguagem para

pensarem sobre os seus aspectos no contexto patológico, pois:

15

Este dado foi primeiramente analisado por Novaes-Pinto (2012a). 16

Nas palavras de Kolk (1985), trata-se de um sujeito “overgrammatic”.

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 OJ Janeiro. Catorze. Seis horas

02 Irn Seis da manhã ou da tarde?

03 OJ Tarde.

04 Irn E aí o que aconteceu?

05 OJ Dor. Dor. Muita dor!

06 Irn Dor onde?

07 OJ Peito. Frio. Muito frio. Hospital

São Sebastião do Paraíso

08 Irn Quem te socorreu?

09 OJ Maria José. Mostra cicatriz no braço e no

peito

10 Irn E aí? Precisou fazer cirurgia?

11 OJ Amanhã. Ribeirão Preto Fazendo um gesto com o

indicador para trás, por cima

dos ombros.

12 Irn Ah, no dia seguinte, foi para o

hospital em Ribeirão

13 OJ Isso.

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[...] A Linguística interessa-se pela linguagem em todos os seus aspectos – pela

linguagem em ato, pela linguagem em evolução, pela linguagem em estado nascente,

pela linguagem em dissolução [...] Tampouco houve qualquer tentativa de

reinterpretar e sistematizar do ponto de vista da Linguística, os múltiplos dados

clínicos referentes aos diversos tipos de afasia. Esse estado de coisas é bastante

surpreendente, pois de um lado, os espantosos progressos da Linguística estrutural

dotaram os pesquisadores de instrumentos e métodos eficazes para o estudo da

regressão verbal e, de outro lado, a desintegração afásica das estruturas verbais pode

abrir, para o linguista, perspectivas novas no tocante às leis gerais da linguagem

(Jakobson, 1954, p. 34-36).

O autor afirma que toda descrição e classificação das perturbações afásicas devem

começar pela questão de saber quais aspectos da linguagem estão prejudicados. Segundo

Jakobson, entender qual operação foi principalmente afetada se torna fundamental para a

descrição, análise e classificação das afasias, como explicita no seguinte trecho:

É claro que os distúrbios da fala podem afetar, em graus diversos, a capacidade que

o indivíduo tem de combinar e selecionar as unidades linguísticas e, de fato, a

questão de saber qual das duas operações é principalmente afetada se revela ser de

primordial importância para a descrição, análise e classificação das diferentes

formas de afasia (Jakobson 1981 [1954], p. 66).

Assim, a análise dessas alterações não pode prescindir da participação dos linguistas.

Seus argumentos convenceram muitos pesquisadores a estudarem as afasias, sobretudo nas

últimas décadas do século XX e no início do século XXI (Novaes-Pinto, 1999).

Segundo Goodglass & Menn (1985), a teorização de Jakobson foi um importante

passo para o entendimento da natureza do fenômeno do agramatismo.

Jakobson’s interpretation goes beyond the mere renaming of the phenomena with a

term derived from a linguistic construct. Where many authors had seen the

agrammatic form as the patient’s adaptation to the great effort involved in speaking,

Jakobson felt that there was a basic change in the character of the patient’s

treatment of the relationship of the terms composing a sentence. For the agrammatic

speaker, not only syntactic relationships dissolved by disappearance of the

morphemes signaling these relationships, but the lexical elements were nominalized

(Goodglass & Menn, 1985, p. 5-6 grifo nosso)

No texto Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia, Jakobson (1954) divide

as afasias basicamente em dois polos: distúrbios envolvendo dificuldades de seleção – ou de

similaridade – e dificuldades de combinação dos elementos linguísticos na estruturação de um

enunciado – o distúrbio da contiguidade. Postula o agramatismo, cuja principal característica

seria a produção de fala telegráfica, como o protótipo da afasia de combinação, que deriva de

uma dificuldade de natureza sintagmática, ou seja, de dificuldades com a combinação dos

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elementos. No outro extremo estaria a jargonafasia, na qual as dificuldades de seleção seriam

predominantes (Novaes-Pinto, 1999). O esquema a seguir ilustra essas questões:

(Eixo paradigmático)

Afasia fluente – Protótipo: jargonafasia

(Eixo sintagmático)

Afasia não-fluente – Protótipo: agramatismo

Figura 1: Modelo de Jakobson (1954) para ilustrar os dois eixos de funcionamento da linguagem

Apesar de Jakobson (1954) falar em polos distintos, colocando as afasias não-fluentes

de um lado e as afasias fluentes de outro, o autor chama a atenção para o fato de que a língua

é uma atividade dinâmica e ressalta a inter-relação entre os eixos nas operações de seleção e

de combinação na produção de um enunciado. Jakobson remete esse funcionamento ao duplo

caráter da linguagem, pois, na comunicação o sujeito sempre opera nesses dois eixos

concomitantemente. Nas palavras do autor,

Falar implica a seleção de certas entidades linguísticas e sua combinação em

unidades linguísticas de mais alto grau de complexidade. Isto se evidencia

imediatamente ao nível lexical quem fala seleciona palavras e as combina em frases

de acordo com o sistema sintático da língua que utiliza, as frases por sua vez são

combinadas em enunciados (Jakobson, 1954, p. 37 grifo nosso).

O modelo de Jakobson, segundo Novaes-Pinto (2012b), é um modelo dinâmico, pois

as duas operações – seleção e combinação são interdependentes, levando à superação de

dicotomias clássicas e propondo a análise dos fenômenos em termos linguísticos. Nas

palavras da autora:

Jakobson’s explanation for aphasia has been useful for research in the field of

Neurolinguistics, mainly because it substitutes, most of the time, the classical

aphasia classifications and overcomes many classical dichotomies. It is possible

hence to understand phenomena as word finding difficulties […] It also allows us to

have a glimpse of how linguistics difficulties could be related to other functional

processes as attention, memory, perception, logical thinking, problem solving, etc.

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All these variables are present, at the same time, when language is used in

communications contexts. This short explanation of Jakobson’s theory can justify

the fact that many aphasiology researchers have recurred at his model.” (Novaes-

Pinto,2012b, p. 236)

No próximo capítulo, voltaremos a algumas dessas questões, à luz da Gramática

Funcional, buscando compreender melhor as características da fala telegráfica. As questões

apontadas até aqui, relativas aos modos de articulação da linguagem – combinação e seleção –

serão também retomadas nas análises propostas no Capítulo 5.

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Capítulo 2

A lua da língua

Existe uma língua para ser usada de dia, debaixo da luz forte do sentido.

Língua suada, ensopada de precisão. Que nós fabricamos especialmente

para levar ao escritório, e usar na feira ou ao telefone, e jogar fora no bar,

sabendo o estoque longe de se acabar. Língua clara e chã, ocupada com as

obrigações de expediente, onde trabalha sob a pressão exata e dicionária,

cumprimentando pessoas, conferindo o troco, desfazendo enganos, sendo

atenciosamente sem mais para o momento.

[...]

Mas no entardecer da linguagem, por volta das quatro e meia em nossa

alma, começa a surgir um veio leve de angústia. As coisas puxam uma longa

sombra na memória, e a própria palavra tarde fica mais triste e morna,

contrastando com o azul fresco e branco da palavra manhã. À tarde, a luz

da língua migalha. E, por ser já meio escuro, o mundo perde a nitidez.

Calar, a tarde não se cala, mas diz menos o que veio a dizer. Por isso,

poucas vezes se usa esta língua rouca do ciciar das cigarras, que cede à luz

minguante da sintaxe, mas meio bêbada de escuridão.

É a que frequenta os cartões de namoro, as confissões, as brigas e os gritos,

ou a atenção desajeitada de velórios, também os momentos relevantes em

vidas sem relevo, ou está nas palavras sussurradas entre os lençóis (ou ao

pé dos muros nos bairros mais distantes) sob o calor da noite. Mas noite

aqui, na face da Terra; que é bem diferente da noite nos breus de uma

língua. Pois quando a língua em si mesma anoitece, o escuro espatifa o

sentido. O sol, esfacelado, vira pó. E a linguagem se perde dos trilhos de

por onde ir. Tateia, titubeia e, com alguma sorte, tropeça, esbarrando em

regras, arrastando a mobília das normas, e deixando no carpete apenas as

marcas de onde um dia estiveram outros móveis. À noite sonha nossa língua.

André Laurentino (2007)

1. O Paradigma Funcional como opção teórico-metodológica de investigação do

enunciado de estilo telegráfico

Conforme aponta Camacho (1994), embora a ciência busque descrever, apreender e

explicar seu objeto de estudo de forma finita, os fenômenos da linguagem apresentam

aspectos infinitamente complexos e variáveis que lhe escapam. A Linguística, para alcançar o

estatuto de ciência autônoma, viu-se obrigada a delimitar seu escopo de análise. Para a

conquista da autonomia científica era imprescindível que essa nova ciência passasse a lidar,

A contribuição do paradigma funcionalista para o estudo

dos enunciados de estilo telegráfico

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metodologicamente, com um objeto estritamente linguístico – sua estrutura. Nesse contexto,

a Linguística Moderna nasceu tanto da criação de um aparato teórico quanto de um recorte

metodológico em que coloca a língua em oposição à fala, uma idealização do que deveria ser

seu objeto de estudo, como esclarece Camacho (1994):

Ao distinguir a língua da fala, Saussure separa o que é geral e social do que é

particular e exclusivamente individual. Essa nítida idealização, que se

completa na noção de sistema de relações, cria um objeto científico.

Separando, além disso, o essencial, próprio da língua, do que é acessório e

acidental, próprio da fala, os chamados aspectos externos. Saussure cria um

objeto de estudos de natureza estritamente linguística (Camacho, 1994, p. 20

grifos nossos).

Muito embora a natureza da linguagem não seja a mesma na teoria

chomskyana, os postulados da teoria gerativa pouco diferem da concepção que o

estruturalismo projeta sobre o objeto de estudo eleito para a fundação da ciência linguística

moderna. Segundo Camacho (1994), Chomsky concorda com a idealização saussureana sobre

o objeto de estudo da Linguística.

Essa similaridade teórico-metodológica, na delimitação do objeto a ser investigado

entre o estruturalismo e o gerativismo, se estabelece pelo fato de que a teoria gerativa propõe

a descrição e a teorização do processamento da linguagem, sem considerar questões sociais e

individuais, postulando um falante-ouvinte ideal. Segundo Chomsky (1975), esse falante

conhece perfeitamente a sua língua e ao acionar esse conhecimento, apesar de estar em uma

comunidade linguística heterogênea, não é “afetado por condições gramaticalmente

irrelevantes, tais como limitação de memória, distrações, desvios de atenção e de interesse, e

erros (causais e característicos)” (Chomsky, 1975, p. 83 apud Camacho, 1994, p. 20).

Olhar para esse objeto “estritamente linguístico”, ora priorizando os aspectos

fonológicos e morfológicos (como no estruturalismo), ora colocando a sintaxe como

autônoma em todo o processamento linguístico (no gerativismo), resultou numa concepção de

língua (e de linguagem) que não admite, como teoricamente relevantes, as características do

funcionamento da linguagem que extrapolam as margens metodológicas muito bem

delineadas pela noção de sistema. Essa noção trouxe a ideia de uma língua convencional e

arbitrária em que “não é a relação do signo com a realidade que interessa, mas a relação do

signo com outro signo no interior de sistemas fechados” (Camacho, 1994, p. 30).

Sobre os recortes epistemológicos delimitados pelos paradigmas formais da

linguagem, o autor chama a atenção para o fato de haver uma forte tentativa desses modelos

de manter a coerência entre os aspectos teórico-metodológicos e o ponto de vista que

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projetam sobre objeto. O autor critica essa posição por trazer como resultado tanto um ideal

abstrato de língua, quanto o estabelecimento de diretrizes para o “verdadeiro saber-fazer

pesquisa” no campo da Linguística. Nesse contexto, para não se perder o status de ciência

autônoma, os diversos e complexos fatores imbricados nos fenômenos da linguagem verbal –

que não se encaixam dentro de uma proposta formal de análise – são, automaticamente,

descartados fazendo com que todos esses aspectos, imprescindíveis para o entendimento do

funcionamento da linguagem, extrapolem o escopo da Linguística Moderna. Segundo

Camacho,

A linguística moderna defronta-se, ainda hoje, com o excesso de “linguagem”,

que obstinadamente transborda dos limites da “língua”, isto é, com fenômenos

linguísticos difíceis de descartar e de remeter a outras áreas, cuja abordagem,

porém, põe em perigo a própria possibilidade de fornecer um objeto válido à

investigação linguística. [...] O resultado desse recorte metodológico foi

ilusório e frustrante, porque sempre sobrou, no fundo, a desafortunada

impressão de que a seleção de um ponto de vista predeterminado torna objeto

de estudo apenas um aspecto do real, justamente o aspecto que indica a

posição ideológica do investigador. O que se exclui é remetido a outras áreas

do conhecimento, sob a rubrica do secundário, acessório, supérfluo, das

condições gramaticalmente irrelevantes (Camacho, 1994, p 20-21 grifo

nosso).

O paradigma funcional, como veremos mais detalhadamente a seguir, coloca os níveis

linguísticos sempre em relação e elege o componente pragmático como o mais abrangente.

Em outras palavras, os demais componentes como o semântico e o sintático não podem ser

analisados fora de uma relação pragmaticamente determinada.

Camacho chama a atenção para o fato de que uma disciplina científica só pode emergir

de uma complexa relação entre dados, modelo formal e explicação. O autor ainda afirma que

“nenhum desses três parâmetros pode ser, por si só, a teoria, nem é possível constituir uma

teoria viável ignorando-se o papel de um desses três aspectos ou distorcendo-se a natureza de

sua interdependência” (Camacho, 1994, p. 33). Critica o fato de a Linguística Moderna, ao

longo de sua história, sempre delimitar os dados para análise de forma arbitrária e apriorística,

como se observa na seguinte passagem:

Das várias maneiras de se operar essa delimitação, pode-se, seguramente,

apontar duas: primeiramente, pode-se adotar um formalismo incompatível

com um certo conjunto de dados e depois rejeitar os que o formalismo não é

capaz de digerir. Alternativamente, pode-se escolher limitar o alcance dos

parâmetros explanatórios em relação aos fenômenos estudados e daí excluir

vários segmentos de dados potencialmente cruciais, como que pertencentes a

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outras disciplinas. Ambos os métodos são práticas correntes na linguística

moderna (Camacho, 1994, p. 33).

O autor se baseia também nas críticas que Bakhtin (1979) faz sobre as teorias formais

da linguagem para afirmar que o paradigma funcionalista pode ser considerado uma

alternativa relevante para o problema metodológico que a Linguística vem enfrentando desde

a sua fundação, que é, basicamente, delimitar e identificar a natureza de seu objeto de estudo.

Nesse contexto, o autor destaca cinco pontos essenciais sobre a visão de Bakhtin sobre o

paradigma formal e que se relacionam às questões que a Linguística tem se colocado,

principalmente, a partir do questionamento das concepções teóricas que motivam os modelos

formais da linguagem. São eles, de acordo com o autor:

(i) a linguagem como sistema estável de formas normativamente idênticas é

apenas uma abstração científica que não explica adequadamente sua

realidade concreta e que só pode servir a certos fins teóricos e práticos

particulares; (ii) a linguagem constitui um processo de evolução ininterrupto,

que se realiza através da interação verbal social dos interlocutores; (iii) as

leis da evolução linguística são essencialmente leis sociais; (iv) a

criatividade na linguagem não pode ser compreendida independentemente

dos conteúdos e valores ideológicos que se ligam a ela; (v) a estrutura da

enunciação é puramente social, de modo que o ato de fala individual é uma

contradição nos termos (Camacho, 1994, p. 32).

Esses pontos elencados se contrapõem ao que Bakhtin (1997) denominou de

objetivismo abstrato. Segundo Camacho (1994, p.31), o equívoco está em afirmar que “a

língua ou a competência, enquanto sistema de formas imutáveis possua existência objetiva”.

Sendo assim, a relação entre os signos não deve ser vista dentro de um sistema imutável e

fechado, como numa correlação matemática. Muito pelo contrário, o que deve ser considerado

é a relação dos signos linguísticos com a realidade. Na visão bakhtiniana, o importante não é a

forma linguística enquanto sinal estável e sempre igual, mas, sim, a forma linguística como

signo variável e flexível. Ou seja, é essa a característica que permite ao signo “figurar num

dado contexto e que o torna adequado às condições do contexto situacional, seja do ponto de

vista fonológico, morfossintático ou semântico” (Camacho, 1994, p. 31).

É preciso, portanto, ter uma clara a distinção entre signo e sinal. Camacho (1994)

aponta que a principal diferença entre os dois é que, enquanto o sinal é identificado, o signo é

compreendido. Dessa forma, o sinal sempre terá um contexto imutável e, diferentemente do

signo, por não pertencer ao domínio da ideologia, não é capaz de estabelecer relação alguma

com a realidade e tampouco refletir os verdadeiros aspectos da linguagem em uso, num

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contexto social. Bakhtin afirma, a esse respeito, que “o essencial na tarefa de decodificação

não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas em compreendê-la num contexto preciso,

compreender sua significação numa enunciação particular. Perceber em suma, seu caráter de

novidade e não de conformidade à norma” (Bakhtin, 1979, p. 79 apud Camacho, 1994, p. 31).

A partir dessa crítica aos modelos formais de linguagem, Camacho (1994) aponta a

necessidade de se eleger um objeto alternativo para a investigação linguística. Segundo o

autor, o uso efetivo da linguagem, num contexto determinado, por indivíduos socialmente

determinados, deveria ser o novo objeto de estudo da Linguística. Dessa forma, os caminhos

que foram apontados pelas críticas feitas por Bakhtin (1979) conduz a um ponto em comum

que é a necessidade de se investigar os fenômenos linguísticos a partir de uma estreita relação

entre o modelo cientifico adotado e a linguagem em seu uso efetivo, dentro de um contexto

social. A teoria saussureana, por um lado, esvazia totalmente a língua de qualquer influência

do contexto social e, por outro, a gramática gerativa concebe a linguagem como um sistema

independente que funciona sem a necessidade de fatores sociais. Para enfatizar a relevância

do paradigma funcionalista como uma alternativa para resolver esse impasse, citamos um

longo trecho do trabalho de Camacho (1994), a nosso ver relevante para justificar nossa opção

por esta proposta:

O paradigma funcionalista vê a linguagem como um instrumento de

interação social entre seres humanos, usado com a intenção de estabelecer

comunicação. Consequentemente, a interação verbal, definida como a

interação social mediante o uso da linguagem, constitui uma forma de

atividade cooperativa estruturada, já que é governada por regras, normas e

convenções; é uma atividade cooperativa, porque necessita pelo menos de

dois participantes. Esse principio parece óbvio, mas assegura, na realidade,

um princípio sonegado pelo objetivismo abstrato: a relação entre

interlocutores reais. Nesse caso, de um ponto de vista funcional, a

linguística necessitaria tratar de dois tipos de sistemas e regras: 1. as regras

que governam a configuração das expressões linguísticas, especificamente,

regras semânticas, sintáticas, morfológicas e fonológicas; 2. as regras que

governam os padrões de interação verbal em que as expressões linguísticas

são usadas, especificamente regras pragmáticas (Dik, 1989, p. 3). As

expressões linguísticas não são, assim, objetos formais abstratos; ao

contrário, suas propriedades são sensíveis às determinações pragmáticas da

interação verbal (Camacho, 1994, p. 34 grifo nosso).

O paradigma funcionalista, segundo o autor, rompe com um princípio fundamental das

teorias formais da linguagem, que diz respeito ao sistema linguístico, enfatizando a função da

linguagem, como também defendia Bakhtin. Nesse contexto teórico, toda a organização do

sistema é considerada funcional pelo fato dela ter sido desenvolvida para satisfazer às

demandas do homem socialmente instituído (Camacho, 1994).

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Para o autor, a prática (com a linguagem) é que vai revelar os vários fatos da

linguagem humana, de modo que a teoria precisa abrir mão de concepções e argumentos

metodológicos apriorísticos. Sendo assim, Camacho defende que “o modelo funcionalista é

uma alternativa teórica capaz de executar com êxito desejável um programa dessa natureza”

(Camacho, 1994, p. 34).

Em artigo mais recente, de 2006, Camacho afirma que a Gramática Funcional se

preocupa também com fenômenos inerentes ao funcionamento do discurso e, portanto,

focaliza unidades linguísticas que não se encerram no nível da oração. É importante destacar

que a gramática funcional não descarta fatores relacionados à estrutura. Camacho retoma as

ideias de Hengeveld (2004), quando este autor trata das razões pelas quais a análise

gramatical deve se expandir da sentença para o discurso e com base nessa discussão, afirma

que

Há, em primeiro lugar, muitos fenômenos linguísticos que podem ser

explicados somente em termos de unidades maiores que a sentença

individual. Há, em segundo lugar, muitas expressões linguísticas menores

que a sentença individual, que, todavia, funcionam como enunciados

completos e independentes dentro do discurso, como frases elípticas,

exclamações e vocativos (Camacho, 2006, p. 171).

Camacho (2006) aponta que, a partir dessa perspectiva, a análise das estruturas

gramaticais é organizada tanto horizontal como verticalmente. Isso significa dizer que sempre

levará em consideração dois níveis: o interpessoal e o representacional. Sobre essa

organização, o autor afirma que:

Cada uma das unidades relevantes da estrutura da oração pode ainda ser

modificada por operadores, que consistem em elementos abstratos

representando distinções semânticas e pragmáticas expressas por meios

gramaticais, e por satélites, que consistem em distinções semânticas

expressas por meios lexicais opcionalmente selecionados (Camacho, 2006,

p.169).

Segundo o autor, o nível representacional é responsável pelas unidades linguísticas

que descrevem o mundo (seja ele real ou imaginado). Já o nível interpessoal é o responsável

por garantir uma unidade linguística no momento da interlocução em uma determinada

interação. Ou seja, cada falante vai aplicar estratégias (mais ou menos conscientes) para

atingir o seu propósito comunicativo. Sendo assim “na formulação, emprega-se o nível

interpessoal para indicar como essa estratégia é realizada em relação tanto aos propósitos do

falante quanto ao estado mental do ouvinte” (Camacho, 2006, p. 172).

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Na mesma linha de argumentação, Neves (1997) – outra representante da Gramática

Funcional no Brasil – remetendo a Givón (1995), afirma que todos os funcionalistas assumem

o postulado da não-autonomia da sintaxe: “a língua (e a gramática) não pode ser descrita

como um sistema autônomo, já que a gramática não pode ser entendida sem referência a

parâmetros como cognição, comunicação, processamento mental, interação social e cultura”.

Enfatiza que a Gramática Funcional “inclui na análise toda a situação comunicativa: o

propósito do evento de fala, seus participantes e seu contexto discursivo” (Neves, 1997, p. 3,

grifo nosso). Para a autora portanto, a estrutura não é suficiente para determinar o significado

das expressões linguísticas. É preciso ir além da estrutura e incluir nas análises questões

referentes ao estatuto da interação, socioculturalmente determinado. Também fundamentada

nos trabalhos de Dik (1978), diz que embora a língua só possa funcionar comunicativamente

por meio das estruturas sintáticas, a gramática precisa incluir também os aspectos semânticos

Segundo Beaugrande (1993, p. 2 apud Neves, 1994a, p. 23), a gramática funcional tem

como uma das suas prioridades extrapolar a abordagem modular típica das teorias formais da

linguagem, que explicam a língua utilizando-se de noções como as de “níveis” ou

“componentes”, responsáveis pelo estudo de áreas isoladas como a fonologia, morfologia,

sintaxe, semântica e pragmática. O autor afirma que o principal objetivo de uma gramática

funcional é fazer correlações ricas entre forma e significado, dentro do contexto global do

discurso.

Neves (1994; 1997) afirma que a integração desses diversos componentes é

característica de qualquer teoria funcionalista. A autora novamente se respalda em Givón

(1984) para afirmar que a gramática funcional tem como objetivo explicar a língua dentro de

“um quadro explícito, sistemático e abrangente de sintaxe, semântica e pragmática unificadas

como um todo.” (Neves, 1994a, p. 24 grifo nosso). A linguagem é, sobretudo, um instrumento

de comunicação em que as estruturas linguísticas estão, sempre, à disposição do sujeito. Ser

funcional implica privilegiar o significado. A língua é vista como um sistema semântico e, por

isso, as formas linguísticas são encaradas como um meio e não como um fim em si mesmas

(Neves, 1994b).

Segundo Neves (1997), a gramática funcional deve ser entendida como uma teoria

“que visa explicar regularidades nas línguas e através delas, em termos de aspectos

recorrentes das circunstâncias sob as quais as pessoas usam a língua” (Neves, 1997, p. 112). A

autora sintetiza, em um quadro, as principais diferenças entre os paradigmas formais e

funcionais no estudo da linguagem:

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Questão Paradigma formal Paradigma Funcional

a) Como definir a língua Conjunto de orações Instrumento de interação social

b) Principal função da

língua

Expressão do pensamento Comunicação

c) Correlato psicológico Competências: capacidade de

produzir, interpretar e julgar

orações

Competência comunicativa17:

habilidade de interagir socialmente

com a língua

d) O sistema e seu uso O estudo da competência tem

prioridade sobre a atuação

O estudo do sistema deve fazer se

dentro do quadro de uso

e) Língua e

contexto/situação

As orações da língua devem

descrever-se independentemente

do contexto/situação

A descrição das expressões deve

fornecer dados para a descrição de

seu funcionamento em um dado

contexto

f) Aquisição da linguagem Faz-se com uso de propriedades

inatas, com base em um input

restrito e não estruturado de dados

Faz se com uma ajuda de um input

extenso e estruturado de dados

apresentados no contexto natural

g) Universais linguísticos Propriedades inatas do organismo

humano

Explicados em função de restrições

comunicativas; biológicas ou

psicológicas; contextuais

h) Relação entre a sintaxe,

a semântica e a pragmática

A sintaxe é autônoma em relação à

semântica; as duas são autônomas

em relação a pragmática; as

prioridades vão da sintaxe à

pragmática, via semântica

A pragmática é o quadro dentro do

qual a semântica e a sintaxe devem

ser estudadas; as prioridades vão da

pragmática à sintaxe via semântica

Quadro 1 – Diferenças entre as abordagens formais e funcionais no estudo da gramática (Neves, 1994a, p.

46,47).

Outro importante pesquisador da Gramática Funcional – Castilho – destaca algumas

questões relevantes sobre este campo linguístico, em consonância com Camacho e Neves.

Segundo Castilho (1994),

A gramática funcional a que me refiro postula a língua como uma atividade

social e nisto se afasta da sintaxe gerativa, que interpreta a língua como uma

atividade mental e da Sintaxe Estrutural, que a interpreta como um sistema.

Como bem reconheceu Halliday, a gramática funcional concentra a atenção

nos usuários e nos usos da língua mediante uma valorização do receptor, do

emissor e da variação linguística no quadro da reflexão gramatical (Castilho,

1994, p. 76 grifos nossos).

17

Bakhtin (1997) criticou o fato de a Linguística Estrutural relegar a função comunicativa da linguagem a um

segundo plano.

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Castilho (1994) afirma que a gramática funcional toma as significações das

estruturas linguísticas como o ponto de partida para a estruturação do enunciado, de modo

que as estruturas gramaticais são sempre contextualizadas nas situações de fala em que são

criadas. Assim, a sintaxe, para o autor, é seu ponto de chegada. Sobre essa relação entre a

semântica e a sintaxe, Castilho expõe: “A postulação funcionalista mais forte é a da gramática

como um processamento das categorias discursivas e semânticas, de que resultam as

estruturas sintáticas. A gramática, portanto, seria uma cristalização das formas discursivas

mais produtivas, processo esse conhecido como gramaticalização (Castilho, 1994, p. 77 grifo

nosso).

O autor chama a atenção para o fato de que, para atingir o objetivo de compreender os

vários processos presentes na gramaticalização, é necessário partir do pressuposto de que a

língua é composta de três sistemas18

. Se pauta em Franchi (1976, 1991, 1992) para elencá-los:

o sistema semântico, o sistema sintático e o sistema discursivo. Segundo Franchi (1976), o

sistema semântico, também chamado de conceitual ou nocional é composto por dois

subsistemas: o predicativo-descritivo e o dêitico-referencial, ao passo que o sistema sintático

abarca os subsistemas categorial, de argumento e de relações gramaticais, dentre outros. O

sistema discursivo, por sua vez, compreende as questões intersubjetivas da linguagem que

fazem com que a língua seja concebida como um contrato social (Castilho, 1994, 2010). A

esse respeito, Castilho, citando Halliday, reitera que:

A língua não é um sistema bem definido e não pode ser igualada ao conjunto

de todas as sentenças gramaticais. A língua não pode ser interpretada por

regras que definam tal conjunto. Ela é uma fonte sistêmica da significação.

As pessoas intercambiam sentidos através da língua e, por isso a língua não

pode ser definida por sua constituência, que é vista pela teoria sistêmica

como uma pequena parte do quadro geral, apesar de sua importância. Por

isso mesmo, os colchetes são pouco usados nessa teoria, pois eles impedem a

percepção de que um mesmo enunciado dispõe de diversos valores

(Halliday, 1985a, 1985b apud Castilho, 2010, p. 81 grifo nosso).

Após essas considerações, reiteramos que o paradigma funcionalista seja um posto de

observação privilegiado para a descrição e teorização sobre os fenômenos afasiológicos, em

especial se são abordados dialogicamente, em situações efetivas de uso social da linguagem.

18

Vale mencionar que, atualmente, Castilho (1994) enfatiza essa noção multissistêmica, integrada, em uma

teoria denominada de Sistemas Complexos.

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46

1.1. A relação entre o léxico e a sintaxe na Gramática Funcional

Tendo em vista que os objetos de análise desta pesquisa são as classes funcionais, por

sua vez subcategorias lexicais (em contraposição às classes abertas), é relevante apresentar

algumas considerações sobre a sua natureza e funcionamento.

Nunes (2010) aponta que olhar para o léxico é uma tomada de decisão imprescindível

para o linguista que tem como objetivo entender as afinidades entre gramática, morfologia e

semântica e, para isso, parte de uma perspectiva discursiva19

.

Um aspecto importante do modelo multissistêmico da língua, acima delineado, é que

os sistemas e subsistemas não estabelecem relações de determinação entre si, ou seja, um não

se sobrepõe ao outro. Castilho (1994, 2010) afirma que é o léxico o responsável pela

integração e intermediação desses sistemas, o que justifica que questões relativas ao seu

funcionamento precisam estar presentes nas descrições gramaticais20

.

1.1.1 Uma visão funcionalista do conceito de palavra e de suas classes

Nunes (2010) chama a atenção para o fato de que a noção de palavra foi excluída do

campo teórico da Linguística Moderna – fundamentada no estruturalismo. Essa exclusão fez a

lexicologia se tornar uma disciplina “marginal” na teorização linguística e, consequentemente,

fez com que seu estatuto científico fosse questionado. O autor aponta que, apesar da

Linguística “pura” ter rejeitado se debruçar sobre as questões relacionadas ao léxico, outras

áreas das ciências da linguagem se ocuparam desse desafio. A esse respeito, afirma que

A lexicologia e a lexicografia buscam atualmente um lugar de legitimação

dentre as ciências da linguagem [...] Além disso, a lexicologia e a

lexicografia tem se transformado significativamente a partir do aparecimento

de novas áreas como a análise do discurso, a linguística textual, a

pragmática, a sociolinguística, a psicolinguística, a semiótica, a aquisição da

linguagem, a neurolinguística dentre outras (Nunes, 2010, p. 150 grifo

nosso).

19

Ressaltamos que Novaes-Pinto (2009) foi quem propôs que a discussão sobre a relação léxico e gramática

fosse desenvolvida no campo da Neurolinguística enunciativo-discursiva e vem incorporando essas reflexões às

análises dos fenômenos linguísticos no envelhecimento e nas patologias, no âmbito das pesquisas desenvolvidas

pelo GELEP, sobretudo nos estudos acerca das dificuldades de encontrar palavras. Conferir em Novaes-Pinto

(2009, 2014). 20

Jakobson (1954) foi um dos primeiros teóricos a descrever as funções da linguagem, no âmbito da Escola

Linguística de Praga. Em seu texto de 1954, ao discutir sobre os processos de seleção e combinação na

formulação de um enunciado, o autor já chamava a atenção para o papel que o léxico tem no modelo da dupla

articulação da linguagem; é nele que se evidencia a sua complexidade.

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47

Segundo o autor, a concepção de palavra21

sempre esteve presente em todos os

momentos nos quais os processos de significação são investigados. A palavra é a “marca da

incompletude da linguagem e de algo que sempre escapa à compreensão das ciências da

linguagem” (Nunes, 2010, p. 165 grifo do autor). A respeito da definição do que seja palavra,

Castilho (2010) afirma que “pode ser considerada a unidade linguística maldita, tais são as

dificuldades de conceituá-la” (Castilho, 2010, p. 54 grifo nosso).

Basílio (2004) afirma ser comum definir o léxico como o conjunto de palavras de uma

língua e concorda que seja constituído, sobretudo, de palavras. No entanto, segundo a autora,

esbarra-se em um questionamento crucial e, como apontado acima, não é facilmente

respondido: Afinal, o que é palavra?

Existem várias tentativas de resposta para essa pergunta e, obviamente, elas são

tomadas de diferentes pontos de vista. Por exemplo, a palavra pode ser entendida como uma

unidade gráfica (sequência de caracteres), como uma unidade morfologicamente estruturada,

como uma unidade fonológica e, ainda, como uma forma livre mínima (Basílio, 2004).

