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ética e política - a melhor forma de governo Fernando Quintana Refletir sobre ética e política na tradição do pensamento ocidental não pode prescindir da antiguidade clássica que deixa como principal legado que a política não pode ser pensada fora do horizonte da ética - o que implica a posta em prática da melhor forma de governo: a república ou politéia. Sendo assim, procuramos mostrar como Aristóteles “não separa a política da moral” (Prélot, 2006: XVI), como no estagirita “a política depende da ética tanto em seu direcionamento quanto em seus meios” (Wolff, 1999: 20), como “a ética enquanto conhecimento do justo faz que a política tome sob sua responsabilidade visando o bem” (Darbo-Peschanski, 1992: 35), como “a política é um terreno de reflexões sobre a conduta humana, as instituições e a sociedade, num marco teórico ligado à ética” (Gual, 2002: 150), como “a política enquanto doutrina de uma vida boa e justa é a continuação da ética” (Habermas, 1990: 49), como “as decisões e práticas políticas promovem e realizam valores” morais ou éticos 1 (Ribeiro, 2006: 9). Em resumo, como em Aristóteles: A ciência política deve ser a ética de toda uma sociedade, cuja consistência deriva de um propósito moral comum; ela deve determinar o que é o ‘bem’ para a sociedade, qual a estrutura que vai assegurar a melhor maneira para alcançá-lo, as ações que melhor contribuem para esse fim. Aristóteles não vê diferença essencial entre a ciência política assim concebida e a ética. O bem do indivíduo é idealmente o bem da sociedade; a virtude de um é idealmente a virtude do outro. Na qualidade de ciência de uma sociedade moral em busca do bem pleno, que só 1 Os termos moral e ética correspondem, em Aristóteles, ao “costumeiro”, “adquirido” - o que significa que as pessoas não nascem morais ou éticas, mas tornam-se através do hábito, a educação (paidéia). As virtudes morais dizem respeito à “disposição da alma”, o “caráter” ou “jeito de ser” já as virtudes éticas se relacionam com o agir, a conduta ou comportamento humano. 1

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Page 1: Aristóteles

ética e política - a melhor forma de governo

Fernando Quintana

Refletir sobre ética e política na tradição do pensamento ocidental não pode prescindir da antiguidade clássica que deixa como principal legado que a política não pode ser pensada fora do horizonte da ética - o que implica a posta em prática da melhor forma de governo: a república ou politéia.

Sendo assim, procuramos mostrar como Aristóteles “não separa a política da moral” (Prélot, 2006: XVI), como no estagirita “a política depende da ética tanto em seu direcionamento quanto em seus meios” (Wolff, 1999: 20), como “a ética enquanto conhecimento do justo faz que a política tome sob sua responsabilidade visando o bem” (Darbo-Peschanski, 1992: 35), como “a política é um terreno de reflexões sobre a conduta humana, as instituições e a sociedade, num marco teórico ligado à ética” (Gual, 2002: 150), como “a política enquanto doutrina de uma vida boa e justa é a continuação da ética” (Habermas, 1990: 49), como “as decisões e práticas políticas promovem e realizam valores” morais ou éticos1 (Ribeiro, 2006: 9). Em resumo, como em Aristóteles:

A ciência política deve ser a ética de toda uma sociedade, cuja consistência deriva de um propósito moral comum; ela deve determinar o que é o ‘bem’ para a sociedade, qual a estrutura que vai assegurar a melhor maneira para alcançá-lo, as ações que melhor contribuem para esse fim. Aristóteles não vê diferença essencial entre a ciência política assim concebida e a ética. O bem do indivíduo é idealmente o bem da sociedade; a virtude de um é idealmente a virtude do outro. Na qualidade de ciência de uma sociedade moral em busca do bem pleno, que só pode ser alcançado pela ação comum, a ciência política é, para Aristóteles, a ética suprema (Barker, 1978: 17).

Tomando duas importantes obras do autor, Ética a Nicômaco e A política, podemos dizer que ética e política são duas “disciplinas práticas” ou “artes” que tem como objetivo a felicidade ou eudaimonia tanto em nível individual quanto social e político2:

O seu objeto é o estudo do supremo bem a que podem aspirar os homens, isto é, a felicidade. A ética procura, pois, saber, em primeiro lugar, em que consiste a felicidade; em segundo lugar, qual a forma de organização política que assegure a felicidade geral. Aristóteles procurou responder à primeira indagação em Ética a Nicômaco, e a segunda na Política. Não se trata, portanto, de dois livros sobre assuntos distintos, mas de duas partes de um mesmo assunto (Comparato, 2006: 99).

A junção entre ética e política, que passa pela definição da melhor forma de governo em Aristóteles, obedece, como destaca Marcel Prélot, à “atmosfera pesada” da época,

1 Os termos moral e ética correspondem, em Aristóteles, ao “costumeiro”, “adquirido” - o que significa que as pessoas não nascem morais ou éticas, mas tornam-se através do hábito, a educação (paidéia). As virtudes morais dizem respeito à “disposição da alma”, o “caráter” ou “jeito de ser” já as virtudes éticas se relacionam com o agir, a conduta ou comportamento humano. 2 Cabe esclarecer que a palavra politikós, em Aristóteles, cobre tanto “o que entendemos por político como o que entendemos por social (ela) não discrimina entre ambos os aspectos” (grifo do autor) (MacIntyre: 1994: 64).

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em particular, a situação pela que atravessa Atenas3: fim do “século d’ouro” (460-430 a.C.) com a Guerra do Peloponeso (431-405 a.C.) em que Esparta, triunfante, acaba com a democracia de Péricles e Atenas conhece formas ruins de governo (oligarquia, oclocracia)4, lutas internas e instabilidade política; batalha de Queroneia (338 a.C.) em que Felipe II, rei da Macedônia, acompanhado de seu filho Alexandre, vence as forças atenienses e lhe impõe, como a outras cités vencidas, um conselho comum cujos representantes não discutem as decisões: a fortuna das cidade-estados fica selada - o fim da pólis e o triunfo da Cosmópolis (império) com Alexandre Magno, etc.

Neste contexto podemos observar como o estagirita descreve diferentes tipos de temperamentos, condutas e formas de governo e também prescreve como devem ser. Trata-se então de uma reflexão que não se limita à observação da realidade mas sobretudo mostrar como pode ser melhorada:

A necessidade de conceber um ideal era sentida (no pensamento grego) com vivacidade devido justamente à variedade do real. O Estado ideal serviria como padrão pelo qual os estados existentes poderiam ser compreendidos e classificados. E esta busca de um ideal surgia naturalmente porque os diferentes estados apresentavam não apenas diferenças ‘constitucionais’, mas diferenças profundas, fundamentais, de caráter e finalidade moral (Barker, 1978: 15-16).

Com base nos dois escritos aristotélicos convém, num primeiro momento, mostrar em que consiste a moral ou ética no plano individual e, num segundo momento, como ela se dá no campo social e político, mais especificamente naquela forma de governo que é tida pelo autor como a mais perfeita possível: a república ou politéia.

Em Ética, Aristóteles esclarece que esta disciplina se ocupa dos bons comportamentos a serem seguidos pelos homens em comunidade, ela diz respeito a condutas ou formas de agir boas a serem praticadas para atingir um fim supremo, absoluto, universal, a felicidade5, contudo, como destaca o autor, para ser obtida em nível social e político:

[...] ainda que tal fim seja o mesmo para o indivíduo e para o Estado (a eudaimonia), o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as Cidades-Estados (Aristóteles, 1987:10).

3 O Estagirita permanece duas vezes em Atenas, como aluno e professor na Academia de Platão (367-347 a.C.) e mais tarde quando funda o Liceu (336 a.C.), com ajuda de Alexandre o Grande, até que é forçado deixar a cidade acusado de promacedônio (323 a.C.), no interregno, durante dois anos, é professor de Alexandre por convite do pai Felipe II.4 Ou seja, a “Assembleia democrática dos 5.000”: “governo das multidões rudes, ignaras e despóticas”, segundo Aristóteles que, importa lembrar mata Sócrates (399 a.C.) por ensinar a máxima: “conhece-te a ti mesmo de um conhecimento verdadeiro”. 5 Um bem, a felicidade que, segundo a primeira frase de A Ética a Nicômaco, é definida objetivamente: “[...] toda arte, toda investigação assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem (a felicidade); e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coias tendem” (Aristóteles, 1987: 9).

