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Estudo sobre argumentação jurídica.TRANSCRIPT
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Argumentação Jurídica
• Teoria • Técnicas • Estratégias
2ª edição — Revista e atualizada
Visite nosso site na Internet www.jurua.com.br
e-mail: [email protected]
ISBN: 85-362-1179-2
Av. Munhoz da Rocha. 143 — Juvevê
Fone: (41) 3352-3900 — Fax: (41) 3252-1311 CEP: 80.035-000 — Curitiba — Paraná — Brasil
Voese, Ingo.
V875 Argumentação jurídica. 2. ed./ Ingo Voese./ Curitiba:
Juruá, 2006.
118p.
1. Argumentação jurídica. I. Título.
CDD 340.1 CDU 340
CCOONNTTRRAA CCAAPPAA
O Direito caracteriza-se essencialmente por sua atividade
argumentativa, o que implica dizer que a prática jurídica opera
com recursos lingüísticos e discursivos para produzir
determinados efeitos de sentido. E efeitos de sentido orientam atos
e decisões, ou seja, os efeitos de sentido são também efeitos de
poder.
É, portanto, a linguagem o objeto e a ferramenta de trabalho do
profissional do Direito: quando ele interpreta, opera com
referências lingüísticas e quando justifica os sentidos produzidos,
coloca em cena recursos da língua e do discurso.
Estranhamente, porém, os estudos nos cursos de Direito não
contemplam a linguagem, nem quanto à sua especificidade, nem
quanto às suas funções como mediação das relações sociais.
Argumentação Jurídica vem preencher essa lacuna e, assim,
enriquecer os recursos disponíveis à formação qualificada dos
operadores do Direito.
OORREELLHHAASS DDOO LLIIVVRROO
Ingo Voese é Professor de Lingüística e de Análise do Discurso há
mais de 30 anos. Realizou seu Doutorado na PUCRS e o pós-
Doutorado na Unicamp/SP, centrando seus estudos e pesquisas
na temática que aborda a relação de linguagem, indivíduo e
sociedade. De sua atividade, resultaram vários livros e artigos,
dentre os quais destacam-se, na área do Direito: Mediação dos
Conflitos como Negociação de Sentidos e Argumentação Jurídica.
Atualmente exerce suas atividades em cursos de pós-graduação
da Unisul/SC.
Ingo Voese Doutor em Lingüística; Professor de Argumentação Jurídica no curso de Mestrado em Direito e de Análise do Discurso no Curso de Mestrado de Ciências da Linguagem da Unisul/SC.
Argumentação Jurídica
• Teoria • Técnicas • Estratégias
2ª edição — Revista e atualizada
Curitiba Juruá Editora
2006
Para
Márcia Beatriz, Marcelo Augusto
e Marco Antônio: amores inesperados
(re)motivadores, imprescindíveis da
minha vida.
PREFÁCIO À 2a EDIÇÃO
Argumentação Jurídica é um texto que foi escrito com o
propósito de preencher uma lacuna no ensino do Direito,
especificamente o que se refere ao domínio dos recursos de
linguagem. A acolhida generosa que teve o livro sinaliza que a
avaliação inicial estava correta e motiva uma nova edição.
Parece-me, porém, que o texto comporta uma rápida reflexão
sobre o que se poderia chamar de efeitos de argumentação, de
modo que o ensino não deveria omitir e aprofundar a análise ético-
moral da prática jurídica, sob pena de o Direito transformar-se num
mero — mas contundente — instrumento ideológico.
Por isso, na presente edição, refaço e amplio as considerações
finais, detendo-me um pouco mais na avaliação da argumentação
jurídica também como ato de responsabilidade.
O autor
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................13
2 LINGUAGEM E DETERMINAÇÕES SOCIAIS.................................19 2.1 A INVENÇÃO DO ANZOL.......................................................19 2.1.1 A heterogeneidade social..............................................21 2.1.2 A heterogeneidade cultural..........................................21 2.1.3 A heterogeneidade referencial......................................22 2.1.4 A heterogeneidade lingüística......................................22 2.1.5 A heterogeneidade individual.......................................25 2.1.6 O controle da heterogeneidade.....................................26
3 A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA..................................29 3.1 A ESPECIFICIDADE DA LÓGICA JURÍDICA.........................35 3.2 A INDUÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DO SILOGISMO................40 3.3 A DEDUÇÃO NA EXECUÇÃO DO SILOGISMO......................49
4 TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS.....................................................51 4.1 O ARGUMENTO DA COERÊNCIA.........................................53 4.2 O ARGUMENTO DA RECIPROCIDADE.................................54 4.3 O ARGUMENTO DA TRANSITIVIDADE.................................55 4.4 O ARGUMENTO DA COMPARAÇÃO.....................................56 4.5 O ARGUMENTO DA INCLUSÃO DA PARTE NO TODO..........56 4.6 O ARGUMENTO DA DIVISÃO DO TODO EM PARTES...........57 4.7 O ARGUMENTO AD IGNORANTIUM......................................58 4.8 OS ARGUMENTOS A PARI EA CONTRARIO...........................58 4.9 O ARGUMENTO DA ANALOGIA............................................59 4.10 O ARGUMENTO DA FIXAÇÃO DE UM GRAU........................60 4.11 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO DE MEIOS E FINS................61 4.12 O ARGUMENTO DA PROBABILIDADE..................................62 4.13 O ARGUMENTO DO VÍNCULO CAUSAL................................63 4.14 O ARGUMENTO PRAGMÁTICO.............................................64 4.15 O ARGUMENTO DO DESPERDÍCIO......................................65 4.16 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO..............................................65 4.17 O ARGUMENTO QUE RELACIONA ATO E PESSOA..............65 4.18 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE.......................................66 4.19 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO ENTRE ATO E ESSÊNCIA.....68 4.20 O ARGUMENTO DO EXEMPLO............................................68 4.21 O ARGUMENTO DA ILUSTRAÇÃO........................................69
5 ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS.............................................71 5.1 ESTRATÉGIAS (DES)CONTEXTUALIZADORAS.....................78
5.1.1 A adaptação do enunciante ao auditório...................79 5.1.2 A preparação do auditório........................................83
5.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS..............................................86 5.2.1 A construção de dissociações e a mistificação..............89 5.2.2 A mistificação..............................................................90
5.2.3 A implicitação..............................................................91 5.2.4 A impessoalização:.......................................................94 5.2.5 A vaguezização (ou a ambigüização).............................94 5.2.6 A generalização............................................................95 5.2.7 A higienização..............................................................96 5.2.8 A inclusão do ponto de vista do argumentador.............96 5.2.9 A (des)focalização de argumentos.................................98 5.2.10 A (des)valorização de argumentos.................................99 5.2.11 A armação duma lógica................................................99 5.2.12 A indicação de um extremo da escala.........................100 5.2.13 A soma de argumentos..............................................101
6 A ARGUMENTAÇÃO E O ATO RESPONSÁVEL...........................103
REFERÊNCIAS.................................................................................111
ÍNDICE ALFABÉTICO.......................................................................113
Nota da digitalizadora: A numeração de páginas aqui refere-se a edição original, que encontra-se inserida entre colchetes no texto.