Essa complexidade para conceituar o que é palavra (ou léxico) pode ser observada, por

exemplo, nas definições a seguir, das quais interessa principalmente a este projeto a de

palavras funcionais:

Palavra pa-la-vra sf [co] 1 unidade léxica constituída por forma livre mínima, isto é,

que não se divide em outras formas do mesmo tipo; termo; vocábulo: Não pude

ouvir a última palavra 2 comunicação verbal; conversa: ter a palavra fácil, ter a

palavra mansa 3 direito à fala; manifestação; elocução; discurso: negar a palavra

ao estudante [Ab] 4 promessa verbal: Palavra de rei não volta atrás 5 doutrina;

ensinamento: Levar a todos a palavra de cristo 6 comunicação breve: Gostaria de

dar-lhe uma palavra. Interj 8 expressa exclamação ou afirmação categórica: Não

copiei de ninguém, professor. Palavra! p. por p. sem nada mudar; textualmente:

Repetiu palavra por palavra a resposta dada ao senador. numa p. em resumo; em

suma: Numa palavra, é urgentíssimo aprovar as reformas estruturais! (BORBA et

al, Dicionário UNESP, 2011, p. 1012-1013)

Palavra Em linguística tradicional, a palavra é um elemento linguístico

significativo composto de um ou mais fonemas; essa sequência é suscetível de uma

transcrição escrita [...] (DUBOIS, et al., 1973, p. 449)

Palavras funcionais são as que indicam certas relações gramaticais entre os

sintagmas que constituem uma frase (preposições), ou entre frases (conjunções), ou

que marcam a fronteira de um sintagma nominal que elas determinam (artigos). As

palavras funcionais se distinguem dos morfemas lexicais porque são morfemas não-

autônomos, que só tem sentido relativamente à estrutura gramatical em que entram;

são também denominadas marcadores estruturais, palavras instrumentais ou

instrumentos gramaticais. (DUBOIS, et al., 1973, p. 297).

21

Nunes (2010) aponta que na teoria estruturalista a noção de morfema foi privilegiada, em detrimento da noção

de palavra.

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Os morfemas lexicais têm significação externa, porque referente a fatos do mundo

extralinguístico, aos símbolos básicos de tudo o que os falantes distinguem na

realidade objetiva ou subjetiva. Já a significação dos morfemas gramaticais é

interna, pois deriva das relações e categorias levadas em conta pela língua.

(CUNHA & CINTRA, 2008, p. 90-91)

É comum, como se pode observar, descrever as palavras de conteúdo como palavras

dotadas de sentido, por um lado, e as palavras que não têm um sentido independente – as

funcionais – por outro. No entanto, Basílio (1987) aponta que a tarefa de definir as classes de

palavras é muito complexa, principalmente pelos critérios que se elegem para essa

classificação. A tradição formalista da linguagem concebe as palavras e suas classes em

termos de categorias que levam em consideração, principalmente, o critério sintático,

conforme podemos ver na definição a seguir:

Classe Conjunto de objetos ou acontecimentos linguísticos que têm uma ou

mais propriedades comuns. Em gramática distribucional, uma classe

gramatical será definida como o conjunto das unidades que têm as mesmas

possibilidades de aparecer num dado ponto do enunciado. A noção de classe

gramatical opõe-se assim à de parte do discurso, tal como a define a

gramática tradicional. [...] Chama-se de classe de palavras, em linguística

estrutural e distribucional, uma categoria de palavras definidas por

distribuições análogas em quadros de frases previamente determinados.

Assim, definir-se-á uma classe de determinantes pela posição exclusiva que

eles têm em francês de preceder uma outra categoria, os substantivos. As

classes de palavras substituem as partes do discurso da gramática tradicional

(Dubois, et al., 1973, p. 108-109 grifos nossos).

A esse respeito, Biderman (1978) aponta que vários linguistas vêm fazendo, desde o

século XIX, diversas críticas ao modelo classificatório aplicado ao léxico. A autora afirma

que as concepções greco-latinas continuam a se manifestar nas gramaticas ocidentais atuais.

Aponta que em 1880 o neogramático Hermann Paul já fazia uma criteriosa análise sobre essa

questão:

[A classificação do léxico] possui um caráter arbitrário. Podemos facilmente

apontar as suas falhas. Mas, não poderemos substituí-la por outra muito

melhor enquanto tentarmos incluir cada palavra numa classe. A tentativa de

organizar um sistema rígido, de divisão lógica, é absolutamente

impraticável (Paul, 1880, p. 373 apud Biderman, 1978, p. 172 grifo nosso).

Ilari (2014, 2015) reitera essa concepção e afirma que distinguir classes de

palavras e estudá-las de forma separada é um modo de se estudar a língua, desde a Grécia

Antiga. No entanto, devido ao complexo funcionamento que é característico das línguas

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naturais, esse processo de categorização sempre demandará crítica e constante refinamento,

como discute na passagem que se segue:

[O falante deve] aceitar um paradoxo com que convivemos: por um lado,

dividir as palavras em classes é necessário, e é uma operação que fazemos o

tempo todo ao construir e interpretar sentenças; por outro lado, qualquer

classificação adotada será sempre um instrumento grosseiro para entender o

funcionamento da língua, e precisará necessariamente ser completada por

subclassificações (ou subcategorizações) bastante minuciosas e, sobretudo,

ser objeto de uma reflexão, de uma crítica e de uma revisão constantes (Ilari,

2014, p. 10-11).

O autor adverte que a classificação não pode ser engessada, pois a partir de seu

funcionamento as línguas sempre transformam itens lexicais em itens gramaticais. Por isso, a

categorização de palavras em classes se torna problemática. No que diz respeito à

classificação de palavras em classes abertas ou fechadas, Ilari tenta estabelecer uma

categorização baseada no principio de uso da língua. Na definição que propõe, o autor marca

seu posicionamento teórico pautando sua classificação não apenas no critério de presença ou

de ausência de sentido:

As classes “abertas” [...] são aquelas que ganham novos itens o tempo todo,

servindo de exemplo a facilidade com que a língua dos últimos anos,

atendendo a necessidades tecnológicas ou outras, assimilou substantivos

como “rolezinho”, verbos como “deletar” e adjetivos como “plugado” As

classes “fechadas” [...] denominam-se “fechadas” porque nelas a formação

de novos itens é mais lenta (pense-se no tempo que foi necessário para que a

expressão de tratamento Vossa Mercê se tornasse você, hoje

indiscutivelmente um pronome de segunda pessoa) e porque contêm séries

de poucos elementos (como é o caso dos artigos, que, uma vez descontada a

flexão de gênero e número, se reduzem a dois ou três). [...] recuperando a

afirmação que já estava em Aristóteles, há uma diferença óbvia de função

entre as palavras de classe aberta e de classe fechada: as primeiras tem

conteúdo descritivo que remete à realidade extralinguística, ao mundo; as

segundas funcionam como “instrumentos gramaticais”, isto é, como

utensílios que estruturam as sentenças da língua (ILARI, 2015, p. 09 grifo

nosso).

Nesta definição, podemos ver que outros elementos foram considerados para além das

questões que perpassam o sentido e a autonomia das palavras no léxico de uma língua. Por

aderir a uma concepção funcionalista, o autor atribui as diferenças entre essas classes de

palavras ao uso da língua. Trata-se de um funcionamento dinâmico, conforme Neves (2010).

As funções sintáticas não devem imprimir nas palavras um rótulo de pertencimento definitivo

(e inerte) a uma determinada classe. Quando a língua está sendo usada, as palavras entram

num contínuo em que podem assumir funções diferentes: um substantivo pode funcionar

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como adjetivo, por exemplo. Essa dinamicidade faz com que as margens categoriais fiquem

borradas. A autora afirma que para entender o funcionamento da língua, a questão da

categorização das palavras precisa ser observada tanto pela sua regularidade quanto em suas

questões marginais. Aponta que o apagamento dessas fronteiras, impostas às palavras pelas

categorias gramaticais, revela a característica da língua como um sistema que, apesar de sua

instabilidade, opera sempre em equilíbrio. Isso implica dizer que o sistema linguístico não

tem fissuras ou brechas não preenchidas ou mal preenchidas e chama atenção para o fato de

que os deslizamentos de categoria são mais visíveis nas palavras de classes abertas, mas no

âmbito das palavras funcionais a mesma questão aflora. Sintetizando sua posição teórica,

afirma que:

Apontar uma estreita relação entre classes e funções não significa pleitear

que a cada classe corresponda exatamente uma função, e vice-versa. Pelo

contrário, a indicação central é a de que não há relação biunívoca (um a um)

entre classes e funções, mas há fluidez de delimitações, há deslizamentos

categoriais e há superposições funcionais, tudo a compor um aparato aberto

à criação infinita de sentidos e de efeitos pelo uso da palavra [...]. O

importante é que o reconhecimento dessas “indefinições” na categorização,

longe de constituir ignorância dos fatos, constitui prova da compreensão de

que a língua não é uma entidade engessada e composta por compartimentos

que devam apenas ser rotulados sem atenção para seu funcionamento, que é

altamente sensível à necessidade de produção de sentido em interação. [...] A

língua é um instrumento vivo, para o cumprimento das funções da

linguagem (Neves, 2012, p 206-207 grifo nosso).

Olhar para esses (não) limites que as palavras têm no momento em que a língua está

sendo usada com um propósito comunicativo é, segundo Neves (2010), o maior desafio para o

linguista que se propõe a analisar estruturas gramaticais.

A fim de ilustrar como esses deslizes categoriais podem ocorrer, consideremos o

seguinte exemplo:

Enunciados

A João, quando você chega de Anápolis?

B Maria, chego em Anápolis hoje, ainda não

viajei!

Ao analisarmos esses enunciados, a partir dos pressupostos da Gramática

Funcional, é possível identificar uma sobreposição de função. As palavras de e em são

pertencentes à classe funcional das preposições e, comumente, descritas como palavras usadas

para estabelecer relações entre termos da oração. É inegável que tanto a preposição de, em A,

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quanto a preposição em, em B, estão estabelecendo uma relação sintagmática entre o verbo

(chegar) e o objeto (Anápolis). No entanto, o uso dessas preposições nesses enunciados

extrapolam a função “meramente” sintática e estabelece, sobretudo, uma relação semântico-

referencial22

.

Finalizando, deve-se considerar a afirmação de Castilho (2007) de que as classes

de palavras não devem ser analisadas como se as estruturas linguísticas fossem abstratas. As

categorizações lexicais em determinadas classes não devem ser consideradas como uma

organização de “primitivos linguísticos”. Ou seja, o linguista deve recusar a ideia de que o

léxico de uma língua seja um compilado de itens estáveis e estáticos. Sendo assim, o léxico

nunca estará pronto para o uso. A linguagem se constitui a partir da capacidade de se

(re)organizar com a necessária diluição de fronteiras. Por isso, deve ser compreendida como

variável e, sobretudo, multifuncional.

2. As palavras funcionais e a fala telegráfica

Nesta pesquisa, nos propomos a analisar o funcionamento das classes fechadas nos

enunciados de sujeitos afásicos. Apresentaremos, a seguir, descrições dessas classes com as

características que nos ajudem a compreender o processo de produção e construção de

significação em enunciados de estilo telegráfico23

.

A partir do que foi discutido até o momento, concluímos que entender a classe das

palavras funcionais nas estruturas gramaticais do Português Brasileiro pode fornecer pistas

para o melhor entendimento dos processos envolvidos na produção de enunciados de estilo

telegráfico. Para atingir este objetivo, é necessário que se abandone a concepção de que essas

palavras sejam meramente gramaticais. Precisamos enxergar nessas classes o seu estatuto

semântico, ao se analisar a língua em seu uso efetivo.

22

Exemplos e análise de minha responsabilidade. 23

Por uma questão de espaço, não apresentaremos, neste trabalho, uma descrição e análise ampla dos processos

gramaticais estabelecidos pelos diversos recursos multifuncionais e linguísticos dessas palavras. Nos deteremos

nas questões que se relacionam com o objetivo principal desta pesquisa que é o de compreender o funcionamento

dessas palavras, na construção de significação, em enunciados (de estilo telegráfico) de sujeitos afásicos. A esse

respeito, consultar Ilari et al (2015) e Kleppa (2008) para a classe das preposições; Ilari (2015) sobre

conjunções; Castilho et al (2015) para a classe dos artigos. Todos esses trabalhos apresentam análises guiadas

pela perspectiva funcional. Muitos dos dados analisados emergiram do projeto NURC e compõem as análises

desenvolvidas no âmbito do projeto Gramática do Português Culto falado no Brasil. Os trabalhos sugeridos,

com exceção de Kleppa (2008), compõem a publicação de um volume dedicado apenas à descrição das palavras

de classe fechada que foi organizada por Rodolfo Ilari e publicada em 2015, sob o título “Palavras de Classe

Fechada”.

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A seguir, com o objetivo de respaldar a análise que será desenvolvida no Capítulo 5,

as principais classes que constituem as chamadas palavras funcionais24

serão descritas em

consonância com a Gramática Funcional.

2.1 As preposições25

As preposições são palavras invariáveis, ou seja, não sofrem alterações morfológicas

de número e gênero. Sua principal característica relaciona-se a sua natureza sintática, pois,

geralmente, são definidas como os termos responsáveis por estabelecer ligação entre as

palavras, em uma sentença gramaticalmente bem formulada. Segundo Ilari et al (2015), não

há equivoco algum em afirmar que as preposições relacionam palavras. No entanto, se nos

contentarmos apenas com essa função estaríamos analisando esta classe de palavras de forma

sumária e genérica. A esse respeito, Castilho (2010) aponta para outras duas outras de suas

funções essenciais, além da função sintática. São elas (i) função semântica – segundo o autor,

as preposições em geral imprimem, nos enunciados, um sentido de espacialidade,

temporalidade e localização e (ii) função discursiva – que proporciona o acréscimo de

informações secundárias tanto aos enunciados, quanto à organização textual.

Castilho (2010) afirma que não podemos aceitar a tradicional explicação de que são

palavras vazias de sentido. Ilari et al (2015) afirmam que as preposições são claramente muito

parecidas do ponto de vista sintático. No entanto, essas palavras em funcionamento

apresentam inúmeras possibilidades de uso e, consequentemente, de sentidos. Se fossem

vazias de sentido, o autor pondera que não haveria diferenças de significado em sentenças

exatamente iguais, exceto pela escolha da preposição.

Para exemplificar esse questionamento e ratificar os diversos sentidos produzidos

pelos usos das preposições, Castilho (2010, p. 384) usa o seguinte enunciado:

Você está rindo para mim ou [você] está rindo de mim?

Nessa perspectiva, Ilari et al afirmam “se a preposição servisse apenas para estabelecer

uma relação entre dois termos a língua poderia contentar-se com uma única preposição, já que

sua função seria sempre a mesma” (Ilari, et al, 2015, p. 170-171). Os autores afirmam que o

24

Serão apresentadas apenas as classes que são objeto de análise da fala telegráfica, nesta dissertação. 25

Do grego próthesis: palavra que se coloca antes em composição ou em construção. Do latim: praepositio (cf

Neves, 2010).

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processo de gramaticalização contribui para o entendimento dos (des)limites entre as palavras

de classe aberta (dotadas de sentido) versus palavras funcionais (vazias de sentido). Sobre

esse processo, esclarecem

A gramaticalização é, antes de mais nada, um processo que se dá ao longo

do tempo, através do qual um item lexical sofre alterações em sua

combinatória e em sua forma, até se transformar no limite, em um morfema,

como uma desinência verbal. As formas do futuro do indicativo do

português são um bom exemplo desse processo. Como na maioria das

línguas românicas, essas formas derivam da aplicação a um infinitivo do

verbo latino habere: amare habeo> amare aio > amarei (Ilari, et al, 2015, p.

171).

A partir desse processo, os autores apontam que existem palavras mais

gramaticalizadas do que outras; ou seja, essas palavras desempenham funções tipicamente

gramaticais em situações de uso efetivo da língua. No caso das proposições simples, por

exemplo, os autores as classificam em mais ou menos gramaticalizadas, conforme o esquema

a seguir :

Figura 1: Preposições mais e menos gramaticalizadas, de acordo com Ilari, at al (2008, 2015)

Segundo Castilho (2010) e Ilari et al (2008, 2015) as preposições mais

gramaticalizadas, além de possuírem valor semântico mais complexo, são encontradas com

mais facilidade em construções sintáticas do que as demais preposições. Os autores afirmam

Menos gramaticalizadas: contra, sem, até, entre,

sobre, sob

Mais gramaticalizadas:

por, com, a, em, de, para

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ainda que só elas podem sofrer o processo de amalgamação com outros elementos funcionais

como artigos, pronomes e advérbios para formar uma única palavra.

Apesar de serem bastante parecidas do ponto de vista de sua função sintática, como foi

apontado anteriormente, na análise linguística que visa compreender os processos de

construção de sentido é necessário um tratamento mais abrangente das preposições, que

considere suas funções nos enunciados, de forma mais especial nos enunciados telegráficos.

2.2 As conjunções26

A tradição gramatical descreve as conjunções também como palavras invariáveis,

utilizadas para relacionar palavras ou grupos de palavras dentro de um determinado período.

De acordo com Ilari (2015), essa tradição agrupa as conjunções sob um mesmo rótulo, sem

deixar claras as regularidades que elas compartilham. O autor aponta que as conjunções,

enquanto classe, são bastante heterogêneas e, por isso, é difícil formular uma definição

unitária.

Castilho (2010) aponta para a necessidade de se estudar as conjunções considerando-se

a tríade gramática, semântica e discurso. É possível avançar, segundo ele, no entendimento

sobre o funcionamento das conjunções como palavras que relacionam termos, palavras e/ou

períodos e aponta três possibilidades funcionais para as palavras que compõem a classe das

conjunções: (i) conjunção – quando se junta elementos em que o contexto é aditivo ou

semelhante; (ii) disjunção – quando se estabelece uma relação de alternativa e (iii)

contrajunção – quando os elementos se relacionam de forma antagônica (Castilho, 2010).

Essa classificação é interessante para pensar essas palavras nos enunciados telegráficos, como

será visto no Capítulo 5.

Castilho (2010) aponta ainda para uma possível subcategorização das conjunções, que

envolve os conectivos semânticos e os conectivos pragmáticos e retoma o trabalho de

Bazzanella (1986) para explicitar as diferenças entre esses conectivos, conforme se observa

no quadro a seguir.

26

Do grego Sýndesmos: que significa união, vínculo. Do latim: Coniunctio (cf Neves, 2010).

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Conectivos pragmáticos Exemplo Conectivos Semânticos Exemplo

Expressam relações entre atos

de fala e por isso figuram no

início da sentença, seguidos de

pausa, assumindo um contorno

entoacional

Mas, fique quieto!

Expressam relações entre fatos

debotados, não figuram no

início de sentença, não são

seguidos de pausa, nem tem

um contorno entonacional

específico.

Tínhamos o

evangelho, mas

ninguém o lia.

Ligam atos linguísticos

diversos

Então, nos vemos. Ligam núcleos proposicionais

no interior de um mesmo ato

linguístico.

A certa altura não vêm

mais, então voltamos

para dentro.

Não são expressos no discurso

indireto, ou são expressos por

outros meios lexicais.

Portanto, escolhi

falar sobre a pax

romana.

Permanecem invariáveis no

discurso indireto.

E portanto do período

de Augusto

Aparentemente, não podem ser

modificados por advérbios.

***

Podem ser modificados por

advérbios e por expressões

modais

***

Não são recuperados pelo

contexto. *** São recuperáveis pelo

contexto. ***

Quadro 2: Conectivos pragmáticos e semânticos segundo Bazzanella (Castilho, 2010, p. 340).

Bazzanella (1986 apud Castilho, 2010) propõe, ainda, uma outra subcategorização

para a classe das conjunções, dos conectivos metalinguísticos. Como exemplo, o autor dá o

seguinte enunciado: [Como te] falava sobre isso ontem.

Castilho (2010) afirma que qualquer palavra precisa ter algum valor fórico para que

desempenhe a função de conjunção. Ou seja, precisa retomar o que já foi dito e/ou apontar o

que segue no restante do enunciado; um valor dêitico que localize as proposições no tempo do

discurso que está sendo produzido. Considerando a língua como multissistêmica, o autor

afirma que é preciso considerar as conjunções a partir de mais de um sistema, o que

caracteriza um polifuncionalismo, característico das conjunções como qualquer outra classe

de palavras (Castilho 2010).

Para exemplificar a complexidade que as conjunções podem ter no uso efetivo da

língua, Castilho (2010) faz uma análise dos substantivos tipo e de repente que, a depender do

contexto, podem assumir função conjuncional. O autor dá os seguintes exemplos:

“Não sei mais como lidar com ela... já enjoei... tipo não tenho mais saco para essa amolação toda.”

“Vamos resolver logo de uma vez, pô, de repente cai uma chuvarada e a gente fica no prejuízo.”

Segundo o autor, tanto tipo quanto de repente estão em curso de gramaticalização

enquanto conjunções. As palavras que são a princípio substantivos estão estabelecendo

relações semântico-referenciais entre termos das orações complexas.

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56

2.3 Os artigos27

Na tradição gramatical, os artigos são mantidos em uma classe específica e

subcategorizados em definidos (a, as, o, os) e indefinidos (um, uma, uns, umas). Castilho

(2010) afirma que, do ponto de vista sintático, a presença ou ausência do artigo é indiferente

na maiorias dos sintagmas nominais. No entanto, esclarece que essa indiferença aponta para o

fato, nestes casos, que semântica e sintaxe tomam caminhos autônomos. Isso se evidencia

porque ao passo que a presença/ausência do artigo é irrelevante para a estrutura, a sua

ausência modifica drasticamente o sentido e, consequentemente, a interpretação das

expressões nominais. Segundo o autor, a ausência do artigo pode afetar questões semântico-

referenciais, como a particularização dos termos. O artigo pode imprimir diversos sentidos

aos sintagmas que ele precede, dando a entender que: (i) o substantivo é identificável ou não e

(ii) que o substantivo tem uma descrição (in)definida e pode desempenhar papéis controversos

em relação às definições tradicionais. Em alguns casos, segundo Castilho (2010), um artigo

que é considerado indefinido, por exemplo, também pode estabelecer uma relação de

particularização e definição. Para evidenciar essa complexidade discursiva, o autor dá o

seguinte exemplo:

- Como é a estrada para Santa Catarina?

- A estrada é:: uma estrada estreita... né... tem muito trânsito de caminhão.

Castilho afirma que a seleção dos artigos, tanto definido quanto indefinido, é

perpassada pela interação discursiva, o que permite, por exemplo, que ao responder uma

pergunta seja possível imprimir um sentido específico a um substantivo precedido por um

artigo categorizado como indefinido. O autor afirma, ainda, que se as análises forem calcadas

apenas em níveis sintáticos ou semânticos essa riqueza plurifuncional pode passar

desapercebida. Por isso, o trabalho analítico não pode desprezar que a língua se realiza a partir

do resultado da integração de vários sistemas (Castilho, 2010; Castilho et al, 2015).

2.4 As flexões verbais

Segundo Ilari e Basso (2015), a história dos estudos referentes ao verbo é,

basicamente, voltada para a explicação de suas flexões. A atual resposta que temos para essa

27 Do grego Árthon que significa articulação. Do latim Articulus: articulação (cf Neves, 2010).

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questão, segundo os autores, se reflete na cristalização das categorizações dos morfemas que

se referem à pessoa, tempo, modo e voz. Neves (2005, 2012) aponta que o estudo dessas

categorias, agrupadas sob o rótulo de flexão, foi feito a partir de interesses filosóficos, ao

longo de toda a história do estudo gramatical. A esse respeito, Neves (2012) afirma

Quando examina as indicações de gênero, número, caso, tempo, modo, voz e

pessoa, aí, então, é que a gramática se move entre os fatos que poderíamos

considerar mais especificamente gramaticais. Os filósofos naturalmente

notaram esses fatos e teorizaram sobre eles, vinculando-os, sempre, porém, a

um sistema filosófico. Notaram o geral, e apenas ocasionalmente, vendo

aquilo que era evidente no exercício da linguagem, e sem interesse

específico. Os gramáticos por sua vez, tinham de ter sua atenção despertada

em particular para esses fatos, porque neles especialmente o criticismo

encontrava as discrepâncias de uso em relação à linguagem dos poetas, e

ainda porque eles facilmente se poderiam organizar em uma codificação

empírica. Necessariamente essas indicações implicam entidades

morfológicas, ou, mais ainda, morfossintáticas, e, assim, elas são

considerações formais por excelência no exame linguístico. Sua

consideração leva forçosamente a uma caracterização e sistematização de

formas. Assim, foi esse exame que mais diretamente instituiu paradigmas, o

ponto básico da organização gramatical, nos moldes em que ela surgiu.

Como nos outros aspectos, porém, o que a gramática pôs em quadro

prático, concreto e manipulável se apoiou na pesquisa espontânea e

ocasional que estava disponível no material da filosofia (Neves, 2005, p.

133-134 apud Neves, 2012, p. 223).

Ilari e Basso (2015) destacam que a palavra “verbo” vem do latim verbum que

significa palavra. Esse termo em latim era utilizado para fazer referência à qualquer palavra

existente na língua independente de qualquer classificação morfossintática. Segundo os

autores, isso pode ser indício de uma concepção clássica de que o verbo é a “palavra por

excelência”. Sobre essa questão, os autores concluem: “essa convicção assenta,

provavelmente, no fato de que, nas línguas clássicas (no latim, mas também em grego), o

verbo contava com um paradigma de flexões vasto e bem definido” (Ilari & Basso, 2015, p.

65).

Sobre as unidades linguísticas que compõem todo o processo de flexão estabelecendo

o paradigma verbal, os autores afirmam que essas unidades (as desinências) são consideradas

como elementos de nível inferior à palavra. Isso justificaria a concepção sintática de

indivisibilidade dessas unidades.

O verbo quando está conjugado, além de portar um sentido que está expresso em seu

radical, transmite informações que são incorporadas a ele por meio das desinências. Ilari e

Basso (2015) chamam a atenção para o fato de que essas informações só podem ser

transmitidas e compreendidas se considerarmos os verbos em atos de enunciação.

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Segundo os autores, as categorias de pessoa, tempo, voz e aspecto vinculam

características dêiticas. Os autores apontam que essas informações estão sempre relacionadas

ao “aqui e agora” de alguma enunciação que está em curso. Essas características estão

sintetizadas no quadro a seguir.

Categoria Informações (dêiticas e discursivas) vinculadas Exemplos

Pessoa - Identifica os participantes referidos na sentença

com base nos papeis assumidos nos enunciados.

João viajou para casa dos pais

Tempo - Localiza os estados de coisas como simultâneos,

anteriores ou posteriores ao momento da fala.

Mãe, já tive caxumba?

Aspecto

- indica a opção/perspectiva do falante em descrever

o estado de coisa.

Quando cheguei em casa os funcionários

da prefeitura varriam a rua.

ou

Quando eu cheguei em casa os

funcionários da prefeitura varreram a rua.

Voz

- Coloca na posição de sujeito ora quem pratica ora

quem sofre a ação.

Pedro fez o bolo.

ou

O bolo foi feito por Pedro.

Quadro 3: Aspectos pragmático-discursivos das flexões verbais

A partir do que foi discutido, podemos concluir que o verbo conjugado porta uma

complexidade que extrapola e, muito, os limites dos processos morfossintáticos. Esse

processo demanda uma categorização, seleção e combinação de unidades linguísticas que só

vai se tornar coerente e funcional se estiver sendo motivado por questões intersubjetivas,

semânticas e, principalmente, pragmáticas. Essa complexidade nos ajuda a compreender as

dificuldades que têm os sujeitos afásicos para selecionar e combinar essas unidades flexionais

ao produzirem seus enunciados.

3. O Paradigma Funcional e a Neurolinguística enunciativo-discursiva: pontos de

encontro

Nos parece frutífera a articulação dos pressupostos da Gramática Funcional, descrita

anteriormente neste capítulo, com aqueles da Neurolinguística enunciativo-discursiva,

principalmente tendo em vista que se pretende compreender as dificuldades linguístico-

cognitivas de sujeitos com afasias, sobretudo as não-fluentes, considerando-se que os

enunciados, muitas vezes, são estruturalmente incompletos. A significação é constituída por

elementos contextuais e por recursos verbais ou não-verbais – colaborativamente, pelos

parceiros da comunicação verbal (cf. Bakhtin).

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Pelo fato de colocar a pragmática como uma questão central nas análises das

estruturas, a gramática funcional traz a possibilidade de tirar o foco do déficit e abre a

possibilidade para entender melhor os processos subjacentes à produção dos enunciados.

A concepção de linguagem como indeterminada, não transparente (Coudry, 1988

[1986]; Franchi, 1977) é um dos pontos em comum entre a Neurolinguística enunciativo-

discursiva e a Gramática Funcional. Retomando as implicações dessa perspectiva, Coudry

reafirma, a partir dos estudos de Franchi (1977), que “nenhum enunciado tem em si condições

necessárias e suficientes para permitir uma interpretação unívoca.” Afirma que isto significa,

em linhas gerais, que “a língua dispõe de múltiplos recursos expressivos que, associados a

fatores como contexto, a situação, a relação entre os interlocutores, as leis conversacionais,

etc., fornecerão condições de determinação de um dado enunciado” (Coudry, 1988. p. 65).

Ambas as teorias se preocupam com o modo como os sujeitos se comunicam eficientemente

em uma determinada língua e a despeito de suas dificuldades.

Acreditamos que a Gramática Funcional seja uma perspectiva teórica coerente para a

análise dos processos linguístico-cognitivos que estão, de alguma forma, impactados pela

patologia. A depender tanto do tipo de afasia, quanto das dificuldades específicas dos sujeitos,

a construção da significação só é possível a partir de elementos que extrapolam o nível da

oração – que é a instância máxima de análise nas perspectivas formais.

No campo dos estudos afasiológicos, Nespoulous também já alertava para a

necessidade de considerar questões pragmáticas na teorização dos fenômenos afasiológicos,

como o autor expõe na seguinte passagem:

A Pragmática mostra a emergência de toda a riqueza e complexidade da

linguagem. Nós achamos que é chegada a hora de colocar a Gramática em

seu devido lugar sem diminuir sua importância; em outras palavras, sem

colocar a Gramática no centro do quadro. O principal enfoque e a principal

tarefa são o de recolocar a Gramática no ato de fala (Nespolous, 1997, p. 1).

[...] Sem a menor dúvida, as implicações de tal abertura serão enormes, tanto

o linguista que deverá aprender a administrar o “ruído” que a pragmática

colocará em suas caracterizações formais, como para o psicolinguista que

deverá aprender a tratar um novo tipo de variabilidade no seio dos

paradigmas experimentais. Também o será para o neuropsicolinguista, que

deverá deixar de considerar que a zona da linguagem encontra-se

exclusivamente no hemisfério esquerdo, na medida em que este não maneja

mais do que a Gramática. Resta a nós contribuir para a continuação do

caminho parcialmente explorado que mostram a diversificação de avenidas

da investigação que constituirão a afasiologia do século XXI (Nespolous,

1997, p. 4-5).

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4. A contribuição de conceitos bakhtinianos para a abordagem dos enunciados de estilo

telegráfico

Novaes-Pinto, em 1999, foi quem primeiramente propôs analisar os dados de afasia a

partir dos conceitos desenvolvidos por Bakhtin e, desde então, tem proposto uma

aproximação das concepções teórico-metodológicas da neurolinguística com o pensamento

bakhtiniano. Bakhtin resgata a relevância do caráter comunicativo da linguagem e dilui as

dicotomias instauradas nos paradigmas formais da linguagem. Segundo Camacho (1994), as

reflexões desenvolvidas pelo autor fazem com que os linguistas sintam a necessidade de

estabelecer uma relação estreita entre as concepções de língua e linguagem e o seu uso

efetivo, em um determinado contexto social. Essas concepções podem ser identificadas no

trecho a seguir, quando Bakhtin afirma que:

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão

sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o

caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias

esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma

língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e

escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra

esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições especificas e

as finalidades de cada uma das esferas, não só por seu conteúdo (temático) e

por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua –

recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo,

por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático,

estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do

enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de

comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro,

individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos

relativamente estáveis de enunciados, sendo isso o que denominamos

gêneros do discurso (Bakhtin 2000[1925-1953]28

, p. 279).

Podemos, assim, afirmar que o pensamento de Bakhtin se aproxima bastante das

concepções teórico-metodológicas que estamos mobilizando nesta dissertação.

4.1. De fala telegráfica para enunciado de estilo telegráfico: uma movimentação

(semiológica) necessária

A questão da semiologia utilizada para designar o fenômeno que esta pesquisa discute

não pode ser compreendida como marginal. A necessidade de uma reflexão crítica sobre o

termo fala telegráfica já parecia evidente no início deste trabalho e que já estava indicada no

seu título, quando nos referimos à chamada fala telegráfica.

28

Segundo nota de tradução – Bakhtin teria escrito esse texto em (1952-1953).

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De acordo com o que vimos no capítulo 1, a fala telegráfica pode ser vista como o

principal sinal do agramatismo e, ainda, a depender da teoria que a descreve, ser concebida

como o próprio agramatismo, enquanto síndrome. Foi apontado, também, que diversos

autores têm criticado o uso desse termo como metáfora da produção de um telegrama, pelo

fato de não identificarem semelhanças com este gênero e a produção linguística de sujeitos

afásicos, o que levou alguns autores a utilizarem termos como fala elíptica (Tesak &

Dittmann, 1991 Niemi et al. 1992; Menn & Obler, 1990a; Tesak & Niemi, 1997; Kolk 2001),

fala reduzida (Kleppa, 2008) ou fala de estilo telegráfico (Novaes-Pinto, 1999).