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Ou, como afirmam estudiosos citando passagens da Ética: “Não só há mais beleza no governo do Estado do que no governo de si mesmo, mas (...) tendo o homem sido feito para a vida social, a Política é, relativamente à Ética, uma ciência mestra, ciência arquitetônica” (grifo do autor) (Prélot, 2006: XVII).

Pois bem! Para atingir o supremo bem, a felicidade, duas artes ou disciplinas, ética e política, tornam isso possível. Duas disciplinas que têm em comum o fato de indicar a boa conduta a ser praticada. Ambas, segundo Aristóteles, dizem respeito a “ações boas úteis e belas”. Dessa maneira, através do exercício de ações boas em si, mas também úteis, que existem em função de outra coisa, é possível atingir o sumo bem: a eudaimonia. É o que acontece, como veremos, com uma das virtudes cardiais do estagirita: a prudência ou phronésis, entendida como mistura de bom sentimento com bons resultados.

Com base no exposto, a virtude (areté) entendida, em sentido amplo, como disposição firme e constante na prática do bem comum (koinon synpherón) comporta duas acepções. Uma valorativa, um fim em si mesmo: o bom sentimento, o bom caráter, e outra instrumental: a escolha de meios adequados para a obtenção de um resultado, como diz o estagirita: “A virtude do homem deve ser uma disposição através da qual o homem torna-se bom, e através da qual se torna capaz de levar com sucesso a tarefa que lhe é própria” (a felicidade) (Aristóteles, 1961:76). Com base neste entendimento: virtude e prudência tornam-se sinônimos.

Se o bem a ser obtido é a felicidade (em nível individual e social) convém mostrar, em primeiro lugar, quais são as virtudes morais aristotélicas que dizem respeito aos bons sentimentos, disposições da alma, bom caráter, o temperamento, bem como ao agir, conduta ou comportamento do homem. Dentre das virtudes morais, adquiridas pelo hábito o costume, podemos citar, seguindo a Ética, certos jeitos de ser e condutas que supõem o triunfo do meio-termo (andréia) entre dois extremos, do bem entre dos vícios, uma cumeada entre dois abismos, isto é, uma forma de ser, moderada, e forma de agir, prudente, que constituem talvez um dos legados mais importantes da moral e ética aristotélicas.

Assim, por exemplo, a coragem que deve evitar a temeridade e cobardia; a calma: a irascibilidade e apatia; a temperança: a intemperança e insensibilidade; a liberalidade: a prodigalidade e avareza; a honra: a ambição e humildade6; a magnificência: a vulgaridade e mesquinharia; a indignação: a inveja e raiva; a magnanimidade: a soberbia e modéstia; a veracidade: a jactância e falsidade; a jocosidade: a bufonaria e

6 Trata-se, neste caso, da honra (adquirida não pela riqueza) mas pela “coragem” do guerreiro, elogiada por Aristóteles, bem como por Péricles que, discursando sobre a superioridade de Atenas sobre Esparta, antes do início da guerra do Peloponeso, declara: “Saibamos que tanto para as cidades quanto para os indivíduos, os mais graves perigos [a guerra] permitem a conquista da mais alta honra” (Mossé, 1971: 61).

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rusticidade7; a amizade: a adulação e grosseria; e, a justiça que diz respeito a um modo de agir pautado pelo equilíbrio, pela mediania: o justo ou meio-termo (lembrando o símbolo da justiça representada pela balança). Tais jeitos de ser ou disposições do caráter, da alma, cristalizados em comportamentos concretos, são importantes porque determinam o ethos de cada cidade e, por conseguinte, como veremos, distintos tipos de governo.

O comportamento justo (diké), uma das virtudes mais completa porque sempre que se pratica é em benefício de terceiros: chamamos justos, diz Aristóteles, aqueles atos que produzem para a sociedade política a felicidade e os elementos que a compõem, pode ser tido, junto com a prudência e amizade como as virtudes cardiais aristotélicas já que em todos os casos constituem a externalização concreta de bons sentimentos e/ou temperamentos. Além dessas virtudes práticas existe a sabedoria filosófica, especulativa, adquirida pelo ensino, que “produz felicidade porque, sendo ela uma parte da virtude inteira, torna um homem feliz pelo fato de estar na posse e de atualizar-se”. Para Aristóteles, a virtude intelectual diz respeito a uma parte da alma: a reta razão que se relaciona, sobretudo, com as ciências teóricas (matemática, física) com o invariável, sujeito a leis universais, através do método indutivo ou dedutivo - o que no campo da ética implica o conhecimento do bem. Contudo, importa esclarecer que, para o autor, a sabedoria teórica, a filosofia, à diferença das virtudes práticas, implica o uso da razão cuja meta não é o desenvolvimento de “ações úteis, boas e belas” mas o conhecimento científico (epistéme) do verdadeiro ou, como acredita seu mestre Platão, o conhecimento do verdadeiro e do bem.

Aristóteles sem deixar de elogiar a filosofia (Protético) entende, na relação theoría e práxis, que a segunda é mais relevante: é acertado, pois, dizer que pela prática de bons se gera o homem justo, mas a maioria das pessoas não procede assim refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e que se tornam bons dessa maneira. E, ainda, sempre com o intuito de mostrar o predomínio da vida ativa (ética e política) sobre a vida contemplativa (filosofia), declara: o intelecto por si mesmo não move coisa alguma, só pode fazê-lo a sabedoria prática que visa a um fim (a felicidade) (Aristóteles, 1987: 31; 102) e, também, quando afirma, em contraste com Sócrates que acredita que as virtudes morais são formas de conhecimento, “o mais importante não é saber que é, mas como se manifesta: não queremos saber (por exemplo) o que é a coragem, queremos ser corajosos” (MacIntyre, 1966: 31).

Sendo assim, a prudência, sabedoria-prática, é mais relevante, uma vez que faz possível, no dizer do autor, que “a obra de um homem só é perfeita quando está de acordo com 7 Para Aristóteles os “seres humanos são as únicas criaturas que riem”, contudo, o riso defendido pelo estagirita não é o riso “zombeteiro”, praticado pelos jovens, que adoram desprezar, envergonhar os outros, mas o riso “alegre”/”sorridente” que produz prazer, felicidade (Skinner, 2002: 15-16).

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a sabedoria prática e com a virtude moral (bons sentimentos), porque esta faz que seja reto o nosso propósito; e aquela que escolhamos os devidos meios” (Aristóteles, 1987: 111-112). Ou seja, a prudência, como “ação útil, nobre e bela” é a concordância da razão e do bom caráter ou temperamento. O fato de nela intervir a razão não implica, contudo, que a prudência seja igual à sabedoria intelectual ou filosófica que visa, vale reiterar, apenas o conhecimento do bem.

De fato, a chamada atividade deliberativa, locus privilegiado do exercício da prudência não procura, como veremos, o conhecimento mas se funda no melhor argumento ou opinião. Em outras palavras: uma coisa é a prática do bem outra é o conhecimento do verdadeiro. Sobre esta diferença, cabe o seguinte comentário:

O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica (Silva, 2011: 71).

A prudência ou sabedoria prática é importante porque se relaciona com a conduta ou comportamento concreto norteado por bons sentimentos (não como a filosofia que “não move coisa alguma”). Ou seja, tal virtude implica escolher meios idôneos que visam resultados ou, parafraseando o autor: a prudência é uma mistura de reto desejo e bom raciocínio, agir racionalmente na procura de um bom sentimento, pois, a boa ação ou escola, acrescenta, é um fim ao qual visa o bom desejo, ela é raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo (Aristóteles, 1987: 102).

A prudência faz parte, portanto, do moralismo e racionalismo ou, para empregar uma linguagem weberiana da “ética da convicção” e da ética dos resultados, uma vez que ela implica o respeito de princípios morais, o bom sentimento, mas se preocupa também pelas consequências da ação. Em outros termos: a prudência é a disposição de caráter que permite deliberar sobre o que é bom ou mau para o homem agir em conformidade com o convir. A importância dada pelo estagirita aos meios úteis ou racionais no exercício da prudência levou estudiosos considerar tal virtude como a “mais proeminente de todas” já que sem ela não se saberia o que se fazer nem como fazer, porque sem ela as demais virtudes seriam cegas ou indeterminadas (Comte-Sponville, 2007: 39).