Entende-se que o texto que está antes da numeração entre colchetes é o que pertence aquela página e o texto que está após a numeração pertence a página seguinte.
1
INTRODUÇÃO
Poucos são os cursos de Direito, no Brasil, que abrem, na
sua grade curricular, um espaço para o estudo da argumentação
jurídica, o que pode estar a indicar que ela ainda não está
merecendo a devida atenção precisamente porque ainda não se
abordou a sua especificidade e, em especial, a relação da prática
jurídica com a linguagem.
Mesmo em outros universos culturais como, por exemplo, na
Europa, só recentemente se iniciou um movimento que formula
questões que Atienza (1997) organiza da seguinte forma:
Puesto que la práctica del Derecho consiste de manera muy
fundamental en argumentar, no tendría por que’ resultar extravio
que los juristas con alguna conciencia profesional sintieran alguna
curiosidad por cuestiones — (...) como las siguientes: Qué significa
argumentar juridicamente? Hasta qué punto se diferencia la
argumentación jurídica de la argumentación ética o de la
argumentación política, o, incluso, de la argumentación en la vida
ordinaria o en la ciencia? (...) Cuál es el criterio de corrección de los
argumentos jurídicos? Suministra el Derecho una única respuesta
corrrecta para cada caso? (ATIENZA, 1997, p. 9) [pg. 13]
E ele avança na reflexão quando diz que “Nadie duda que la
práctica del Derecho consiste, de manera muy fundamental, en
argumentar y todos solemos convenir en que la cualidad que mejor
define lo que se entiende por un ‘buen jurista’ tal vez sea la
capacidad para idear y manejar con habilidad argumentos”. (Op.
cit., p. 19).
Atienza reduz o sentido da expressão “bom jurista” aos
limites da dimensão técnica de argumentação e esquece de
enfatizar que o uso de recursos lingüísticos e discursivos não pode
ser desconsiderado quanto ao que eles têm de específico e
determinante, ou seja, é preciso destacar que a argumentação
jurídica só constrói uma característica própria porque pode se
valer de determinadas características da linguagem.
Entende-se, pois, que a abordagem da argumentação
jurídica pressupõe especificidades e complexidades próprias da
prática, dado que elas se originam do fato de que se adotam
modelos lógicos para atuarem sobre sentidos e valores
heterogêneos e conflitivos, e que não pertencem ao universo do
formalismo lógico, mas têm profundo comprometimento com a
construção do que muito vagamente se entende por justiça social.
O presente trabalho, ao se incluir nos estudos mais recentes
sobre a argumentação jurídica, tem a pretensão de oferecer alguns
subsídios para o estudo, partindo do entendimento de que há uma
especificidade que se pode abordar, descrevendo a relação da
prática com a linguagem em termos de como ela pode valer-se de
determinadas características lingüísticas e discursivas para,
através de técnicas e estratégias, não só produzir argumentos
como também minimizar ou maximizá-los na interação.
Para essa tarefa, torna-se então necessário, em primeiro
lugar, pontuar algumas concepções teóricas de linguagem: elas
são importantes para que se possa melhor compreender tanto os
processos de interpretação, quer seja da lei, quer seja dos fatos
jurídicos — e, por isso, pontos de apoio, — como os processos e os
modos de argumentação, abordados a partir da concepção de que
a argumentação vale-se, ao mesmo tempo, de técnicas que
produzem argumentos e de estratégias que buscam viabilizar os
melhores efeitos de adesão na interação.