O termo “estilo”, nesse contexto, nos parece relevante para indicar que, apesar de não

haver uma estrutura típica como as que eram utilizadas nos telegramas, os enunciados dos

sujeitos afásicos prescindem de algumas estruturas – predominantemente as palavras

funcionais – em sua composição. A nosso ver, ao conceber tais enunciados com “estilo

telegráfico” estamos tirando o foco da análise dos déficits e garantindo que sejam analisados

em relação ao que está presente e que de fato significa.

A seguir, apresentaremos alguns dos conceitos bakhtinianos que são mais produtivos

para nossa reflexão, sobretudo porque os concebemos como categorias de análise dos

enunciados no campo das afasias e estarão implicados nas análises dos dados, no Capítulo 5.

4.1.1. O conceito de dialogia

Segundo Novaes-Pinto (1999), uma das categorias mais básicas do pensamento

bakhtiniano é o da dialogia, o elemento chave para que Bakhtin estudasse “o discurso interior,

a comunicação diária, os vários gêneros do discurso, a literatura e outras manifestações

culturais” (Novaes-Pinto, 1999, p. 166).

Segundo as formulações de Bakhtin, é no dialogo que o processo de alternância entre

sujeitos no momento da interlocução se torna mais evidente. Assim, todo enunciado é

dialógico.

4.1.2. Enunciado: a unidade da comunicação verbal

Em coerência com as teorias mobilizadas nesta dissertação e tendo em vista que o

enunciado é a unidade real da comunicação verbal, de acordo com Bakhtin, consideramos

mais adequado nos referirmos à produção dos sujeitos afásicos como enunciado de estilo

telegráfico, o que incorpora também a semiologia utilizada por Novaes-Pinto (1999).

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Segundo Novaes-Pinto (1999), o conceito de enunciado é um dos mais importantes

para avançar na descrição e na teorização dos fenômenos linguísticos impactados pelas

afasias. Isso se deve ao fato desse conceito permitir analisar elementos que extrapolam as

estruturas da língua na produção de significados pelos sujeitos. Apresentamos, a seguir, o

conceito de “enunciado” articulado por Bakhtin:

A indeterminação e a confusão terminológicas acerca de um ponto

metodológico tão central no pensamento linguístico resultam de um

menosprezo total pelo o que é a unidade real da comunicação verbal: o

enunciado. A fala só existe na realidade, na forma concreta dos enunciados

de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre

à forma do enunciado que a um sujeito falante e não pode existir fora dessa

forma. As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma

unidade da comunicação verbal são determinadas pela alternância dos

sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores. Todo enunciado,

desde uma breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado

científico - comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de

seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os

enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma

compreensão responsiva ativa do outro). O enunciado não é uma

unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada

pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da

palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi” percebido pelo ouvinte,

como sinal de que o locutor terminou (Bakhtin, [1952]1997, p. 293 apud

Novaes-Pinto, 1999, p. 161 com grifos da autora)

Segundo Novaes-Pinto (1999) “esse conceito pode ser aplicado aos dados dos

sujeitos afásicos, mesmo àqueles com expressão bastante reduzida e que os modelos formais

não dão conta de explicar, já que muitos não podem ser subdivididos em enunciados ou em

níveis convencionais da língua” (Novaes-Pinto, 1999, p. 161). A esse respeito, a autora afirma

que até os jargões, as estereotipias, as expressões fisionômicas e os gestos devem ser

considerados enunciados. Considerar essas produções, segundo a autora, implica em

reconhecer o papel (subjetivo) dos sujeitos afásicos no processo de interlocução.

4.1.3. O conceito de acabamento

O acabamento é o que determina a fronteira do enunciado; o que determina a

alternância dos sujeitos falantes (Bakhtin, 1997) nos processos dialógicos. Nas palavras do

autor:

O primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do

enunciado é a possibilidade de responder – mais exatamente, de

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adotar uma atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar

uma ordem) (...). É necessário o acabamento para tornar possível

uma reação ao enunciado. Não basta que o enunciado seja

inteligível no nível da língua. Uma oração totalmente inteligível e

acabada se for uma oração e não um enunciado não poderá suscitar

uma reação de resposta: é inteligível, está certo, mas ainda não é

um todo. Este indício da totalidade de um enunciado não se presta

a uma definição de ordem gramatical ou pertencente a uma

entidade do sentido (Bakhtin, 1995, p. 299).

O autor diz que “cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um

acabamento específico, que expressa a posição do locutor sendo possível responder, sendo

possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva” (Bakhtin, 1995, p. 299).

Uma das questões mais relevantes para Bakhtin é a da impossibilidade (ou maior dificuldade)

para se chegar ao tratamento exaustivo do tema, um dos fatores apontados por Bakhtin como

característica do acabamento. Isso é ainda mais difícil quando se trata de enunciados no

contexto da afasia.

4.1.4. O conceito de querer-dizer

Nas afasias, mesmo que os sujeitos não alcancem o todo do enunciado, tentam se

aproximar de seu querer-dizer. Bakhtin ressalta que os interlocutores, por conhecerem tanto a

situação quanto os enunciados que vieram antes de uma enunciação específica, são capazes de

captar facilmente o querer-dizer do locutor a partir das primeiras palavras de um determinado

enunciado em construção. Por isso, os conceitos de enunciado, acabamento e querer-dizer

estão em estreita relação. O autor afirma que “percebemos o quê o locutor quer dizer e é em

comparação a esse intuito comunicativo que mediremos o acabamento do enunciado”

(Bakhtin, [1952]1997, p. 301 apud Novaes-Pinto, 1999, p. 163).

Novaes-Pinto (1999) chama a atenção para o fato de que mesmo os sujeitos afásicos

que apresentam um grau de severidade considerado “leve” ou “moderado” relatam que têm

dificuldades para expressar tudo o que pretendem dizer e a partir disso considera que o

conceito de querer-dizer “parece ser bastante interessante para a questão da avaliação do grau

de severidade das afasias, que tradicionalmente só toma como parâmetros unidades de uma

gramática normativa de língua” (Novaes-Pinto, 1999, p. 165).

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Capítulo 3

A relação entre fala interna

e a produção do enunciado de estilo telegráfico

Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter

uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não

consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é

o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar

e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que

instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço

humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto

com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só

me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem.

Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não

conseguiu.

(Clarice Lispector, 1964 p.119 )

1. A contribuição da abordagem sócio-histórico-cultural para o estudo do enunciado

telegráfico

Neste capítulo, abordaremos questões relativas à fundamentação sócio-histórico-

cultural, com destaque para os trabalhos de Luria, Vygotsky e Leontiev, sobretudo aquelas

que dizem respeito à relação entre pensamento e linguagem, com ênfase na fala interna,

intimamente relacionada ao pensamento discursivo, por um lado, e à linguagem externa,

social e compartilhada, por outro.

Após apresentar e discutir alguns aspectos dos modelos formulados por esses autores,

relativos ao papel e à natureza da fala interna, traremos as reflexões de Akhutina (2014a

[1975], 2014b[2003]) mais especificamente relacionada à produção de enunciados de estilo

telegráfico por sujeitos afásicos, avaliando sua hipótese explicativa para as dificuldades com

as palavras funcionais no campo das afasias.

1.1. Do pensamento abstrato à produção do enunciado: o papel central da fala interna

Na tentativa de responder porque o homem opera de forma racional, a psicologia

quase se bifurcou em duas disciplinas independentes. Segundo Luria, a psicologia descritiva

ou psicologia espiritual reconhecia as formas superiores complexas do homem, mas se

negava a dar uma explicação científica e se limitava a descrevê-las. Essa corrente de

pensamento atribuía às faculdades espirituais as características da consciência humana. Já a

psicologia explicativa ou psicologia científica natural tinha como objetivo explicar os

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processos psíquicos de acordo com os métodos valorizados e validados pelas ciências. No

entanto, a explicação se limitava aos processos elementares, fisiológicos, sem elucidar as

formas mais complexas da atividade psíquica do homem. Para Luria (1986), era necessário

descrever as operações superiores complexas não como manifestação de uma vida espiritual,

mas com base em análises científicas. O autor atribui a solução desta questão à Vygotsky.

Em suas palavras:

A principal tese de Vygotsky soa paradoxal: Para explicar as formas mais

complexas da vida consciente do homem é imprescindível sair dos limites do

organismo, buscar as origens desta vida consciente e do comportamento

categorial, não nas profundidades do cérebro ou da alma, mas sim nas

condições externas da vida e, em primeiro lugar, da vida social, nas formas

histórico-sociais da existência do homem (Luria, 1986, p. 20-21).

O surgimento da linguagem foi, segundo Luria (1986), um fator decisivo para o

desenvolvimento da atividade consciente. Devido às relações sociais e à divisão do trabalho, o

homem sentiu a extrema necessidade de uma comunicação efetiva. A princípio, a linguagem

estava relacionada à prática imediata e tinha apenas o caráter simpráxico. Dizendo de outra

forma, o uso e significado dos signos dependia diretamente das ações realizadas

concomitantemente, dos gestos e da situação prática nas quais o homem estava envolvido.

Com o desenvolvimento das relações sociais em consequência do trabalho coletivo, o

caráter puramente prático da linguagem deu lugar a um sistema de códigos muito sofisticado

– um sistema sinsemântico. A linguagem passou, então, a veicular qualquer tipo de

informação, mesmo que não estivesse relacionada diretamente a uma demanda imediata:

Como resultado da história social, a linguagem transformou-se em

instrumento decisivo do conhecimento humano, graças ao qual o homem

pode superar limites da experiência sensorial, individualizar as

características dos fenômenos, formular determinadas generalizações ou

categorias. Pode-se dizer que, sem o trabalho e a linguagem no homem não

se teria formado o pensamento abstrato categorial [...] as origens do

pensamento abstrato e do comportamento categorial que provocam o salto

do sensorial ao racional devem ser buscadas não dentro da consciência nem

dentro do cérebro, mas sim fora, nas formas sociais da existência histórica

do homem. Somente desta forma pode-se explicar a origem das formas

complexas, especificamente humanas, do comportamento consciente (Luria,

1986, p. 22 grifo nosso).

Luria (1986) afirma que a consciência do homem sustenta sua atividade racional e isso

permite que ele adentre e opere em um sistema complexo e abstrato que só terá significação

em um meio histórico e social. Nesse contexto, a linguagem é a responsável por estabelecer a

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mediação entre o sujeito, o outro e a cultura. Em outras palavras, a linguagem, por meio do

seu sofisticado sistema de códigos, é a base do pensamento abstrato do homem. De modo que,

pelo uso social e arbitrário do signo linguístico, o homem se tornou filogeneticamente

diferenciado das outras espécies.

Luria (1986), também fundamentando-se nas reflexões de Vygotsky, afirma que a

estruturação psicológica da linguagem e o seu papel na comunicação, na formação e

desenvolvimento da consciência é o problema central dos estudos da psicologia. Para o autor,

é imprescindível compreender a maneira como o homem reflete sobre o mundo em que vive.

O ser humano não se limita à impressão imediata de suas experiências sensíveis e pode

penetrar com mais profundidade na essência das coisas, abstraindo sobre um objeto ou fato, a

partir de características isoladas; estabelece enlaces e relações profundas e é capaz de

categorizar. Dentre outras operações complexas, a linguagem é, segundo o autor, a função

mais importante a ser estudada pela ciência psicológica.

Segundo Vygostsky (2009 [1934]), existe uma relação não estática entre pensamento e

linguagem, justamente pelo fato de ser mediada pela interação do homem com a história e a

cultura:

O principal fato com que deparamos na análise genética do pensamento e da

linguagem é o de que a relação entre esses processos não é uma grandeza

constante, imutável, ao longo de todo o desenvolvimento, mas uma grandeza

variável. A relação entre pensamento e linguagem modifica-se no processo

de desenvolvimento tanto no sentido quantitativo quanto no qualitativo.

Noutros termos, o desenvolvimento da linguagem e do pensamento realiza-

se de forma não paralela e desigual. As curvas desse desenvolvimento

convergem e divergem constantemente, cruzam-se, nivelam-se em

determinados períodos e seguem paralelamente, chegam a confluir em

algumas de suas partes para depois tornar a bifurcar-se. Isto é correto tantos

em termos de filogênese quanto de ontogênese (Vygotsky, [1934] 2009, p.

111).

Em um determinado ponto, portanto, ambas as linhas se cruzam; o pensamento se

torna verbal e a fala se torna intelectual (Vygotsky, 2009[1934], p. 133 grifos do autor). A

relação entre linguagem e pensamento não é considerada a partir de uma visão antagônica,

mas concebida como um processo em que um exerce influência sobre o outro. Para o autor, a

fala interna é um conceito fundamental para compreender essa relação, mas só pode ser

abordada metodologicamente a partir da produção de fala em processos dialógicos. O autor

defende que é o desenvolvimento e o desaparecimento da chamada fala egocêntrica que dão

pistas para a compreensão da natureza e funcionamento da linguagem interna – conceito que,

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67

por ora, pode ser sintetizado como “um esquema verbal abreviado que precede o ato de fala e

que fornece a base para sua subsequente expansão”.

Baseado em Vygotsky, Luria (1986) afirma que todo enunciado verbal tem início a

partir de uma motivação – que, nos termos bakhtinianos nos remeteria à noção de querer-

dizer29

. Luria enfatiza que um sujeito só produz algum enunciado quando sente a necessidade

de dizer algo para o outro, momento mais elementar para a formulação de qualquer

enunciado.

De acordo com Luria, o segundo estágio na produção de um enunciado está

diretamente relacionado ao primeiro – à motivação propriamente dita – e pode ser chamado

de “pensamento do enunciado”. O autor enfatiza que sempre existe um pensamento ou

sentido que o falante deseja comunicar ao seu interlocutor e isso precisa passar por uma

corporificação linguística para ser transformado em enunciado. Usa uma metáfora bastante

ilustrativa quando compara esse processo aos ossos que precisam ser revestidos de carne para

se tornarem corpo/enunciado, como vemos na seguinte citação:

An utterance always begins with a very vague thought, which internally is

marked out in only the most general, schematic way. It is not present in my

consciousness in anything that could be called a full-fledged, expanded

form: it is no more than the intention, the first germ, of a thought, a general

schema representing what I want to say; this schema, these bare bones, as it

were, of an utterance must still be given flesh by dressing them in

content in an expanded form (Luria, 1947 apud Akhutina, 2014, p. 52,

grifos nossos).

Luria afirma que a fala interna participa de forma direta na transformação do

pensamento para a fala social. Na visão do autor, essa fala é imprescindível tanto pelo fato de

ser a responsável pelos elementos linguísticos na composição de um pensamento – vestir um

pensamento de linguagem–, quanto por ser a base para a recodificação desse pensamento em

enunciado verbal – que seria o terceiro estágio postulado por Luria no processo de

transformar pensamento em linguagem verbal social. É nesse estágio que o falante transforma

os sentidos subjetivos (aqueles que só fazem sentido para si mesmo) em significação externa,

intersubjetiva, de modo a ter significado para o outro. Luria se baseou nos postulados de

Vygotsky para afirmar que

29

Vygotsky propõe que o significado de um enunciado tem uma função interacional e inclui aparatos teóricos

como motivação, intenção e sentido. O autor distingue sentido [znachenie] de significado [smysl] o que, segundo

Wertsch faz lembrar as ideias de Frege sobre esta mesma distinção.

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Studies of speech development by psychologists have shown that the

transition from a thought to expanded speech must be mediated by inner

speech. However, since inner speech has an abbreviated and embryonic

structure and is purely predicative in its function, it contains in latent form

the germs of a subsequent dynamic schema of the sentence. The transition

from inner speech to external speech amounts to an expansion, an unfolding

of this preparatory schema, its transformation into the external, expanded

structure of a sentence. This grammatical structure of active speech30

, which

is based on those general dynamic schemata linguistics refer to a “feeling of

a language”, is a very stable formation (Luria, 1947, p. 85-86 apud Akhutina,

2003 [1975], p. 54).

Para sintetizar a hipótese de Luria, inserimos abaixo um esquema que ilustra os três

estágios propostos pelo autor:

É importante ressaltar que, de acordo com Akhutina (2003), o conceito luriano de

“esquema dinâmico de uma sentença” influencia sua interpretação sobre o agramatismo como

uma forma de “estilo telegráfico”. O autor se refere a esse conceito em vários de seus

trabalhos e o redefine como “esquema de sentença (Luria, 1962; 1963). Já em trabalhos mais

recentes, desenvolvidos com Tsvetkova, Luria propõe o termo “esquema linear de uma

sentença” (Luria and Tsvetkova, 1966, 1967, 1968; Tsvetkova, 1968, 1969), compreendendo

a fala interna como um processo multisistêmico, composto por vários níveis integrados31

. De

30

Akhutina chama atenção sobre o fato de que Luria usa as expressões “grammatical structure of active speech”

e “dynamic schema of a sentence” como sinônimas. 31

Segundo Akhutina, Luria retomou de Tsvetkova conceitos como os de intenção, esquema interno de uma

sentença e expansão de um enunciado verbal. Entretanto, diz a pesquisadora que, nem ele e nem seus

Motivação

Pensamento Transformação em fala

interna

Enunciado Verbal

Fala externa

Esquema 1: Modelo de Luria (1947) para o processo de construção de um enunciado verbal.

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acordo com Akhutina (2003), na proposta de Luria e Tsvetkova, os vários estágios da fala

interna incorporam todos os aspectos estruturais internos e também todas as funções da fala.

Vygotsky, entretanto, já havia criticado essa noção mais abrangente de fala interna proposta

por Luria e Tsvetkova, também oposta à visão de Goldstein, que considerava como fala

interna tudo o que precede o ato motor, ou seja, todos os aspectos internos da fala (Vygotsky,

1956, p. 339).

Segundo Akhutina (2003), o projeto teórico de Vygotsky tinha como central a relação

entre pensamento e linguagem, em oposição tanto à ideia de que pensamento e linguagem são

uma mesma coisa, idênticos, ou como dois processos independentes. Sobre a fala interna, o

autor a considera um aspecto particular do pensamento verbal que carrega todas as relações

dinâmicas entre pensamento e palavra. Compreender essa relação é extremamente importante,

pois, no modelo de Vygotsky, a produção de um enunciado é o resultado de uma reelaboração

dos diversos sentidos que as palavras podem ter em uma sintaxe convencional e partilhada

entre os falantes de uma mesma língua. Ou seja, na fala interna a palavra adquire nuances que

se fundem de forma gradual até se transformarem em um novo significado. Esses significados

são sempre individuais, compreensíveis apenas no discurso interior. Os enunciados verbais

são, então, o resultado de um processo em que o sujeito transforma o discurso interior em

discurso inteligível para o outro. Nas palavras do autor:

Assim, chegamos à conclusão de que o pensamento não coincide diretamente com

sua expressão verbalizada. O pensamento não consiste em unidades isoladas como a

linguagem. Se desejo comunicar o pensamento de que hoje vi um menino descalço,

de camisa azul, correndo rua abaixo, não vejo cada aspecto isoladamente [...] vejo

tudo em um só ato de pensamento, mas o exprimo em palavras separadas [...] um

pensamento pode ser comparado a uma nuvem parada, que descarrega uma

chuva de palavras. É por isso que o processo de transição do pensamento para a

linguagem é um processo sumamente complexo de decomposição do pensamento e

sua recriação em palavras [...] O pensamento não se exprime em palavras, mas

nela se realiza (Vygotsky, 2009[1934], p. 478-479 grifo nosso).

É importante destacar que nessa relação, fala interna e fala externa não estão em

oposição, mas são características constituintes de um processo que vai do pensamento ao

enunciado verbal, externalizado para o outro, culminando em uma sintaxe do enunciado,

enquanto unidade da comunicação verbal (cf. Bakhtin, 1997). Akhutina retoma de Vygotsky

um trecho central para esclarecer acerca do processo:

antecessores explicaram o que esses termos significavam e tampouco forneciam uma descrição geral do processo

de construção de um enunciado.

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A relação entre o pensamento e a palavra é, antes de tudo, não uma coisa, mas um

processo, é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao pensamento. À

luz da análise psicológica, essa relação é vista como um processo em

desenvolvimento, que passa por uma série de fases e estágios, sofrendo todas as

mudanças que, por todos os seus traços essenciais, podem ser suscitadas pelo

desenvolvimento no verdadeiro sentido desta palavra. Naturalmente não se trata de

um desenvolvimento etário e sim funcional, mas o movimento do próprio processo

de pensamento da ideia à palavra é um desenvolvimento. O pensamento não se

exprime na palavra, mas nela se realiza. (Vygotsky, 2001 [1934], p. 409).

Assim, a transição da fala interna para a fala externa não é apenas vocalização da fala

interna, mas sua reestruturação, a transformação de uma sintaxe especial, das estruturas

semânticas e fonéticas da fala interna, para formas estruturais próprias da fala externa e social.

Assim, como já foi apontado anteriormente, a fala interna não é composta por significados

linguísticos convencionais, pois estão no plano da subjetividade, do sentido. Esta formulação

é, como pretende-se defender mais adiante, fundamental para a compreensão das dificuldades

dos afásico que poderiam resultar na produção de fala telegráfica, dentre outros fenômenos

também presentes.

Vygotsky, de acordo com Akhtutina (1975), fez uma distinção de cinco diferentes

aspectos funcionais que compõem o processo único de transição do pensamento para o

enunciado verbal: (i) motivação (ii) pensamento (iii) fala interna (iv) plano semântico e,

finalmente, (v) fala externa ou enunciado. Como vemos no modelo, há um plano externo e

um plano interno da fala, muito próximos pela sua natureza semântica, razão pela qual

Vygotsky denomina de “plano semântico”. O autor considera que toda a sentença contém um

sujeito e um predicado psicológico. No nível do pensamento, o sujeito coloca a ênfase em

uma dessas palavras, mais relacionadas ainda ao pensamento. Seria, para usar uma metáfora

de Vygotsky já referida anteriormente neste capítulo, a “nuvem parada, que descarrega uma

chuva de palavras”. Sobre esse modelo, vejamos o esquema a seguir:

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O plano semântico, que tem uma sintaxe especial e que depende do pensamento, é

apenas o primeiro nível mais central da fala, antes mesmo da formulação da chamada “fala

interna” que, para o autor, é “o aspecto particular e independente do pensamento verbal no

qual todas as relações dinâmicas entre pensamento e palavras estão concentradas” (Akhutina,

2003, p. 59-60). A fala interna é a fala para si mesmo. Ela emerge da fala externa, uma vez

que é formulada por palavras e por seus significados sociais e compartilhados. Akhutina

lembra que Vygotsky postulou o conceito de fala interna a partir de seus estudos e

experimentos com crianças ao longo do desenvolvimento, mais especificamente sobre a fala

egocêntrica. Para Akhutina (2003), o método utilizado por Vygotsky possibilitou que o autor

depreendesse as principais características da fala interna, que reproduzimos a seguir.

1. A fala interna é de natureza puramente predicativa. O sujeito psicológico está sempre

presente em nosso pensamento; é conhecido implicitamente.

Esquema 2: Modelo de Vygotsky (1934) para o processo de produção de um enunciado

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2. O aspecto fonético é reduzido. Não precisamos, na fala interna, “pronunciar” a palavra

inteira. Relacionada à motivação, ao querer-dizer; sempre “sabemos a palavra que

queremos dizer”; a fala interna (para si mesmo) é quase “sem palavras”.

3. A fala interna tem sua própria estrutura semântica, com as seguintes propriedades

observadas por Vygotsky: a) o sentido predomina sobre o significado; b) há uma

aglutinação de unidades semânticas; há uma proeminência do sentido; é de natureza

idiomática.

Com relação à aglutinação, o autor explicita que se trata de um modo de expressar

conceitos complexos por meio de palavras complexas. Os sentidos de diferentes palavras “se

atravessam”, se influenciam, se modificam. Nas palavras do autor, os sentidos “deságuam uns

nos outros” (Vygotsky, 2001, p. 469). Uma única palavra, na fala interna, é saturada de

sentidos ou, novamente trazendo uma metáfora de Vygotsky, a palavra na fala interna é um

“coágulo de sentidos” (Vygotsky, 2001, p. 470). Trata-se de uma fala repleta de omissões e

elipses. Para concluir as questões colocadas por Vygotsky acerca do conceito de fala interna,

citamos uma passagem em que o autor sintetiza a natureza dessa fala:

Não concordamos com aqueles que consideram a linguagem interior como algo que

precede a exterior, como seu aspecto interior. Se a linguagem exterior é um

processo de transformação do pensamento em palavras, a materialização e a

objetivação do pensamento, então aqui observamos um processo de sentido inverso,

que parece caminhar de fora para dentro, um processo de evaporação da linguagem

no pensamento. Mas o discurso não desaparece de maneira nenhuma na sua forma

interior. A consciência não evapora nem se dilui no espírito puro. A despeito de

tudo, a linguagem interior é uma linguagem, isto é, um pensamento vinculado à

palavra. Mas se o pensamento se materializa em palavras na linguagem exterior, a

palavra morre na linguagem interior, gerando o pensamento. (...). A linguagem

interior é o momento dinâmico, instável, fluido, que se insinua entre os polos

extremos melhor enformados e estáveis do nosso estudo do pensamento verbal: entre

a palavra e o pensamento”. (Vygotsky, 2001 [1934], p. 474).

Esta discussão objetiva relacionar a fala interna e o enunciado de estilo telegráfico,

como já explicitamos. Até este momento, nos dedicamos a explicitar as características da fala

interna, tal como postuladas por Luria e Vygotsky, principais representantes da

neuropsicologia sócio-cultural32

. A discussão foi feita a partir de um trabalho de Akhutina

(2003)33

– baseada sobretudo em Vygotsky (1930), no qual considera o papel da fala nas

32

Além de Luria e Vygotsky, Akhutina ‘traz também o modelo proposto por Anan’ev (1946, 1960) que se

assemelha aos de Luria e Vygotsky, mas que se diferencia no aspecto de propor uma divisão funcional da fala

interna em três níveis. Embora interessante, a discussão feita pelo autor não contribui para esta pesquisa. 33

Akhutina é uma das pesquisadoras da escola luriana de neurolinguística e tem sido apontada como um nome

relevante nas neurociências atuais. Foi aluna de Luria e desenvolveu pesquisas também com Leontiev.

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interações sociais e no desenvolvimento do pensamento humano – e a partir de um dos

principais trabalhos de Vygotsky (2001 [1934]), da obra Linguagem e Pensamento, que

destaca questões relativas à linguagem interna. Segundo Wertsch (2003), Vygotsky ultrapassa

a análise centrada no conteúdo proposicional de um enunciado, concepção que, em geral,

advém dos modelos linguísticos que durante as últimas décadas se baseiam nos postulados da

gramática gerativa transformacional que ignorou fatores como uso da linguagem e suas

funções (Wertsch, 2003).

Passamos, agora, a apresentar questões trazidas por Akhutina, que aproximam os

processos de transição da fala interna para a fala externa e a produção de enunciados de estilo

telegráfico, no campo das afasias, mais especificamente, às afasias eferentes, com destaque

para o agramatismo.

Segundo Wertsch (2003), os escritos de Akhutina se revelam inovadores em relação ao

que tem sido produzido na neurolinguística e na psicolinguística para postular modelos de

funcionamento da linguagem.

1.2. O enunciado de estilo telegráfico: desenvolvendo uma hipótese explicativa

A partir de tudo o que foi exposto até este momento, um dos postulados de Vygotsky

relativos à relação entre linguagem e pensamento é que há duas sintaxes – uma do sentido,

ligada à fala interna, e outra da fala externa, ligada ao significado. Outro ponto importante é

que as estruturas das falas interna e externa não coincidem, uma vez que na primeira a palavra

é como um coágulo de sentidos compreensíveis apenas para o próprio sujeito e na segunda

precisa ser estruturada em significados que são sociais e compartilhados.

Leontiev, de acordo com Akhutina, apontou que os dados empíricos podem ser

explicados a partir do modelo de Vygotsky. O autor postula um estágio de organização pré-

gramatical em relação ao enunciado produzido (fala externa), que corresponderia à fala

interna, de Vygotsky. Leontiev vê o enunciado verbal como um ato de fala, que constitui uma

abordagem mais ampla de atividade, apresentando características como motivação, propósito,

em uma estrutura de três estágios (formulação de um plano, implementação do plano e

comparação do resultado com o plano), o que nos faz lembrar das funções do lobo frontal (ou

Bloco I), na teoria luriana sobre o cérebro, em uma organização hierárquica. Segundo o autor,

“the phenomenon often referred to as inner speech and preceding an external utterance

corresponds to the stage we call the plan (programming) of a speech act”. De acordo com

Akhutina, para Leontiev, este estágio – comparado ao de fala interna proposto por Vygotsky –

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é central em sua teoria para explicar a estrutura de um ato de fala. O esquema a seguir

sintetiza o modelo proposto pelo autor:

Assim como nos modelos de Luria e de Vygotsky, o primeiro estágio proposto por

Leontiev também é o de motivação, que por sua vez gera a intenção, conceitos que o autor

divide em dois componentes ou em dois estágios. No primeiro estágio (motivação), o sujeito

tem uma ideia abstrata, geral, do que quer comunicar, mas ainda não tem um plano de ação

que ele tem que colocar em prática para comunicar essa ideia ou pensamento; seu “querer-

dizer” (cf. Bakhtin). O próximo estágio é chamado de programa-interno. Relacionando com

Vygotsky, este estágio corresponde à síntese da ideia em uma palavra, saturada de sentido.

Neste estágio, a intenção é veiculada por um código de sentidos pessoais, embora a palavra

seja resultante de ações objetivas externas. O resultado dessas operações, para Leontiev,

também constitui um sistema de caráter predicativo, codificado na fala interna. Leontiev

Esquema 3: Modelo de Leontiev para a estrutura de um ato de fala

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acredita que os componentes essenciais do enunciado estejam já presentes nesse programa-

interno, que são: o sujeito, o objeto e o predicado, relacionados ao conteúdo e ao sentido,

ainda no nível de formulação individual. Este nível se compara, assim, à sintaxe psicológica

de Vygotsky (Akhutina, 2003).

Na formulação do enunciado verbal, segundo Leontiev (1969, apud Akhutina, 2003), a

programação interna não apenas expande o conteúdo semântico, mas também faz o oposto:

ele condensa um sistema de significados linguísticos objetivos em um esquema interno o que,

por sua vez, possibilita depois comparar a intenção com o programa-interno. Para o autor, isso

não se faz sem a participação da memória, ou seja, para que tudo ocorra adequadamente da

passagem do pensamento à linguagem externa, um programa deve ser preservado.

Com relação ao próximo estágio – desenvolvimento gramático-lexical, Leontiev

afirma que os mecanismos responsáveis pela produção de uma estrutura sintática, por um

lado, e o preenchimento lexical, por outro, são fundamentalmente diferentes e, de acordo com

Howes (apud Akhutina, 2003), são autônomos. Operam concomitantemente e resultam no

desenvolvimento léxico-gramatical do programa. Este estágio é seguido por outro

caracterizado como implementação motora.

Paralelamente aos modelos propostos por neuropsicólogos, Akhutina (2003) cita os

críticos de Chomsky que chamam a atenção para o fato de que sua teoria não dá conta de

explicar questões semânticas e que buscam considerá-las no interior de outros modelos que

propõem34

.

Segundo Akhutina, apesar de seguirem caminhos diversos, a psicologia e a linguística

chegaram a um ponto em comum – que a construção de um enunciado se dá em vários níveis,

cada um com seu próprio léxico e suas regras específicas para combiná-los. Assim, a

concepção de Vygotsky acerca de dois níveis de sintaxe (psicológica e a externa) está em

acordo com noções contemporâneas sobre a estrutura do processo de produção de fala.

Akhutina, seguindo principalmente os postulados de Vygotsky e de Leontiev, por sua

vez, propõe que dois aspectos sejam distinguidos na construção do enunciado – o nível de

programa-interno e o de estruturação gramatical. O primeiro fornece estruturas semânticas

para o enunciado e o segundo sua estrutura gramatical. Esta formulação, com a qual estamos

de acordo, reforça nosso pressuposto de que a Gramática Funcional pode se configurar como

34

A autora cita o modelo postulado por Chomsky (1957), relativo à gramatica gerativa transformacional, que

também prevê a existência de uma estrutura profunda e outra de superfície. A estrutura profunda é constituída

por regras básicas (princípios) de uma língua na “mente do falante”, transformadas e sujeitas às regras

fonológicas na estrutura de superfície, já que se destina à comunicação entre os falantes de uma mesma língua.

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uma teoria abrangente, ao relacionar aspectos sintáticos e semânticos que geram tanto o

pensamento verbal quanto a linguagem social e compartilhada.

Nesse ponto de suas articulações, Akhutina, no texto de 2003, originalmente publicado

em 197535

, passa a apontar para a relevância desses postulados teóricos nas análises dos

distúrbios da fala, mais especificamente no campo das afasias e formula as seguintes

hipóteses, baseadas na teoria luriana de funcionamento cerebral e em sua semiologia das

afasias:

1. Há fundamentalmente dois tipos de afasia dinâmica36

– a primeira causada por

uma desordem na formação de um esquema psicológico de um enunciado (a

programação interna); a segunda por um distúrbio na estruturação gramatical

(externo).

2. Os dois tipos de afasia dinâmica diferem da afasia motora eferente37

, cujos

mecanismos envolvem o distúrbio da organização cinética do ato de fala (um dos

aspectos da verbalização externa), ou seja dos programas de eferência que

envolvem a articulação fonológica do enunciado verbal.