Das virtudes citadas: a justiça (dikaiosyne), prudência (phronésis) e amizade (philía) merecem destaque especial porque dizem respeito ao agir concreto do homem em nível social e político. Tal trilogia, as virtudes cardiais aristotélicas, cumprindo, como veremos, papel fundamental em dois tipos de atividade humana, no contexto da polis, a poiésis e a práxis.

Exposta em termos gerais a moral e ética aristotélicas, convém à continuação mostrar como se dão em nível social e político. Para isso, achamos oportuno analisar um termo muito caro ao pensamento da antiguidade: a politéia. A escolha dessa palavra obedece

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ao fato de manter uma oscilação ou ambiguidade semântica que faz possível explorar a riqueza do termo. Seguindo A política podemos vislumbrar pelo menos dois sentidos: subjetivo que diz respeito ao comportamento virtuoso do homem em sociedade, em particular, do polités (cidadão); e, objetivo que diz respeito à pólis e, também, a uma forma específica de governo: a república.

Em relação ao sentido objetivo da palavra, a politéia aparece atrelada a uma realidade chamada pólis que, numa visão essêncialista, diz respeito ao quid da vida em comum, da vida em comunidade política. O termo pólis serve para designar uma agregação de homens em vistas da obtenção do bem comum: a felicidade, bem como uma realidade que experimenta a autárquica (autosuficiência). Uma realidade que implica não apenas viver (zein), mas viver bem (eu zein)8 e, isso em contraste com sociedades menores que a integram, argolas de uma cadeia com princípio e fim (a pólis), que visam sobretudo a procriação e sobrevivência (zein), mas carecem de laço político, não compartilham uma mesma comunidade em pro do bem comum; sem desconsiderar que estes agrupamentos, diferentemente da pólis, são limitados porque segundo o estagirita quanto mais reduzidos são os grupos menores são as exigências morais.

Dentre esses agrupamentos cabe citar a família; depois, a phratría (grupo de famílias); e a tribo (grupo de fratrias), até chegar à pólis (grupo de tribos), sendo que cada uma delas, que formam uma confederação, nascem sem perder sua individualidade nem independência; em termos religiosos cada uma tem seu culto até chegar a um culto comum, como destaca um importante estudioso sobre o papel da religião no contexto de A cité antique:

O homem entra em épocas diferentes em cada um dessas quatro sociedades, ele sobe, de certa maneira, de uma para outra. A criança é primeiro aceita na família pela cerimônia religiosa que acontece dez dias após seu nascimento. Depois de alguns anos, entra na fratria através de uma nova cerimônia [diante de uma divindade superior à divindade doméstica]. Por último, à idade de dezesseis ou dezoito anos, ele se apresenta para ser aceito na cidade. Esse dia [...] faz um juramento pelo qual se compromete, dentre outras coisas, a respeitar sempre a religião da cidade. A partir desse dia, é iniciado ao culto público e se torna cidadão (Coulanges, 1984: 145).

Como acontece no plano religioso: pluralidade de cultos por cima dos quais existe o culto comum da cité (a deusa Atenas na Grécia), o mesmo acontece no plano político: uma pluralidade de governos (chefes, assembleias, etc) por cima dos quais se ergue o governo da cidade.

A palavra politéia, em sentido objetivo, diz respeito também a uma forma específica, reta, de governo: a república. Ideia endossada por Péricles que, quando se refere à politéia ou democracia ateniense (460-430 a.C.), afirma o seguinte:

8 “É evidente, observa Aristóteles em A política, que a pólis não é, meramente, a coabitação de pessoas no mesmo território, a fim de que os cidadãos gozem de segurança e mantenham boas relações de negócio”.

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Nossa politéia não tem nada que invejar às leis que regem nossos vizinhos; longe de imitar aos outros, nós damos o exemplo a seguir. Do fato que nossa cidade encontra-se administrada pelo interesse da massa e não de uma minoria, nosso regime chama-se democracia. E no que concerne as diferenças particulares, a igualdade é garantida a todos através das leis; mas no que diz respeito à participação na vida pública, cada um é merecedor de consideração em razão do seu mérito, e a classe a qual pertence importa menos que seu valor pessoal; em definitivo ninguém é incomodado pela pobreza ou pela baixeza da sua condição social, sempre e quando preste serviços à cidade (grifo nosso)(Mossé, 1971: 47).

Importa destacar que para Aristóteles tal regime político resulta, paradoxalmente, da combinação de duas formas más ou ruins de governo: a oligarquia e a democracia. De fato, segundo A política, a oligarquia é o governo dos ricos enquanto a democracia dos pobres, com o qual o que lhe interessa destacar não é a extensão da soberania, critério quantitativo, quantos governam? Mas o modo de exercício da soberania, critério qualitativo, como se governa? Para quem se governa? Ou seja, em beneficio de uma parte, formas ruins de governo: um só - tirania; ricos - oligarquia; pobres - democracia ou oclocracia ou, pelo contrário, em beneficio de muitos ou do grande número, formas retas de governo: realeza, aristocracia e república ou politéia, respectivamente.

Para Aristóteles o fato que poucos ou muitos governem é acidental para determinar a oligarquia ou democracia, uma vez que a verdadeira diferença radica no predomínio dos interesses que as animam: a riqueza ou licenciosidade. Disso resulta que o objetivo do estagirita, ao igual que outros pensadores da antiguidade, é defender uma forma de governo que, segundo assertiva do reformador ateniense Sólon, “permita que ricos e pobres sejam protegidos com um forte escudo que cobra a todos, de modo que nenhum triunfe injustamente à custa dos outros” (Finley, 1983:11).

É o que acontece, por exemplo, na oligarquia em que os ricos se tomam por “deuses”, governam acima das leis e, portanto em benefício próprio contra os pobres; bem como na democracia em que os pobres se comportam como “bestas”, governam acima das leis e, portanto também em benefício próprio contra os ricos. Não esqueçamos, seguindo Aristóteles, que para fazer parte de uma koinonía (comunidade) é necessário que o homem não se baste a si mesmo, isto é, parafraseando o autor, que não se tome por “deus” (oligarca) nem por “animal” (o povo licencioso).

Como exemplo de formas ruins de governo podemos citar os regimes conhecidos por Atenas depois da Guerra do Peloponeso: “Conselho oligárquico dos 30”, “Assembleia democrática dos 5.000”, etc, exemplos maus de governo porque como diz o estagirita “quando ocorrem revoltas e combates entre os pobres e os ricos, os que saem vencedores não toleram mais comunicação nem igualdade com os vencidos no governo, mas reservam para si, como prêmio da vitória, o privilégio de governar” (Aristóteles, 2006: 190).

Para superar a ideia de que o estado (pólis) é uma arena de interesses conflitantes, o espírito moderado do estagirita prevê uma forma de governo que permita superar o

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predomínio de interesses parciais. Uma forma - mista - de governo, a república ou politéia, mistura de oligarquia e democracia, de ricos e pobres, que é melhor porque supõe em termos socioeconômicos uma extensa ou ampla classe média, uma maior inclusão social ou, parafraseando o autor, “muitos cidadãos de média fortuna”, mas também porque conta com arranjos institucionais que permitem caminhar na direção de uma maior participação política, que evita o conflito e fortalece o consenso, bem como do ponto de vista ético, uma maior quantidade de cidadãos virtuosos.

De fato, o problema da oligarquia e democracia, formas simples e más de governo, é que ambas conhecem a perturbação da ordem, a desordem (stasis), a desarmonia (hybris), o descomedimento, ou seja, a prática do excesso: os ricos que não querem perder a riqueza e brigam contra os pobres, os pobres que não querem perder a licenciosidade e brigam contra os ricos; característica, aliás, da pólis que, à diferença das sociedades menores (fratria e tribo), conhece o conflito (pólemos), a luta entre grupos opostos, que, em perspectiva aristotélica, deve ser evitado.