O pontuamento teórico deverá, enfim, permitir que se façam
avanços na compreensão do que é específico da lógica jurídica, ou
seja, compreender por que é aceitável considerar que
Um argumento não é correto e coercivo ou incorreto e sem valor,
mas relevante ou irrelevante, forte ou fraco, consoante razões que
lhe justificam o emprego no caso. E por isso que o estudo dos
argumentos, que nem o direito nem as ciências humanas nem a
filosofia podem dispensar, não se prende a uma teoria da
demonstração rigorosa, concebida a exemplo de um cálculo
mecanizável, mas a uma teoria da argumentação. (PERELMAN,
1996b, p. 471) [pg. 14]
É preciso, outrossim, incluir, no dimensionamento da
complexidade da argumentação jurídica, a questão da verdade,
para entender que ela
...se preocupa não propriamente com a verdade, mas com
verossimilhança. Não exclui a verdade de suas preocupações, mas
ressalta como fundamental a versão da verdade. Ou seja, uma
decisão não pode negar a verdade factual, aquilo que é reconhecido
e aceito como um evento real (...), mas da verdade factual nem
sempre segue a verossimilhança (...). (BULGARELLI, 1998, p. 71)
Se, pois, a argumentação jurídica não se nivela a uma
demonstração formal, é porque o que se diz dos fatos é resultado
de interpretações que, pressionadas pela natureza da linguagem,
serão diferenciadas, o que, inclusive, explica por que o Direito
constitui o contraditório como uma presunção fundante e como
garantia da promoção da justiça. Em outros termos, os
argumentos jurídicos não são fruto de um cálculo lógico-formal,
mas de interpretações e de avaliações que incluem, além dos
interesses específicos das partes, também as circunstâncias
históricas, sociais e culturais do fato. Examinar o nível de
desacordo ou de desrespeito à lei requer, por isso, que, na prática
jurídica, as teses e as decisões sejam, porque não se trabalha com
elementos exatos, não só explicadas mas também justificadas,
tanto que
O dispositivo da sentença, a parte que contém a decisão do juiz, é
precedido pelo enunciado dos considerandos, ou seja, das razões
que motivaram essa decisão. O raciocínio judiciário se apresenta,
assim, como o próprio padrão do raciocínio prático, que visa a
justificar uma decisão, uma escolha, uma pretensão, a mostrar que
elas não são arbitrárias ou injustas. (PERELMAN, 1996b, p. 481)
O Direito funda e caracteriza, pois, a sua prática admitindo o
contraditório, ou seja, a heterogeneidade de sentidos que
precisam, todavia, para não deixar de observar a coerência, a
coesão e a congruência necessárias à argumentação, ser
trabalhados sob orientação de modelos de raciocínio das ciências
naturais e matemáticas.
E quando a sociedade não aceita a idéia da arbitrariedade ou
da injustiça, arma-se, para a prática jurídica, o complexo desafio
da promoção da justiça: é preciso, aqui, falar da heterogeneidade
social e de [pg. 15] sentidos que configuram o problema que diz
respeito à dificuldade de se poder fazer justiça de modo que
atenda às expectativas de todos os segmentos sociais. Ou seja,
Para que a regra de justiça constitua o fundamento de uma
demonstração rigorosa, os objetos aos quais ela se aplica deveriam
ser idênticos, ou seja, completamente intercambiáveis. Mas, na
verdade, isso nunca acontece. Os objetos sempre diferem em algum
aspecto, e o grande problema, o que suscita a maioria das
controvérsias, é decidir se as diferenças constatadas são ou não
irrelevantes ou, em outros termos, se os objetos não diferem pelas
características que se consideram essenciais, isto é, os únicos a
serem levados em conta na administração da justiça. (PERELMAN,
1996a, p. 248)
Essas são, pois, as dificuldades para o Direito: as pessoas
produzem, orientadas por diferentes sistemas de referência,
diferentes versões dos fatos jurídicos, ou seja, as interpretações —
que antecedem e sustentam a argumentação — são diferenciadas
porque a pressão das características da linguagem — produto das
determinações sociais — leva a isso.
A compreensão exata dessa complexidade inerente à prática
jurídica aponta, então, para os motivos e explica por que qualquer
decisão jurídica precisa ser justificada, embora
O poder concedido ao juiz de interpretar e, eventualmente, de
completar a lei, de qualificar os fatos, de apreciar, em geral
livremente, o valor das presunções e das provas que tendem a
estabelecê-los, o mais das vezes basta para permitir-lhe motivar,
de forma juridicamente satisfatória, as decisões que seu senso de
eqüidade lhe recomenda como sendo, social e moralmente, as mais
desejáveis. (PERELMAN, 1996b, p. 489)
A decisão jurídica, pois, embora se apóie em elementos
produzidos e apresentados no embate argumentativo depende do
“senso de eqüidade” do juiz, o que significa, segundo Atienza
(1997) “...estar de acordo com os fatos estabelecidos e com as
normas vigentes.” (p. 133).
A primeira vista, essa orientação para a justificação
obrigatória parece não conter nenhum problema. Analisando,
porém, a questão e observando-a à luz de uma teoria da
linguagem que sustenta a idéia da [pg. 16] heterogeneidade dos
sentidos, as dificuldades para explicar a especificidade da
argumentação jurídica tomam-se mais nítidas, especialmente, se
se considerar que o que o Direito examina não são os fatos mas as
versões deles. Isso fragiliza a possibilidade de um acordo sobre
serem ou não, como quer Atienza, fatos estabelecidos: as
interpretações são forçosamente diferenciadas, produzindo versões
diferentes e conflitantes. É justamente essa fragilidade e
multiplicidade dos sentidos que instituem a argumentação como
processo inerente à prática jurídica e à produção da justiça.
Além disso, as normas jurídicas, cuja função é orientar a
produção das versões, são verbalizações e, por isso também
suportam a idéia de diferentes interpretações possíveis. Só isso já
desenha a complexidade da função de justificação da
argumentação jurídica, embora ainda existam outras questões
que, por exemplo, se referem a saber quem detém esse poder de
constituir as normas e que tipo de sistema de interpretação e
avaliação, pertencente a que segmento social, determinará se a
justificação é ou não, aceitável.
Retornando a Atienza (1997), entende ele que uma teoria da
argumentação jurídica deve dar conta dos raciocínios que
resultam da interpretação e da aplicação da lei aos fatos
interpretados, o que reconduz o estudo da especificidade da
prática a questões de linguagem.