3. O agramatismo que acompanha tanto o segundo tipo de afasia dinâmica, quanto a

afasia motora eferente tem uma característica em comum: uma desordem da

estrutura gramatical.

Segundo a autora, a diferença fundamental entre suas hipóteses e as visões

contemporâneas dos mecanismos subjacentes a estes tipos de afasia é a distinção entre as

desordens da programação interna e da estruturação gramatical para a produção do enunciado

verbal (externo). O foco de seu estudo, entretanto, foi o de certificar-se se alguma dessas

operações poderia ser afetada primariamente e independentemente de outra (Akhutina, 2003).

Um modelo que a autora considera neurolinguístico propriamente dito deve possibilitar a

interpretação de resultados de análises para saber se alguma operação (ou operações)

particular(es) de fala está/estão ainda intacta(s) ou não.

35

Essa reflexão de Akhutina sobre a importância da fala interna na produção de um enunciado foi primeiramente

publicada, originalmente em Russo, no ano de 1975 e traduzida para o inglês e publicado em versão online no

ano de 2014. 36

Lembramos que a afasia dinâmica, Segundo Luria, está relacionada a lesões no lobo frontal, mais

especificamente nas regiões pré-frontais, responsáveis pela chamada “função executiva”. 37

Na proposta de Luria, estariam impactadas as áreas secundárias do lobo frontal, responsáveis pelos programas

de ação.

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77

No segundo texto de Akhutina (2003)38

que selecionamos, a autora trata

especificamente de questões relacionadas ao agramatismo, no qual questiona, principalmente,

a sua natureza: “Agramatismo é uma anomalia?” Esta questão, por sua vez, guia toda a

reflexão da autora sobre as dificuldades dos sujeitos afásicos com as estruturas gramaticais.

A autora contrapõe sua hipótese às conclusões de Kolk, van Grunsven e Keyser (1985)

e de Kolk e Hofstede (1987), para os quais a produção linguística no agramatismo não deveria

ser considerada patológica, pois falar com estilo telegráfico é uma característica da linguagem

em contextos normais de produção. Para esses autores, os sujeitos afásicos se utilizariam

desse recurso como uma escolha pragmática para lidarem com suas dificuldades e

mencionam alguns contextos normais onde a produção de estilo telegráfico pode ser

observada: quando falamos uma língua estrangeira, no processo de aquisição da linguagem

pelas crianças e nos enunciados produzidos em situações de dialogo cotidiano. Nessas

situações, é comum a produção de estruturas elípticas e sintaticamente reduzidas. Para

Akhutina, autora com a qual concordamos nesse aspecto, os enunciados telegráficos de

sujeitos afásicos não são produzidos por opção. Para ela, trata-se de dificuldades dos afásicos

para operarem com as diversas sintaxes ao longo do processo de transformação do

pensamento em fala social.

A autora afirma que as formulações acerca da fala interna podem revelar, com maior

clareza, a natureza das dificuldades em operar com as estruturas sintáticas. Em consonância

com os postulados de Vygotsky, afirma que para a produção de um enunciado o sujeito,

naturalmente, deve lidar com três níveis de formulações sintáticas que, apesar de comporem

um mesmo processo, têm características bastante específicas. Nessa perspectiva, a produção

de um enunciado envolve operações com uma sintaxe comunicativa, com uma sintaxe

semântica e, por fim, com a sintaxe convencional (e partilhada) de uma determinada língua.

Vale destacar que aqui a autora reinterpreta o modelo de Vygotsky. Em seu primeiro texto

sobre essa questão, publicado em 1975, a autora afirmava que no modelo vygotskiano o

sujeito lidava com dois níveis de sintaxe – a sintaxe interna e a sintaxe externa.

Segundo Akhutina (2003), essas operações podem ser observadas em contextos de

normalidade. Em um diálogo, por exemplo, os falantes podem operar no nível da sintaxe

comunicativa (em outras palavras, sintaxe interna ou, ainda, sintaxe pragmática). Isso quer

dizer que os falantes estarão intercalando o foco de suas intenções comunicativas. Nesse nível

de operação gramatical, o sujeito psicológico é considerado um campo de atenção ao passo

38

Publicado online em 2014 no Journal of Russian & East European Psychology.

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que o predicado psicológico é um foco de atenção. Segundo a autora, esse direcionamento da

atenção é uma operação subjetiva, pois é o falante ou o interlocutor que vai direcionar sua

atenção para o que considera novo ou mais importante. Isso justificaria, então, enunciados que

podem ser expressos por apenas uma palavra ou gesto. As condições de um diálogo podem

resultar essas estruturas predicativas e elípticas porque ele é sempre contextual, o que permite

o prévio conhecimento tanto do sujeito quanto do predicado psicológico e, consequentemente,

a omissão de algum deles. O nível da sintaxe semântica pode ser refletido nas estruturas da

fala elíptica das crianças em processo de aquisição da linguagem. Segundo a autora, nesse

estágio, as crianças sempre seguem as regras relacionadas à ordem das palavras. Essa ordem

depende diretamente de características semânticas. No entanto, não pode ser desvinculada de

operações sintáticas, ou seja, a ordem das palavras é essencial para o processo de

compreensão de construções sintáticas. A principal característica dessa sintaxe semântica são

as caraterísticas sintáticas das palavras, mesmo que elas não estejam sequenciadas na lógica

da gramática convencional. Isso, então, sugere que esse segundo nível está intimamente

relacionado com o primeiro, o da sintaxe comunicativa.

Com base nesse modelo que propõe três níveis de operações sintáticas, Akhutina

(2014[2003]) estabelece uma distinção funcional dos três tipos de agramatismo. Para a autora,

as afasias podem impactar os diferentes níveis de operação sintática. Ou seja, o agramático de

nível 1 é aquele que teria a sintaxe comunicativa – primeiro nível – impactada. De forma

sucessiva, o agramático de nível 2 teria dificuldade de operar com a sintaxe semântica –

segundo nível – e, por fim, o agramático 3 seria aquele com dificuldades de operar com as

estruturas sintáticas convencionais da língua, para produzir enunciados.

O estilo telegráfico, portanto, é uma manifestação da dificuldade de operar com os

recursos convencionais do código linguístico. Por isso, discorda das concepções da teoria da

Adaptação formulada por Kolk e colaboradores. Nessa perspectiva, Akhutina (2003) defende

que é necessário se estudar uma síndrome agramática, que não seria sinônima de afasia de

Broca, mas como uma categoria para se referir aos diversos fenômenos que impactam as

operações meta- e epilinguísticas na estruturação sintática, em seus diversos níveis.

Essa concepção de Akhutina nos fornece um modelo teórico relevante e, sobretudo,

coerente, para explicarmos a produção dos enunciados de estilo telegráfico. Devido à

característica dinâmica e integrada que esse modelo propõe, temos um forte aparato teórico

para explicar a questão da variação na produção linguística entre sujeitos e também as

variações que ocorrem com um mesmo sujeito que têm sido apontadas pelos trabalhos de

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Novaes-Pinto (1992; 1997; 1999; 2017), desprezados pelos estudos científicos (quantitativos e

estatísticos) da relação cérebro-linguagem.

No Capítulo 5, traremos dados produzidos pelos quatro sujeitos acompanhados ao

longo desta pesquisa, analisando seus enunciados telegráficos à luz dos pressupostos teóricos

discutidos ao longo dos capítulos 2 e 3, sobretudo com o respaldo da Gramática Funcional,

dos conceitos bakhtinianos e de acordo com as reflexões articuladas por Akhutina

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Capítulo 4

Segundo Bakhtin (2010), a “ética é um conjunto de

obrigações e deveres concretos, sendo que o ato de

pensar é o mais fundamental compromisso

humano”. Essa afirmação nos move, enquanto

pesquisadores e desloca-nos de posições

possivelmente mais cômodas. Nesse sentido,

podemos afirmar que “acomodar-se” em uma forma

de pensar, repetindo o que se faz numa certa

abordagem teórico-metodológica, ou porque é mais

aceita numa comunidade científica, ou porque tem

mais prestígio - não pode ser considerado ético, nem

tampouco responsável. [...] uma mudança

substancial com relação aos procedimentos

metodológicos de avaliação e de acompanhamento

terapêutico na reconstrução dos processos de

significação pelos sujeitos afásicos – o que por sua

vez contribui para uma teorização baseada em

princípios novos, que valoriza outras formas de

razão científica. Nas palavras de Faraco (2009),

“estabelecer, num mundo dominado pelo

pensamento científico, um espaço para outra

racionalidade”. Trata-se, portanto, de uma escolha

e, como tal, devem ser consideradas todas as

implicações que derivam de nosso ato, pois, segundo

Bakhtin (2010), por ele devemos responder sem álibi

(Novaes-Pinto, 2011, p. 976-979)

1. A pesquisa qualitativa em Neurolinguística

Segundo Novaes-Pinto (2011), “a metodologia é, sem dúvida, um dos maiores

desafios a serem enfrentados no campo dos estudos da Neurolinguística. A abordagem

metodológica influencia – de forma direta – os recortes que fazemos dos fenômenos

estudados, as hipóteses formuladas e, também, a conduta terapêutica dos sujeitos afásicos,

cuja linguagem está impactada por alguma patologia” (Novaes-Pinto, 2011, p. 975)

Aspectos metodológicos da pesquisa

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Novaes-Pinto, (2011 p. 60) baseada em Freitas, (2010), afirma que “a abordagem

qualitativa é a única opção coerente com a perspectiva histórico-cultural”. Nas Ciências

Humanas, o objeto de estudo é o homem e, segundo a autora, isso demanda que “o

pesquisador fale com ele, que trave com ele um diálogo” – o que torna a pesquisa uma

relação entre sujeitos, diferente da tradicional relação sujeito – objeto, que predomina nas

ciências naturais. O foco da pesquisa qualitativa está nos processos que constituem um dado

fenômeno e, por isso, a constatação de que algo está acontecendo é apenas o ponto de partida

para o pesquisador.

Novaes-Pinto (2011) sintetiza o estudo de Damico et al (1999), autores que concebem

o estudo qualitativo como “um conjunto de práticas sistemáticas e interpretativas que prezam

pelo entendimento integral e geral de um determinado fenômeno”. Trata-se, segundo eles, de

um vasto leque de procedimentos de investigação: estudo bibliográfico, estudos de caso,

etnografia, diário, dentre outros (Novaes-Pinto, 2012). Os autores também afirmam que, por

meio de um trabalho qualitativo, desenvolvido a partir de dados naturalísticos, autênticos e

funcionais é possível compreender, além dos sinais (sintomas) e das síndromes decorrentes

das lesões neurológicas, os seus aspectos sociais e culturais. Novaes-Pinto, respaldada pelo

trabalho de Damico et al (1999), afirma que este é um dos diferenciais da proposta qualitativa.

Nesse contexto metodológico, cabe ao investigador selecionar qual a estratégia que mais se

aplica aos objetivos do seu estudo, afinada com a pergunta que mobiliza a pesquisa (Damico

et al, 1999).

Nos próximos itens deste capítulo, visamos esclarecer os passos dados para afinar a

metodologia de estudo da fala telegráfica com os pressupostos teóricos-metodológicos

apresentados no Capítulo 1.

2. Sobre o registro e a transcrição de dados

A maioria dos dados das pesquisas que desenvolvemos no campo da Neurolinguística

enunciativo-discursiva advém dos episódios interativos entre sujeitos afásicos e não-afásicos,

em sessões coletivas e individuais do Grupo d3o Centro de Convivência de Afásicos (CCA) –

que se configura como o principal lócus da pesquisa. Além da observação dos episódios em

seus contextos naturais (interação entre os participantes do grupo), outros dados são obtidos

por meio do uso de expedientes que dão visibilidade às atividades epi- e metalinguísticas

desenvolvidas pelos sujeitos ao longo das atividades (Novaes-Pinto, 2009, 2011, 2013). Mais

adiante, descreveremos os protocolos que foram formulados especialmente para esta pesquisa.

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Todas as atividades desenvolvidas nas interações com sujeitos afásicos nas sessões do

CCA (coletivas e individuais) são vídeo-filmadas e registradas em diário. As transcrições são

discursivas e adaptadas do projeto NURC (Norma Urbana Culta)39

.

A seguir, sintetizamos as principais regras de transcrição adaptadas pelos membros do

GELEP (Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias)40

:

Sigla/Símbolo Correspondência

I(xx) Interlocutores não afásicos

IEf Estagiário(a) da Fonoaudiologia

XX Duas letras maiúsculas – sujeito afásico

Letras maiúsculas Mudança de entonação, ênfase

, Pausa de curta duração

... Pausa de longa duração

* Imprecisão articulatória

(EI) Enunciado Ininteligível

[[ Sobreposição de vozes

- Silabação

“ “ Discurso direto

/ Interrupção da fala, truncamento

::

::::

Alongamento de vogal

Maior alongamento de vogal

( ) Observações e comentários quanto às condições de produção

------------- Interrupção externa

[ ] Descrição de enunciado não verbal

3. Centro de Convivência de Afásicos (CCA): relação entre teoria e prática

Conforme já foi apontado, o Centro de Convivência de Afásicos é o lócus principal

desta pesquisa. Os dados analisados emergiram nas atividades dialógicas que desenvolvemos

semanalmente. O CCA nasceu de um convênio firmado em 1989 entre o Departamento de

Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), onde está localizado e o

Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP. O

objetivo foi, desde o início, acompanhar pessoas afásicas na convivência com pessoas não-

afásicas, em diversas situações e práticas discursivas de linguagem (Coudry, 1988). Os

39

As normas de transcrição do NURC são apresentadas por Castilho & Preti (1986). 40

Adaptado do quadro elaborado por Cazarotti-Pacheco, em sua tese de doutorado (Cazarotti-Pacheco, 2012, p.

42) A legenda foi também adaptada para as necessidades especificas desta dissertação.

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afásicos que frequentam os grupos do CCA41

, em geral, são encaminhados por profissionais

do Hospital das Clínicas (FCM/UNICAMP): neurologistas, neuropsicólogos, fonoaudiólogos

e psicólogos ou por profissionais de outras instituições que conhecem o trabalho desenvolvido

no IEL. Muitos, entretanto, nos procuram por indicação das famílias ou dos amigos de

afásicos que frequentam ou já frequentaram o centro de convivência (Coudry, 1986, Novaes-

Pinto, 2014, 2015).

O grupo 342

promove, desde 2006, encontros entre afásicos e não-afásicos,

propiciando a interação e o estabelecimento de laços interpessoais, visando dar novos sentidos

à linguagem. São desenvolvidas, conjuntamente, estratégias para lidar com as dificuldades,

privilegiando, sobretudo, o que ainda está presente e não apenas o que falta na língua(gem)

impactada pela patologia. As atividades se organizam em três momentos: (i) com todo o

grupo, para a discussão de notícias, fatos importantes da vida dos sujeitos, realização de jogos

e tarefas interativas; (ii) intervalo para o café, um momento de descontração, em que as

interações se dão de modo mais natural e (iii) acompanhamento individual ou em duplas,

durante os quais linguistas e fonoaudiólogos (além de estudantes de graduação e estagiários

de ambas as áreas) propõem práticas ligadas às necessidades mais específicas dos sujeitos

(Novaes-Pinto, 2009; 2014; 2015).

4. Sujeitos da pesquisa

4.1. O sujeito BM

BM é um jovem afásico nascido em 01/07/1988 (atualmente com 28 anos de idade),

brasileiro, solteiro, estudante, que cursava o último semestre do curso de Administração.

Tornou-se afásico em consequência de um AVCi (Acidente Vascular Cerebral isquêmico),

que provocou uma lesão na região têmporo-parietal esquerda. BM apresenta hemiparesia leve

à direita. Uma das maiores dificuldades linguísticas de BM é a de encontrar palavras,

principalmente, as palavras funcionais, o que o leva a produzir enunciados

predominantemente de estilo telegráfico.

41

Existem, no momento, três grupos em atividade. Os dados apresentados neste trabalho se referem ao Grupo 3,

que teve início em 2006, e funciona às terças-feiras, das 8 às 12 horas, abrigando também o Estágio em Afasia,

disciplina do curso de Fonoaudiologia (FCM/UNICAMP). 42

Coordenado pela Profa. Rosana Novaes-Pinto, orientadora desta pesquisa.

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4.2. O sujeito BS

BS é um jovem nascido em 14/05/1988 (atualmente, com 29 anos de idade), brasileiro,

solteiro. Trabalhava em um laboratório de exames clínicos, sendo responsável pelo setor de

compras, e fazia o curso superior de Logística. BS sofreu um AVCi em outubro de 2013, que

provocou lesão nos territórios superficial e profundo da artéria cerebral média esquerda. Seus

exames de imagem mostram lesão na região fronto-têmporo-parietal. Desde então, apresenta

um quadro de afasia predominantemente motora, com hemiparesia à esquerda.43

BS frequenta

o CCA desde 2014. Ao chegar, produzia enunciados eminentemente telegráficos, na maioria

das vezes elidindo o verbo. Atualmente, ainda apresenta substituições de algumas palavras

funcionais, sobretudo derivacionais, mas tanto oralmente quanto na escrita consegue produzir

enunciados completos.

4.3. O sujeito TR

TR é uma senhora nascida em 19/06/1954 (atualmente, com 63 anos de idade),

brasileira, casada, auxiliar de enfermagem aposentada, com ensino fundamental completo.

Tornou-se afásica em consequência de um AVCi (Acidente Vascular Cerebral isquêmico)

que ocorreu em setembro de 1998, provocando lesão fronto-parietal à esquerda. TR apresenta

hemiparesia à direita e uma afasia de produção muito severa. Os enunciados que TR produzia,

ao chegar ao CCA, poderiam ser caracterizados como estereotipados: “um, dois” ou “arroz,

feijão, batata”. Uma das maiores dificuldades de TR é a de encontrar palavras, mais

marcadamente as palavras funcionais, embora a dificuldade com palavras de classes abertas

ainda persista. TR frequenta o grupo 3 do CCA desde 2010. Atualmente, TR produz

enunciados telegráficos tanto verbais como não-verbais, na maioria das vezes de forma

combinada, sendo muito raras as ocorrências de palavras funcionais.

4.5. O sujeito GB

GB é uma jovem afásica nascida em 05/12/2003 (atualmente com 23 anos de idade),

brasileira, solteira, estudante, que cursava o quarto semestre do curso de Odontologia.

43

Descrição feita no projeto de extensão CCA: o trabalho realizado por uma equipe multidisciplinar (Novaes-

Pinto et al., 2015), com base na dissertação de Mestrado que vem sendo desenvolvida por Diana Boccato.

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Tornou-se afásica em consequência de um AVCi (Acidente Vascular Cerebral isquêmico),

que provocou uma lesão na região têmporo-fronto-parietal esquerda. BG apresenta leve

hemiparesia à direita. Seus enunciados são predominantemente telegráficos, com raras

ocorrências de palavras funcionais.

5. Descrição das atividades experimentais com os sujeitos TR, BM, BS e GB

Os expedientes metalinguísticos a seguir descritos foram elaborados por nós e

desenvolvidos nas sessões individuais com TR, BM, BS e GB, com os seguintes objetivos:

(i) garantir um certo “controle” nas variáveis das ocorrências de falas telegráficas

e

(ii) obter uma quantidade razoável de registros dos fenômenos relativos à produção

e à compreensão das palavras funcionais

5.1. Jogo de adivinhação: O que é, o que é...?

Esta atividade tem o objetivo de avaliar a produção e a compreensão de estruturas

sintáticas complexas – muitas delas com as palavras funcionais que interessam a esta

pesquisa – (preposições, conjunções e advérbios com função gramatical (como quando).

Também propicia maior participação dos sujeitos, pelo caráter lúdico e competitivo da

atividade, que consiste em um jogo com as seguintes regras:

(i) as charadas são escritas em tiras de papel dobradas e embaralhadas;

(ii) em cada rodada, o participante escolhe uma tira de papel e responde a pergunta da

charada. Caso o jogador da rodada não saiba responder, deixa a pergunta em

aberto para o jogador que souber a resposta

(iii) quem responder corretamente, acumula um ponto

(iv) Ganha o jogo quem acertar mais charadas

As charadas utilizadas nas avaliações foram as seguintes:

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Número

Charada: O que é, o que é?44

Resposta esperada

01 ... o céu que não possui estrelas? Céu da boca

02 ... que dá muitas voltas e não sai do lugar? Relógio

03 ... que é surdo e mudo, mas conta tudo? Livro

04 ... que sobe quando a chuva desce? Guarda-chuva

05 ... que cai em pé e corre deitado? Chuva/enxurrada

06 ... que anda com os pés na cabeça? Piolho

07 ... que sempre se quebra quando se fala? Segredo

08 ... que tem mais de 10 cabeças, mas não sabe pensar? Caixa de fósforos

09 ... que quanto mais cresce, mais baixo fica? Cabelo

10 ... que corre na casa inteira e depois vai dormir no canto? Vassoura

11 ... que tem pernas, mas não anda, tem braço, mas não abraça? Poltrona

12 ... que é feito para andar, mas não anda? Rua

13 ... que caminha sem pé, voa sem asa e pousa onde quiser? Pensamento

14 ... que fica cheio durante o dia e vazio à noite? Sapato

Quadro 2: Charadas utilizadas com os sujeitos afásicos

5.2. Adivinha o que ele está fazendo?

A atividade foi elaborada visando fazer com que os sujeitos descrevessem as cenas, o

que exige a produção de um verbo e de seu(s) argumento(s) e, para isso, o sujeito deve utilizar

palavras funcionais. Para este expediente, foram utilizados cartões, como os que são ilustrados

a seguir45

:

44

Em negrito encontram-se as palavras funcionais que estavam sendo avaliadas no jogo. 45

Cartões da K2 Publisher que, ao ilustrarem um mesmo personagem, objetivam focar a descrição na ação

realizada.

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A atividade foi desenvolvida em dois momentos:

(i) as figuras ficam viradas para baixo e o sujeito afásico escolhe um dos cartões,

analisa a imagem e descreve, por meio de gestos, a atividade representada. O

objetivo nessa parte da atividade é identificar se o sujeito estava compreendendo

as figuras e também permitir que se avalie a ocorrência de enunciados não-verbais

que, com os verbais, permitem a compreensão. A partir da descrição não verbal

sobre a figura, o pesquisador deve “adivinhar” sobre qual ação a figura se refere;

(ii) em seguida, o pesquisador tira um cartão, mostra para o afásico e pergunta “o que

ele/ela está fazendo?” Desta vez, espera-se que o afásico produza enunciados

verbais para que se avalie a produção de elementos como o verbo e em que forma

(modalidade, tempo e aspecto) ele se apresenta. Vale ressaltar que para cada

momento dessa atividade foram usados cartões com imagens diferentes.

5.3. Provérbios: Não adianta chorar pelo leite derramado!

Neste experimento, o pesquisador mostra para o sujeito um cartão com uma imagem que

ilustra uma expressão cristalizada e metafórica da língua, como por exemplo, Não adianta

chorar pelo leite derramado!. Em seguida, é esperado que o sujeito diga a expressão que está

sendo representada.

Acreditamos ser possível avaliar, por meio desta atividade, a produção e a compreensão

das palavras funcionais nos enunciados dos sujeitos e, também, a interpretação de estruturas

sintáticas que contenham essas palavras. O fato de serem expressões cristalizadas garante um

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certo controle com relação às palavras que devem ser enunciadas. A seguir, algumas imagens

usadas na atividade46

.

5.4. Atividades de leitura dirigida, desenvolvidas com BS

Algumas das atividades desenvolvidas com BS têm um foco mais direcionado para a

leitura47

, já que depois do AVC, BS relata ter muitas dificuldades com essa atividade e realiza

muitas trocas (parafasias fonético-fonológicas e semântico-lexicais). Por esse motivo,

desenvolvemos com ele a leitura de diversos gêneros textuais (notícias, charges, contos etc)48

ao longo de suas sessões individuais. Para esta dissertação, entretanto, traremos um episódio

em que se desenvolve uma atividade com a leitura de uma notícia.

46

As imagens usadas nesse experimento foram retiradas do site Metamorfose Digital

http://www.mdig.com.br/index.php?catid=23. Esse expediente foi desenvolvido por Souza-Cruz (2013) 47

BS sempre foi leitor voraz de livros de ficção e, à época de ocorrência do AVC, estava lendo Anjos e

Demônios, de Dan Brown. Já havia lido outros romances do mesmo autor e, também, diversas estórias sobre

Sherlock Holmes. Além disso, o sujeito lia autores brasileiros consagrados, como Machado de Assis, Lima

Barreto, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros. Também é músico e fazia parte de uma banda de rock,

tocando baixo. No CCA, temos buscado desenvolver com ele muitas atividades de leitura e com música. Como

não consegue mais tocar baixo, por seus limites de natureza motora, tem participado das atividades tocando

instrumentos de percussão (carron, pandeiro etc) 48

As atividades foram realizadas em parceria com Boccato (2015), pesquisadora que investiga as trocas que BS

faz na leitura, fenômeno referido na literatura neuropsicológica como paralexia.

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6. Questões relativas às análises: a análise microgenética dos dados

Conforme dito anteriormente, esta pesquisa é orientada pela perspectiva enunciativo-

discursiva e a opção metodológica é pela abordagem qualitativa de cunho microgenético dos

dados e fenômenos.

Góes (2000) enfatiza que a característica mais importante do paradigma microgenético

está na forma de conhecer um fenômeno, orientada para minúcias, detalhes e ocorrências

residuais (indícios ou pistas). Julgamos relevante inserir a passagem na qual a autora

esclarece a natureza dessa análise:

[...] não é micro porque se refere à curta duração dos eventos, mas sim por

ser orientada para minúcias indiciais – daí resulta a necessidade de recortes

num tempo que tende a ser restrito. É genética no sentido de ser histórica,

por focalizar o movimento durante processos e relacionar condições

passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está

impregnado de projeção futura. É genética, como sociogenética, por buscar

relacionar os eventos singulares com outros planos da cultura, das práticas

sociais, dos discursos circulantes, das esferas institucionais (Góes, 2000,

p.15).

Cazarotti-Pacheco (2015) aponta que o paradigma microgenético vem sendo

mobilizado em grande parte das pesquisas atuais em neurolinguística49

. A esse respeito, a

autora afirma que

a microgênese vigotskiniana é proposta com vista aos demais domínios

genéticos (filogênese, ontogênese e sociogênese), que focalizam o

funcionamento linguístico-cognitivo dos sujeitos em todas as dimensões

(biológicas, sociais e históricas). Deste modo, a Análise Microgenética

possibilita demonstrar que, a partir de dados singulares, podemos inferir

sobre o funcionamento da linguagem e sua relação com outros processos

cognitivos, tanto na normalidade quanto nas patologias. Pois o sujeito só

pode ser compreendido, nesta perspectiva, na sua relação com o signo,

particularmente com a linguagem (Cazarotti-Pacheco, 2015, p. 62).50

A análise microgenética envolve o acompanhamento minucioso da formação de um

processo, detalhando as ações dos sujeitos e suas relações interpessoais. Segundo Cazarotti-

Pacheco (2015), no campo das pesquisas (neuro)linguísticas, essas análises possibilitam

compreender como se deu o impacto das patologias sobre o sistema da língua (nas trocas de

49

Destacamos, a esse respeito, as pesquisas que são desenvolvidas no âmbito do GELEP (Grupo de Estudos da

Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias). 50

Relatório Científico da pesquisa Análise comparativa dos paradigmas microgenético e indiciário: reflexões

sobre a metodologia no campo da Neurolinguística (FAPESP, 2015).

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palavras, de fonemas, na desorganização sintática) e também com relação aos aspectos

pragmáticos e discursivos (circunlóquios, repetições, hesitações), o que por sua vez dá

visibilidade às atividades epi- e metalinguísticas durante a produção dos enunciados. “Por

demandar uma interpretação histórico-cultural dos processos humanos, o paradigma

microgenético se torna o mais adequado para orientar as nossas escolhas metodológicas”,

afirma a autora (Cazarotti-Pacheco 2015, p. 52).

7. Aprovação da pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)51

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da

Unicamp, sob o parecer de número 1.348.028/201552

em 02 de dezembro de 2015.

51

O anexo I apresenta o TCLE, que foi assinado por todos os sujeitos da pesquisa. 52

A autorização desta pesquisa pode ser consultada no endereço eletrônico da Plataforma Brasil pelo link

http://aplicacao.saude.gov.br/plataformabrasil/login.jsf Nos dados da consulta, basta informar o número do

parecer ou então o número do CAAE: 50827515.6.0000.5404.

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Capítulo 5

O enunciado de estilo telegráfico interpretado via

análise qualitativa/microgenética dos episódios

dialógicos

As ciências exatas são uma forma monológica de

conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e

pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que

pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala

(pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer

objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser

percebido e estudado a título de coisa. Mas, o sujeito

como tal não pode ser percebido e estudado a título de

coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo

sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento

que se tem dele só pode ser dialógico (Bakhtin,

2000[1974], p. 403).

Introdução: Sobre a organização dos dados

Este capítulo visa apresentar dados selecionados dos quatro sujeitos desta pesquisa –

BM, BS, GB e TR – que se caracterizam, predominantemente, por seu estilo telegráfico,

apesar de suas singularidades, dentre as quais citamos: o grau de severidade na produção, as

dificuldades com as palavras funcionais e morfemas flexionais e, principalmente, as

estratégias alternativas de significação das quais lançam mão para driblar suas dificuldades,

sendo que todos esses fatores influenciam as mudanças observadas longitudinalmente, em

cada um dos casos.

As análises foram orientadas pelo paradigma microgenético, descrito no capítulo 4,

articulando os pressupostos teórico-metodológicos da neurolinguística enunciativo-discursiva

e da gramática funcional, apresentados nos capítulos 1 e 2. Além disso, recorremos às

categorias bakhtinianas nas descrições e para as explicações dos fenômenos, e discutimos as

hipóteses sobre a produção do estilo telegráfico com respaldo nos trabalhos de Luria,

Vygotsky, Leontiev e Akhutina, tendo esta se ocupado exatamente da produção da “fala

telegráfica” nas afasias.

Esclarecemos que algumas das análises serão feitas após a apresentação de um ou mais

dados, de acordo com os argumentos que buscamos defender. Após as análises de dados de

cada sujeito, faremos uma síntese dos principais pontos observados.

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1. Dados do sujeito BM

Apresentaremos, a seguir, quatro episódios do sujeito BM, organizados

cronologicamente, com exceção do último deles. Os três primeiros foram obtidos em sessões

coletivas do CCA (Grupos 2 e 3) e o último em uma sessão individual com Itc, pesquisadora

do Grupo 3. Esclarecemos que os títulos dos dados buscam sintetizar o contexto de sua

produção.

1.1. Dois moço, um nordeste e um jeep53

O dado abaixo transcrito emergiu em uma sessão coletiva do Grupo 2 do CCA, no

início das participações de BM, em 22/05/2015. Uma atividade envolvendo a interpretação de

uma charge estava sendo desenvolvida e tinha como principal objetivo que BM depois a

compartilhasse com o grupo.

Turno Sujeito Enunciado Observação

53

Este dado foi transcrito e primeiramente analisado por Brandão (2016), em sua pesquisa de mestrado

intitulada: O papel do outro na estruturação da fala na afasia. BM frequentava as reuniões Grupo 2 do Centro

de Convivência de Afásicos que ocorrem semanalmente às sextas-feiras e é coordenado pela Profa. Dra. Maria

Irma Hadler Coudry. Em junho de 2016, quando soube do Grupo 3 do CCA, o sujeito começou a participar

também das nossas reuniões. Nos remetemos a este dado para ilustrar como se organizava a fala de BM,

caracterizada como telegráfica, mas que já à época, apresentava algumas palavras funcionais na formulação dos

enunciados. A transcrição do dado para esta dissertação foi adaptada por mim, a partir do trabalho de Brandão

(2016).

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01 Idb

BM, qual que você leu aí?

Você vai ter que descrever, como você fez

pra mim.

Referindo-se à charge. BM já

tinha discutido a charge com Idb

e, neste momento, compartilhava

sua interpretação com o Grupo 2

do CCA.

02 BM

É::... Nordeste... falta de água... TUDO!

Aí... aí... é:: da urna... da urna... dois

moço, um nordeste e um jeep.

A palavra tudo é pronunciada com

ênfase.

03 JM Jeep. Enunciado proferido por outro

afásico

04 Idb Aí na urna aí? É de onde sai a água?

No turno 02, observamos a evidente dificuldade de BM com a construção do

enunciado. Buscando explicar sua interpretação da charge, ele construiu seu enunciado

combinando apenas sintagmas nominais, sem verbo algum: [Nordeste... falta de água...

TUDO!]. De acordo com os autores que destacamos no capítulo anterior, podemos afirmar

que a palavra [Nordeste] poderia ser interpretada como o predicado psicológico que, segundo

Akhutina, é o foco da atenção. BM chama a atenção para o fato que se trata de uma região

brasileira específica, o que inferiu da própria charge. Ao combinar os demais elementos [falta

de água... TUDO!], BM produz um enunciado de estilo telegráfico. Ao analisarmos as

preposições produzidas, vemos que “de” é cristalizada no sintagma “falta d’água” – expressão

que, segundo Akhutina, poderia ser interpretada como o campo da atenção. A ordem das

palavras no enunciado nos indica que BM estaria operando no nível da sintaxe semântica

quando produz o enunciado. Chamamos a atenção para o fato de que, apesar do sujeito

produzir a preposição “de” em estruturas como “de repente” “falta d’água”, esta aparece em

contextos cristalizados pela língua.