Já a república, governo do to meson, meio-termo, equilíbrio entre partes desiguais, implica uma fusão de ricos e pobres sendo possível a sobrevivência, a paz, a ordem, uma maior estabilidade no tempo (firmitudinem), ou seja, uma forma de governo que permite deter o ritmo inexorável da anaciclose (formas boas seguidas de formas más de governo). Em outros termos: uma forma de governo que se funda na concórdia (homónoia), que evita o triunfo dos extremos:

É, portanto, uma grande felicidade para o Estado que nele se encontrem apenas fortunas medíocres e suficientes. Em toda parte onde uns têm demais e outros nada, segue-se necessariamente que haja democracia exacerbada, ou violenta oligarquia [...] A mediania (de riqueza) é, pois, o melhor Estado; é o único que não conhece sedições. Com efeito, não acontecem nem agitações, nem divisão onde muitos se encontram em posse de uma riqueza média (Aristóteles, 2006: 189-190).

Acompanhando esse argumento sociológico em prol da politéia, podemos acrescentar, seguindo A política, três expedientes ou combinações possíveis tirados da oligarquia e democracia que fazem da república um governo bom e participativo. Da primeira, a oligarquia, multando os ricos quando não comparecem às sessões das magistraturas colegiadas e exigindo certa riqueza para escolher ou ser escolhido como membro das magistraturas, bem como utilizar o mecanismo da eleição para o preenchimento dos cargos públicos; da segunda, a democracia, pagando jetom aos pobres para que compareçam as magistratura colegiadas9 e exigindo pouca riqueza para exercer tais funções, bem como utilizar o mecanismo do sorteio para o preenchimento dos cargos públicos. Dessa maneira, a república, como diz estagirita, constitui uma “combinação perfeita” que deve parecer uma ou outra forma de governo ao mesmo tempo sem parecer, contudo, nenhuma das duas (oligarquia e democracia).

9 Péricles cria, por exemplo, o misthos heliastikos: pagamento oferecido como compensação àqueles que abandonam o trabalho (labuta) para exercer funções políticas e judiciais (Mansouri: 2011: 34).

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Pari passu ao argumento sociológico, presença de uma numerosa e forte classe média, e da combinação de expedientes que tornam possível uma maior participação política, Aristóteles desenvolve outro argumento em favor da república ou politéia, de natureza ética, isto é, a necessidade do comportamento virtuoso no sentido de comportamento moderado, meio-termo (andréia), em oposição ao triunfo do vício: “O que dissemos de melhor em nossa Ética é que a vida feliz consiste no livre exercício da virtude, e a virtude na mediania; segue-se necessariamente daí que a melhor vida deve ser a vida média, encerrada nos limites de uma abastança que todos possam conseguir”. E arremata com uma assertiva de alcance político: “O que dizemos da virtude e do vício (em nível individual) devemos dizer do governo, que é a vida do Estado inteiro” (Aristóteles, 2006: 187).

Seguindo Francis Wolff, o problema da democracia e oligarquia é que elas operam uma “quantificação do poder” quando na verdade do que se trata, inspirado no estagirita, é defender uma forma de governo em que se dá uma “qualificação do poder”: as formas retas. Com base nesta premissa, a politéia é uma forma boa não porque o poder é distribuído equitativamente como pretendem os oligarcas que dizem “a cada um segundo sua riqueza” ou os pobres que dizem “a cada um segundo sua liberdade” (licencia total), mas porque deixa de lado tais critérios (riqueza e licenciosidade). De fato, nestes casos o poder é distribuído não de acordo com a capacidade ou virtude dos governantes, mas em conformidade com interesses parciais, isto é “da classe dominante”, que pretendem se erigir no interesse geral.

Com base no entendimento que “nem a liberdade (licencia total) nem a riqueza devem ser levados em conta na distribuição do poder” (Wolff, 1999: 123), trata-se de “encontrar” uma forma de governo em que o poder é exercido pela maior quantidade de cidadãos virtuosos, pela qualidade moral e/ou ética do maior número de pessoas. Sendo assim, a pergunta correta, seguindo o raciocínio do autor, é a seguinte: a quem o poder deve ser atribuído em toda justiça não porque será justamente repartido, mas porque será mais justamente exercido, em benefício de todos. Em outras palavras: um regime político é justo se conta com cidadãos virtuosos.

A este respeito é conhecida a resposta de Aristóteles com as três formas retas ou boas de governo porque baseadas na virtude de um só (realeza); alguns (aristocracia); e, notadamente, na virtude de muitos (república). Em todos os casos trata-se do governo em favor de todos e respeitoso das leis. Dessa maneira, para o estagirita, é justo todo governo que vise o bem de todos ou do maior número, em vez daqueles governos que beneficiam uma parte da sociedade. Assim, a busca da vida boa, do bom viver (eu zein), viver em comum (koinon), qualifica qualquer governo exercido por um, alguns, todos ou muitos como verdadeiro regime político.

Contudo, resta saber, qual desses três regimes é melhor: “que tipo de regime é o mais capaz de tomar as melhores decisões para a cidade?” (Cardoso, 2006: 6). A resposta do

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estagirita é o governo de todos em prol de todos: quando a massa, escreve Aristóteles, tomada como um corpo é virtuosa ela é superior àquela de um só ou de alguns. A defesa do regime político formado do maior número de cidadãos virtuosos faz que o estagirita faça uma “apologia aristocrática da democracia” ou, parafraseando ainda Francis Wolf: “em vez de pretender que é melhor que o povo governe, ele mostra que o povo governa melhor”:

Aristóteles vem atestar que não é propriamente a democracia - nominal e formalmente o governo de todo o povo, mas, de fato, o da massa dos pobres - que realiza a figura superior do governo de todos (o mais apto a governar para todos e a levar aos fins da comunidade política), mas é o regime constitucional (‘politéia’): o governo do ‘justo meio’ entre ricos e pobres, formalmente definido pela promoção da inclusão e comunicação das partes fundamentais (irredutíveis) e antagônicas da cidade (sic) (Cardoso, 2000: 6).

Do exposto até aqui se depreende que a reflexão aristotélica se encontra no ponto de interseção dos quatro projetos da filosofia política clássica, dois especulativos e dois empíricos, a saber: a) fundamentos da política com finalidades descritivas - a pólis e sua relação com agrupamentos menores; b) fundamentos da política com finalidades prescritivas - a essência da pólis; c) regimes políticos com finalidades descritivas - as diferentes formas de governo; e, d) regimes políticos com finalidades prescritivas - as formas boas ou retas de governo que impedem a ruína da pólis. Tais projetos sendo a “marca registrada” da sua obra política que parece balançar entre a filosofia com seu ideal reformador e a ciência política com sua análise descritiva e comparativa dos diferentes regimes políticos10.

Como exemplo do governo de muitos em favor de muitos podemos citar a democracia ateniense durante o “século de ouro” ou “século de Péricles” (460-430 a.C.) que, na opinião do líder ateniense, se assenta na “busca da felicidade do maior número e não de alguns”. Esta forma de governo, com base nas “reformas cruciais” de Clístenes (508-507a.C.), faz de Atenas um regime inclusivo, contudo, importa lembrar que mulheres, estrangeiros (metecos) e escravos não participam, não são cidadãos; assim de uma população total de trezentas mil pessoas, início do século V a.C, apenas 15% participa como cidadão.

Em Constituição de Atenas o estagirita elogia expressamente o líder, Péricles, por ter “entregado o poder ao povo”, na opinião de historiadores: um regime que deu às classes mais baixas a audácia de assumir cada vez mais a liderança na política (Finley, 1988: 58). Porém, a democracia ateniense não se caracteriza só pela maior extensão da soberania, a maior participação política, mas, também, segundo Aristóteles, porque reflete o costume ou ethos de seu povo.

Sendo assim, o estagirita insiste num aspecto muito relevante: a estreita relação que guarda o governo de qualquer comunidade e seu ethos (Babbitt, 2003: 49). Ou, como

10 Aristóteles realiza um estudo comparativo de 158 constituições do qual ficou, sobretudo, disponível: A constituição de Atenas (encontrada no século XIX em Egito).

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destacam outros estudiosos a propósito do caráter ou jeito de ser de cada povo na antiguidade: cada um tinha sua tonalidade ou ethos próprio, cada um desenvolvia um código de conduta peculiar, cada um tinha sua personalidade moral, seu caráter, cada um tinha consciência de si como um todo, que ele próprio criava e sustentava (Barker, 1978: 16).