E, diante das concepções de linguagem, que apontam para
as questões formuladas, especialmente para o que diz respeito à
heterogeneidade das interpretações e a saber quem a partir de que
determinará o que é ou não correto, Atienza (1997) constrói a idéia
de que a argumentação jurídica deveria ser entendida como uma
mediação ou uma negociação de sentidos, ou seja, propõe ele que
se considere a argumentação jurídica um ato interativo igual ao
que se dá na comunicação ou na informação, o que, com certeza,
é correto e produtivo, mas não suficiente para abordar questões
inerentes à prática e que o conceito de interação não tem
condições de explicar.
Além disso, a idéia de abordar a argumentação jurídica como
interação em que se negociam sentidos, precisa prever — porque a
heterogeneidade de sentidos dentro do atual sistema social
constitui uma das vertentes dos conflitos — como etapa que
antecede as argumentações, um processo de desconstrução
daquilo que hierarquiza lugares sociais e diferenças de sentido, ou
seja, a mediação só pode funcionar quando se criarem condições
de convivência (e não de exclusão) das diferenças1.
1 Chega-se, aqui, à questão a que também se deveria dedicar uma atenção especial: o estudo da argumentação jurídica requer uma base teórica que não aborde a linguagem apenas como instrumento de comunicação, mas também, como condição do exercício de um poder, precisamente, pelos efeitos que produzem as decisões e as sentenças do sistema judiciário. Não é suficiente sustentar que um bom argumento é aquele que resiste à crítica (ou contra-argumentação), mas faz-se necessário também incluir as questões que perguntam pelos lugares sociais de onde emanam as orientações normativas que dizem sobre o valor e a validade dos argumentos o que, evidentemente, se refere ao conflito social enquanto disputa de espaços e de poderes para controlar os sentidos: os diferentes sentidos dos fatos (ou versões) são também as manifestações de diferentes formas de interpretar o mundo. E isso tem a ver com o exercício do poder. [pg. 17]
Melhor será considerar, como o faz Sampaio Ferraz Jr.
(1997), a argumentação jurídica um tipo peculiar de interação
discursiva, o que, mais uma vez, leva a linguagem a ser tomada
como objeto importante de observação.
Em vista disso, fica como orientação, para o presente
trabalho, considerar que nem a lógica formal ou a matemática,
nem o conceito de interação comunicativa, podem, isoladamente,
dar conta do que é a argumentação jurídica. Da mesma forma,
não é qualquer teoria da linguagem que poderá se prestar a
explicar as questões que se referem à especificidade da prática: ela
deve inscrever no estudo da materialidade lingüística as
determinações de ordem social que atuam com e sobre a
linguagem.
O presente trabalho deverá, por isso, ocupar-se em descrever
uma lógica própria do Direito, quando analisará as técnicas de
produção e as formas de estruturação dos argumentos, e com a
argumentação jurídica enquanto interação, quando serão
abordadas as estratégias interativas que produzem efeitos
argumentativos.
Para finalizar: o fato de os conceitos que relacionam
linguagem e sociedade — e que podem ser considerados
necessários à reflexão — serem abordados de modo pontual, não
deverá ser empecilho para entender como e por que se produz a
heterogeneidade de sentidos (e se acolhe o contraditório) e como
encontrar meios de controlar essa heterogeneidade.
Essas duas tarefas, diante da especificidade da prática
jurídica, constituem, portanto, uma atividade imprescindível à
abordagem da lógica e interação jurídicas, ou seja, das técnicas e
das estratégias argumentativas que, embora sejam recursos úteis
em qualquer tipo de argumentação, têm importância especial na
prática jurídica, mormente quando as provas e os indícios forem
frágeis ou não existirem.
E é, por tudo isso (Cf. ATIENZA, 1997), que a argumentação
jurídica pode também ser invocada como objeto interessante e
pertinente ao estudo da teoria da argumentação em geral, o que se
inclui, pois, como parte da justificativa para a realização do
presente trabalho. [pg. 18]
2
LINGUAGEM E DETERMINAÇÕES SOCIAIS
Pode parecer estranho perguntar por que é possível
argumentar, mas a questão conduz a que se especifiquem as
características da linguagem e o tipo de relações que se
estabelecem entre ela e a realidade, como tarefa fundamental para
poder formular de forma razoavelmente segura as concepções
referentes às determinações e as condições que se põem como
possibilidade e orientação da argumentação.
Dito isso, a formulação, de forma pontual, de algumas
concepções teóricas deverá — embora não haja a preocupação
com a exaustividade — construir as condições mínimas para a
reflexão sobre as questões formuladas2.
2 Em outro texto meu — Mediação dos Conflitos como Negociação de Sentidos — desenvolvo com mais cuidado as minhas concepções teóricas sobre a linguagem.
2.1 A INVENÇÃO DO ANZOL
Para preparar o terreno da formalização de algumas
concepções teóricas sobre a linguagem, um hipotético caso de
invenção de um objeto poderá ser útil e facilitar o
acompanhamento da exposição.
Imagine-se que em determinado momento histórico alguém
crie um novo instrumento de pesca: o anzol — um objeto de metal,
que tem a [pg. 19] forma de um gancho e tem, em uma de suas
extremidades, um espaço onde se pode prender um cordão.
O importante a considerar, em primeiro lugar, são as
condições para que se possa produzir esse novo instrumento.
Obviamente, deve existir uma certa tecnologia referente à
produção e ao beneficiamento dos metais. Além disso, a
comunidade em que vive o criador do instrumento deve ter
escolhido, como uma de suas atividades de sobrevivência, a pesca,
e, por isso, também sobre essa atividade deve haver um
conhecimento acumulado.
Ora, a essas condições mínimas, ou seja, a um certo saber
necessário à criação do novo objeto de pesca pode-se dar o nome
de cultura que, por ser ponto de partida, torna-se marco de
referência ou sistema de referência.