Segundo Kolk (1985), o fato de um sujeito “agramático” colocar os argumentos de

um enunciado em uma ordem pertinente, fazendo-se compreender pelo outro, é já um sinal de

que o sujeito não perdeu a gramática. Pelo contrário, consegue produzir enunciados

inteligíveis aos outros, nos processos comunicativos, mesmo sem conseguir selecionar as

palavras funcionais. O autor acredita que, de fato, ele seria um supergramático”. Akhutina cita

o trabalho de Kolk e discorda que a razão para a produção do estilo telegráfico seria apenas

uma estratégia pragmática do sujeito para permanecer na interação (Novaes-Pinto, 1992,

1999). Para a autora, trata-se da dificuldade de operar no nível da sintaxe convencional.

Lembramos que para Akhutina (2003), no nível que ela denomina estrutura sintático-

semântica, a sintaxe está intimamente relacionada com as características semânticas das

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94

palavras. O falante se apoia nos aspectos sintáticos de cada palavra e isso o leva a produzir

enunciados reduzidos e cheios de elipses.

Para a autora, tanto a sintaxe interna quanto a sintaxe semântica, apesar de terem

características específicas, fazem parte de um mesmo processo; estão intimamente

relacionadas. A partir das hipóteses formuladas por Akhutina, é possível apontar que BM

ainda tem bastante dificuldade para transformar essas estruturas “internas” em “sintaxe

convencional”, esta formulada para o outro, produzindo as estruturas e significados que

viabilizam a comunicação.

Passemos a outros dados de BM, no qual já notamos grande mudança com relação

a essa capacidade comunicativa, apontando também para as dificuldades que permanecem. O

intervalo de produção deste dado em relação aos próximos foi de um ano.

1.2. Outros Grupos do CCA e Romaneio

A seguir, apresentamos dois dados de BM que emergiram em sessões coletivas do

Grupo 3 do CCA. Optamos por analisá-los em conjunto, por se assemelharem bastante em

alguns aspectos. Em ambos os episódios, BM foi solicitado a se apresentar para as pessoas do

Grupo 3 que ainda não o conheciam. O intervalo de tempo entre a produção do dado 1.2.1. e

1.2.2 foi de aproximadamente 10 meses.

Veremos que algumas características de seus enunciados se alteraram

longitudinalmente, enquanto outras prevalecem ainda e dão indícios de suas dificuldades.

1.2.1 Outros Grupos do CCA

Era a segunda vez que BM participava de uma sessão coletiva do Grupo 3 do CCA,

em 03/05/2016. A interlocutora Imp pediu para que ele se apresentasse novamente para o

grupo, porque havia pessoas que ainda não o conheciam. Pediu, também, para que explicasse

que ele já participava das atividades desenvolvidas pelo Grupo 2 do CCA.

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 MG Tem quantos anos? Outro sujeito afásico inicia a

entrevista com BM.

02 BM Tenho 27.

03 MG Extremamente jovem!

04 BG Exato! Ti::ve quatro anos de AVC.

05 MG Nossa! Antes ainda.

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06 Imp É, há quatro anos.

07 BM [balança a cabeça positivamente]

08 Imp BM, você tem VINTE E QUATRO ou

VINTE SETE?

09 BM Vinte sete.

10 Imp Semana passada eu fiquei com vinte e

quatro.

Imp se referiu ao fato de ter uma

lembrança de BM tinha 24 anos

de idade.

11 Imp É:: Você diminuiu a sua idade semana

passada.

12 Ief Quis parecer mais jovem ainda.

13 Its Ele tava com vinte quatro quando sofreu

o AVC.

14 Imp Ah, agora entendi. Você tinha vinte

quatro quando você teve o AVC então...

15 TR

[Faz gesto com as mãos e uma

expressão facial indicando estar

surpresa]

TR sempre fica muito

sensibilizada ao conhecer

afásicos jovens como BM e BS.

16 Imp E você participa... de um CCA, né?

17 BM

Dum CCA ni: sexta-feira aí de:: tipo...

de repente... tipo duas semanas...

– “ah:: é::?”

– “é:: terça-feira”

– “No CCA também? Como

assim, cara?” Não sabia do...

do... outro... dos outros

grupos.

BM passa a reproduzir

enunciados em discurso direto,

remetendo às falas de um

interlocutor

18 Imp Então, quem que coordena o grupo que

você vai?

19 BM A Maza, Maza.

1.2.2. Romaneio

Este dado também foi produzido em uma sessão coletiva do CCA, em 21/03/2017,

quase um ano depois que BM passou a frequentar as sessões do Grupo 3. Nessa ocasião, a

interlocutora Irn pediu a todos os afásicos para se apresentarem para as novas estagiárias, que

ainda não os conheciam. Vejamos, agora, um de nossos mais belos e intrigantes dados,

quando BM se apresenta e conta ao grupo uma novidade muito relevante para ele.

Turno Sujeito Enunciado Observação

01 Irn E o senhor? Perguntando ironicamente a BM.

02 BM E o senhor?... Então... Em tom de brincadeira,

retomando o enunciado de Irn.

03 Imp Seu nome, né? Só para apresentar para

quem ainda não te conhece.

04

BM

Seu nome é BM*... Aa::h:: é: em Valinhos

*Onde está a sigla, o sujeito fala

seu nome completo54

.

54

A sigla visa garantir o anonimato do afásico, como foi acordado no TCLE aprovado pelo CEP-UNICAMP.

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05 Imp Mora, né? A interlocutora dá um acabamento

para o enunciado “em Valinhos”.

06 BM Mora em Valinhos... Mas Não sei.

07 Irn

Nós não perguntamos a idade da SS porque

é uma indelicadeza perguntar a idade de

mulher, mas você pode falar quantos anos

você tem.

Irn disse isso em tom de

brincadeira.

08 BM Vinte e oito... faz tido o AVC fa::z cinco

anos. Fazem.

09 Irn

É FAZ mesmo. Está certo do jeito que você

falou mesmo. “Faz cinco anos”. Não é

“fazem”. É “faz” mesmo. Está certo! Você

falou e se corrigiu, mas é “faz”.

Faz cinco anos já?

10 BM [Balança a cabeça positivamente] Sim!...

Que mais?

11 Irn Você tava em outro Grupo, né? Tá indo

ainda no Grupo da Maza, na sexta-feira?

12 BM Sim!

13 Irn Tá indo de vez em quando?

14 BM

Não. A mesma coisa. Ah! Vou trabalhar

agora. Então... seguinte é:: no:: no

INSS... eu vou trabalhar. Mas é::.

15 Irn Eles disseram para você que você pode

voltar?

16 BM Voltar, com certeza!

17 Irn Mas, você ainda não sabe onde?

18 BM

Não, já... já... notas fiscais. Aí, tipo a

médica disse “romaneio”. Aí, de repente,

viu qual... qual é... qual função é?

Romaneio!.

19 Imp Romaneio é o nome da empresa?

20 BM Não, não é::

21 Irn Eu também ia perguntar o que era. É uma

função?

22 BS Não. Romaneio é um documento.

O sujeito BS, que também

trabalhava no campo da Logística,

nos disse que se tratava de um

documento.

23 BM É... um papel.

24 BS É um documento de transporte.

25 BM Exato!

26 Irn Romaneio. Nunca ouvi essa palavra.

27 Iar Isso é da Logística?

28 BM [Balança a cabeça positivamente]

29 Imp Era o que você fazia?

30 BM

Sim! Aí tipo de repente... Nossa... Eu não

faço, tipo eu não... [faz um gesto circular

com a mão na altura da cabeça] é:: eu

esqueci.

31 Irn O quê? Como fazer?

32 BM Fazer! O que...

33 BS Mas, você esqueceu ou não lembrou? Pergunta muito interessante feita

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por BS.

34 BM Não lembrou. Tipo falei: “ca::ra, não sei!”

Tipo não mais.

35 Irn

Por que isso, BM? Porque eles acham que a

afasia é só um problema de fala, né? E que

não interfere com as outras coisas. Então

assim eles não têm muito conhecimento de

fato das dificuldades das pessoas. Não é só

a questão de falar. Você mesmo está

dizendo que não está conseguindo fazer o

que você fazia antes. Ou você não

conseguia fazer?

36 BM Não, sim... normal.

37 Irn Mas a médica não entendeu isso!

38 BM

Não, não. Aí... aí falei “puta! Não vou

lembrar mesmo!” Então tá. Fazer o seguinte

é:: os curso, muitos cursos é: muitos cursos,

praticando de logística até conceito de

logística, excel, word, power point, outlook

De tudo assim.

39 Irn Você pode usar esse tempo fazendo esse

cursos?

40 BM Não! [faz gesto de continuidade com a

mão]

41 Imp Cê tá fazendo?

42 BM Tá fazendo, tá fazendo!

43 Irn Entendi. A faculdade, como está a situação?

44 BM É::... ainda tá trancado ainda.

45 Irn Fala para todo mundo que não te conhece o

que você fazia... onde que você tava.

46 BM Eu fazia é:: administração e faltava seis

meses, só. Faltava o curso.

47 Imp Pra terminar, né?

48 BM Terminar.

49 Irn E você tem contato com o pessoal da tua

turma?

50 BM Sim!

51 Imp Mas, e daí você está esperando para

começar, para voltar para empresa?

52 BM

Vou... Vou cinco de abril retorno,

retorno... e agora concluiu de tudo...

então acho que vou... acho que... tomara!

53 BS Cinco de abril você volta pra empresa?

54 BM Do INSS. “Tá ok?” Então... vou

trabalhar.

55 Irn Ah, ok!

Queremos chamar a atenção, primeiramente, para o enunciado que BM produz no

turno 17 do dado 1.2.1 (outros Grupos do CCA). Para facilitar o acompanhamento da análise,

repetimos aqui os enunciados que mais nos interessam para a argumentação:

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Turno Sujeito Enunciado Observações

16 Imp E você participa... de um CCA, né?

17 BM Dum CCA ni: sexta-feira aí de:: tipo...

de repente... tipo duas semanas...

– “ah:: é::?”

– “é:: terça-feira”

– “No CCA também? Como

assim, cara? Não sabia do...

do... outro... dos outros

grupos.

BM responde à pergunta de Imp e inicia, no mesmo turno, uma narrativa bastante

complexa para contar como soube, por uma outra pessoa, da existência de nosso grupo do

CCA que se reúne às terças-feiras. Observamos que BM se utiliza competentemente da

estrutura de discurso direto, tanto para reportar o seu próprio enunciado “[de repente, tipo

duas semanas ah:: é::? ou em “No CCA também? Como assim, cara?, ], quanto o discurso de

seu interlocutor [é:: terça-feira].”

Apesar de ter utilizado estruturas gramaticais bastante reduzidas, BM conseguiu

produzir a narrativa de forma eficiente, utilizando-se, por exemplo, de alterações prosódicas

para marcar o discurso direto e para demarcar a alternância dos sujeitos no processo de

interação. A utilização da estrutura narrativa direta pode ser considerada como uma escolha

pragmática de BM para driblar suas dificuldades. São estruturas menos complexas em relação

ao discurso indireto, no qual deve-se usar pronomes relativos (como que, o qual etc) e em que

os verbos devem assumir tempos e aspectos diferentes daquele que foi produzido no contexto

que se quer narrar.

Esse mesmo recurso – direto – é utilizado no turno 18 do dado 1.2.2 (Romaneio)

para reportar o diálogo que BM teve com a médica do INSS “[Aí tipo:: a médica disse

“romaneio”. Aí de repente... viu qual qual é... qual função é? Romaneio?].”

Vemos que, apesar de pragmaticamente adequado, inclusive por usar o discurso

direto para comunicar aos outros o seu querer-dizer, aparecem poucas palavras funcionais

(preposições, conjunções), sendo também as flexões verbais retomadas em especularidade

dos enunciados de seus interlocutores. As preposições não estão completamente ausentes.

Vemos, uma vez mais, no turno 17, que além de emergir em contexto cristalizado “de

repente”, a preposição “na” (em + a) é substituída pela forma “ni” – “ni sexta-feira,” mas BM

produz adequadamente, ainda no mesmo turno, as preposições “no” e “do”. Essas variações

na produção das preposições em um mesmo sujeito têm sido motivo de polêmicas quanto à

estabilidade da categoria. Voltaremos a essa discussão mais adiante, nas considerações finais.

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Ressaltamos que o primeiro diálogo (dado 1.2.1) transcorreu como uma entrevista

semi-estruturada e não como uma narrativa livre, o que nos leva a interpretar que a relativa

facilidade de BM no processo dialógico se deve muito às ações colaborativas de seus

parceiros da comunicação verbal (cf. Bakhtin); em outras palavras, aos acabamentos que

foram sendo dados aos enunciados, durante a interação.

No segundo dado (1.2.2) podemos perceber a dificuldade marcante de BM para

selecionar os morfemas de tempo e aspecto para os verbos que desejava produzir.

Acreditamos que esta dificuldade com a seleção de morfemas flexionais – para produzir a

sintaxe convencional – levou BM a se apoiar nos enunciados produzidos por seus

interlocutores, como observamos nos turnos 03/04, 05/06, 31/32, 33/34, 41/42 e 47/48, que

reproduzimos em seguida, por julgarmos relevantes para nossas análises e também porque

dizem respeito ao trabalho do sujeito sobre os recursos da língua (Franchi, 1976; Bakhtin,

2010), ao longo do processo dialógico:

Turno Sujeito Enunciado Observação

05 Imp Mora, né? A interlocutora dá um acabamento

para o enunciado “em Valinhos”,

de BM.

06 BM Mora em Valinhos. Mas Não sei.

31 Irn O quê? Como fazer?

32 BM Fazer! O que...

33 BS Mas, você esqueceu ou não lembrou? Pergunta muito interessante feita

por BS.

34 BM Não lembrou. Tipo falei: “ca::ra, não sei!”

Tipo não mais.

41 Imp Cê tá fazendo?

42 BM Tá fazendo, tá fazendo!

47 Imp Pra terminar, né?

48 BM Terminar.

55

A sigla visa garantir o anonimato do afásico, como foi acordado no TCLE aprovado pelo CEP-UNICAMP.

03 Imp Seu nome, né? Só para apresentar para

quem ainda não te conhece.

04

BM

Seu nome é BM*... Aa::h::, é: em Valinhos

*Onde está a sigla, o sujeito fala

seu nome completo55

.

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Em todos os pares da tabela, vemos que BM produz exatamente a mesma forma

lexical de seus interlocutores, o que o leva a produzir seus enunciados em terceira pessoa, não

em primeira. Embora possam ser dadas outras interpretações para essas ocorrências, de cunho

mais psicanalítico, atribuímos essas produções a uma estratégia alternativa desenvolvida pelo

sujeito para atuar pragmaticamente ao longo do processo dialógico. BM atua em

especularidade com seu interlocutor – assim como as crianças fazem nas fases iniciais do

processo de aquisição da linguagem. O item lexical (em negrito) vem como um bloco não

decomposto em suas partes. Isso tem a ver, novamente, com o que Akhutina vem apontando

sobre as falhas possíveis em diferentes pontos do processo de transformação da fala interna

para a fala externa. Os signos, coágulos de sentidos (Vygotsky), precisam ser transformados

em significados compreensíveis aos outros, nos momentos de comunicação. Para isso, é

necessário transformar as sintaxes interna e sintático-semântica em sintaxe convencional.

Retomamos, em seguida, um dos trechos do dado 1.2.1., no qual BM apresenta mais

dificuldades. Ao contrário do primeiro dado, a partir da metade do segundo (1.2.2), BM

assume um papel de protagonista e passa a narrar o que deseja56 – sobre sua volta ao trabalho.

Apesar de produzir estruturas elípticas, de estilo telegráfico, e de revelar dificuldades com as

palavras funcionais, notamos um grande esforço de sua parte para se aproximar do seu

querer-dizer, do seu pensamento discursivo – o primeiro nível postulado por Luria, Vygotsky,

Leontiev e Akhutina, que os autores denominam intenção, ligado à elaboração do

pensamento, por meio da linguagem verbal. O enunciado em questão é o seguinte:

Turno 14: BM Não. A mesma coisa. Ah! Vou trabalhar agora. Então... seguinte é:: no:: no

INSS... eu vou trabalhar. Mas é::.

Se não fossem os conhecimentos compartilhados, o enunciado de BS poderia levar à

interpretação de que ele iria trabalhar no INSS. Mas todos sabemos que ele mensalmente

passa por perícia no INSS, que avalia se ele pode ou não voltar ao trabalho. Seus

interlocutores lhe dão o acabamento adequado e o diálogo prossegue, até que se esclareça o

que ele vai voltar a fazer:

56

Uma das características da narrativa é o desejo do sujeito de contar sobre algo que lhe seja relevante. Notamos

que a partir do desejo de BM contar que voltaria ao trabalho, a narrativa toma outros rumos, tanto por parte de

BM, quanto de seus interlocutores. Para mais detalhes sobre as narrativas nas afasias e a retomada de trabalhos

de Labov e Hanke a esse respeito, ver Cazarotti-Pacheco (2012).

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15 Irn Eles disseram para você que você pode voltar?

16 BM Voltar, com certeza!

17 Irn Mas, você ainda não sabe onde?

18 BM Não. Já... já... notas fiscais. Aí, tipo a médica disse “romaneio”.

Aí, de repente, viu qual... qual é... qual função é? Romaneio!

19 Imp Romaneio é o nome da empresa?

20 BM Não, não é::

21 Irn Eu também ia perguntar o que era. É uma função?

22 BS Não. Romaneio é um documento.

23 BM É... um papel.

24 BS É um documento de transporte.

25 BM Exato!

Os enunciados em destaque (turnos 15 a 25), do dado 1.2.2, mostram a busca

conjunta da significação, em parceria entre os interlocutores. BS, outro jovem afásco, sendo

da área de Logística, imediatamente buscou esclarecer ao grupo o que seria “romaneio”, tanto

para ajudar BM quanto para mostrar o que sabia a respeito, num processo de “preservação da

face” (Goffman, 1970)

A partir do que foi discutido no capítulo anterior, podemos inferir que nesses dois

episódios a maior dificuldade de BM parece estar em operar com a sintaxe convencional da

língua e, por isso, se apoia tanto nos enunciados de seus interlocutores. Para encerrar a análise

dos dois episódios, retomamos um último trecho, seja para ilustrar o caráter telegráfico

presente, ou para enfatizar como a ação colaborativa do interlocutor preenche as lacunas

sintático-semânticas, promovendo uma compreensão ativo-responsiva (cf. Bakhtin).

51 Imp Mas, e daí você está esperando para

começar, para voltar para empresa?

52 BM Vou... Vou cinco de abril... retorno,

retorno... e agora concluiu de tudo...

então acho que vou... acho que... tomara!

53 BS Cinco de abril você volta pra empresa?

54 BM Do INSS. Tá ok? Então... vou trabalhar.

55 Irn Ah, ok!

Pudemos, enfim, depreender que ele teria que voltar ao INSS em 5 de abril e não ao

trabalho. BS também interage com BM e lhe pergunta se em 5 de abril voltará para a empresa

e ele nega, afirmando que nessa data vai ao INSS. Se o INSS liberar porque está tudo ok, BM

volta ao trabalho.

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Vamos, em seguida, ao último dado de BS, que emergiu em uma situação dialógica

com uma atividade metalinguística. Trata-se de um dado em contexto de trabalho

experimental com Its.

1.3. Chorar pelo leite derramado

Este dado emergiu em uma sessão individual em 10/05/2016, em que a

pesquisadora Its estava aplicando o experimento relacionado às expressões cristalizadas

descrito no item 5.3 do capítulo 4 desta dissertação57. Apresentaremos a imagem referente a

expressão e, em seguida, transcrição do dado que interessa à nossa reflexão.

57

Nota-se, portanto, que foi produzida um ano antes do dado 1.2.2 (Romaneio). Como trata-se de uma atividade

de cunho metalinguístico, optamos por deixar este dado para o final.

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Its E essa aqui?

02 BM Leite derramado.

03 Its Mas, como é essa expressão?

04 BM Hu:m [olhando para o teto] BM não consegue dizer a

expressão.

05 Its

Você chega pra sua mãe reclamando da

vida. O quê que ela te fala? Isso é muito

frase de mãe, né?

06 BM É:: Ma::s puta não vou lembrar, cara.

[BM olha para cima]... O termo... puta!

07 Its Fala a expressão mais ou menos, não

precisa falar certinho.

08 BM Derramando leite... Não é!

09 Its O que ele tá fazendo em cima do leite

derramado? Olha aqui

10 BM Hu::m... tristeza!

11 Its

Tristeza! Mas, exatamente o que ele tá

fazendo? Olha aqui a expressão dele.

Ele tá::?

12 BM Chorando.

13 Its Isso!

14 BM Chorando leite derramado.

15 Its Não adianta Its dá o prompting para BM

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103

Na expressão não adianta chorar pelo leite derramado, a preposição é o termo que

estabelece a relação de sentido entre os sintagmas [não adianta chorar] e [leite derramado].

BM parece ter dificuldades para apreender o sentido da expressão, o todo do enunciado (cf.

Bakhtin), muito provavelmente tanto em função da falta desse elemento funcional quanto por

estar operando com os sentidos isolados que compõem a metáfora, em especial porque a

expressão está representada literalmente na figura. Essa dificuldade pode ser melhor

observada nos turnos 02, 17 e 23, quando BM reduz a construção da expressão ao sintagma

nominal [leite derramado]. No turno 19 [chorar leite derramado] é quando BM mais se

aproxima da expressão cristalizada, ainda que não utilize a preposição. Sua dificuldade com o

todo do enunciado foi resolvida apenas quando sua interlocutora disse a expressão completa

(no turno 24), incluindo a preposição, e dando a BM um contexto para seu uso. Até esse

momento, BM parecia estar operando apenas com os sentidos literais das palavras

isoladamente.

Nas formulações de Akhutina (2003), BM estaria ainda no nível da estrutura

sintático- semântica e, portanto, operando com os seus sentidos próprios e subjetivos (sense).

No entanto, com o apoio de Its, BM consegue se engajar no processo de ida e volta entre o

pensamento e a linguagem, ou seja, da intenção à produção do enunciado convencional,

embora este apresente características que mais se aproximam da estrutura interna sintático-

semântica, formulada pragmaticamente. BM conseguiu apreender, assim, o significado

completar o provérbio.

16 BM Leite derramado.

17 Its Chorar.

18 BM Chorar leite derramado.

29 Its Pelo leite derramado... O que isso

significa? Quando você usa isso? Its fala o provérbio completo

20 BM BM não consegue responder

21 Its Você usa porque é um cara tranquilão.

Dá um exemplo de uma situação.

22 BM Leite derramado... puta! Nossa faz

tempo cara...

23 Its

Quê que significa quando alguém fala

assim pra você... Ah, não adianta chorar

pelo leite derramado!

24 BM Não! ... Ah, tá! É:: tido o AVC, mas

vambora, vamo... vamo seguir a frente.

25 Its Um exemplo muito bom!

26 BM Muito bom, né?!

27 Its Não adianta chorar pelo leite derramado,

exatamente!

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104

(meaning), socialmente compartilhado da expressão. Este dado, ainda, nos remete às

formulações de Neves (1994) e de Camacho (1994, 2006), quando os autores dizem que a

língua funciona gramaticalmente pela íntima relação entre a semântica, a sintaxe e a

pragmática.

1.4. Síntese das questões relativas à produção de BM

1.4.1. Quanto à produção de palavras funcionais e de morfologia flexional

BM, no início, apresenta grande dificuldade com a produção tanto de palavras

funcionais quanto de morfemas flexionais.

Apesar de BM ter aumentado a produção das palavras funcionais (só as mais

gramaticalizadas – de, em, para) e morfemas flexionais sua narrativa, ainda, é bastante

comprometida em relação ao seu querer-dizer.

1.4.2. Quanto às estratégias alternativas de significação

BM tenta sempre mascarar suas dificuldades com a estruturação da sintaxe

convencional, usando frequentemente gírias e expressões como “tipo”, “cara”, “de

repente”. Por ser bastante jovem, acreditamos que BM se utiliza dessas expressões

como uma tentativa de preservar a face – no sentido que atribui Goffman (1970).

Se apoia nos enunciados dos interlocutores de forma especular, muitas vezes sem

trabalhar sobre o item lexical e na sintaxe convencional, sem reformular o enunciado.

1.4.3. Quanto à relação do sujeito com sua afasia

BM, aparentemente, lida bem com as condições em que se encontra atualmente como

afásico. Com a melhora significativa de aspectos motores relacionados ao seu quadro,

voltou a dirigir e, mais recentemente, retornou ao trabalho. Continua também atuando

como modelo fotográfico. Chama a atenção a foto que ele ainda usa no seu perfil do

whatsapp, tocando baixo. Essa questão impacta os sujeitos de diferentes maneiras,

podendo tanto estar relacionada à tentativa de BM em preservar sua face, como se

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105

nada houvesse mudado em sua vida, ou pode significar o estabelecimento de uma

nova meta. Neste caso, a de voltar a tocar o instrumento.

1.4.4. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos

BM, geralmente, não busca reformular seu enunciado.

Predominam no enunciado fortes marcas da sintaxe interna e da sintaxe-semântica,

nos termos de Akhutina. Poderíamos relacionar o caso de BM ao agramatismo de

nível 2 proposto pela autora – “teria dificuldade de operar com a sintaxe semântica”.

Não há problemas ao nível da formulação da intenção discursiva ou linguagem

interna. O problema é transformar o “coágulo de sentidos” em uma sintaxe-semântica

(ainda interna).

BM teve um AVCi que impactou a região têmporo-parietal esquerda. Este fator

contribuiria para as dificuldades de encontrar palavras e a produção de “fala

telegráfica”, segundo Luria, quando estabelece as relações funcionais entre cérebro e

linguagem.

2. Dados do sujeito BS

Apresentaremos, a seguir, quatro dados do sujeito BS, organizados cronologicamente.

Há dados de episódios dialógicos de sessões coletivas e outros que emergiram de atividades

metalinguísticas com leitura.

2.1. Fala pra mim assim... usando verbo.

O dado a seguir emergiu na sessão de avaliação inicial do sujeito BS, no dia 18 de

março de 2014, conduzida pelos interlocutores/pesquisadores Irn, Imv e Imp e foi conduzida

no gênero entrevista semi-estruturada, a fim de conhecer melhor o sujeito e suas dificuldades

de linguagem. Também participou da sessão a interlocutora Ibs (irmã de BS).

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Irn Como é a sua rotina? Fala pra mim...

Como é seu dia normal.

02 BS Eu... eu... eu... toma...

03 Irn Que horas você acorda mais ou menos?

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04 BS Oito, oito e pouco... aí...

05 Irn

Fala pra mim assim... usando verbo.

Tenta falar pra mim a frase. Não só oito

e pouco... Como é a sua rotina? Fala

pra mim com os verbos. Assim: Eu...

Irn dá o prompting sintático para

“Eu levanto”.

06 BS Eu vou. Não! Eu... Aí não sei!

07 Iib Levanto... Irmã de BS completa o

enunciado.

09 BS Eu levantou...

10 Irn Eu LEVANTO... Irn produz o enunciado no

presente, com ênfase.

11 BS Eu levanto... ah... oito, oito e meia. Aí

depois eu vou... é::... tomá... é::... ai...

12 Irn Você tinha falado antes “banho”.

13 BS Não, não!

14 Imv Você falou que levanta às oito e

depois...

15 BS É... ai... é::...

16 Imp Você pode usar gesto pra mostrar.

17 BS [faz gesto de escovar os dentes]

18 Imp Ah! Escova os dentes!

19 BS

Escova os dentes, aí.... É::... aí... a mãe

toma... é... amanhã... toma o café de

manhã e exercícios... [gestos indicando

musculação ou fisioterapia].

Talvez BS quisesse dizer “a

mãe” e produziu “amanhã”.

20 Irn Onde você faz os exercícios?

21 BS Eu mesmo!

No episódio acima transcrito, podemos ver as dificuldades de BS tanto com a seleção

das palavras funcionais, quanto com os morfemas flexionais. As hesitações que ocorrem ao

longo da produção do enunciado indicam, em geral, os momentos em que ele “busca” a flexão

adequada, mas vemos que BS também apresenta dificuldades de selecionar palavras de

classes abertas, como quando precisa de prompting para produzir “levantar” e “escovar”.

Acreditamos que este seja um dado bastante ilustrativo de como era sua produção inicial.

Como podemos detectar nos turnos abaixo, há em curso processos muito semelhantes

aos que BM lança mão, como o de atuar em especularidade com seus interlocutores, durante a

interação, como ocorre nos seguintes turnos:

07 Iib Levanto...

Irmã de BS completa a

sentença com o verbo

“levanto”.

09 BS Eu levantou...

10 Irn Eu LEVANTO... Irn produz o enunciado.

11 BS Eu levanto... ah... oito, oito e meia. Aí

depois eu vou... é::... tomá... é::... ai...

12 Irn Você tinha falado antes “banho”.

13 BS Não, não!

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14 Imv Você falou que levanta às oito e

depois...

15 BS É... ai... é::...

16 Imp Você pode usar gesto pra mostrar.

17 BS [faz gesto de escovar os dentes]

18 Imp Ah! Escova os dentes!

19 BS

Escova os dentes, aí.... É::... aí... a mãe

toma... é... amanhã... toma o café de

manhã e exercícios...

Talvez BS quisesse dizer “a

mãe” e produziu “amanhã”.

Quando produz “exercícios”, faz

gestos indicando musculação ou

fisioterapia.

No turno 9, BS transita entre os tempos presente e passado. Embora estivesse falando

de sua rotina e devesse, portanto, usar o verbo no presente do indicativo, naquele dia, de fato,

“levantar” já era “passado”. Entretanto, BS não produz “levantei”, mas “levantou”, em

terceira pessoa. No enunciado 11, ele atua em especularidade com Irn e produz o enunciado

adequadamente. Talvez o “ah” produzido nesse turno (entre “eu levanto” e “oito horas”) seja

uma tentativa de produzir a preposição “às”, mas não podemos garantir que seja isso de fato.

O enunciado prossegue bem: “Aí depois eu vou...”, até ser interrompido por uma longa

hesitação que ocorre justamente ao esbarrar em uma dificuldade para encontrar a palavra que

deseja. Embora tenha usado o verbo “tomar”, BS pretendia dizer “escovar os dentes”, o que é

confirmado pelos seus enunciados não-verbais (gesto para “escovar os dentes”).

Desde a primeira sessão, mesmo com muita dificuldade, BS ordenava adequadamente

todos os elementos que pudesse para se fazer entender. Isso, como já vimos, pode indicar a

dificuldade de BS atuar no processo de passagem da intenção (primeiro nível do

funcionamento da relação pensamento-linguagem) para a organização sintático-semântica da

linguagem, ainda relativa à “fala interna” e, posteriormente, para a linguagem externa,

socializada – a sintaxe convencional.

Ao consideramos nas análises os signos não-verbais (como no turno 17), estamos nos

apoiando nos pressupostos da gramática funcional, que considera como relevantes todas as

unidades linguísticas que não podem ser “decodificadas” dentro de um sistema convencional

de língua. Também em termos bakhtinianos, podemos nos referir aos gestos, expressões e

unidades monolexemáticas como “enunciados”.

Antes de passarmos ao próximo dado, julgamos muito relevante destacar a orientação

dada por Irn a BS desde o início, a fim de que ele desenvolvesse mais a atenção sobre os

processos de produção da linguagem. Como BS é um jovem com muitas práticas de

letramento, incluindo a escolarização em nível superior quase completo, Irn solicita que ele

produza o verbo para construir seu enunciado.

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05 Irn Fala pra mim assim... usando verbo.

Tenta falar pra mim a frase. Não só

oito e pouco... Como é a sua rotina?

Fala pra mim com os verbos. Assim:

Eu...

Irn dá o prompting sintático para

“Eu levanto”

Estas mesmas coordenadas foram trabalhadas com BS em todas as sessões individuais

e solicitávamos sempre que ele buscasse preencher as lacunas sintáticas com os verbos, as

preposições, advérbios etc. Segundo Novaes-Pinto58, essas estratégias foram muito produtivas

no trabalho com BS e as atividades com leitura também ajudaram muito para que ele fosse, ao

longo do tempo em que está no CCA, produzindo cada vez menos enunciados com

características mais telegráficas, como fazia inicialmente.

2.2. É DO Brasil ou NO Brasil?

Na sessão do dia 15/10/2015, estávamos falando sobre música, um dos assuntos

favoritos de BS. Uma notícia sobre o Rock in Rio 2015 estava sendo lida por ele59. A

interlocutora Idb resolveu chamar a atenção de BS para uma troca de preposição que ele havia

feito durante sua leitura. Participaram dessa sessão, além de Idb, os interlocutores Iar e Iga. A

seguir, o print da notícia que estávamos lendo60.

58

Notas de orientação e de supervisão do estágio do CCA, na disciplina FN 461, conduzida pela Profa. Rosana

Novaes Pinto. 59

O trecho da notícia era “Várias atrações internacionais do Rock in Rio aproveitam a viagem ao Brasil para

fazer shows em outras cidades. Katy Perry, Queen, Slipknot, System of a Down, Rod Stewart e Faith no More

estão entre os músicos que também passam por mais locais do Brasil”. 60

Essa imagem é o print que demos na tela do site de notícias da G1.com com a finalidade de desenvolvermos a

atividade de leitura com o sujeito BS. Essa matéria está disponível em: http://g1.globo.com/musica/rock-in-

rio/2015/noticia/2015/09/rock-rio-queen-katy-perry-e-outros-tocam-no-brasil-fora-do-festival.html e foi

acessada em: 02/06/16 às 13:00h

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109

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 BS Locais... locais no Brasil... no Brasil61

BS lendo o enunciado escrito.

02 Idb no::?

O interlocutor o questiona sobre

a preposição que ele estava

lendo.