E, ainda, Aristóteles quando se refere à arte política: ela não consiste só em considerar a melhor forma de governo, mas também aquela que convém a cada povo, pois, acrescenta, nem todos soão suscetíveis do melhor. Neste sentido, sobre o caráter ou ethos particular de cada povo ou cidade, o estagirita segue Sócrates ao sustentar que justo ou injusto, piedoso ou ímpio, etc, depende da convicção moral de cada povo e que nesses assuntos nenhum indivíduo pode considerar-se mais sábio que outro, nem uma pólis mais do que outra.

Em relação às mudanças democráticas introduzidas por Clístenes em Atenas importa registrar que, partindo da tribo (sociedade menor), eleva o número a dez, substituindo as quatro existentes, e divide a população civil em trinta grupos de démos (comunas), chamados trittyes, cada tribo comportando três trittyes que representam cada uma das zonas geográficas que formavam a Ática: a cidade, o interior rural e o litoral. Com esta repartição, um espaço cívico inteiramente reconstituído, os cidadãos passam a ser registrados no démos onde nascem que também servem de base para a composição das unidades militares (hoplitas). Tal organização era mais democrática, ampliava a cidadania, uma vez que o démos, formado sobretudo de camponeses (hilotas) e alguns artesãos, substituí o registro feito anteriormente na fratria - agrupamento de famílias, na época, mais aristocrático:

A reestruturação promovida por Clístenes permitiu integrar um maior número de cidadãos à vida pública, inserindo-os em circunscrições inteiramente novas, que rompiam com os quadros geográficos tradicionais, e, assim, acabavam com as relações de clientelismo que mantinham a população local submetida ao poder das antigas famílias dirigentes (Schnapp-Gourbeillon, 2011: 31-32).

As reformas de Clístenes foram importantes porque faz da tribo o local privilegiado para a distribuição dos cargos públicos que eram exercidos na Boulé ou Conselho, Eclésia ou Assembleia e na Heliée ou Tribunal A composição destas instituições tornou-se mais democrática, baseada numa distribuição da riqueza mais equilibrada, porque eram as tribos que forneciam os soldados (cem por tribo), para compor os Hoplitas ou unidades militares11, muitos deles pouco endinheirados. Cumpre destacar também que o acesso a tais instituições seguia dois procedimentos: o sorteio na escolha dos membros do conselho e a eleição no caso dos membros da assembleia e tribunal, que se estende também ao cargo de Estratego ou Líder; sem esquecer que os membros destas instituições deviam prestar contas à população da atividade desenvolvida.

11 Por exemplo, na batalha de Maratona (490 a.C.), a primeira das Guerras Médicas, o exército ateniense tinha um contingente de 9.000 hoplitas.

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A Boulé ou Conselho, encarregado de preparar os atos legislativos submetidos depois à votação da assembleia, reunia representantes eleitos pelas dez tribos, cinquenta bouletai (conselheiros) por tribo, o “Conselho dos 500”, que exerciam seus cargos durante um ano. Os representantes eram sorteados dentre os candidatos de cada démos e não podiam exercer suas funções mais que duas vezes na vida. Para ser bouletai, membro do órgão principal da democracia ateniense, a “escola da democracia”, se requeria a idade de trinta anos. Seguindo mudança do calendário de Clístenes (um ano: dez meses), cada tribo passa a governar a cidade durante um mês, os bouletai não podendo exercer outro tipo de atividade durante esse tempo já que deviam ficar dia e noite nas dependências do conselho (Schnapp-Gouberlion, 2011: 31-32). Dos mais de três mil membros do conselho de que se conhece o nome, no período de Péricles, 1/3 exerce o cargo mais de uma vez; e, segundo outras estimativas entre 1/4 e 1/3 do total de cidadãos, com mais de 30 anos, participou do conselho (arredor de 13.000 cidadãos).

A Eclésia ou Assembleia, dirigida pelo epístato dos prítanes, se reunia quatro vezes por pritanía, 40 vezes por ano, estabelecia a ordem do dia de cada sessão e os cidadãos deliberavam sobre assuntos específicos em pauta (Logeay, 2011: 38). Encarregada de fazer as leis, em particular a lei de orçamento, nomear embaixadores, realizar tratados e nomear magistrados; todo cidadão maior de 18 anos podia participar dos debates expressando seu voto com a mão erguida e a decisão era pelo voto da maioria simples dos presentes, as questões mais delicadas podiam ser submetidas à votação secreta12.

A assembleia era soberana e seus poderes quase ilimitados, porém diante do risco de ceder aos excessos de demagogos, a boulé ou conselho, encarregada da redação final das leis, guardiã das leis, exercia o papel moderador. Nos projetos de lei, submetidos à assembleia, qualquer cidadão podia apresentar impugnações e ementas e as “grandes questões”, declaração da guerra, ostracismo13, etc, eram matéria exclusiva da sua competência. O quórum mínimo exigido para funcionar era de 6.000 cidadãos.

A Heliée ou Tribunal era composto de cidadãos com mais de trinta anos recrutados seguindo o procedimento da eleição, mas também do sorteio: cada ano seis mil voluntários, 600 por tribo, eram sorteados para atuar como juízes (heliastas), mais de 300 dias por ano, sua função principal consistia em julgar causas apresentadas pela população e atuar como tribunal de apelação das decisões de outros magistrados.

12 Sobre a regra democrática da maioria (pollói), ela se aplicava tanto aos assuntos políticos quanto judiciais, todos podiam exprimir-se e os mais numerosos levavam a vitória.

13 O ostracismo, introduzido por Péricles em Atenas era o procedimento através do qual era expulso ou banido da cidade, por dez anos, todo eleito ou cidadão considerado ruim. Noutras palavras: um castigo a todo àquele que, não opinião da maioria dos membros da Assembleia, não trabalhasse em favor do bem comum.

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O Estratego ou Líder era escolhido dentre cidadãos de cada tribo para compor um colegiado, dez estrategos, que atuavam como ministros ou como generais em tempos de guerra. O cargo, um dos mais relevantes de Atenas, tinha duração de dois anos podendo reeleger-se sem limites de prazo.

Importa sublinhar que Péricles reforça o poder da assembleia ou eclésia com a reforma de 458 a.C., na medida em que esta passa a exercer funções dos arcontes (antigos magistrados responsáveis por diferentes áreas de governo); além disso oferece salário a todos os eleitos para cargos públicos, incluindo os 6.000 membros dos jurados populares; integrantes do conselho; soldados e outros funcionários do exército, fazendo que cerca de 20.000 atenienses recebam um salário que lhes permita dedicar-se aos assuntos públicos (Bernet, 2011: 52).

Do “evento criador da democracia ateniense”, as reformas de Clístenes e Péricles, vale destacar o papel da virtude (areté), no dizer de Montesquieu: o “princípio ou mola da democracia antiga”, uma forma de agir, segundo o autor, que passa pela contenção do interesse privado em pro do bem comum, pelo respeito do cidadão às instituições e leis. Tal observação do filósofo francês pode ser ilustrada, por exemplo, quando o polités ateniense presta juramento por tribos e démos:

Farei morrer, pela palavra, pela ação, pelo voto e pela minha mão, se puder, aquele que derrubar a democracia ateniense ou, uma vez derrubado o regime, em seguida exercer uma magistratura, ou aquele que se levantar para apossar-se da tirania ou venha ajudar o tirano a se estabelecer. E se for um outro que o mate, eu o considerarei puro diante dos deuses e das potências divinas, como se tivesse matado um inimigo público. Mandarei vender todos os seus bens e darei a metade ao assassino sem frustrá-lo em nada. E se um cidadão morrer matando um dos traidores, ou tentando matá-lo, eu lhes serei reconhecido assim como aos seus filhos [...] E todos os juramentos que foram feitos em Atenas, no exército ou alhures, para a ruína do povo ateniense, eu os anulo e rompo os seus laços (Vidal-Naquet, 2003: 258).

Para Aristóteles, o que define a condição de cidadão é a possibilidade de exercer o poder de julgar e ocupar cargos públicos. Acredita que a função legislativa e judicial, a chamada atividade deliberativa, deve ficar a cargo de muitos cidadãos. De fato, no que diz respeito à função legislativa porque a opinião de muitos delibera melhor sobre o universal (a lei); e, no relativo à função judicial porque a opinião de muitos julga melhor sobre o particular (o crime) já no tocante à função executiva, além de exigir mais preparo, deve ficar em mãos de poucos para tornar as decisões mais rápidas e não paralisar a atividade administrativa.