Em segundo lugar, é preciso considerar que o objeto
produzido vai ser avaliado pela comunidade em razão do que
significa para as suas necessidades: o objeto passa a ter um
significado e é nomeado anzol.
A nomeação permite que se possa falar do produto do
trabalho humano sem que haja a necessidade de sua presença.
Ora, o objeto, nesse processo de socialização, quando tem seu
sentido estabelecido de acordo com os interesses e as
necessidades do grupo, escapa dos controles do indivíduo que o
criou: o sentido é, pois, então, um acordo social.
Admita-se que, no exemplo dado, o objeto anzol signifique
instrumento de pesca, o que, se o grupo social centralizar a sua
atividade principal na pesca, representa também instrumento de
sobrevivência ou melhoria dos instrumentos que possibilitam a
sobrevivência do grupo.
Em grupos sociais, porém, que não dependem da pesca, o
anzol pode, além de manter um sentido genérico de instrumento de
pesca, significar instrumento de lazer (para pescadores
esportistas), instrumento que oferece um certo risco (para as
crianças), instrumento de tortura (para defensores da natureza) etc.
o que quer dizer que, a cada diferença cultural, ou seja, de
sistema de referência, variam, em maior ou menor escala, os
sentidos do objeto denominado anzol.
O interessante, porém, é que, apesar das diferenças de
sentido, os diferentes segmentos sociais usam a mesma palavra
(anzol) e podem manter entre si interações verbais precisamente
porque há uma parte do sentido (instrumento de pesca) que é
comum a todos, isto é, o sentido genérico possibilita, apesar das
diferenças, uma interação que, embora frágil, permite uma certa
aproximação dos interlocutores. [pg. 20]
Do exemplo, podem ser retiradas as seguintes concepções
que relacionam linguagem e sociedade:
2.1.1 A heterogeneidade social
A noção de sociedade parece sugerir uma realidade
monolítica, não-fragmentada. Observando, porém, que, partindo
das noções de economia, raça, religião, gênero, geração etc., é
possível visualizar linhas de cisão do tecido social, a concepção de
sociedade deve acolher a idéia de heterogeneidade. Ou seja, a
realidade social é fragmentada e multifacetada.
Considerando, ainda, que entre os múltiplos segmentos
sociais existem disputas pela ocupação de determinados espaços,
é preciso assumir que o conflito origina-se do fato de haver
valorizações diferenciadas destes espaços sociais. Em outros
termos, os espaços que ocupam os diferentes segmentos sociais
são valorizados diferentemente, de acordo com o poder que aí se
pode exercitar.
E é esse poder que os indivíduos de determinados segmentos
sociais exercem, que produz efeitos que podem, dependendo das
circunstâncias históricas e políticas, conduzir à radicalização dos
conflitos e à violência social.
2.1.2 A heterogeneidade cultural
A concepção de heterogeneidade social conduz a que se
assuma que o trabalho que se realiza nos diferentes segmentos
sociais tem, em maior ou menor grau, diferenças quanto a suas
características, suas funções e seu sentido. São as diferenças de
desejos individuais e de interesses de grupos que levam a que haja
uma produção diferenciada, ou seja, a cada segmento social e a
cada indivíduo correspondem diferenciadas atividades e diferentes
produtos.
Adotando a noção de que o produto do trabalho humano
constitui o que se entende por cultura, constata-se que a
heterogeneidade social conduz à heterogeneidade cultural.
Se, como foi afirmado anteriormente, os espaços sociais que
ocupam os diversos segmentos sociais são valorizados
diferenciadamente em termos de poder, também o produto
cultural recebe valorizações diferenciadas, sendo considerado,
dependendo de quem o tenha produzido, melhor ou pior, de nível
elevado ou inferior, correto ou incorreto etc. [pg. 21]
2.1.3 A heterogeneidade referencial
A cultura pode, pois, ser entendida como o produto do
trabalho humano socializado através da linguagem, ou seja,
conforme Thompson (1990), ela é um conjunto de formas
simbólicas que se estruturam em contextos históricos e sociais
específicos. Essas formas simbólicas organizam e estruturam-se
como um sistema. Considerando que a atividade dos homens
sempre tem como ponto de partida o que outros já realizaram,
pode-se afirmar que esse conjunto de formas simbólicas que se
chama de cultura, é um marco de referência. Ou seja, a cultura
passa a ser, enquanto sistema simbólico, o que orienta as
atividades, os procedimentos e as condutas dos homens. A
cultura, enfim, é um sistema de referência que qualquer atividade
humana toma em consideração porque isso diz respeito à
orientação que se dá aos desejos e interesses específicos de
indivíduos e de grupos.
Se, agora, se retomar a reflexão proposta de início, chega-se
à conclusão de que à heterogeneidade social corresponde uma
heterogeneidade cultural e referencial, e isso remete à idéia de
heterogeneidade lingüística, pois, se é o sistema de referência que
orienta todo o trabalho que realizam os indivíduos (movidos por
desejos e interesses), ele também impõe-se como condutor da
interpretação, ou seja, o sistema de referência também fixa os
limites e as condições da interpretação da realidade, dos fatos, da
linguagem etc., isto é, da produção de sentidos. Não há
interpretação que não parta de concepções e de valores que
pertencem a determinado conjunto de formas simbólicas de um
determinado segmento social, o que quer dizer que as diferenças
entre os múltiplos grupos da sociedade geram diferentes formas de
interpretar e diferentes sentidos, ou seja, aí produzem-se também
diferentes concepções da realidade e da sociedade. E, uma vez
produto socializado ou cultura, essas concepções passam também
a integrar o sistema de referência, num processo histórico sem
fim: o sistema de referência é, pois, aberto e transformável
historicamente.