03 BS DO::... ai:: levanta a cabeça como sinal de

que está com dificuldade.

04 Idb Calma!

05 BS

no não! no não!

também pa::ssam por no o: o:: mais

cidades no Brasil

faz sinal com a mão pedindo

calma para os interlocutores e

em seguida retoma a leitura.

06 Igi Mais.....? Não é cidades! Interlocutor indica que ouve

outra troca de palavra.

07 BS ai::

lo::... lo::cais

indicando dificuldade, relê a

palavra.

08 Idb Qual é a letra que começa? Com qual

letra começa essa preposição aqui?

indica com o dedo, no texto, a

preposição “do”.

09 BS d!

10 Idb Então é DO ou NO?

11 BS no!

12 Idb No? É com “d” que começa?

13 BS Não. Então é LO. levanta a cabeça como sinal de

que está sentindo dificuldade.

14 Idb

Então é... Vamo lá.

Oh... “no” é assim... “do” é assim, com

a letra “d”.

Interlocutor escreve as

preposições “do” e “no” em uma

folha de papel.

15 Idb Aqui tá escrito desse jeito... o que está

escrito aqui, então? apontando para a preposição do.

16 BS No

BS faz algumas tentativas

fonológicas, mas não consegue

dizer a preposição “do” e acaba

dizendo novamente “no”.

17 Idb Olha, esquece tudo isso aqui. O que

está escrito aqui? Só aqui.

Interlocutora esconde o restante

das letras com uma das mãos e

deixa apenas a letra d visível.

18 BS d!

19 Idb “d” e “o”... Como é que fala?

20 BS “d” e “o”:: do!

21 Idb e aqui? sinalizando para a preposição

“no”.

22 BS no!

23 Iar Mas tem muita diferença se eu falar no

Brasil e do Brasil?

24 BS Tem pra vocês... pra mim não tem!

[Faz sinal de indiferença com a mão].

25 Iar Oh nessa sentença... Aí... Como é que é? Iar pede para reler a sentença.

26 Idb Músicos que também passam por mais

locais do Brasil.

Idb relê a sentença para o

interlocutor Iar.

27 Iar

Passam por mais locais NO Brasil...

Passam por mais locais DO Brasil...

Tem diferença?

28 Iga Nessa sentença não tem diferença!

61

Neste dado os enunciados sublinhados referem-se àqueles que foram lidos por BS.

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29 BS É:: não tem.

30 Iar Nessa não? Tem certeza?

31 Idb Acho que nessa não, mas em várias

outras faz diferença.

32 Iar

Estão entre os músicos que também

passam por mais locais do Brasil... tá::

Entendemos O que ele vai fazer? Os

músicos vão para o Rock in Rio e::?

Interlocutor relê toda a sentença.

33 BS E depois... BS, nesse ponto, para de falar.

34 Idb O que a notícia está contando pra gente?

Eles vão passar por?

35 BS Vão passar por outros lugares, mas é::

outros lugares passear ou?

36 Iar

Acho que eles irão fazer outros shows

em outras cidades, além do Rio de

Janeiro.

37

BS

Eu... eu... eu... eu entendi. Eu só

pensei é:: que é foda! A minha cabeça

tá voltando ao normal... então é:: o:

que eu... o que eu pensava é:: diante

da sua evidências é que a:: é que a:: é

que o:: “do” e o “no” é totalmente

diferente da::.. da::, mas na minha

cabeça. Mas falar é outra coisa!

Interlocutora Igi dá o prompting

fonológico /en/.

38 Iar

Mas olha só esse “do”! Tá fazendo o

quê aqui? Se a gente diz “a casa é DO

João”, essa caneta é DO Arnaldo.

Agora, esta caneta está NA mesa... tem

alguma diferença aí? entre o “do” e o

“no”?

Interlocutor relê a sentença

usando as duas preposições em

questão.

39 BS O “do” é diferente .

40 Idb Qual é a diferença?

41 BS Por que “no”, digamos é pra pra:: pra...

42 Idb Indicar o quê?

43 BS Isso! indicar é::.. posse e tudo mais.

44 Igi Qual que indica posse?

45 BS

O:: “do”! e o contrário que é o “no” é::

é:: é:: por exemplo a ca:: ca::neta está

na... na mesa

46 Idb Está indicando uma localização?

47 BS É!

48 Idb Oh! Já é um linguista, gente!

Este dado nos revela interessantes aspectos sobre o processo de combinação e seleção

das palavras funcionais por BS. Grande parte do diálogo gira em torno da identificação e dos

significados das preposições “do” e “no”, logo no primeiro turno. A substituição de “do” por

“no” desencadeia uma discussão não só com BS, mas também entre os

interlocutores/pesquisadores linguistas. BS estava correto ao afirmar que naquele contexto

não havia diferença entre os sentidos produzidos pelas preposições e participa ativamente da

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111

interação, como podemos perceber, principalmente, no turno 29, quando confirma o que é dito

por Iga: “Nessa sentença não tem diferença” (turno 28). BS diz: É:: não tem.

23 Iar Mas tem muita diferença se eu falar

no Brasil e do Brasil?

24 BS Tem pra vocês... pra mim não tem!

25 Iar Oh nessa sentença... Aí... Como é que é?

26 Idb Músicos que também passam por mais

locais do Brasil.

27 Iar Passam por mais locais NO Brasil...

Passam por mais locais DO Brasil...

Tem diferença?

28 Iga Nessa sentença não tem diferença!

29 BS É:: não tem.

Sua maior dificuldade foi “ler” a preposição “do”, sempre substituindo por “no”, assim

como também substituiu a palavra “locais” por “cidades”. Como vimos no capítulo 2, quando

apresentamos alguns pressupostos da Gramática Funcional, essas preposições estão dentre as

mais gramaticalizadas, o que significa, por outro lado, que são menos distintivas

semanticamente. O sujeito BS compreende bem os exemplos dados por Idb, Iga e Iar e

confirma que em sua “cabeça”, ele sabe a distinção, mas que o “falar é outra coisa” (turno

37).

Nos parece possível articular as dificuldades de BS aos postulados propostos por

Luria, Leontiev, Vygotsky e Akhutina, no que diz respeito ao fato de a estrutura sintático-

semântica estar relativamente preservada, o que pode indicar um problema na passagem da

linguagem interna para a externa, da estruturação sintático-semântica para a sintaxe

convencional, externa e compartilhada.

O que é comum no agramatismo – ou mais especificamente na produção da fala

telegráfica – é que as palavras funcionais não sejam produzidas. BS, entretanto, já nesta etapa

de sua reabilitação, produz muitas preposições e morfemas flexionais, revelando que se trata

mais de uma dificuldade de seleção. Conforme já foi apontado, no capítulo 02, todas as

estruturas gramaticais são utilizadas pelo falante visando produzir significação e, por isso, as

palavras funcionais sempre estabelecerão relações semântico-referenciais nos enunciados.

Também vale notar que, apesar de não se constituírem como enunciados de estilo

telegráfico, há uma visível relação entre a dificuldade de encontrar palavras e as dificuldades

com a estruturação sintática, como observamos nos turnos 41, 42 e 43, quando BS não

consegue selecionar o verbo indicar [por que “no”..., digamos é pra pra:: pra], ou seja, quando

BS esbarra na falta da palavra, acaba se apoiando na seleção feita por sua interlocutora. Ao

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perceber a dificuldade de BS com a seleção do verbo, ela dá um acabamento ao seu enunciado

e o auxilia em sua formulação.

41 BS Por que “no”, digamos é pra pra::

pra...

42 Idb Indicar o quê?

43 BS Isso! indicar é::.. posse e tudo mais.

Este dado nos mostra que BS, o tempo todo, para enfrentar suas dificuldades, atua

metalinguisticamente sobre seus próprios enunciados. Essa constatação leva Idb, no turno

final, concluir: Oh, já é um linguista, gente?

Interessante ainda mencionar que BS, no turno 24, em tom de brincadeira, também diz

que nós linguistas é que víamos a diferença entre as preposições, não ele, que achava que

tanto “do” quanto “no” produziam o mesmo sentido no enunciado que havia lido.

Voltando a um turno de BS em um dado de BM (dado 1.2.2.), vemos que essa

característica de BS em refletir metalinguisticamente sobre seus enunciados também ocorre

sobre os enunciados dos outros sujeitos.

33 BS Mas, você esqueceu ou não lembrou?

34 BM Não lembrou. Tipo falei: “ca::ra, não sei!”

Tipo não mais.

A pergunta de BS a BM é muito interessante: esqueceu ou não lembrou62. Uma

questão tratada ao longo dos séculos por filósofos. Isso nos mostra que as práticas de

letramento de BS certamente influenciam tanto a neuroplasticidade – em especial porque é um

sujeito jovem – quanto a reorganização e o desenvolvimento de processos linguístico-

cognitivos. Trata-se de um sujeito perspicaz, inteligente, observador e que interage com os

outros sujeitos explicitando como está conseguindo superar suas dificuldades e sugerindo aos

outros afásicos algumas estratégias para driblar a afasia.

Passamos agora a um dado que enfatiza, sobretudo, a dificuldade de BS com a seleção

de morfemas flexionais.

62

Oliveira (2015) trata dessas questões em sua tese de doutorado, quando discute a relação linguagem-memória,

numa perspectiva sócio-histórico-cultural.

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2.3. Qual é o futuro do “falou”?

Este dado emergiu em uma sessão coletiva no CCA, de 15/03/2016. A interlocutora

Imp estava explicando para o grupo porque SF (outro sujeito afásico que frequentava o CCA)

não estava mais indo às sessões. Foi quando BS decidiu contar para o grupo que sua mãe

também sabia os motivos do afastamento de SF.

Turno Sujeito Enunciado Observação

01 Imp

O FS, o ano passado mesmo... eu tentei

falar com uma pessoa da família dele que

trabalha aqui na UNICAMP. Aí ela me

falou que era a questão de trazer mesmo.

Que ele está fazendo fisioterapia. Não sei se

vocês lembram. É que o FS, na verdade, a

dificuldade dele não era tanto do falar, né?

Por que ele ainda tava precisando dessa

coisa de regular, né? É porque... assim... a

medicação::o... daí ele não conseguia ficar

acordado. Então eu acho que tinham outras

coisas envolvidas que ainda precisavam

melhorar.

Imp estava explicando para o

grupo os possíveis motivos pelos

quais o sujeito afásico SF não

estava mais participando das

sessões do Grupo.

02 BS A... a mulher... a mulher dele também tem

probleminha de saúde

03 Imp

Então... O SF... eu, sinceramente, não

acredito que ele volta. Eles não entraram

em contato. Então eu acho que eles não vão

poder voltar mesmo.

04 BS

A:: minha mãe... Diz ela que falou... Não!

Que... que falou não... É:: falou não [faz

gesto circular com a mão apontando para

frente] O futuro do falou... Que... que...

BS faz gesto circular, para frente,

com a mão e indica, verbalmente,

que ele quer produzir a forma

futura do verbo “falar”.

05 Imp Do futuro ou do passado? Que vai falar

com ela?

06 BS

[Fazendo gesto circular com o dedo para

frente] Que iria falar com... com... com

a... com a... com a mulher dele.

07

Imp

Dona Maria63

, né gente?

08 BS

Pra não... não tipo... Não da... da da sua...

da da saúde dela. Mas, daí... depois... eu

não falei com ela também.

09 Imp Mas, vocês têm o telefone dela?

10 BS A mãe tem.

11 Imp

Ah, tá. Entendi. Bom, daí se ela tiver

alguma notícia, né? Daí ela manda para

gente.

63

O nome da esposa de FS foi modificado para preservar sua identidade.

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No episódio acima transcrito, podemos perceber a dificuldade de BS em selecionar a

flexão verbal para expressar o futuro do verbo “falar”. No turno 04, fica evidente que ele tenta

se corrigir, ao perceber que “falou”, no passado, não era a forma verbal que pretendia – já que

sua mãe ainda não havia falado com a esposa de FS.

04 BS A:: minha mãe... Diz ela que falou... Não! Que... que falou não...

É:: falou não. [faz gesto circular, com a mão apontando para

frente] O futuro do falou... Que... que...

Assim como nos dados anteriores, vemos que há uma intensa atividade epi- e

metalinguística no curso da produção de seu enunciado. Esse processo, como vimos,

caracteriza-se pelo vai e volta do pensamento à linguagem externa, passando pelas fases

intermediárias de organização da estrutura sintático-semântica do seu querer-dizer.

No mesmo enunciado, ao fazer o gesto circular, com a mão apontando para frente, BS

compõe a significação enquanto produz a expressão metalinguística: “O futuro do falou”.

Vemos que BS não decompõe a estrutura lexical do verbo “falou” para produzir, por exemplo,

“o futuro de falar”. Sua dificuldade com os morfemas flexionais fica evidente, pois ele usa a

mesma forma neste enunciado o tempo todo. Ao solicitar ajuda de sua interlocutora, mantém

a forma que lhe veio à tona e explicita qual o tempo verbal que gostaria de usar, já que sua

mãe ainda falaria com a esposa de FS. BS só consegue reorganizar seu enunciado quando se

apoiou na construção e na reflexão metalinguística de sua interlocutora, no turno 05:

05 Imp Do futuro ou do passado? Que vai falar com ela?

Desta vez, entretanto, BS não retoma especularmente o enunciado de Imp, para

confirmar que sua mãe vai falar com ela. Em um novo processo de ida e volta, partindo do

enunciado de Imp e reformulando seu próprio enunciado, para expressar seu seu querer-dizer,

BS finalmente seleciona a forma analítica iria falar, que é a que mais se aproxima daquilo que

ele queria narrar – que sua mãe pensou em falar com a esposa de FS, mas não falou e,

provavelmente, nem vai mais falar.

Podemos, mais uma vez, relacionar este dado ao processo dinâmico que Vygotsky

atribui à relação entre linguagem e pensamento.

Para fechar esta análise, retomamos a questão anunciada no capítulo 2, por Ilari &

Basso (2015), que diz respeito ao fato de que o verbo, quando está conjugado, além de portar

um sentido que está expresso em seu radical, transmite informações que são incorporadas a

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115

ele por meio das desinências, considerados em atos de enunciação – o “aqui e agora” da

enunciação em curso.

Vimos que tanto Neves (1994), quanto Camacho (1994) enfatizam a natureza

intrínseca da relação entre forma e significado. Dizer que um sistema é funcional significa que

os sujeitos dele se utilizam para produzir significação. Considerando que BS não é, de fato,

um linguista, vemos que ele adequadamente busca traduzir a “nuvem de sentido” em sintaxe

convencional e não desiste de chegar ao seu querer-dizer, mesmo com todo o esforço

demandado, por sua condição de sujeito afásico. Esse esforço nos remete também à noção de

“trabalho” que respalda a neurolinguística enunciativo-discursiva, que concebe a linguagem

como o resultado do trabalho do falante sobre/com/na linguagem.

2.4 O vício de segurar uma coisa para pensar...

Este dado emergiu em uma sessão coletiva do CCA, em 20/05/2017. BS estava

contando para o grupo sobre as atividades fisioterapêuticas que ele realiza em um centro

especializado de reabilitação na região de Campinas. Nessa ocasião, BS contava também para

o grupo que estava fazendo acompanhamento com a psicóloga desse centro para tentar parar

de fumar.

Turno Sujeito Enunciado Observação

01 Irn

BS, só uma pergunta... que eu não sei se

você falou antes de eu sair. Você diminuiu

o cigarro?

02 BS Diminuí... às vezes.

03 Irn Como assim? Durante a semana?

04 BS

Não! É que é assim... Quando tá tudo bem

na minha casa, dois cigarros eu passo... o...

eu passo o dia. Mas é:: tipo agora,

principalmente... A minha mãe tá muito

debilitada... tipo, por exemplo... é:: de

sábado para domingo ela tava bem. Ela tava

até... até passou o pano na casa e tudo mais.

Domingo e... eu falei pra ela... e eu falei

para ela: “Olha se se HOJE você tá bem,

mas amanhã você não... não é::... Você

não... você pode não... não não [respira

fundo e faz gesto com a mão pedindo

tempo]. É:: a:: [faz sinal com a mão

pedindo tempo] levantar da cama.” “Não

eu tô bem... tô bem... Tá tudo bem”. Dito e

feito!

05 Imp Mas é o quê? Coluna?

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06 BS Não! É:: é artrite e artrose.

07 Irn Esse é o problema... Quando a pessoa tá

bem e abusa, né?

08 BS Aí de domingo...

09 Imp Trava tudo, né BS?

10 BS [balança a cabeça positivamente] Aí de

segunda mais ou menos...

11 Irn Daí por conta disso você esquenta a cabeça,

e vai para o cigarro?

12 BS

É:: É: porque tipo é:: Eu não sei explicar o

o o porquê na verdade. Mas o meu pai é: é::

Estressa e acabou, sabe? Mas, depois de de

cinco minutos ele tá bem! Ago::ra eu, eu

não estresso. Eu... eu calo... eu fico

calado...

13 Ief Fica remoendo.

14 BS Isso! Remoendo, remoendo, remoendo.

Então o cigarro ajuda ajuda a...

15 Ilm Cigarro não ajuda ninguém!

16 AN Faz mal para o pulmão. Um afásico que conseguiu parar

de fumar.

17 BS Eu sei AN... Eu sei AN... Todo mundo

sabe!

18 Imp É que ele fumou e parou. Por isso que ele tá

dizendo.

19 BS

Então! Eu sei que... Todo mundo sabe

que... que cigarro e: e:: e saúde não

combina. Mas o que o que eu falo e: e: é

que assim se é:... Eu sou, eu sou calmo

até demais! Mas quando eu estresso... Eu

estresso ao extremo também. Eu estouro!

Então assim eu... Eu na maioria dos casos,

noventa e nove por cento das vezes eu tô

calmo... Um por cento eu estresso ao

extremo.

20 AN A bala... bala! Sugerindo que BS experimente

chupar bala para evitar o cigarro.

21 BS

A bala não funciona... não funciona

porque... quanto mais, é:: é o vício de

segurar uma coisa para pensar [faz gesto

de estar segurando um cigarro entre os

dedos]. A nicotina, a nicotina não

influencia... não influencia! É é: só...

22 Irn BS, então tenta só segurar! Deixa ele

queimar.

23 BS Algumas vezes, algumas vezes é: é: eu

fumei tipo dois, dois dois...

Faz o gesto de dar uma tragada no

cigarro.

24 Irn Duas...

25 BS Isso! Duas tra... duas tragadas... E o resto

eu só... sabe? Segurou... Segurei... sabe?

26 Iro

Eu entendo o que você está dizendo. É! Não

é a nicotina muitas vezes. É a mente

mesmo.

27 BS Eu preciso fumar pra pra pensar, sabe?

28 Irn É porque ele leu muito o Sherlock Holmes! Em tom de brincadeira.

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29 BS É. Todo mundo sabe que cigarro não

combina com saúde .

30 Irn GB, já fumou alguma vez? Fazendo a pergunta para outra

jovem afásica do Grupo.

31 GB Não!

32 BS

Eu sei e todo mudo sabe... é parar de

fumar... parar de fumar! É: é: igual a

psicóloga falou “de zero a dez quanto

você é: De zero a dez quando quanto

você é:: tem desejo de parar de fumar?” “Cinco!” Eu... eu falei “cinco!” Eu falei

cinco porque tipo uma coisa é parar de

fumar porque a nicotina a: ata: atacou e

tudo mais. Outra coisa eu... na maioria

das vezes... é... tipo duas duas... Ai!

Olha para Irn pedindo ajuda com

a palavra que ele já havia

produzido uma vez.

33 Irn Tragadas.

34 BS Tragadas.

35 AN (EI)* Enunciado ininteligível por

imprecisão articulatória.

36 Irn Você parou de uma vez, AN?

37 AN [faz gesto com o polegar positivamente] e

[aponta para a direção do HC]

38 Imp Ah, você fez o tratamento?

39 AN [faz gesto com o polegar positivamente].

40 BS

Quando eu tive o AVC, eu parei de fumar

um ano e meio... um ano e meio... Eu

comecei a digamo::os... conse... conseguir

[olha para o teto e faz gesto com a mão

pedindo tempo] conseguir!

41 Ief Quando você melhorou?

42 BS

É:: mais ou menos melhorei... tanto físico

quanto na cabeça. Eu preciso é: é uma

coisa me diz pra eu fumar, sabe?! Que

tipo é:: é::

43 Imp O vício voltou com tudo!

44 BS É [balança a cabeça positivamente].

45 Imp Mas você chega lá! Continua que dá!

Podemos perceber que, no dado acima transcrito, apesar de BS usar as palavras

funcionais em seus enunciados, estes são produzidos com muitas hesitações, em especial

quando ele esbarra na dificuldade de encontrar palavras ou quando precisa selecionar

morfemas flexionais. Citamos, a seguir, Um exemplo das marcas hesitativas ao longo de um

trecho do turno 4: “Olha se se HOJE você tá bem, mas amanhã você não... não é::... Você

não... você pode não... não não [respira fundo e faz gesto com a mão pedindo tempo]. É:: a::

[faz sinal com a mão pedindo tempo] levantar da cama.” “Não, eu tô bem... tô bem... Tá tudo

bem”. Dito e feito!”.

Além da dificuldade de selecionar palavras que completem o enunciado, BS

demonstra visivelmente seu esforço, ao respirar fundo e solicitar tempo de seus interlocutores.

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Isso nos faz lembrar das primeiras descrições do agramatismo nas quais os autores reportam

uma fala laboriosa e hesitativa. Neste dado, é como se BS estivesse mostrando, em câmera-

lenta (Coudry, 1988 [1986]), a construção de seu enunciado, passo-a-passo, e as várias etapas

de sua elaboração: “Você... não é:... Você não... Você pode não... não... não...”. Novamente

pede tempo antes de completar o enunciado “levantar da cama”.

Usa o discurso direto para dizer o que aconselhou para sua mãe – não fazer muito

esforço físico, porque senão sentiria dor. Novamente, em estrutura de discurso direto, refere-

se ao enunciado da mãe, como se ela tivesse lhe respondido “Não, eu tô bem... tô bem... Tá

tudo bem”.

Esses fatos evidenciam que BS ainda tem dificuldades de organização sintática,

embora já não produza enunciados tipicamente de estilo telegráfico. Na maioria dos casos, ele

consegue reelaborar e reorganizar sua fala, tanto quando se depara com a dificuldade de

seleção lexical, quanto com as dificuldades com as palavras funcionais – principalmente a

morfologia flexional.

Isso fica claro no turno 25:

25 BS Isso! Duas tra... duas tragadas... E o resto

eu só... sabe? Segurou... Segurei... sabe?

Entretanto, vemos que na maioria dos seus turnos (12, 19, 21, 32), BS produz

enunciados completos, sintaticamente bem organizados, o que demonstra que ele vem

desenvolvendo de forma bastante adequada as atividades linguístico-discursivas, embora

muitas vezes se utilize de estratégias que visam mascarar suas dificuldades perante seus

interlocutores, como quando diz a expressão “digamos”, objetivando também ganhar tempo

para reorganizar seus enunciados.

Vale destacar outra questão interessante que observamos nos dados e que não estão

diretamente relacionados à produção de enunciados de estilo telegráfico. Novamente BS se

refere ao fato de que sua “cabeça” está melhorando e que para “pensar” precisa segurar um

cigarro. Para ele, o vício não é a nicotina, mas o hábito de segurar o cigarro enquanto pensa.

Ou seja, é mais uma forma de expressar que precisa de mais tempo para desenvolver as

atividades linguístico-cognitivas complexas. Isso nos faz voltar à hipótese de Kolk et al.

(1985) acerca da fala telegráfica como uma adaptação do sujeito com dificuldades sintáticas

(agramatismo). Para os autores, a produção da fala telegráfica se relaciona com essa

capacidade dos sujeitos produzirem os enunciados sem as palavras funcionais que

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demandariam muito tempo para serem produzidas. Talvez o caso de BS possa corroborar essa

hipótese de Kolk et al. Entretanto, veremos que isso não pode ser generalizado para todos os

sujeitos. Os próximos dois casos que veremos – de TR e GB – nos mostram que esta visão, de

fato, pode ser considerada “simplista”, uma vez que mesmo se tivessem todo o tempo

disponível, não conseguiriam produzir as palavras funcionais e morfemas flexionais.

A partir do modelo proposto por Akhutina, esse episódio evidencia que as estruturas

elípticas são resultantes de uma dificuldade de operar com a sintaxe convencional da língua.

Ou seja, o sujeito consegue transpor os níveis da sintaxe interna e da sintaxe-semântica, mas,

no entanto, a sua maior dificuldade está na expansão sintática – na direção de uma sintaxe

convencional. Segundo Akhutina (2003), um caso como o de BS, em sua fase atual,

corresponderia ao nível menos severo de agramatismo.

2.5. Síntese das questões relativas à produção de BS

2.5.1. Quanto à produção de palavras funcionais e de morfologia flexional

No início do quadro, logo após o AVC, BS não produzia palavras funcionais e tinha

evidente dificuldade tanto com a produção do verbo, como com as flexões verbais.

Considerando sua condição atual, observamos que, apesar de ainda ter relativa

dificuldade com a estruturação sintática, BS atua epi- e metalinguisticamente o tempo

todo, usando adequadamente palavras funcionais e a morfologia flexional adequada,

apesar de produzir os enunciados mais devagar. Ainda faz algumas parafasias na fala,

envolvendo palavras funcionais, assim como na leitura produz paralexias.

Trabalha o tempo todo sobre sua produção, voltando ao seu dizer e reformulando-o.

2.5.2. Quanto às estratégias alternativas de significação

BS, ao esbarrar em alguma dificuldade com a estruturação de seus enunciados, se

utiliza de expressões cristalizadas como “digamos”, “é que é assim...”, o que lhe dá

mais tempo, ao longo do processo dialógico, para reorganizar seus enunciados.

Embora com pouca frequência, BS também se utiliza de gestos e expressões

fisionômicas para compor seus enunciados.

Em alguns momentos, volta-se para alguns interlocutores que sabem mais fatos de

suas vidas para que o auxiliem na produção de uma determinada palavra ou nome.

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2.5.3. Quanto à relação do sujeito com sua afasia

BS é um sujeito afásico que reflete muito sobre as dificuldades linguísticas que lhe

foram impostas pela afasia.

Frequentemente fala sobre “o que acontece na sua cabeça”, quando se depara com

alguma dificuldade e como busca resolver o problema. Refere-se sempre à sua

melhora no processo e a atribui ao fato de participar do CCA.

BS tem se mostrado muito colaborativo com os outros sujeitos afásicos e sempre que

tem oportunidade fornece dicas sobre como driblar as dificuldades com a estruturação

dos enunciados.

2.5.4. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos

Seguindo as hipóteses de Akhutina, na fase atual, BS teria ainda algumas dificuldades

relativas à estruturação da sintaxe convencional. Para ela, este seria o nível mais

“leve” de agramatismo. O agramatismo tipo 3 – que apenas tem dificuldades na

externalização da sintaxe convencional, nas atividades comunicativas.

BS sofreu um AVCi em outubro de 2013, que provocou lesão nos territórios

superficial e profundo da artéria cerebral média esquerda. Seus exames de imagem

mostram lesão na região fronto-têmporo-parietal. A lesão de BS comprometeu áreas

que estão relacionadas à organização dos enunciados, principalmente, às questões

espaciais (da linguagem) o que traria dificuldades com estruturas sintáticas complexas

como, por exemplo, o uso de voz passiva e a utilização de palavras relativas para a

produção de discurso indireto.

3. Dados do sujeito TR

Apresentaremos, a seguir, quatro dados de TR. Os dados transcritos seguem a ordem

cronológica de produção, sendo os dois primeiros resultantes de episódios dialógicos em

sessões do CCA – coletiva e individual – e os dois últimos ao longo do desenvolvimento de

atividades de caráter metalinguístico, descritas no capítulo 4.

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3.1. Isso! Um dois...

Este episódio é um recorte da primeira participação de TR no grupo 3 do CCA, em

28/09/2010 quando ela se apresenta e conta alguns fatos de sua vida. TR conheceu o grupo

por intermédio de Iip64

, que também a acompanha nessa sessão65

.

64

Profa. Dra. Ivone Panhoca, que desenvolveu pós-doutorado no IEL, e que havia conhecido TR na clínica

fonoaudiológica da PUCC, onde lecionava. 65

Esta transcrição foi adaptada da dissertação de Mestrado de Nandin (2013), que buscou investigar a relevância

dos enunciados não-verbais para o alcance do “querer-dizer”, intitulada Possibilidades narrativas de sujeitos

com afasias severas de produção: o papel dos signos não-verbais para alcançar o “querer-dizer” (2013, p. 48-

50), que pode ser acessado em http://repositorio.unicamp.br/

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Irn E daí, TR? Conta mais sobre você então.

02 TR Eu? Olha para Iip e sorri.

03 Iip Fala como o seu marido chama. Como

que ele chama? [aponta atrás dela].

04 TR Osvaldo.

05 Iip Osvaldo. A dona TR tem uma filha que

chama...

06 TR [[Janaína, Janaína, Janaína.

07 Irn Uma só?

08 TR Uma, uma. [Faz gesto de “um” com o

indicador da mão esquerda]. Obrigado,

obrigado! [olha para cima e põe a mão

no peito].

09 Irn Ainda bem! Ri com o grupo

10 TR [Gargalha]

11 TR Tudo, tudo, obrigado! [leva a mão ao

peito]

12 Irn Quantos anos ela tem?

13 TR Dez... [mostra cinco dedos na mão

esquerda] nove [mostra quatro dedos]

14 Irn Nove anos?

15 TR Não!

16 Iip Dez mais nove anos. Dezenove anos.

17 Irn Ah, dezenove anos.

18 TR [faz sinal de positivo com o polegar]

Aham. [balança a cabeça positivamente]

19 Irn Ah, dezenove anos! Já é moça.

20 TR [acena com a cabeça positivamente]

21 Irn E ela mora com você?

22 TR Isso! [acena com a cabeça

positivamente]

23 TR Marcelo... homem. Cutuca Iip que estava ao seu

lado.

24 Irn Quem é Marcelo?

25 TR [aponta para fora] Ri olhando para Iip.

26 Iip Namorado?

27 TR [dá gargalhadas e acena com a cabeça

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positivamente]

28 Iip Âhh? No meu tempo não tinha!

29 Irn Não tinha no seu tempo!

30 TR [continua gargalhando e aponta para Iip]

31 Iip No meu tempo ela não tinha namorado.

Tem um genro, agora?

Pergunta olhando para TR.

32 TR Isso! Um, dois.

33 Irn Mas não tem... Olhando para TR.

34 TR Não, não [faz gesto negativo com o

indicador]

35 Irn Não... Eu ia falar se ia casar, mas não.

Namorado, tá. E ela trabalha?

36 TR Isso. [acena positivamente com a

cabeça]

37 Irn E ela estuda também ou só trabalha?

38 TR [acena com a cabeça positivamente]

Não, não! Tudo, tudo!

39 Irn Estuda também?

40 TR Isso! [acena positivamente com a

cabeça]

41 Irn E o seu marido, o quê ele faz?

42 TR Ai, ai... [olha para Iip].

43 Irn Óh, não olha para a Iip não, que a Iip

sabe tudo da sua vida; nós é que não

sabemos.

44 TR Iip [gargalha]

45 Irn O quê que ele faz?

46 Iip Deixa eu lembrar o que ele faz...

47 TR Osvaldo... [olha para Iip e começa a

elevar a mão esquerda].

48 Iip Quê que ele faz?

49 Irn Quê que ele faz? Dá uma pista pra

gente, quê ele faz?

50 TR Ai, ai [continua olhando para Iip]

51 Iip Ele tá aposentado?

52 TR Isso, isso [acena positivamente com a

cabeça].

53 Irn Ah, é aposentado?

54 TR Isso, isso [aponta para Iip].

55 Iip Então fala... a-po-sen-ta-do. Fala silabando para TR

56 TR [[TA-DO

57 Irn E onde você conheceu Iip?

58 TR [olha para Iip]

59 Iip Na...

60 TR Priscila, Priscila.

61 Irn Priscila?

62 Iip Foi a Priscila, mas como que chama o

lugar que você ia?

63 Irn Mas o quê é Priscila? Tem alguma coisa

a ver?

64 Iip [faz sinal de positivo para Irn].

65 Irn Tem?

66 Iip Vai, o que é Priscila? [olha para TR e

aponta para Irn].

67 Irn O que é Priscila?

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Neste dado, primeiramente, gostaríamos de destacar que TR, a todo momento, deu

acabamento adequado a todos os enunciados de suas interlocutoras, o que demonstra uma

compreensão relativamente preservada, apesar da severidade na produção, e que permite o

desenrolar do processo dialógico.

Seus enunciados são bastante telegráficos e caracterizam-se, sobretudo, pela produção

de algumas estereotipias: “isso... isso” e “um, dois... obrigada”, ou “tudo... tudo...”. Um

exemplo típico de seu enunciado é o que se encontra no turno 32: “Isso! Um, dois!”; outro é

o turno 38: “Não, não... Tudo, tudo! As palavras produzidas são predominantemente nomes

próprios, relativos às pessoas de sua convivência – o nome do marido, da filha, do genro e da

estagiária que trabalhava com ela no momento.

68 TR [aponta para Irn e balança a cabeça].

69 Iip O quê que a Priscila é sua? Vi...

70 Irn Ah, tá...

71 Iip O que a Priscila é sua? Vi... zi... Dando prompting para “vizinha

72 TR [[ta

73 Irn Vizinha?

74 TR Isso! [sinal de positivo com a mão].

75 Irn Então é alguém que já conhecia.

76 TR Isso. [acenando com a cabeça].

77 Irn A Priscila já conhecia a Iip e levou você

para lá.