Vale destacar que no momento da elaboração da lei e decisão judicial a prudência ou phronésis aparece com toda força, uma vez que a sabedoria prática versa sobre coisas humanas e para isso precisa de homens dotados que saibam, baseados no uso da razão, fazer o melhor para todos (Aristóteles, 1987: 106). De fato, é o que acontece com os encarregados da fazer a lei que cumprem também uma função educadora:

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[...] se é pelas leis que nos podemos tornar bons, seguramente o que se empenha em melhorar homens, sejam estes muitos ou poucos, deve ser capaz de legislar. Porquanto reformar o caráter de qualquer um - do primeiro que lhe colocam na frente - não é tarefa para qualquer um; se alguém pode fazer isso, é o homem que sabe, exatamente como na medicina e em todos os outros assuntos que exigem cuidado e prudência (Aristóteles, 1987; 194).

A deliberação, que se relaciona com as coisas humanas, consiste na procura de meios idôneos para realizar um fim determinado. Contudo, importa frisar mais uma vez que não se trata da escolha de um meio que necessariamente leva a um resultado, ou seja, não é um problema de ciência, epistéme, mas de opiniões, de vários pontos de vista, em que o fim visado é conseguido através de argumentos. A deliberação seja sobre o universal (lei) ou particular (crime) não implica então um saber infalível, mas uma situação em que o cidadão desenvolve um saber aproximado sobre o que é possível, ela implica sempre o risco ou fracasso (Aubenque, 1963: 108; 113).

O exercício da prudência pode ser observado na atuação dos juízes (dikastés), bem como dos membros dos tribunais que fazem justiça (dikaiosyne): “dar a cada um o seu”, “não tomar mais que sua parte”, etc, seguindo dois princípios: aritmético e geométrico, ou seja, uma distribuindo de bens, matérias ou imateriais, com base num tratamento igual ou proporcional. Em relação a estes dos tipos de justiça vale fazer um breve comentário.

Segundo o Livro V da Ética temos, por um lado, a justiça civil que versa sobre objetos de troca (contrato), e a justiça penal que versa sobre delitos ou crimes (homicídio), o juiz decidindo de maneira igual, de forma aritmética, a parte que corresponde a cada um: no caso do não cumprimento do contrato, obrigar uma das partes a restituir o que corresponde à outra; no caso do crime que o criminoso cumpra a pena; em ambos os casos o justo (corretivo) pode ser definido a partir da seguinte premissa: “sofrer o que se faz aos outros será reta justiça” (Darbo-Peschaski, 1993: 46). Nestes casos, o que o que está em jogo é uma “equivalência entre coisas” ou “reparação entre pessoas”, respectivamente.

E, por outro lado, a justiça distributiva, que versa sobre relações de convivência, o juiz decidindo de maneira proporcional, de forma geométrica, a parte que corresponde a cada um segundo critérios ligados à “riqueza”, “mérito”, “responsabilidade”, etc. Neste caso, o que está em jogo é uma “equiparação de pessoas”. Este tipo de justiça, quando aplicada à riqueza visa à mediania (presença de uma ampla classe média) já que a finalidade da pólis, seguindo Aristóteles, é “assegurar a todos os cidadãos uma vida digna de homens livres, isto é, a participação comunitária nos bens essências ao bem-estar coletivo, segundo um principio de igualdade proporcional em que os que tem menos riqueza devem receber mais bens da comunidade” (Comparato, 2006: 104).

Este segundo tipo de justiça cujo objeto consiste na - justa - repartição de riquezas, reconhecimentos e encargos num grupo faz que o direito implique uma pluralidade de

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pessoas entre as quais tem lugar uma repartição de coisas matérias ou imateriais. Em resumo: o direito (to dikaión) como objeto tangível ou intangível a ser repartido, e não uma qualidade ou atributo inerente ao homem (direito natural) (Villey, 1983: 46; 47).

A atividade deliberativa desenvolvida pelos membros do conselho e assembleia, pelo juiz e membros do tribunal, baseada na prudência, corresponde a um tipo de atividade humana chamada poiésis. O trabalho ou poiésis diz respeito ao politiké tékhne que, a partir de uma ars produz um bem: uma norma ou decisão judicial que visa resultados.

De fato, a poiésis é fundamental já que a vida na pólis requer certas condições: leis que é “trabalho” do legislador, decisão judicial que é “trabalho” do juiz e do júri 14. Em ambos os casos, ela visa um resultado: dar estabilidade à comunidade. Tal tipo de atividade, a poiésis, própria do homo faber, que fabrica algo (lei, decisão judicial), produzindo um tipo de bem que é estável ou duradouro:

Este caráter duradouro (da poiésis) dá às coisas do mundo sua relativa independência com respeito aos homens que as produzem e as usam, sua ‘objetividade’ as faz suportar, ‘resistir’ e perdurar, pelo menos por um tempo, às vorazes necessidades e exigências de seus fabricantes e usuários. Deste ponto de vista, as coisas do mundo tem a função de estabilizar a vida humana, e sua objetividade radica no fato de que [...] os homens, apesar da sua sempre cambiante natureza, podem recuperar sua unicidade, quer dizer, sua identidade, ao relacioná-la com a mesma [coisa]. Dito de outra maneira, contra a subjetividade dos homens se levanta a objetividade do mundo (grifo nosso) (Arendt, 1993: 158).

Em linguagem mais abstrata, a poiésis está ligada à produção de normas ou decisões judiciais que podem ser tida como “acidente” de uma “essência”. A felicidade, afirma o estagirita, faz parte do número de coisas estimadas e perfeitas, ela é um primeiro princípio, pois é tendo-a em vista que fazemos tudo o que fazemos, e o primeiro princípio e causa dos bens é algo de estimado e de divino (Aristóteles, 1987:22). A felicidade, essência das coisas humanas, supõe então normas e decisões que são acidentes da sua realização. Cumpre destacar, aqui, o objetivismo ético aristotélico: a felicidade, uma essência, um objeto ou coisa quantitativa e qualitativamente boa - que requer condutas ou deveres morais daqueles que exercem cargos e funções públicas. Tal visão da felicidade, porém, não é transcendente: não se trata do conhecimento da felicidade “em si” (Platão), mas da felicidade que “aparece na linguagem humana (naquilo) que os homens buscam ou desejam”, que aparece cristalizada em coisas boas (MacIntyre: 1994: 68).

Em relação à práxis ou ação, outro tipo de atividade humana desenvolvida na pólis, ela diz respeito ao polités que, junto com outros cidadãos reunidos na assembleia15, produz outro tipo de bem, desta vez, fugaz, simbólico, que dignifica a conduta, como por exemplo, a phília ou amizade. Trata-se, na opinião de Arendt da “subjetividade dos

14 Como também, exemplo dado por Aristóteles, é “trabalho” (poiésis) a atividade do arquiteto que construí ou delimita fisicamente a cidade, etc.15 Ou seja, na “praça pública” (ágora): a assembleia não era nada além de um comício ao ar livre na colina Pnyx.

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homens” que, liberados da esfera da necessidade16, conseguem através da linguagem, comunicação ou discurso (lexis) compartilhar um bom sentimento (phília) e debater sobre o que é comum (koinon) e os melhores fins da cité. A práxis e discurso, afirma Arendt, dá-se entre homens que tem interesses comuns, algo do inter-est, que se encontra entre as pessoas e que pode relacioná-las, uni-las.

Assim, a práxis significa que o cidadão movido por bons sentimentos (temperança, liberalidade, veracidade), as virtudes morais aristotélicas, produz na companhia de outrem bens simbólicos, transitórios, como a amizade, que não é outra coisa que o reconhecimento de nosso ser no outro, a abertura ao sofrimento de outrem ou, como diz o estagirita: “sem amigos ninguém quer viver mesmo que tenha outros bens”, “na pobreza e nas demais desgraças consideramos os amigos como o único refúgio”, etc. Trata-se de um bem, a amizade, que à diferença daquele produzido pela poiésis ou trabalho, merece ser vivido independentemente do resultado.