2.1.4 A heterogeneidade lingüística
Ao estabelecer as relações entre cultura, sistema de
referência e linguagem, constata-se que o produto do trabalho
humano só passa a integrar a cultura de um determinado grupo
social quando assume uma função, um sentido (ou significado)
que se alinhe com os desejos dos indivíduos e com os interesses
dos grupos, de modo que possa contribuir para a [pg. 22]
ampliação das possibilidades de atendimento de necessidades e da
consolidação de poderes.
Compreende-se, pois, por que a palavra que nomeia um
determinado objeto, para que possa circular em diferentes
segmentos sociais — com diferentes sistemas de referência —
precisa despir o seu sentido das singularidades produzidas por
essas diferenças: o sentido tem, pois, um componente genérico
que todos os usuários de uma palavra adotam obrigatoriamente
para poderem se comunicar.
Como, porém, os diferentes sistemas de referência produzem
diferenças de interpretação, o sentido da palavra comporta um
segundo componente: a singularidade que remete à noção de
heterogeneidade social e dificulta a interação e o convívio.
E, isso, à medida que circula o sentido genérico, impõe um
processo homogeneizador a todos os falantes e, ao mesmo tempo,
alimenta a heterogeneidade. Por isso, diz-se que ela reflete e
refrata a realidade social.
Isso posto, é possível retornar ao que se disse sobre as
valorações diferenciadas dos espaços sociais e dos diferentes
produtos que ali se elaboram: também a linguagem — porque é
produto da atividade dos homens que dela se utilizam —
apresenta maiores ou menores diferenças de sentido e de
valorações.
Pode-se, pois, afirmar que há algumas linguagens mais e
outras menos valorizadas — sempre em dependência do poder que
se exerce nos diferentes segmentos sociais.3
3 Entende-se, aqui, que as diferentes linguagens que os segmentos sociais utilizam têm diferenciados prestígios em termos de serem consideradas cultas ou não, certas ou erradas etc., o que lhes confere forças diferenciadas para fazer circular os sentidos (também o de sociedade) que interessam ao segmento social hegemônico: impõe-se, via prestigiamento de determinada linguagem, um conjunto de sentidos, ou seja, um determinado sistema de referência como o único correto, culto etc., ao mesmo tempo que se impõem formas de interpretar a realidade social. Isso é o que se entende por exercer um poder ao constituir uma hierarquia de linguagens.
Da mesma forma como acontece com o exemplo de anzol,
essa diversidade de sentidos (ou excedentes de sentido) pode ser
observada com os conceitos abstratos produzidos pelos homens.
Assim, por exemplo, o conceito de justiça, embora mantenha um
vago sentido genérico — comum a todos os segmentos sociais que
usam a palavra — apresenta inúmeras diferenças que
(PERELMAN, 1996b) podem corresponder a:
a) a cada qual a mesma coisa; [pg. 23]
b) a cada qual segundo seus méritos;
c) a cada qual segundo suas obras;
d) a cada qual segundo suas necessidades;
e) a cada qual segundo sua posição social;
f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.
Essas diferenças que, evidentemente, podem se multiplicar
pelo número de segmentos sociais que se valem da palavra,
conduzem a que, no Direito, se mantenha uma permanente
discussão — mesmo porque os conceitos se modificam de acordo
com as mudanças históricas da sociedade — sobre o conceito de
justiça e, conseqüentemente, da relação de direitos e deveres
humanos.
Considere-se, pois, que, pelo fato de não existir um conceito
único de justiça, os procedimentos de acusação e de defesa
deverão, a cada caso em julgamento, construir condições para que
se possa chegar, apesar de todas as dificuldades, à produção de
um sentido para a palavra que se aproxime de uma concepção que
possa ser aceita como apropriada por todas as partes envolvidas
no caso.
Assim, mesmo no julgamento dos delitos mais hediondos,
deverá existir um espaço para a palavra que se oponha à da
acusação, de modo, por exemplo, a que não se diminua a
gravidade do ato, mas, se possa entender e avaliar as condições
em que foi cometido, além de refletir sobre os motivos por que o
autor do ato não se apropriou das orientações sobre o proibido, o
obrigatório e o permitido na sociedade.
Para sustentar essa posição, é preciso recordar que o
sistema de referência do indivíduo — que orienta a sua conduta,
vale dizer, a sua competência para decidir — é constituído do
exterior para o interior. Isso possibilita, pois, no julgamento de
qualquer ato, perguntar por aquilo que é de responsabilidade
restrita do indivíduo e o que cabe à sociedade assumir.
Aqui, é preciso levar à consideração a questão de se saber se
não são as contradições que se verificam nas condutas sociais — e
de que o sistema de referência se apropria — que, muitas vezes,
subjazem ao delito pelo fato de poderem ter levado à confusão o
que orienta a tomada de decisões do indivíduo. Parece, pois,
necessário considerar, em qualquer tipo de delito, que, se, de um
lado, o instituído social impõe limites aos desejos e impulsos dos
indivíduos, num movimento [pg. 24] contrário, ele os estimula e
exacerba, o que não deveria ser desprezado no Direito, até mesmo
para questionar os rumos e as expectativas da sociedade.
2.1.5 A heterogeneidade individual
O indivíduo, quando constrói o seu sistema de referência,
entra em contato com a heterogeneidade social, o que significa que
ele também se apropria das diferenças de sentido geradas pelos
múltiplos marcos de referência.
A apropriação corresponde, pois, a escolhas que
representam, quase sempre, alinhar-se com o certo ou o justo de
um determinado segmento social, o que pode significar o errado e
o injusto para outro. Na verdade, é possível observar que as opções
de escolha são tão heterogêneas que, apesar das pressões sociais
que as limitam e controlam, elas exigem a iniciativa e a
participação do indivíduo — o que, por isso, o compromete em
termos de responsabilidades sociais.