78 TR Aham! Um, dois [acenando com a

cabeça].

79 Irn Mas, a Priscila, ela também... ia nessas

reuniões?

80 TR Não, não! [nega com o dedo indicador]

81 Iip O quê que ela era?

82 Irn O quê ela fazia?

83 Iip Olha para essas meninas. [aponta para as

outras pesquisadoras da mesa].

84 TR [Sorri e olha apontando para as

pesquisadoras].

85 Iip Quê que a Priscila era lá na PUC?

86 TR [Sorri e aponta para as pesquisadoras

bem na sua frente].

87 Ipr Aluna?

88 TR Isso! [sorri e faz sinal de positivo com a

mão].

89 Irn Ah tá, então a Priscila era aluna da Iip e

te conhecia e levou você para conhecer

lá.

90 TR [[Isso, isso! [balança a cabeça

positivamente e mostra o polegar]

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O único enunciado no qual TR ordena dois elementos lexicais é o turno 23:

Vale destacar, entretanto, que na maioria dos turnos, TR produz enunciados não-

verbais, seja para concordar ou discordar de suas interlocutoras. Quando Irn e Iip afirmavam

algo relativo ao seu querer-dizer, ela logo diz: “isso”, acenando a cabeça positivamente –

recurso do qual lança mão até hoje de forma muito produtiva. Do contrário, produz “não”, ou

“não... não”.

Vemos, neste primeiro dado, que alguns gestos de TR dão pistas sobre o que ela

quer/precisa dizer. Entretanto, ela mais acena a cabeça concordando ou olha para Iip, que a

conhecia, solicitando auxílio para responder a Irn. Apenas no turno 86 temos um enunciado

não-verbal que estabelece a significação pretendida por ela: [Sorri e aponta para as pesquisadoras

bem na sua frente], para afirmar que Priscila era uma estagiária do ambulatório de fonoaudiologia.

É importante destacar que as produções de TR – muitas delas não-verbais – só podem

ser consideradas “enunciados” em uma perspectiva enunciativa. Da mesma forma,

compreender os enunciados monolexemáticos de TR como estruturas significativas é coerente

com as concepções da Gramática Funcional, já que esta considera que a principal função da

língua é a de estabelecer comunicação e que, para atingir o querer-dizer, o falante pode

manipular recursos maiores ou menores que a sentença (Camacho, 2006).

O modo como as significações foram construídas, no episódio acima descrito, dá

visibilidade, também, para o fato de que o sistema sintático da língua não pode ser separado

de características semânticas e, primordialmente, pragmáticas.

A respeito da dificuldade com as questões sintáticas, este dado permite

compreendermos uma fase do processo de elaboração de um enunciado. TR parece estar

operando adequadamente com os recursos da sintaxe interna ou sintaxe pragmática

(Akhutina, 2003), com sujeitos e predicados psicológicos. Ao se fixar em um elemento

lexical (em geral um nome), TR consegue chamar a atenção de seus interlocutores para o que

ela considera novo. Nas formulações de Vygotsky e, posteriormente, de Akhutina, TR estaria

lidando com a sintaxe dos sentidos subjetivos. O que TR traz à tona em sintaxe convencional

ainda se assemelha ao coágulo de sentidos que precisa ser transformado em significação

externa, por meio de estruturas sintáticas convencionais da língua. Nesta fase, entretanto, TR

ainda conta substancialmente com a ajuda de suas interlocutoras para que a ajudem a externar

os sentidos pretendidos.

23 TR Marcelo... homem.

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Novaes-Pinto (2013) acredita que as estruturas sintático-semânticas produzidas por TR

na forma de estereotipias binárias: sim/não; um/dois; tudo/tudo podem ter sido desenvolvidas

por meio de práticas fonoaudiológicas muito mecanicistas e tenham se cristalizado nessas

formas. Por conta disso, optamos por incentivar que ela desenvolvesse a atividade não-verbal,

refinasse a produção gestual, sobretudo visando ser melhor compreendida.

3.2. É importante cuidar da saúde

Em geral, iniciamos as sessões individuais de atendimentos aos afásicos com uma

conversa mais informal. Esse momento é usado como oportunidade para escutarmos mais

(sobre) os sujeitos, antes de passar para as atividades mais especificas planejadas para o

acompanhamento. Este dado emergiu nesse contexto de interação inicial, entre os sujeitos TR

e Iar, em 04/04/2016.

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Iar É importante cuidar da saúde.

02 TR Tudo, tudo... Tudo.

03 Iar Não pode descuidar.

04

TR

Oh! Hoje, hoje, hoje... Homem, homem [faz

sinal mostrando os cabelos balançando].

05 Iar Seu JF?

06 TR Não, não... Homem.

07 TR [Faz sinal com o dedo, apontando para a

direção da sala da sessão coletiva]

homem, homem [faz gesto mostrando os

cabelos balançando]

08 Iar Ah! O BS?

09 TR Isso, isso... Olha! [coloca as mãos na cabeça,

como sinal de indignação]

10 Iar Você está falando do amigo do BS, que teve um

infarto?

11 TR Isso, isso, isso.

12 Iar Nossa, muito novo, né, TR?

13 TR Isso. Tudo, tudo... Olha, olha, olha.

14 Iar É, a gente fica assustado quando isso acontece,

né?

15 TR Nossa, tudo! Janaína, Marcelo... Obrigado.

Tudo, tudo, tudo. Olha

16 Iar Eu fico assustado também, quando isso

acontece.

17 TR Onde? Tudo! Olha!

18 Iar Mas, você está falando do BS ?

19 TR Isso, isso!

20 Iar Ou do amigo dele?

21 TR Não, não... Isso! [apontando para a direção da

sala da sessão coletiva].

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22 Iar Muito jovem, né TR?

23 TR Nossa, nossa... Tudo! Mamãe? Papai? Não?

[faz gesto que indica indignação com as mãos

e cabeça] homem, homem! Ai, Deus! Tudo,

tudo... Homem, homem. Onde? Onde? Olha!

24 Iar E você pensando que era a mãe.

25 TR Mamãe? Não?! Olha! [faz gesto que indica

indignação] Deus! Onde? Onde?

26 Iar Dá um susto, né, TR? Quando é muito jovem

assim, a gente não espera, né?

27 TR [faz gesto que indica indignação com a cabeça]

Mamãe, não! Ai, meu Deus!

28 Iar É como minha mãe fala... Toma cuidado! Cuide

da saúde! Vá ao médico!

29 TR Tudo, tudo!

Este dado demonstra já uma grande diferença com relação aos enunciados de TR no

dado anterior – tanto verbais, quanto não verbais. Sem dúvida, são os enunciados não-verbais

que mais auxiliam TR para que chegue em seu querer-dizer.

O tema desenvolvido com TR, sobre cuidar da saúde, veio à tona porque nesse dia,

durante a sessão coletiva, o sujeito BS contou ao grupo que um de seus amigos, muito jovem,

havia falecido em decorrência de um infarto. Iar chama a atenção de TR para a importância de

se manter os exames em dia, ter uma alimentação saudável etc, quando ela começa a narrar

uma situação que havia acontecido há mais de um ano.

TR produz um enunciado composto por signos verbais e um signo não-verbal no turno

04 [Oh! Hoje, hoje, hoje... homem, homem [faz sinal mostrando os cabelos balançando]]

para chamar a atenção sobre quem ela desejava falar. Ao perceber que não havia sido

compreendida, TR reformula seu enunciado, apontando para a sala onde acontecem as sessões

coletivas do grupo, com o intuito de reforçar a ideia de que ela estava falando sobre alguém

que estava presente na sessão daquele dia. Quando ela aponta para a sala de reuniões e faz

sinal com as mãos mostrando os cabelos balançando, foi possível compreender que TR estava

se referindo ao sujeito BS, que é homem e tem os cabelos compridos. TR começou a contar

sobre o que aconteceu quando o sujeito BS foi ao grupo pela primeira vez.

Na primeira vez em que foi ao CCA, o jovem afásico BS entrou na sala acompanhado

de seus pais66

. TR então contou – usando apenas palavras de classes abertas – que ficou

bastante surpresa ao perceber que um rapaz tão jovem estava afásico em decorrência de um

AVC. BS sofreu um AVC com 24 anos de idade, assim como BM. TR diz, no turno 23

[Mamãe? Papai? Não? [faz gesto que demonstra que ela está indignada, quando põe as

66

Sempre que um novo integrante chega ao nosso grupo no CCA, fazermos uma interação com o sujeito e seus

acompanhantes, com o objetivo de apresentá-lo ao grupo, com a eventual ajuda de seu(s) acompanhantes(s).

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127

mãos na cabeça] homem, homem! Ah, Deus! Tudo, tudo... homem, homem. Onde? Onde?

Olha!]

Essas estruturas gramaticalmente fragmentadas, nesse caso de apenas três palavras e

sem a produção de palavras funcionais, constituem-se como enunciados inteiros. TR, além de

se utilizar do contexto, do tópico discursivo e de toda a situação pragmática que estavam

imbricadas nesse episódio dialógico, também se apoia nos enunciados de Iar para ir

estabelecendo as relações de sentido. Um aspecto importante na construção de significação

nos enunciados de estilo telegráfico é a ordem das palavras selecionadas. Vemos que TR

combina, de forma competente, os poucos elementos lexicais de seu enunciado em uma

ordem que possibilita que o seu interlocutor a compreenda.

3.3. TR e a compreensão de palavras funcionais

Este dado emergiu de uma atividade desenvolvida em uma sessão individual com TR

em 27/10/2015. A atividade consistia em tentar resolver algumas charadas, com o objetivo de

observar se o sujeito compreendia as palavras funcionais e estabelecia relações entre os

elementos linguísticos presentes. Participaram dessa atividade o interlocutor Iar e duas

estagiárias da Fonoaudiologia. Apresentaremos, a seguir, um quadro com as charadas que

foram feitas, bem como as respostas dadas por TR67

.

Charada

Res

po

sta

esp

era

da

Res

po

sta

(TR

)

01 ... o céu que não possui estrelas? Céu da boca Céu da boca

02 ... que dá muitas voltas e não sai do lugar? Relógio Ventilador

03 ... que é surdo e mudo, mas conta tudo? Livro Telefone

04 ... que sobe quando a chuva desce? Guarda-chuva Guarda-chuva

05 ... que cai em pé e corre deitado? Chuva/enxurrada chuva

06 ... que anda com os pés na cabeça? Piolho Piolho

07 ... que sempre se quebra quando se fala? Segredo Silêncio

08 ... que tem mais de 10 cabeças, mas não sabe pensar? Caixa de fósforos fósforos

09 ... que quanto mais cresce, mais baixo fica? Cabelo Batata

10 ... que corre na casa inteira e depois vai dormir no canto? Vassoura vassoura

11 ... que tem pernas, mas não anda, tem braço, mas não abraça? Poltrona Cadeira

67

Este jogo: “O que é o que é...?” foi descrito no capítulo 4.

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12 ... que é feito para andar, mas não anda? Rua Moleta

13 ... que caminha sem pé, voa sem asa e pousa onde quiser? Pensamento TR não conseguiu

responder

14 ... que fica cheio durante o dia e vazio à noite? Sapato Sapato

Apesar de TR não ter conseguido responder à charada 13, é interessante destacar que

ela conseguiu compreender todas as perguntas feitas. Em muitas delas, a relação de sentido é

estabelecida pelo uso de palavras funcionais, como a charada 12 [... que é feito para andar,

mas não anda?], que expressa uma contradição estabelecida pelo uso da preposição para (que

indica finalidade) e a conjunção adversativa mas. Algumas das respostas dadas por TR não

eram as esperadas por nós, pesquisadores, mas foram coerentes para resolver as charadas. As

respostas nos dão pistas sobre as dificuldades (ou não) para TR compreender o papel das

palavras funcionais nos enunciados. É preciso também esclarecer que TR não deu as repostas

diretamente, sem construir os sentidos junto com o interlocutor. Um exemplo do processo

dialógico que levou TR a “matar a charada” é dado em seguida:

Charada 2 “O que é o que é ... que dá muitas voltas e não sai do lugar”?

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Ief O que é o que é que dá muitas voltas e não sai

do lugar?

02 TR Isso, isso.

03 Ief Fica dando voltas e não sai do lugar.

04 TR Eu... Não, não. Um dois...

05 Ief O que fica rodando e não sai do lugar?

06 TR Hoje, água não [faz gesto de chuva com a

mão].

07 Ief Hoje você não tem água na sua casa?

08 TR Não, não... Nada, nada! Não, não [aponta para

o casaco de frio] e [aponta para o teto]

09 Ief Vai chover?

10 TR Não, não [aponta para o teto e para o ar

condicionado]

11 Iar Você está falando de tempo?

12 TR Isso.

13 Iar Você tá falando do relógio?

14 TR Não, não [faz sinal de negação com o dedo

indicador] e [aponta para o teto fazendo

movimento de girar com o dedo].

15 Ief Ventilador?

16 TR Obrigado!

17 Ief Olha, tá acertando todas!

Este trecho nos mostra como TR lida com sua dificuldade para encontrar palavras. O

intrigante é que ela parece escolher um “caminho mais longo” para chegar ao seu querer-

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dizer. No turno 06 [Hoje, água não [faz gesto de chuva com a mão]], TR elabora um

enunciado inteiro para falar sobre as condições climáticas, com o objetivo de estabelecer uma

relação entre o clima e o objeto que ela deseja nomear, ao invés de tentar fazer o gesto que

lembre um ventilador.. Aponta para o teto e para o ar condicionado [Não, não... nada, nada!

[aponta para o casaco de frio] e [aponta para o teto] não, não].

Já no turno 10, TR parece mudar de estratégia e tenta estabelecer a relação entre os

objetos (ventilador e ar-condicionado), utilizando-se de recursos não-verbais [Não, não

[aponta para o teto e para o ar condicionado]]. Quando o interlocutor pergunta se ela está

falando sobre o relógio (que é a resposta esperada para a charada), TR enfatiza que não e,

mais uma vez, muda de estratégia. Desta vez, TR faz o gesto para remeter ao objeto que

pretendia nomear: ventilador.

Mais uma vez, chamamos a atenção para a ordem dos elementos selecionados por ela,

que é um aspecto fundamental para a (re)construção de sentidos nos momentos de interação

verbal. TR busca combinar os elementos lexicais, de forma que o interlocutor compreenda o

seu querer-dizer. Ao dizer [Hoje, água não [faz gesto de chuva com a mão]], quando usa a

estrutura de tópico com [Hoje], TR chama a atenção de seus interlocutores para o fato de que

ela está falando daquele dia em específico e que naquele dia não iria chover.

3.4. O que ele está fazendo?

Este episódio emergiu em uma sessão individual em 04/04/2016, em que

desenvolvemos a atividade Adivinha o que ele está fazendo? – descrita no capítulo 4. Era

mostrada a TR uma figura e lhe era perguntado o que o homem da imagem estava fazendo,

com o objetivo de avaliar como TR produziria os verbos. A seguir, transcrevemos como ela

chegou às formas verbais para descrever duas ações expressas nos cartões.

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Turno Sujeito Enunciado Observações

01 TR Carro, carro... hoje.

02 Iar Tá no carro?

03 TR Isso.

04 Iar E o que ele está fazendo no carro?

05 TR Homem... um, dois [faz gesto como se

estivesse batendo em alguma coisa]

06 Iar Buzinando?

07 TR Não... [faz gesto de colocar o cinto de

segurança].

08 Iar Colocando o cinto?

09 TR Isso... Um, dois... Carro... Isso, isso...

aham.

10 Iar Ah, então ele está colocando o cinto?

Posso olhar?

11 TR Isso! Aham...

12 Iar A::h! Tá. Mas e aqui? Se ele já entrou

no carro, já colocou o cinto... E agora, o

quê que ele faz?

Iar confere a figura.

13 TR Araraquara, não... Valinhos... um,

dois.

14 Iar Quando o seu Osvaldo vem de Valinhos

para cá, ele vem...

15 TR Carro, carro.

16 Iar Sim, de carro. Então, ele vem di:: Prompting para o verbo dirigir

17 TR [[ri-gin-do.

18 Iar Isso, dirigindo!

19 TR [[ri-gin-do... nossa, olha!

20 Iar E você, vem fazendo o quê?

21 TR Eu?

22 Iar Você vem dormindo? Ou você vem

conversando com ele?

23 TR Não, não... Isso! [faz gesto como se

estivesse mexendo em alguma coisa e

começa a cantarolar]

24 Iar Ah, vem escutando música!

25 TR Isso!

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Estes dois episódios, transcritos acima, nos revelam a interdependência dos níveis

sintáticos, assim como propôs Akhutina. TR, para chegar à forma do gerúndio – tanto do

verbo dirigir, quanto do verbo fumar – precisou operar metalinguisticamente sobre os

recursos convencionais da língua.

Essa operação metalinguística pode ser observada entre os turnos 12 e 17 na

transcrição referente à primeira imagem. Quando TR responde a pergunta do interlocutor

usando apenas a palavra carro, carro ela não estava operando no nível da sintaxe

convencional, mas no nível da sintaxe interna, onde uma palavra é saturada de sentido. Em

termos vigotskyanos, como vimos, pode significar uma sentença inteira. No entanto, quando é

dado o prompting [então ele vem di::...], o interlocutor lhe fornece elementos da estrutura da

sintaxe convencional, possibilitando que TR tenha condições de trabalhar

metalinguisticamente para produzir o verbo com a flexão adequada. Nesse mesmo contexto,

podemos perceber também a intrínseca relação da produção de enunciados de estilo

telegráfico com os processos de encontrar palavras. Podemos inferir que TR teve dificuldades

de encontrar a palavra dirigir para responder a pergunta de seu interlocutor e, por isso, usou a

palavra carro. Isso nos parece evidente porque quando Iar, em extensão do prompting

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 TR Homem [aponta para o interlocutor Iar]

02 Iar Eu?

03 TR [Faz gesto de negação com a mão]

04 Iar O que ele está fazendo?

05 TR Eu... nossa!

06 Iar Você, no passado?

07 TR [Faz gesto como se estivesse

segurando um cigarro]

08 Iar Você fu:... , no passado... Iar dá prompting para fumava.

09 TR [[-mou

10 Iar No passado, você fu:-ma::... Extensão do prompting

11 TR Ai Deus... olha!

12 Iar Você fuma hoje?

13 TR Não, não... Obrigado!

14 Iar Mas, no passado... você fu...

15 TR Isso, isso.

16 Iar Você fumava no passado?

17 Iar Então, o que ele está fazendo aqui?

Então?

Apontando para a figura.

18 TR Fu:me::i

19 Iar Fu:...

20 TR Fu::mei

21 Iar E ele? Ele está...

22 TR Fu-man-do.

23 Iar Mas, você fumava muito, TR?

24 TR Aham.

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132

sintático, dá um prompting fonológico para o verbo dirigir, TR produz o verbo já no

gerúndio. Esse apoio de TR nos enunciados de Iar corroboram, ainda, os postulados da

Gramática funcional, relativo ao fato de que as estruturas linguísticas resultam de

necessidades semânticas e pragmáticas. Dado todo o contexto de produção desse verbo, TR

conseguiu inferir que o gerúndio era o mais adequado. Essas mesmas questões afloram no

segundo dado, quando TR busca selecionar as flexões adequadas para o verbo fumar. É

interessante ressaltar que TR chegou às flexões que pretendia se apoiando nas pistas

semântico-referenciais de seu interlocutor, sobre as flexões adequadas –– e TR, a partir dessas

pistas, conseguiu produzir os verbos adequadamente. Isso nos remete ainda à concepção de

linguagem como resultado do trabalho que vem sendo desenvolvida pela Neurolinguística

desde Coudry (1988[1986]) – de que os sujeitos operam sobre os recursos da língua em um

constante jogo de negociação de sentidos e significados.

3.5. Síntese das questões relativas à produção de TR

3.5.1. Quanto às palavras funcionais

TR não produz palavras funcionais em seus enunciados e raramente produz

flexões verbais. Quando produz, geralmente o faz em especularidade com seus

interlocutores. Na maioria das vezes, apenas com prompting extendido.

3.5.2. Quanto às estratégias alternativas de significação

TR desenvolveu estratégias alternativas de significação para explicitar as

informações semântico-referenciais que as palavras funcionais desempenham

nos enunciados da língua. Consegue utilizar-se de pistas pragmáticas e

referenciais que os seus interlocutores lhe fornecem e, muitas vezes, produz

enunciados não-verbais, sobretudo com gestos, tanto para referenciar um

objeto ou pessoa, quanto para dizer algo sobre ele.

Toda produção verbal de TR está acompanhada de gestos, expressões

fisionômicas que indicam, por exemplo, se ela está concordando ou não com o

que está sendo dito.

A entonação também é um recurso bastante usado por TR para a construção de

significação.

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Muitas vezes, TR produz gestos no lugar de verbos e de palavras funcionais.

Por exemplo, para “casar”, faz o gesto de “casa”.

Dentre os sujeitos desta pesquisa, TR é a mais criativa, no tocante ao

desenvolvimento de estratégias alternativas de significação.

A ordem em que TR combina as palavras é o principal recurso utilizado por ela

para ser compreendida quando a narrativa é mais complexa.

3.5.3. Quanto à relação do sujeito com sua afasia

Embora TR tenha uma afasia de produção que pode ser considerada bastante severa,

sempre expõe a sua opinião e tenta responder a tudo o que lhe é perguntado.

Dificilmente desiste de dizer o que pretende e quando esbarra em alguma dificuldade

trabalha com todos os recursos que têm disponíveis para driblar e se fazer entender.

Vale salientar que TR é uma senhora muito alegre, que contagia a todos no CCA.

Muitas vezes, entretanto, nos parece que sua gargalhada é mais um recurso para

driblar as dificuldades comunicativas ou o constrangimento de não conseguir

responder a alguém ou explicitar uma ideia ou um ponto-de-vista.

3.5.4. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos

Os enunciados de estilo telegráfico seriam decorrentes de dificuldades de operar com

os recursos convencionais da língua – em sintaxe convencional, externa e

compartilhada, agravada pelas características de seu quadro – lesão fronto-parietal, já

há 18 anos, sem acompanhamento fonoaudiológico logo após a instalação do quadro.

De acordo com as hipóteses de Akhutina (2003), inferimos que TR esteja operando

principalmente nos planos da sintaxe interna (quando apenas uma palavra é produzida

como um coágulo de sentidos) e da sintaxe semântica (quando já há operações

sintático-semânticas combinadas), o que torna possível a organização lexical, embora

rara, em uma ordem adequada, indicando a relação entre palavras ou sintagmas.

Entretanto, nos parece que ele representaria o típico caso de afasia eferente de Luria, o

que explicaria sua grande dificuldade de natureza motora e articulatória

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4. Dados do sujeito GB

Apresentaremos, a seguir, três dados da mais jovem afásica que participa das sessões

do grupo 3 do CCA.

GB, como poderá ser observado nos dados, reflete muito sobre as dificuldades

linguísticas que a afasia lhe impôs e vem tentando superá-las, sobretudo com a leitura, com o

principal objetivo de prestar o vestibular novamente e voltar a estudar.

Os dados que agora apresentamos de GB emergiram em situações dialógicas – na

ocasião da entrevista de avaliação e, a partir do desenvolvimento de uma atividade de cunho

metalinguístico – em uma sessão de acompanhamento individual. Esses dados foram

registrados em diário.

4.1. Boca... não... Fala... não...

Era a primeira vez que GB participava no CCA. Esta sessão de avaliação acontece em

forma de entrevista semiestruturada, que tem a finalidade de conhecermos melhor os sujeitos

afásicos que frequentarão o grupo. Participaram da sessão as pesquisadoras Imp e Iab.

Turno Sujeito Enunciado Observações

01 Imp O que aconteceu com você?

02 GB Não... ã::.. carro ... [faz gesto mostrando

o número três com os dedos] Não, ó:: ...

senta... longe [faz gesto com a mão

indicando a grande distância] Refife*

03 Imp Recife! Ah, tá. Vocês foram de carro?

04 GB Aham!

05 Imp Por isso que você tinha mostrado aqui

para mim, né?

Interlocutora mostra uma folha

de papel que tinha as palavras

Recife e Pernambuco escritas.

06 Imp Recife fica em Perna::m... Imp dá o prompting para

Pernambuco.

07 GB Pernambuco.

08 GB Pai... ó ... GB escreve a palavra Ceará no

papel.

09 Imc Como é? Cea:... Imc dá prompting para GB

conseguir ler a palavra Ceará

10 Imc Quem é do Ceará?

11 GB Pai.

12 Imc Seu pai?

13 GB Aham.

14 GB Dirigir .. depois...

15 Imp Primeiro vocês foram até o Ceará?

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16 GB Aham.

17 Iab Dirigindo?

18 GB Eu... ãh... também .

19 Imp Ah, você também. Vocês dividiram...

você e seu pai.

20 GB [balança a cabeça positivamente]

21 Imp Então, foram você e seu pai dirigindo.

Então, primeiro vocês para o Ceará e

depois foram para Reci:: ...

Imp dá prompting para Recife.

22 GB Refife*

23 Imp Ah, então vocês foram viajando

bastante... E daí? Você chegou em

Recife...

24 GB Praia... ãh... Não... ó: ... Mar...

25 Imp Uhum...

26 GB [escreve sábado na folha de papel]

27 Imp Ah, sábado!

28 GB Ahãm... cedo...

29 Imp Uhum...

30 GB Cedo... comeu [faz gesto de comer com

a mão, próximo à boca].

31 Imp Ah, então acordou cedo... comeu... E

daí?

32 GB Ahãm... “Mãe... ã:h... dormir... Tá bom,

né?”

33 Imp É. Acordou cedo... E então voltou pra

cama?

34 GB Tevisão*... ãh ... Por favor, ó:: [faz gesto

de apertar teclas no controle remoto].

Imprecisão articulatória para a

palavra televisão.

35 Imp Ligar?

36 GB Ahãm... Pega... Não... [faz gesto como

se estivesse tentando pegar o controle

remoto]. Boca [com o dedo indicador

aponta para si] não... [faz gesto de

negação com a mão]. Fala [faz gesto de

negação com a mão].

Narrando o momento em que ”se

sentiu afásica”. O momento do

AVC.

37 Imp Do nada? Você não sentiu nada?

38 GB Não... ó::... cabeça [faz gesto

sinalizando dor]

39 Imp Dor de cabeça?

40 GB Uhum... Gorda!

41 Imp Você estava com mais peso?

42 GB [balança a cabeça positivamente].

43 Imp Hu::m tá... E aí... Mas, a dor de cabeça

já tava? [faz gesto por cima do ombro

com a mão sinalizando passado] .

44 GB Ahãm... [balança a cabeça

positivamente].

45 Imc Do dia anterior?

46 GB Nossa! Muito!

47 Imc Muito, doeu muito?

48 GB Uhum... [balança a cabeça

positivamente].

49 Imp Você acordou normal... tomou café... e

quando foi ligar a televisão...

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50 GB Aham.

51 Imp Aí não conseguia mais movimentar?

52 GB [balança a cabeça positivamente]

53 Imp E na verdade foi esse? [pegando no

braço esquerdo de GB] ou foi esse?

[pegando no braço direito de GB].

54 GB Não... ó: [aponta para o braço direito].

55 Imp Esse aqui? [pegando no braço direito de

GB]

56 GB Aham...

57 Imc E daí... você percebeu...

58 GB Aham...

59 Imp Foi só o braço?

60 GB Não... ó:... perna.

61 Imp Perna também... E daí você não

conseguia falar?

62 GB Falar... [oh::::::::::::::] GB tenta reproduzir o som que

ela emitia ao tentar falar .

63 Imp E daí rapidinho vocês foram para o

hospital?

64 GB Aham [balança a cabeça positivamente].

65 Imp E quando chegou lá?

66 GB I::xi... perguntas [faz gesto sinalizando

muitas perguntas]... ó::... Mãe [aponta

para o lado de fora da sala].

67 Imp E eles desconfiaram que você estava

tendo um AVC?

68 GB Não [balança a cabeça negativamente]

69 Imp Aí você foi ficando lá...

70 GB Depois... ãh... Outro... [faz gesto por

cima do ombro sinalizando movimento]

hospital.

71 Imp Ah, você mudou de hospital... Foi pra

um, depois pro outro hospital...

72 GB Aham... Posto!

73 Imp Ah, primeiro foi no posto?

74 GB Aham... [balança a cabeça

positivamente].

75 Imp Mas, no hospital eles perceberam?

76 GB Não... ó::... [faz gesto circular com a

mão indicando demora].

77 Imp E também demorou?

78 GB Aham... [balança a cabeça

positivamente]

79 Imp Mas, você ficou internada?

80 GB Ixi! Aham...

81 Imp Mas, daí... no sábado mesmo?

82 GB Aham...

83 Imp Foram investigando e chegaram a

conclusão do que você tinha?

84 GB Aham... [aponta para a pasta com os

exames e para a cabeça]

85 Imp Fizeram a tomografia? Foi tomografia,

né... que fizeram?

86 GB Aham...

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87 Imp Daí eles tiveram certeza, né?

88 GB [balança a cabeça positivamente] .

89 Imp E quando você chegou nesse hospital...

Eles já deram a medicação para você?

90 GB Aham... soro, né?

91 Imp Era só soro?

92 GB Não sei... paguei*... ãh [faz gesto de

finalização com a mão].

Dizendo que nesse ponto

“apagou”.

93 Imp Ah, tá... Entendi... Daí você acabou

apagando.

Este episódio deixa claras as dificuldades de GB tanto com as palavras funcionais

quanto com a estruturação sintática dos enunciados. O fato desse episódio ser uma entrevista

com perguntas pontuais e específicas favorece respostas mais curtas e sintaticamente menos

complexas. No entanto, GB desenvolve narrativas inteiras usando apenas palavras de classes

abertas para contar, por exemplo, como foi que ela percebeu que estava tendo um AVC.

Destacamos, a seguir, um trecho com características telegráficas que ilustram todos os demais

enunciados produzidos por GB nesse episódio e que ainda constituem seu quadro atual.

36 GB Ahãm... Pega... Não... [faz gesto como

se estivesse tentando pegar o controle

remoto]. Boca [com o dedo indicador

aponta para si] não... [faz gesto de

negação com a mão]. Fala [faz gesto

de negação com a mão].

Narrando o momento em que “se

sentiu afásica”. O momento do

AVC.

Notamos que GB, ao construir suas narrativas, se utiliza dos poucos recursos lexicais

de que dispõe para construir a significação, o que é de extrema importância para que ela possa

atingir seu quer-dizer.

Embora exista compartilhamento de sentidos entre GB e suas interlocutoras Imc e Iab,

a significação só pode ser alcançada pelo fato de que as estruturas sintáticas da língua são

convencionais e, portanto, socioculturalmente compartilhadas.

Dizendo de outra forma, a significação, com recursos lexicais tão escassos quantos os

produzidos por GB entre os turnos 23-44, só pode ser atingida pela existência de um mútuo

compartilhamento e, sobretudo, negociação de sentidos. Podemos perceber que tanto GB

quanto Imp negociam os sentidos, uma dando acabamento ao enunciado da outra e essa

atividade conjunta estrutura, inclusive, os enunciados de GB – tanto o que ela produz, quando

o que ela omite já que espera que sua interlocutora preencha as lacunas de seus enunciados.

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Em outras palavras, as estruturas sintáticas também se constituem a partir da dialogia no

plano da alteridade.

4.2. Ixi, fi... figura... ãh, ajuda...

Este dado é uma anotação de diário. Antes de começar a sessão coletiva do CCA,

estava conversando com GB e sua mãe sobre as dificuldades de linguagem nas afasias. GB,

então, me contou que estava fazendo Kumon para trabalhar a sua dificuldade com o processo

de leitura e escrita. Quando olhei os livros, percebi que tinha várias palavras circuladas.

Perguntei o porquê daquelas palavras estarem destacadas e GB respondeu que havia circulado

as palavras que ela não conseguia entender. Disse também que as figuras a ajudavam a

compreender melhor o que estava escrito. A seguir, a anotação desse episódio registrada em

diário.

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Apresentaremos, também, algumas das páginas do livro que GB está utilizando no

Kumon, a fim de ilustrar as suas principais dificuldades, relativas às palavras funcionais.

A seguir, transcrevemos um episódio que emergiu a partir do desenvolvimento de uma

atividade de cunho metalinguístico com GB. Optamos por analisar esses dois últimos dados

em conjunto, já que ambos evidenciam as dificuldades de GB com as palavras funcionais.

4.3. Filho de peixe... peixinho é!

Conforme já apontado, estávamos desenvolvendo uma atividade metalinguística em

que o propósito era perceber como GB lidava tanto com as relações gramaticais quanto com

relações de sentido, a partir dos ditados populares. Inicialmente, era dado um cartão com a

primeira parte da expressão e pedido que GB a lesse e, então, tinha que completar a expressão

e explicar o contexto de uso. Caso não conseguisse completar algum dos enunciados,

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apresentávamos a segunda parte do ditado (em um segundo cartão). A seguir, apresentamos o

último dado desta pesquisa.

68

As palavras em itálico são as palavras lidas por GB.

Turno Sujeito Enunciado Observação

01 Iar E essa aqui? Conhece alguma? Mostrando o primeiro cartão para

GB. A pergunta era se GB

conseguia ler alguma palavra

escrita no cartão.