O locus da ação ou praxe é então o do encontro na praça pública (ágora) de homens livres e iguais que compartem e produzem bens fugazes, transitórios: o processo de agir e falar, destaca ainda a autora, pode não deixar trás de si resultados e produtos finais, porém da sua prática dá-se algo que podemos chamar de “trama das relações humanas” (Arendt, 1993: 207) - com tal expressão querendo dizer a produção de algo intangível, espontâneo, ou seja, compartir palavras e estar juntos, a trama das relações humanas, que mobiliza bons sentimentos e laços comunitários que norteiam, por sua vez, a discussão sobre os melhores fins da cité.

Com base nos dois tipos de atividades humanas, poiésis e práxis, podemos dizer que a prudência ou phronesis aparece no primeiro tipo de atividade no sentido que está destinada a produzir algo duradouro (norma, decisão judicial) que requer uma arte ou técnica, o uso da razão ou, como diz Aristóteles: “a arte é uma disposição relacionada com o produzir que envolve o reto raciocínio”, mas também a prudência aparece no segundo tipo de atividade no sentido que está destinada “não a produzir” como diz o estagirita, mas a sentir algo bom em si, apesar de fugaz e transitório. Ambos os tipos de atividade, trabalho e praxe, ligados à prudência, contribuindo para a vida boa ou feliz na pólis.

Na atuação do polités como legislador, juiz ou eleitor cumpre destacar, mais uma vez, a importância da virtude moral pautada pelo triunfo do meio-termo: a temperança (andréia), uma vez que permite desenvolver o sentimento de pertença à comunidade (koinonia), ou seja, daqueles que participam dos assuntos públicos terem consciência de um destino comum - que leva atuar de forma moderada:

16 Isto é, dispensados de outro tipo de atividade, a chamada labor (esforço físico), que corresponde ao homem laborans, homo econômicas, exercida no âmbito da casa (oikós) pelo escravo e destinada à produção de bens de consumo para a sobrevivência.

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Nem a Assembleia soberana, com seu direito ilimitado de participação, nem os júris populares, nem as escolhas de administradores por sorteio, nem o ostracismo poderiam ter evitado, por um lado, o caos e, por outro lado, a tirania se não houvesse autocontrole entre uma representativa parte do corpo de cidadãos para manter seu comportamento dentro dos limites (grifo nosso) (Finley, 2003: 40-41).

Em relação aos “primeiros nomes da democracia”: isonomia, isegoria, isocracia (direito à elaboração da lei, direito à palavra, direito de participar) etc17, trata-se de direitos que se relacionam com o exercício da soberania (krátos), sem desconsiderar a forte influência que exercem na educação (paidéia) do cidadão:

Em uma sociedade pequena, homogênea, relativamente fechada, em que todos se conheciam, era perfeitamente válido chamar as instituições fundamentais da comunidade [...] - a Assembleia - como agente natural de educação. Um jovem se educava comparecendo à Assembleia, ele aprendia as questões políticas que Atenas enfrentava, as escolhas, os debates e aprendia a avaliar os homens que se apresentavam como políticos atuantes, como líderes (Finley, 1988: 42).

Sobre a liberdade e igualdade convém trazer a opinião de alguns autores com o intuito de mostrar seu alcance, assim, por exemplo, Hegel: os antigos se consideram livres e iguais como cidadãos ou, Arendt: a igualdade e liberdade dos gregos eram atributos do cidadão e não qualidades inerentes à natureza humana; e, ainda, o comentário de Thomas Mann, em A montanha mágica, o destino do homem grego encontra seu significado em termos políticos. São direitos, portanto, que remetem à conhecida fórmula da liberdade dos antigos de Benjamin Constant que consiste em exercer coletiva e diretamente várias partes da soberania, em deliberar na praça pública; ela implica, segundo o autor, uma completa subordinação do indivíduo ao todo (pólis). Neste sentido, tais direitos não podem ser dissociados do termo parresia (obrigação de usar a palavra) que indica a ideia que o cidadão não só tem o direito de participar, mas também a obrigação de tomar parte nos assuntos públicos.

Segundo A cidade antiga de Fustel de Coulanges estamos diante da “omnipotência do estado” ou, dos antigos não terem conhecido a liberdade no sentido de independência individual. Assertiva que pode ser ilustrada pelo fato que em Atenas o serviço militar durava toda a vida; que a riqueza ficava à disposição do estado, que, por sua vez, podia obrigar o homem a trabalhar; que o cidadão não podia permanecer neutro diante de posições contrárias; que a educação ficava a cargo de mestres escolhidos pelo estado; que o homem não tinha liberdade de credo religiosa, devendo submeter-se à religião da cidade e ser penalizado se não comparecia à celebração de uma festa nacional e, até acusado e condenado por falta de afeição para o estado: a pena do ostracismo. E, ainda mais:

A funesta máxima de que a salvação do Estado é lei suprema foi elaborada pela antiguidade. O direito, a justiça, a moral, tudo devia ceder diante o interesse da pátria. É um erro acreditar que nas cidades antigas o homem gozava da liberdade. Não tinha a mais mínima ideia dela,

17 Direitos estes que confirmam, aliás, a observação do historiador britânico Moses Finley de que “o mundo grego foi sobretudo um mundo da palavra falada e não da escrita”.

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não acreditava que podia existir direito vis-à-vis da cidade [...] o governo podia chamar-se monarquia, aristocracia, democracia, contudo nenhuma dessas mudanças dá aos homens a verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados (etc), voilà ce qu’on appelait la liberté (Coulanges, 1984: 265-269).

Seguindo classificações do pensamento social e político podemos afirmar com respeito ao mundo antigo que o tipo de argumento que prevalece é ex parte principis (Bobbio), de cima para baixo, do estado para o indivíduo: o importante é a unidade do estado e os deveres dos indivíduos para a comunidade; ou, uma forma de sociedade: universitas (Gierke), em que o homem faz parte de uma totalidade orgânica (pólis) que precede os membros; uma comunidade ou Gemeinschaft (Tonnies) que privilegia a coletividade sobre o indivíduo; uma sociedade fechada (Popper) que, como um organismo, mantém os membros juntos através da participação no esforço comum; uma ideologia, holismo (Dumont) que valoriza a totalidade social, bem como a hierarquia e subordinação de cada um dentro do estado, etc.

Quanto à liberdade e igualdade importa dizer que elas se fundam numa ordem natural, fúsis, que não é igualitária mas hierárquica: uma totalidade em que cada elemento se encontra em harmonia com o resto. A expressão nómos katá fúsis (a lei deve estar em conformidade com a natureza), tal como usada por Platão significa, por exemplo, que a kallipolis ou república perfeita deve reproduzir em nível individual e social a ordem natural que, além de hierárquica é equilibrada. Assim, ouro, prata e bronze, elementos da ordem natural correspondem respectivamente a distintos tipos de almas e classes sociais. Ouro, inteligência, a classe política - governantes; prata, coragem, a classe militar - guerreiros; e bronze, apetência, a classe econômica - os trabalhadores (Platão, 1983: 121). Trata-se de uma natureza cósmica que deve ser imitada para os homens viverem em harmonia e de forma justa.

A virtude ou areté entendida como disposição para produzir efeitos comuns, realizar de maneira ótima aquilo para o qual se está destinado, etc, serve justamente para mostrar que cada membro da pólis de acordo com a natureza deve cumprir seu papel, “ficar no seu lugar”. Neste sentido, a ética aparece intimamente ligada à astronomia: “ciência bela e útil”, segundo Platão, que modela a vida virtuosa.

Já o nómos katá fúsis aristotélico18 é mais biológico (que astronômico), ou seja, para o estagirita a correspondência entre lei e natureza não passa pela imitação astronômica da fúsis (Platão), mas pela teoria da finalidade ou teleológica segundo a qual, biologicamente, cada ser tem um fim. Em outras palavras: há que apreender da natureza porque na sua totalidade terrena e celeste é composta de seres animados e inanimados que, em sua hierarquia e subdivisões, cada um cumpre sua finalidade.

18 A “justiça política”, observa o autor, é “natural” e “legal”: natural é a que em todo lugar tem a mesma força e não depende dessa ou aquela opinião. Legal, a que de início é indiferente; mas que, uma vez estabelecida, impõe-se a todos. Alguns, acrescenta, entendem que existe apenas esta última. Mas isso não é verdadeiro. É preciso reconhecer que, ao lado da justiça meramente convencional ou legal, existe também uma justiça fundada na natureza (Aristóteles, 1987: 91).