A adoção da concepção de que o sistema de referência do
homem se constrói do exterior para o interior poderia parecer que
se estaria tentando minimizar a importância do livre-arbítrio ou a
participação das pessoas na construção dos parâmetros éticos e
morais. Isso, porém, não é o caso. Pelo contrário: observe-se que
as apropriações incluem a heterogeneidade social, pois, ao mesmo
tempo que, na sociedade em que vivemos, se busca preservar o
instituído que diz respeito aos valores considerados positivos,
também se cultiva exatamente o que se lhes antepõe: não se fala
de uma moral na conduta sexual e, ao mesmo tempo, se estimula,
especialmente através da mídia, a promiscuidade? Não se combate
a violência e, ao mesmo tempo, se sugere (especialmente em
determinado gênero de filme) que a solução dos conflitos se deve
fazer pelo uso da arma? Não conduz o sistema social atual a um
número cada vez maior de excluídos do processo de produção e de
consumo, ao mesmo tempo que a indústria da propaganda
bombardeia os indivíduos com estímulos insistentes para
consumir? Não se insiste em cultivar a honestidade e a
solidariedade quando parte das elites políticas e sociais se
comporta como se esses valores inexistissem? Reforça-se, aí, o
papel fundamental da escolha individual.
Por outro lado, porém, o processo de configuração do
sistema de referência dos indivíduos — na sociedade atual — sofre
um outro tipo de problema e que diz respeito à lei e à sua
aplicação efetiva: se o texto legal diz, por exemplo, que todos são
iguais perante a lei, que todos têm direito a uma vida digna que
implica educação, saúde, alimentação, moradia etc., [pg. 25] o
indivíduo que não tem acesso a esses bens sociais e, observando
que outros têm isso facilitado, com certeza, criará objeções sérias
a qualquer tipo de restrição à sua conduta inconformada e
agressora.
Por isso, um sistema de referência que acolhe, ao mesmo
tempo, a orientação de que é preciso respeitar a lei e o exemplo de
inobservância dado exatamente pelos segmentos responsáveis pela
elaboração da lei orientará de uma forma confusa o indivíduo, o
que, muitas vezes, pode atingir todos os graus de atos anti-sociais.
Assim, o que interessa especificar quanto à heterogeneidade
dos sistemas de referência que orientam a conduta dos homens na
sociedade, mormente no que diz respeito às contradições
facilmente perceptíveis quanto às normas de conduta, torna-se
importante, em especial, na discussão sobre as atividades que se
realizam na argumentação jurídica.
2.1.6 O controle da heterogeneidade
Tendo em vista que a heterogeneidade de sistemas de
referência produz uma multiplicidade de sentidos ou excedente de
singularidades que estão na origem de grande parte dos conflitos
sociais, compreende-se que a disputa também perpassa a
linguagem. Não ocorre, porém, a disputa apenas através da
linguagem, mas também pela posse daquela linguagem que está
ligada ao exercício do poder. E não só pela linguagem se luta —
luta-se também pelos mecanismos e procedimentos institucionais
que controlam e determinam o acesso à linguagem do segmento
social hegemônico e às possibilidades de usá-la. Ou seja, através
da linguagem, os indivíduos e os grupos procuram fixar sentidos
gerados por seus sistemas de referência e fazer com que se
imponham como orientadores de condutas e procedimentos.
Conseguir a adesão do(s) outro(s) significa aumentar o alcance dos
efeitos de uma representação da realidade e consolidar o exercício
de um poder.
Por isso, pode-se afirmar que argumentar — um processo
lingüístico que tem por objetivo conseguir a adesão de outrem —
também diz respeito à disputa de espaços e de lugares, vale dizer,
de poderes para determinar os sentidos convenientes, corretos ou
não, melhores ou piores etc.
E se a heterogeneidade social conduz a que circulem na
sociedade múltiplos sentidos singulares — vale dizer, linguagens
— ela também explica por que é preciso, em primeiro lugar, atuar
sobre a diversidade com o objetivo de possibilitar o exercício
lógico: não se pode armar uma [pg. 26] relação lógica do tipo se...
então ou ora.... logo quando os conceitos com os quais se
construirá a relação não tiverem a singularidade bem circunscrita,
ou seja, a argumentação só poderá se tornar uma atividade bem
sucedida se as diferenças de sentido não criarem uma vaguidade e
uma imprecisão insuportáveis ao exercício lógico.
Desse modo, quando se fala em formas de controlar a
heterogeneidade, faz-se referência a dois tipos diferentes — mas
interdependentes — de procedimentos:
1. Aquele que visa a, através do domínio especialmente das
instituições, controlar o acesso e a circulação da linguagem que o
segmento social hegemônico usa. Controla-se, aqui, quem pode
falar, de que, em que circunstâncias e com qual linguagem: são
controles externos que, ao instituir um ethos do discurso, dão-lhe
forma e sentidos caracterizantes.
2. Aquele que visa a, através de processos lingüísticos,
determinar os limites significativos das palavras: são os controles
internos.
Os recursos mais freqüentes para fixar o sentido duma
palavra ou expressão, embora haja outros, são a paráfrase e a
definição.
A paráfrase é uma construção que busca, substituindo uma
frase por outra(s), tornar mais nítidos os contornos dos sentidos, o
que se pode observar no seguinte exemplo: “Diz o ministro da
educação que É preciso acabar com a cultura da repetência. E isso
significa que é preciso... significa que é preciso... significa que é
preciso... etc.”. Outras expressões que, além dos dois pontos,
introduzem a paráfrase são isto é, ou seja, em outros termos etc. O
que se pode observar, na parafrasagem, é que o enunciante
procura fixar os limites que considera interessantes para os
objetivos de sua argumentação: as paráfrases redizem a expressão
cujo sentido se quer controlar e, assim, marcam limites e revelam
os contornos dum sistema de referência.