02 GB Peixe68

03 Iar Peixe, isso.

04 GB [leva o dedo para a palavra “filho”] ãh?

05 Iar Fi:... Prompting para “filho”

06 GB [[-lho.

07 Iar E aqui? [com o dedo na preposição

“de”]

08 GB [Balança a cabeça negativamente]

09 Iar Aqui não consegue? Ainda com o dedo na preposição

10 GB [Balança a cabeça negativamente]

11 Iar De... Iar lê a preposição.

12 GB De... Repete a preposição lida por Iar

13 Iar Vamos ler novamente... Filho...

14 GB [[Peixe!

15 Iar Filho [apontando com indicador para a

preposição “de”]

16 GB Deus [balança a cabeça negativamente]

17 Iar Olha, aqui é peixe [com o dedo na

palavra peixe]

18 GB Peixe [balança a cabeça positivamente].

19 Iar Aqui é::? [apontando para a palavra

“filho”]. Fi::

20 GB [[-lho.

21 Iar E aqui?

22 GB [Balança a cabeça negativamente]

23 Iar D... Prompting fonético para “de”

24 GB De

25 Iar Então vamos ler...

26 GB Filho... [balança cabeça negativamente]

27 Iar Não vai?

28 GB [Balança a cabeça negativamente].

29 Iar Olha. Filho tãrãrãn peixe ... Vamo lá Prompting sintático, mas com a

prosódia do provérbio

30 GB Filho... peixe

Filho de peixe... ... peixinho é!

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141

69

Todos os nomes próprios foram tocados para garantia de sigilo dos sujeitos.

31 Iar Filho... peixe...

32 GB Aham [balança cabeça positivamente]

33 Iar Filho de...

34 GB [[peixe!

35 Iar Então, conhece esse ditado?

36 GB Aham.

37 Iar Filho de peixe...

38 GB [[peixinho é!

39 Iar E o que você entende desse ditado?

40 GB [balança cabeça negativamente]

41 Iar É igual aquele... Tal...

42 GB [[pai Completando o ditado de Iar

43 Iar Tal...

44 GB [[filho

45 Iar Então, os filhos sempre vão ser iguais

aos pais.

46 GB Ah [faz gesto de “mais ou menos” com

a mão].

47 Iar Mais ou menos, né? Você não concorda

com isso?

48 GB Não [balança cabeça negativamente]...

Dirce69

... Não... igreja... Deus, né?

Maria! Deus, ó: [faz gesto de grande

com a mão]. Ixi! Tchau... Dirce, não!

49 Iar Quem é Dirce?

50 GB Prima.

51 Iar Você tá falando da sua prima?

52 GB Uhum [balançando a cabeça

positivamente].

53 Iar Então todo mundo é evangélico?

54 GB Aham.

55 Iar Mas...

56 GB [[Dirce, não! [faz gesto de negação com

a mão]

57 Iar Mas a Dirce não é.

58 GB [[Dirce, não! [gesto de negação com a

mão]. Juliana, não! [gesto de negação

com a mão]

59 Iar Ah, entendi

60 GB Ixi, fi...

61 Iar Vai entender, né? Minha mãe nunca foi

evangélica. Mas, os quatro filhos foram.

62 GB Nossa!

63 Iar Mas e você? É mais parecida com sua

mãe ou com seu pai?

64 GB Mãe! Ah, não sei... Ah... bagunça...

Eu... ãh... limpo.

65 Iar Você odeia bagunça?

66 GB Aham [balança cabeça positivamente]...

Rita... [faz gesto com a mão e expressão

facial que indica indiferença]... Deixa.

67 Iar Entendi... Qual é o nome do seu pai?

68 GB Pai... Manoel

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142

A partir desses dois dados (4.2 e 4.3), percebemos a evidente dificuldade de GB com

as palavras funcionais, sobretudo com as preposições. Aqui já vale destacar que as

preposições que GB apresenta maiores dificuldades são aquelas que Castilho (2010) e Ilari, et

al (2008; 2015) consideram as mais gramaticalizadas e portadoras de valores semânticos mais

complexos. Devido ao processo de gramaticalização, essas preposições dependem mais do

contexto e das relações sintáticas que dos enunciados.

GB, ao tentar ler e compreender o enunciado “filho de peixe”, parece estar operando

ainda no nível da sintaxe interna. Apesar de sentidos isolados – tanto de filho quanto de peixe

– GB parecia não estabelecer uma relação sintática e, consequentemente, de sentidos entre os

termos70

. GB repetiu a preposição “de”, logo após ter sido lida a ela. Entretanto, quando lhe

foi solicitado para ler novamente o enunciado, GB continuou não estabelecendo relação entre

as palavras. Essa dificuldade pode ser observada nos turnos que retomamos a seguir:

70

Da mesma forma que ocorreu com BM para interpretar o enunciado metafórico: chorar pelo leite derramado.

69 Iar E da sua mãe?

70 GB Rita!

71 Iar Então quem é que deixa bagunça? A sua

mãe?

72 GB Aham

73 Iar E o seu pai?

74 GB Também!

75 Iar Eita! Então sobra para você arrumar a

bagunça...

76 GB Vó... ó:... limpo! Nossa!

77 Iar Sua vó então é organizada?

78 GB Nossa, muito!

Turno Sujeito Enunciado Observação

07 Iar E aqui? [com o dedo na preposição

“de”]

08 GB [Balança a cabeça negativamente]

09 Iar Aqui não consegue? Ainda com o dedo na preposição

10 GB [Balança a cabeça negativamente]

11 Iar De Iar lê a preposição.

12 GB De Repete a preposição lida por Iar

13 Iar Vamos ler novamente... Filho...

14 GB [[Peixe!

15 Iar Filho [apontando com indicador para a

preposição “de”]

16 GB Deus [balança a cabeça negativamente]

17 Iar Olha, aqui é peixe [com o dedo na

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Inferimos que a dificuldade de GB em estabelecer uma relação de sentido entre as

palavras filho e peixe se deve de fato à ausência da preposição; à não compreensão de seu

sentido. Como vimos, as palavras funcionais concentram papéis semântico-referenciais nos

enunciados. Palavras lexicais abertas, ao serem produzidas, vão estabelecendo relações e

construindo significações em um contínuo discursivo. Mas a palavra isolada é insuficiente e

estéril. Na construção de significação, uma palavra sempre estará atada à outra, como em um

nó que agrupa aspectos sintáticos, semânticos, discursivos-referenciais e pragmáticos (Luria,

1986). Esses nós estabelecem uma cadeia em que uma palavra sempre estará na ponta de

outra palavra (cf. Oliveira, 2015). Lembramos ainda de Nunes (2010), quando afirma que a

palavra é a unidade linguística que reflete toda a incompletude da linguagem.

Nos parece que GB só consegue estabelecer o sentido do enunciado e completar o

provérbio, no turno 38, quando seu interlocutor Iar lê a sentença completa no turno 37:

palavra peixe]

18 GB Peixe [balança a cabeça positivamente].

19 Iar Aqui é::? [apontando para a palavra

“filho”]. Fi::

20 GB [[-lho.

21 Iar E aqui?

22 GB [Balança a cabeça negativamente]

23 Iar /d/ Prompting fonético para “de”

24 GB De

25 Iar Então vamos ler...

26 GB Filho... [balança cabeça negativamente]

27 Iar Não vai?

28 GB [Balança a cabeça negativamente].

Turno Sujeito Enunciado Observação

29 Iar Olha. Filho tãrãrãn peixe... Vamo lá Prompting sintático

30 GB Filho... peixe

31 Iar Filho... peixe...

32 GB Aham [balança cabeça positivamente]

33 Iar Filho de...

34 GB [[peixe!

35 Iar Então, conhece esse ditado?

36 GB Aham

37 Iar Filho de peixe...

38 GB [[peixinho é!

39 Iar E o que você entende desse ditado?

40 GB [balança cabeça negativamente]

41 Iar É igual aquele... Tal...

42 GB [[pai Completando o ditado de Iar

43 Iar Tal...

44 GB [[filho

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O processo de construção do enunciado que começa no turno 29, com o prompting de

Iar, dá visibilidade para o processo dinâmico e interdependente dos três níveis de sintaxe

propostos por Akhutina (2003), baseada nas formulações de Vygotsky (1934).

Como a preposição “de” estava ausente, GB não conseguia depreender a relação entre

as palavras. No entanto, quando Iar começa a fornecer pistas estruturais, como no turno 29, e

lê o enunciado inteiro, no turno 37, GB completa o ditado (turno 38). Esse processo de apoio

no enunciado do interlocutor nos faz voltar para as formulações da Gramática Funcional que

considera que o sistema linguístico funciona a partir da íntima relação entre forma e

significado, sempre em um contexto pragmático. A partir do enunciado 40, com o apoio no

enunciado do interlocutor, GB consegue relacionar o provérbio Filho de peixe, peixinho é

com outro Tal pai, tal filho, de sentido semelhante.

4.4. Síntese das questões relativas à produção de GB

4.4.1. Quanto à produção de palavras funcionais

Podemos apontar para a evidente dificuldade de GB com as palavras funcionais a

maioria de seus enunciados são compostos com a ausência dessas palavras. Nos dados

podemos perceber a dificuldade de GB, principalmente com as preposições (mais

gramaticalizadas). Além da produção oral, GB também apresenta dificuldades com

essas palavras no momento da leitura.

As análises tornam evidente que GB não produz palavras funcionais e também tem

dificuldade para compreendê-las.

4.4.2. Quanto à morfologia flexional

Embora tenha dificuldades com a morfologia flexional, GB, ao produzir verbos

quase nunca os produz na forma infinitiva. Há uma instabilidade no processo

de seleção dessas flexões, o que faz com que produza um maior número de

trocas do que omissões desses morfemas flexionais.

Vemos que em sua narrativa há verbos produzidos no tempo passado. Isso

pode ser explicado pelo fato de que a narrativa é o gênero que mais resiste nas

afasias, que são produções que remetem ao passado.

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4.4.3. Quanto às estratégias alternativas de significação

GB é uma jovem bastante tímida e, na maioria das vezes, prefere não utilizar

gestos como recurso alternativo. Prefere, sempre que possível, dar alguma pista

escrita. Quando está sem um papel e lápis, ela faz o gesto da escrita da palavra

no ar ou então sobre a mesa.

GB se apoia muito nos enunciados dos seus interlocutores.

Como ela produz mais palavras de classe aberta e as ordena adequadamente,

sem dificuldades articulatórias, é a que produz enunciados com características

mais telegráficas dentre todos os sujeitos desta pesquisa.

4.4.4. Quanto à relação do sujeito com sua afasia

Dentre os sujeitos desta pesquisa, GB é a mais jovem e a mais nova integrante

do grupo.

GB vem lidando com as dificuldades linguísticas em decorrência da afasia há

pouco mais de dois anos. Muitas vezes, prefere se retirar das interações e pede

para que outras pessoas falem por ela. No entanto, nos últimos meses, tem se

mostrado bastante determinada a prestar vestibular para o curso de Pedagogia e

trabalhar com crianças. Por isso, não tem medido esforços para melhorar a sua

atuação nos processos de leitura e escrita.

4.4.5. Hipótese sobre a produção de enunciados telegráficos

Na maioria das vezes, GB consegue compreender o que está sendo dito dando

respostas adequadas àquilo que lhe foi perguntado.

GB teve uma lesão têmporo-fronto-parietal à esquerda e não possui

dificuldades articulatórias. Provavelmente seu caso seja muito semelhante ao

de BM. As análises nos levam a pensar que também ela esteja ainda operando

no nível da sintaxe semântica, externalizando seus enunciados nas formas

internas, com dificuldade para organizar as estruturas sintáticas convencionais,

para a comunicação. O caso se assemelha ao que Akhutina designa como

“segundo tipo de afasia dinâmica”, baseada em Luria.

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Considerações Finais:

“Eu tô aqui!”

O principal objetivo desta pesquisa foi o de refletir sobre as dificuldades de sujeitos

afásicos com as palavras funcionais, visando compreender a produção de enunciados de estilo

telegráfico. Para atingirmos esse objetivo, partimos das concepções teórico-metodológicas da

Neurolinguística enunciativo-discursiva, que guiou nosso olhar sobre a linguagem, no estudo

do fenômeno. Como foi apontado, a Neurolinguística enunciativo-discursiva se constitui

como uma área de entremeio que visa explicar os fenômenos linguístico-cognitivos – tanto na

normalidade quanto nas patologias – articulando saberes da área médica às teorias

linguísticas, principalmente as que foram desenvolvidas a partir da segunda metade do século

20.

71

Trecho de uma interação entre os sujeitos BM, BS e Imp em uma sessão coletiva do CCA no dia 28/03/2017.

A discussão sobre as dificuldades após um AVC foi motivada a partir da leitura de uma reportagem que falava

sobre as causas e tratamentos para o AVC.

BS71

Pra mim... Não sei para todo mundo. Mas,

pra mim “derrame” é a mesma coisa de

acamado. E eu não quero!

Imp Ah, tá... Entendi, entendi.

BS [[Então você pergunta para mim... “O que

aconteceu?” Eu tive um AVC. “Ah, você

teve um derrame?” Não! Eu tive um AVC!

Imp É porque ficou um estigma, né? Quem tinha

derrame...

BS [[é acamado.

Imp Quando falam que teve derrame é por que a

pessoa iria ficar na cama pro resto da vida.

Mas, isso é uma coisa antiga.

BS Eu acho que não... A minha mãe estava

conversando com uma mulher... E eu tava

do lado... Aí ela falou... Aí ela perguntou,

né... “E você tá fazendo o quê?” “Eu

tenho... Eu tinha marcado pra mim e pro

meu filho... uma consulta”. Aí... E eu tava

do lado! Aí ela “O seu filho teve o quê?” Aí

a minha mãe: “Ele teve um AVC”. Aí ela

“Ah...

BM [[tadinho!

BS “Tadinho... tá de cama?” Aí eu falei...

NÃO, EU TÔ AQUI!

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147

Nesse contexto, nos filiamos à abordagem sócio-histórico-cultural, tanto sobre as

concepções de linguagem quanto de cérebro (e seu funcionamento).

Os modos como os sujeitos desta pesquisa estruturaram seus enunciados

corroboraram, ainda, pressupostos da Gramática Funcional que postula que as estruturas da

língua resultam das necessidades comunicativas dos sujeitos e, por isso, não se constituem

sem a íntima relação entre os aspectos semânticos, discursivos, referenciais e, sobretudo,

pragmáticos. Assim, podemos concluir que, do mesmo modo que os sentidos e significações

são culturalmente estabelecidos, as estruturas sintáticas também se estabelecem no plano da

alteridade e da dialogia. Nessa perspectiva, não podemos analisar os fenômenos linguísticos

(principalmente na sua relação com processos cognitivos) abstraindo a língua de seu uso, de

seu contexto social e histórico. A função do sistema linguístico não é fornecer ferramentas

para uma tradução linear do pensamento. Muito pelo contrário, funcionalmente, a língua é,

enquanto sistema, regida por questões enunciativo-discursivas, de modo que se constitui

matéria-prima para a construção de significações que atendam as diversas necessidades do ser

humano.

Conforme aponta Novaes-Pinto (1999), o agramatismo é a categoria clínica mais

estudada no campo das afasias. Por esse motivo, há diversas interpretações sobre o fenômeno,

motivadas por diferentes propósitos teóricos, tanto na área médica quanto na ciência da

linguagem. Essa diversidade de abordagens teórico-metodológicas e, consequentemente, de

explicações sobre a natureza do fenômeno foi uma característica que tornou o estudo da

produção de enunciados de estilo telegráfico e a sua relação com o agramatismo um grande

desafio. Enfrentar essas questões foi, de certo modo, mexer em um vespeiro.

Acreditamos que esta pesquisa pôde iluminar questões acerca da produção do

enunciado de estilo telegráfico, e, em certa medida, corroborar e refutar algumas hipóteses

acerca do fenômeno – tanto aquelas elaboradas no campo das ciências médicas, quanto

aquelas veiculadas no campo da linguística.

Primeiramente, vimos que as palavras funcionais, que tradicionalmente são descritas

como vazias de sentido, estabelecem relações semânticas e referenciais na composição dos

enunciados e, portanto, não são elementos “secundários” de significação. A partir dos dados

que emergiram com os sujeitos desta pesquisa, tornou-se evidente a necessidade –

inicialmente apontada por Novaes-Pinto (2009) – de se olhar para o funcionamento discursivo

do léxico e para sua relação com a gramática, para melhor compreensão dos processos

linguístico-cognitivos. Foi possível corroborar as hipóteses de Novaes-Pinto (1999) sobre a

relação entre a produção de estilo telegráfico e as dificuldades de seleção lexical. A partir da

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148

terminologia sugerida pela autora, de fala de estilo telegráfico, e dos postulados bakhtinianos

que fundamentam nossas pesquisas, reformulamos a semiologia, a partir deste trabalho,

passando a nos referir aos enunciados de estilo telegráfico.

A contribuição inédita deste trabalho, a nosso ver, foi a de articular as reflexões

desenvolvidas no âmbito da neuropsicologia soviética sobre a relação entre pensamento e

linguagem, retomando autores como Vygotsky, Luria, Leontiev e, mais recentemente,

Akhutina. Os modelos explicativos, desenvolvidos nesta perspectiva, principalmente sobre o

papel da linguagem interna (inner speach), em suas diversas fases, no processo de

transformação do pensamento em linguagem externa, social, com objetivos comunicativos.

Isso nos abriu uma nova possibilidade de interpretação e compreensão da produção de

enunciados de estilo telegráfico. Essa concepção teórica pode ser sintetizada a partir das

formulações de Vygotsky (1934), quando postula que a sintaxe interna é uma sintaxe em que

os sentidos são subjetivos e adquiridos ao longo do desenvolvimento ontogenético do homem.

A palavra é, portanto, um coágulo de sentidos, uma generalização de conceitos que, por sua

vez, é ampliada ao longo do desenvolvimento do sujeito e da sua relação com a cultura. Nesse

contexto, uma única palavra pode significar enunciados inteiros. No momento de construção

de um enunciado comunicativo, entretanto, o sujeito precisa sair do plano do sentido

subjetivo, ou seja, é necessário construir significação para o outro. Por isso, é necessário uma

reestruturação, a reelaboração do querer-dizer para a construção de um enunciado que seja

compreensível para o interlocutor. A partir dessa concepção, Akhutina abre a possibilidade

para explicar as variações intra- e inter casos, o que tem sido um desafio para os

pesquisadores, como vem chamando a atenção Novaes-Pinto (2011, 2017). O modelo

proposto pela autora considera que os enunciados sejam resultados de um processo uno e

dinâmico em que o sujeito opera entre diferentes sintaxes, num movimento de ida e volta

entre o pensamento e a linguagem.

Os dados dos quatro sujeitos acompanhados ao longo desta pesquisa deram

visibilidade para os aspectos desse processo de construção dos enunciados. As diferentes

dificuldades com as estruturas sintáticas nos revelaram a natureza dinâmica e interdependente

dos três níveis de sintaxe propostos por Akhutina (2003). As análises revelaram que todos os

sujeitos têm dificuldades com a sintaxe convencional da língua e que essas dificuldades se

revelam tanto nas ausências quanto nas substituições de morfemas funcionais, nas marcas

hesitativas enquanto epi- e metalinguisticamente trabalham sobre essas sintaxes para

produzirem seus enunciados, nas interações sociais.

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Mais especificamente, vimos que os sujeitos BM e GB externam em seus enunciados,

predominantemente, características da sintaxe semântica, em que as palavras são portadoras

de todo sentido. Já no caso de TR, tornou-se evidente que ela opera tanto com os aspectos da

sintaxe interna e da sintaxe semântica. A solução de TR, já que produz um número bastante

reduzido de elementos lexicais, é a de ordenar esses elementos, praticamente ainda no nível

da sintaxe interna, psicológica – um item lexical representando o sujeito psicológico e outro

representando o predicado psicológico. Esses são, às vezes, representados por gestos. Por fim,

considerando a atual condição de BS, vimos que apesar de ele conseguir produzir palavras

funcionais, ainda existem dificuldades com a elaboração sintática dos enunciados

convencionais, comunicativos, principalmente com aspectos da morfologia flexional, o que

poderia ser considerado, segundo Akhutina, o grau mais leve de agramatismo.

Todos os sujeitos, entretanto, se assemelham em determinados aspectos e se

diferenciam em tantos outros. Vimos, por exemplo, que ao passo que a maioria dos sujeitos

conta com o conhecimento mútuo e compartilhado de seu interlocutor para “preencher as

lacunas” de seus enunciados, o sujeito BS pede calma e mais tempo para a reelaboração e

adequação de seu querer-dizer. Vimos, também, o quanto a variação depende da relação do

sujeito com sua afasia, bem como os processos alternativos de significação que são

desenvolvidos a depender do sujeito e de suas dificuldades para operar sobre os recursos da

língua.

Observamos variações entre os casos (inter-) e variações ao longo do desenvolvimento

de um mesmo caso (intra). Muitas vezes, a instabilidade que a afasia impõe à linguagem se

revelou dentro de um mesmo episódio transcrito e/ou, ainda, nos limites de um mesmo turno.

Como vimos no dado “Romaneio”.

14 BM

Não. A mesma coisa. Ah! Vou trabalhar

agora. Então... seguinte é:: no:: no

INSS... eu vou trabalhar. Mas é::.

Retomando as hipóteses de Akhutina (2014[1975]; 2014[2003]), percebemos que

nenhum dos sujeitos acompanhados nesta pesquisa teria o primeiro tipo de afasia dinâmica

(Luria, 1962), que comprometeria o nível mais elementar da produção de um enunciado – a

capacidade de formular uma intenção, ou o querer-dizer. O que nos parece é que as

dificuldades desses sujeitos se estabelecem em decorrência do impacto nos processos de

referência, o que envolve o lobo frontal e também dificuldades que derivam do

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150

funcionamento dos lobos parietal e temporal, responsáveis pelas sínteses simultâneas,

principalmente se a lesão impacta as áreas terciárias, associativas. A literatura tem mostrado o

papel do lobo parietal na organização espacial, que envolve também questões de natureza

sintática, dificuldades com enunciados muito complexos que alteram a ordem canônica das

sentenças (relativas, passivas, adversativas etc), e o papel do lobo temporal nas questões

relativas às dificuldades de encontrar palavras. Lembramos que todos os sujeitos da pesquisa

têm em comum uma lesão no lobo parietal, apesar de diferirem quanto à etiologia e à extensão

também em outros lobos. A etiologia e o local da lesão, certamente, têm papel importante na

diferença entre os casos, mas não são as únicas variáveis, como procuramos mostrar.

Acreditamos que as variações possam ser explicadas, coerentemente, a partir do

modelo dinâmico proposto por Akhutina, em que para a produção de um enunciado – e aqui

considerando que todo enunciado, enquanto ato de significação, é único – existe a

mobilização de três níveis sintáticos nos quais um “deságua” no outro, em um processo inter

e intra modal. O sujeito está em constante operação e movimento entre esses níveis. Esta

concepção da integração dos níveis sintáticos é capaz de explicar, por exemplo, o motivo pelo

qual um sujeito ora produz uma preposição e minutos depois não consegue produzir

novamente. Apenas a partir da dinamicidade desse modelo, podemos perceber a pergunta de

BM – “qual é o futuro do falou” – como um indício de que o sujeito está trabalhando

metalinguisticamente e transitando entre diferentes planos de organização sintática.

Nesse contexto, um dos nossos principais esforços foi o de rever o conceito de déficit

na análise sobre o fenômeno. Por isso, julgamos imprescindível retomar a crítica que Novaes-

Pinto (1999) fez, em sua tese de doutorado, quando abordou a relevância dos estudos

discursivos para a melhor compreensão das categorias clínicas. A autora enfatizou que os

estudos tradicionais sobre o agramatismo o definem como um distúrbio de língua, mais

especificamente sintático, baseando-se em modelos que consideram a competência linguística

de um falante-ideal. Nas palavras da autora, esses modelos são capazes de “indicar o normal,

porém para um sujeito impossível”. Este aspecto, dentre outros, levam a autora a formular sua

crítica à noção de existência de um sujeito que perde a gramática, após ter seu sistema

nervoso central impactado por alguma lesão. Em suas palavras:

Há, no estudo em questão, [o agramatismo]72

um paradoxo. Por um lado,

para se definir um quadro como sendo de agramatismo é preciso se ater a

um certo conjunto de sintomas que delimitam a classificação do sujeito nessa

categoria. Por outro, chega-se a uma variação extrema no conjunto de

sintomas apresentados; uma variação tão grande que faz pensar que não se

72

Novaes-Pinto estava fazendo considerações a respeito do trabalho de Miceli at al (1989).

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151

trata, provavelmente, de um mesmo fenômeno. Não estariam os autores

avaliando, sob o mesmo rótulo de “agramatismo”, fenômenos diferentes [...]

Não estariam classificando os sujeitos, por exemplo, com base em apenas

uma das características necessárias, mas não suficientes, provavelmente a

“fala telegráfica”? Os autores definem o agramatismo como um distúrbio de

produção de sentenças, caracterizado pela omissão de morfemas gramaticais

livres com ou sem substituição de morfemas gramaticais presos. Penso,

entretanto, que esse conjunto de características não define o agramatismo,

mas um certo tipo de “fala telegráfica” (Novaes-Pinto, 1999, p. 82 grifos

nossos).

Concordamos, portanto, com a autora quando ela afirma que a produção de enunciados

de estilo telegráfico não é suficiente para rotular um sujeito afásico como agramático.

Segundo, Novaes-Pinto (1999), essa concepção deriva de estudos neuropsicológicos calcados

em teorias generalizantes e fundadas nos resultados de metodologias exclusivamente

quantitativas. Em contrapartida, o estudo discursivo tem nos permitido, cada vez mais,

concluir que não existe sujeito sem gramática ou que tenha perdido aspectos da gramática,

como a literatura tradicional insiste em afirmar.

Consideramos que esta pesquisa pode contribuir, também, para refletir acerca do

acompanhamento clínico de sujeitos afásicos. O que se buscou evidenciar é que, apesar de a

linguagem estar impactada pela afasia, ainda existe um sujeito que se constitui e interage por

ela. Se tornar afásico não significa perder a subjetividade e, por isso, sempre haverá um

querer-dizer que pode ser reelaborado com o desenvolvimento de estratégias que extrapolam

os recursos verbais. Essa é a justificativa para o subtítulo deste texto de considerações finais,

retomando o que BS diz quando falam sobre ele, a respeito do AVC, que não estava acamado,

mas que estava ali: Não, eu tô aqui.

O terapeuta deve estar sensível para o esforço e trabalho que os sujeitos afásicos

operam para se (re)constituírem como sujeitos de discurso e para serem compreendidos. Para

isso, precisa compreender que a função principal da linguagem é a de produzir significação

(Coudry, 1988 [1986], Fiorin, 2011). Por isso, todos os recursos linguísticos são mobilizados

para a criação de sentido. Franchi (1992) aponta que a natureza da linguagem “não é física,

nem fisiológica, nem psíquica, mas semântica, o que quer dizer histórica, já que os sentidos

não refletem a ordem do mundo” (Fiorin, 2011, p. 15 grifo nosso). Desta forma, a linguagem

só pode ser compreendida como uma práxis; uma atividade que integra o sujeito com seu

meio, com a sua cultura e com a sua história. Franchi (1988) afirma que a linguagem é o lugar

único de realização e construção social, histórica, cultural e cognitiva. Por isso, devemos

sempre estar inseridos em um processo dialético em que todos fazem parte, constituindo os

elementos necessários em uma interação. O terapeuta deve atuar conjuntamente com o sujeito

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152

afásico na construção de sentidos. Caso contrário, velhas práticas serão repetidas, ao

negligenciar todo um universo de significação que pode ser construído, por exemplo, a partir

de um único gesto.

Diante de tudo o que foi exposto e, ainda, sobre a necessidade de se considerar o

sujeito e não a afasia ou o déficit nos estudos neurolinguísticos, gostaríamos de encerrar o

texto desta dissertação recorrendo a Coudry, quando a autora explicita de que sujeito fala, em

suas atividades teóricas e clínicas:

Falo do sujeito de um discurso, pois é com quem me defronto em minha

atividade clínica. Nesse sentido, a discussão da questão do sujeito não pode

ser feita sem alusão ao estatuto do interlocutor. Ambos são sujeitos no

discurso, tanto porque intercambiam papéis, quanto porque o que tem a

palavra leva em conta a imagem do interlocutor conhecida ou representada,

para calibrar o estilo de seu discurso, para decidir o quanto precisa ser dito e o

quanto pode ser pressuposto. As marcas de ambos, locutor e interlocutor estão

presentes no discurso, de forma que a constituição é mútua. Há, no entanto,

um certo desequilíbrio na tomada de posse da palavra. No caso de sujeitos

afásicos, o modo como têm sido tradicionalmente avaliados, revela sempre o

ponto de vista de quem produz um sistema de regras e categorias fixas em que

inexiste um lugar para o exercício subjetivo da linguagem. O afásico é sempre

quem recebe os comandos do sistema e, nesse sentido, não passa pela

experiência de constituir-se como “locutor”, perspectiva de quem produz um

discurso sob a cobrança de uma “falta”, sob o parâmetro do sistema (Coudry,

1986, p. 68).

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Anexo 1

Termo de consentimento livre esclarecido aprovado pelo CEP/UNICAMP e assinado pelos

sujeitos da pesquisa

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

GRUPO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM NO ENVELHECIMENTO E NAS

PATOLOGIAS

CENTRO DE CONVIVÊNCIA DE AFÁSICOS

Pesquisador Responsável: Arnaldo Rodrigues de Lima

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, __________________________________________________________________,

portador do RG nº ________________________, estou sendo convidado para participar como

voluntário da pesquisa: “As palavras funcionais na chamada “fala telegráfica” em enunciados

de sujeitos afásicos”, sob responsabilidade de Arnaldo Rodrigues de Lima, estudante do

Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) – Unicamp e

pesquisador no GELEP (Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas

Patologias).

O presente Termo é elaborado em duas vias, sendo que uma ficará comigo, participante da

pesquisa, enquanto outra ficará com o pesquisador responsável.

Gravação em vídeo:

( ) Autorizo gravação em áudio e/ou vídeo.

( ) Não autorizo gravação em áudio e/ou vídeo

Fui esclarecido(a) que pelo pesquisador responsável e tenho ciência de que:

Os objetivos mais gerais desta pesquisa são (i) o de refletir sobre o funcionamento das

palavras funcionais em enunciados de sujeitos afásicos, visando compreender a

chamada “fala telegráfica” ou “fala de estilo telegráfico”; (ii) contribuir, com este

estudo, para a pesquisa desenvolvida no GELEP (Grupo de Estudos da Linguagem no

Anexos

Rubrica do pesquisador _________________ Rubrica do participante __________________

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Envelhecimento e nas Patologias), intitulada: O funcionamento semântico-lexical:

inferências a partir do estudo das afasias.

Estou ciente de que minha participação é voluntária, não havendo remuneração de

qualquer natureza. O objetivo da pesquisa é coletivo, e não direto e individual, ou seja,

a análise dos resultados da pesquisa vai contribuir para que haja um melhor

entendimento sobre o funcionamento da língua(gem) que está de algum modo

impactada por uma determinada patologia. E, ainda, pode contribuir para o

aperfeiçoamento de procedimentos metodológicos na pesquisa no campo da

Neurolinguística e na conduta terapêutica de sujeitos afásicos. Os riscos podem ser

caracterizados como desconfortos ou constrangimento durante as atividades propostas

nas sessões desenvolvidas no Centro de Convivência de Afásicos (CCA), sendo

possível desistir da participação a qualquer momento ou não participar de uma ou mais

dessas atividades e/ou sessões.

Posso solicitar, a qualquer momento, que minhas dúvidas sejam esclarecidas, bem

como negar-me a participar de qualquer atividade e/ou sessões que me cause

constrangimento ou desconforto ou ainda retirar-me da pesquisa, se julgar

conveniente. Em caso de dúvidas sobre o estudo, você poderá entrar em contato com o

pesquisador no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem,

situado à Rua Sérgio Buarque de Holanda, nº 571 Campinas – SP CEP 13083-859, ou

pelo fone (19) 98298-1439 e, ainda, pelo e-mail [email protected]

As atividades e sessões, registradas em áudio e/ou vídeo serão posteriormente

transcritas. Dados relevantes para compor o banco de dados do GELEP (Grupo de

Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias – Plataforma Lattes-

CNPq, de responsabilidade da Profa. Dra. Rosana do Carmo Novaes Pinto) serão

armazenados por tempo indeterminado, referidos apenas por siglas, de modo a garantir

o sigilo da identidade do participante desta pesquisa. Toda nova pesquisa que se

utilizar dos dados armazenados no Banco de Dados será submetida ao Comitê de Ética

em Pesquisa.

As informações decorrentes das atividades desenvolvidas nas sessões do CCA serão

utilizadas exclusivamente para fins acadêmicos e/ou científicos e os resultados do

estudo estarão à disposição dos participantes da pesquisa e podem ser solicitados ao

pesquisador.

O presente Termo de Consentimento obedece a resolução 466/12 da CONEP. Em caso de

denuncias ou reclamações sobre a sua participação e sobre questões éticas do estudo, você

poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da

UNICAMP, à Rua Tessália Vieira de Camargo, 126 Caixa Postal 6111, CEP 13083-887,

Campinas-SP. Fone (19) 3521-8936.

Rubrica do pesquisador _________________ Rubrica do participante __________________

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____________________________________________

Assinatura do participante

____________________________________________

Responsável pela pesquisa

Arnaldo Rodrigues de Lima

[email protected]

(19) 98298-xxxx

_______________________________________

Rosana do Carmo Novaes-Pinto

Orientadora/Supervisora da pesquisa

[email protected]

(19) 99684-xxxx

Rubrica do pesquisador _________________ Rubrica do participante __________________

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Anexo 2

Parecer de aprovação do CEP/UNICAMP para a realização desta pesquisa

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