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Admitir que o universo é composto de seres, cada um regido pela finalidade que lhe é própria, implica dizer que cada um tem seu lugar natural.

Do exposto, resulta que existem duas maneiras de entender a natureza: a platônica em que é assemelhada à “ação de um indivíduo artesão - demiurgo”, e a aristotélica em que é assemelhada a um “organismo que se desenvolve graças a um dinamismo imanente” sendo que em ambos os casos a ordem social e política (nómos) deve estar de acordo com a ordem natural (fúsis).

Assim por exemplo quando Aristóteles se refere às sociedades humanas como parte da natureza, ou seja, a cité como ser natural (biológico) que se desenvolve e tem um fim. Pois bem, como ser vivente, ela tem sua forma, medida, que assegura sua existência; a justa medida da cidade será, portanto, como os animais, as plantas, e outros seres, não demasiado grande ou pequena porque senão perde sua natureza e se torna inútil (Aristóteles, 2006: 86-87). Tal comparação do estagirita levou estudiosos a afirmar que as sociedades, como parte da natureza, tornam-se objeto de um tipo de biologia social (Larrère, 2003: 229).

É o que acontece, também, com a divisão aristotélica da alma, baseada na natureza, racional, volitiva e irracional que, quando levada ao comportamento do cidadão, faz que ele tenha um conhecimento em relação à ação, uma disposição para a ação e uma contenção do instinto para o sucesso da ação19 e, assim que atue da forma a mais ótima ou justa possível.

Com base nesta concepção da ordem natural devemos guardar cautela com a crítica dirigida ao estagirita na sua defesa da escravidão natural. A este respeito, convém destacar que tal instituição, segundo o naturalismo aristotélico, obedece à assertiva segundo a qual cada parte ou ser, corpo e alma, devem cumprir sua finalidade. O escravo, afirma, “não tem nada melhor para oferecer do que o uso de seu corpo”, “naturalmente tem pouca alma”, ele faz parte do corpo do senhor mas não da sua alma (Aristóteles, 2006: 12-13); esta, por sua vez, com sua parte racional e volitiva, é superior ao corpo porque sua finalidade é mais nobre: deliberar e agir conforme com as virtudes morais.

Retomando os três tipos de atividade humana: o labor, a força corporal do escravo que produz bens para a sobrevivência (vestuário, alimentação, etc) diante da poiésis e práxis, a capacidade intelectual e moral do cidadão produzir bens tangíveis (normas, decisões) e intangíveis (amizade), tidos como mais relevantes para o bem da polis.

A crítica à escravidão segundo a ideia fora de lugar de que todos os homens são por natureza livres e iguais, de que a pólis vai contra o direito natural, etc, merecem um esclarecimento. O pensamento da antiguidade defende a instituição da escravidão ou,

19 A possibilidade dos instintos serem contidos deve-se ao fato do homem ter uma alma racional.

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segundo famosa frase de Finley “a liberdade e a escravidão andaram de mãos dadas” devido ao fato que a liberdade para iguais (hómoioi) não é natural, mas convencional, no sentido de nómos katá fúsis:

A noção biológica de espécies físicas [...] reflete-se na concepção aristotélica da alma e, em decorrência, nas ideias políticas. Nesse sentido, espírito conservador, Aristóteles defende, por exemplo, a escravidão. Do mesmo modo que o universo físico constituído por uma hierarquia inalterável, segundo a qual cada ser ocupa, definitivamente, um lugar que lhe seria destinado pela Natureza, assim também, o escravo teria seu lugar natural na condição de ‘ferramenta animada’. Aristóteles chega mesmo afirmar que o escravo é escravo porque tem a alma de escravo, é essencialmente escravo, sendo destituído por completo de alma noética, a parte da alma capaz de fazer ciência e filosofia e que desvenda o sentido e a finalidade última das coisas (grifo do autor) (Pesanha, 1987: XXI).

Com base na advertência de Fustel de Coulanges: existe uma distancia irredutível entre nous (modernos) e eux (antigos), é necessário deixar de lado os hábitos modernos de pensar para entender o mundo antigo, etc, cumpre dizer que, diferentemente da doutrina moderna do direito natural baseada nos direitos do homem, a doutrina clássica do direito natural tira seu fundamento numa ordem (fúsis) que, composta de elementos harmônicos e hierárquicos (Platão) ou de seres em que cada um cumpre sua finalidade (Aristóteles), serve para determinar as necessidades humanas, ou seja, que cada parte cumpra a função para a qual está destinada:

Um ser é bom, ‘está na ordem’ se faz bem o que tem que fazer. Disso se segue que o homem será bom se faz bem seu trabalho de homem, o trabalho que corresponde a sua natureza humana e que esta lhe exige. Para determinar o que é bom por natureza para o homem (o bem natural), é necessário saber qual é a natureza do homem (a constituição humana natural). É a ordem hierárquica inscrita na constituição natural do homem que, para os clássicos, justifica e funda o direito natural. De uma maneira ou outra todos distinguem corpo e alma e estamos obrigados a admitir que é impossível negar sem contradizer-nós que a alma é superior ao corpo. O que distingue a alma humana dos brutos, e portanto o que diferencia o homem da besta, é a palavra, a razão, a inteligência (Strauss, 1986: 120-121).

Para concluir, podemos afirmar que as virtudes morais aristotélicas enunciadas em Ética a Nicômaco encontram-se ligadas ao proposto pelo autor em A política: “A Ética nos mostra a forma e estilo de vida necessário para a felicidade; a Política indica a forma particular de constituição e o conjunto de instituições necessário para tornar possível e proteger esta forma de vida” (MacIntyre, 1994: 64).

Tal assertiva obedece ao fato que a felicidade carece de sentido fora do horizonte da pólis que, por sua vez, torna possível o ideal da vida antiga: a unidade da vida privada e pública. Uma junção em que a primeira depende da segunda, ou seja, de uma visão coletiva e também objetiva da felicidade. Sendo assim, a teoria aristotélica pode ser tida como uma “teoria perfeccionista” da política, na medida em que acredita que os homens conseguem desenvolver suas virtudes morais, conforme metas objetivamente estabelecidas, no transcurso de toda a vida que é dedicada a pólis.

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Sem cair na “falácia do presentismo”, entender a antiguidade clássica com os hábitos modernos de pensar, acreditamos que a reflexão aristotélica sobre ética e política é importante na medida em que ambas são tidas como indissociáveis, dando munição a todos àqueles que acreditam que a política não pode ser pensada fora do horizonte da moral; e isso, apesar deste legado sofrer variações consideráveis segundo diferentes correntes do pensamento que, no transcurso do tempo, se debruçam sobre a relação ética e política.

Quanto à questão melhor forma de governo em Aristóteles (politéia) cabe dizer que se trata de um “tema recorrente” da teoria ou filosofia política que adquire maior relevância em função das circunstâncias, em particular quando somos confrontados à experiência de regimes políticos ruins, como foi o caso, aliás, do estagirita cuja reflexão sobre as formas de governo se dá numa “atmosfera pesada”: o fim da democracia ateniense (460-430 a.C) e o triunfo de regimes políticos ruins.

Assim, diante do interrogante de cientistas políticos contemporâneos: a questão do bom governo faleceu?, entendemos que não. Tal posição a devemos em grande parte a Aristóteles na medida em que sua cuja reflexão se inscreve em vários “projetos da filosofia política clássica” com “finalidades descritivas” - as distintas formas de governo - ou “finalidades prescritivas” - as formas retas de governo -, em particular, a república ou república. Uma reflexão então que combina o que é e o que deve ser, contudo, vale esclarecer, sem jamais afastar-se da realidade já que a preferência do estagirita pela politéia (exemplo do bom governo) não obedece a um ideal especulativo, ela “não faz parte do reino do céu” (a kallipolis platônica), mas corresponde a uma forma histórica e concreta de governo composta de cidadãos virtuosos: a democracia ateniense. A questão da melhor forma de governo continua válida sempre e quando não seja colocada nas antípodas da realidade, mas seja resultado da experiência, como ensina Aristóteles que, com base em exemplos históricos, mostra como é possível governos, baseados na virtude, em que se dá uma junção entre ética e política e maus governos, baseado no vício, em que se dá um hiato ou divórcio entre ambas.

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