A definição, por sua vez, não tem o privilégio da amplidão de
espaço e tempo da paráfrase: ela busca, com outras palavras, uma
delimitação rápida do sentido da palavra e, freqüentemente, inicia
por expressões como entendo por essa palavra o seguinte ou quero
usar a expressão com o seguinte sentido etc.
Enfim, os controles dos limites do sentido têm o objetivo de,
uma vez, possibilitar o exercício lógico inerente à argumentação e,
por outro lado, evitar que a imprecisão e a vaguidade representem
a abertura para a crítica e a contrapalavra. [pg. 27]
3
A LÓGICA DA ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA
Argumentar é uma atividade através da qual, valendo-se de
recursos lógico-formais e de linguagem, alguém tenta convencer
outrem de que um determinado sentido ou tese é a melhor
alternativa para a solução de um problema ou uma dificuldade. A
base da argumentação, nas disciplinas lógicas e matemáticas, são
os axiomas, entendidos como verdades irrefutáveis, indiscutíveis
ou que não necessitam de provas. A argumentação jurídica,
porém, não trabalha com verdades irrefutáveis de vez que difere
da lógica formal, onde, conforme Perelman,
O lógico é livre para elaborar como lhe aprouver a linguagem
artificial do sistema que constrói, para determinar os signos e as
combinações de signos que poderão ser utilizados. Cabem a ele
decidir quais são os axiomas, ou seja, as expressões sem provas
consideradas válidas em seu sistema, e dizer quais são as regras
de transformação por ele introduzidas e que permitem deduzir, das
expressões válidas, outras expressões igualmente válidas no
sistema. A única obrigação que se impõe ao construtor de sistemas
axiomáticos formalizados e que torna as demonstrações coercitivas
é a de escolher signos e regras que evitem dúvidas e
ambigüidades. (1996a, p. 5)
No Direito, esse modelo de atividade não pode ser adotado,
tendo em vista, especialmente, dificuldades que são,
essencialmente, lingüísticas, ou seja: [pg. 29]
1. A escolha de uma base ou ponto de referência (no Direito,
em geral, é a lei) que se aproxime do que representam os axiomas
para as ciências exatas, embora represente uma certa liberdade
para o argumentador, ainda o submete ao que determina a
heterogeneidade social, uma vez que ela não só fixa os horizontes
das escolhas possíveis mas também, ao mesmo tempo, abre o
leque das possibilidades de interpretação que a fragilizam quanto
a uma irrefutabilidade;
2. Uma versão sempre é construída a partir de interesses
específicos e, embora pareça poder garantir os elementos de apoio
e sucesso da sustentação de uma tese, pode, porque é também
linguagem, receber críticas: não são os fatos que serão
apresentados, mas as versões construídas a partir de sistemas de
referência — que, por serem diferentes, podem opor-se
reciprocamente e fragilizar aquilo que deveria criar a consistência.
E, mesmo que se fale de evidências, há, muitas vezes,
possibilidades de fragilizá-las: basta recorrer à noção de
heterogeneidade referencial. Ou seja, os sistemas de interpretação
gerados pela heterogeneidade social apresentam tal variedade de
possibilidades que praticamente qualquer versão pode, se não for
destruída, ao menos ser minimizada quanto aos efeitos para a
sustentação da tese.
Ora, se a argumentação jurídica visa à sustentação de uma
tese (e que se apóia em determinada versão), ela é, de fato, um
processo posterior à produção dos sentidos, ou seja, a
argumentação sucede à interpretação (entendida como atividade
produtora de sentidos). Por isso, pode-se dizer, também, que a
argumentação depende da interpretação porque o sistema de
referência que é acionado nesta também orienta aquela,
fornecendo, no Direito, inclusive, elementos para a produção das
provas.
Pelo fato, pois, de a linguagem ser instrumento de produção
e de delimitação de sentidos, compreende-se a sua importância na
prática jurídica onde a interpretação realiza-se tanto em relação
aos atos e objetos (incluídos os textos) produzidos pelo homem
como aos fatos. Processa-se partindo, sempre, de um marco inicial
— uma referência — que orienta e fixa os limites dos sentidos que
serão produzidos. A produção do sentido, quer seja de um texto,
quer seja de um fato, nunca deixa, contudo, de incluir, no
processo, a noção de que os objetos e os fatos são produzidos e
ocorrem sempre em determinado contexto sociocultural e
histórico.
Assim, as circunstâncias que cercam fatos e objetos
precisam também ser interpretadas, precisamente, porque elas
são determinações a que se submete a produção de sentidos.
Explique-se: o indivíduo que produz um texto ou um outro objeto
qualquer, no exato momento da [pg. 30] socialização do produto
de seu trabalho, precisa tomar em consideração os elementos do
contexto em que se dá a sua atividade que, por isso, torna-se
objeto e orientação da interpretação que realizam os receptores do
produto. Isso quer dizer que, além do texto, do objeto ou do fato,
as circunstâncias de ordem histórica, social, cultural, geográfica
etc. devem ser consideradas como importantes para a produção do
sentido, isto é, da interpretação.
Em outros termos, quando o indivíduo interpreta um texto
ou um fato (produz uma versão possível), precisa também
orientar-se por elementos do contexto. Pode, porém, acolher — e
isso influirá no sentido — em maior ou menor escala esses
elementos, ou seja, pode ampliar ou reduzir os limites do contexto
que levará em consideração, precisamente porque a sua atividade
é orientada por um sistema de referência que também abriga
interesses específicos do grupo em que ele está inserido.
3. O fato de, no Direito, estarem previstas tanto a atividade
da acusação como a da defesa, revela que a prática respeita a
diversidade referencial e, por isso, se diz que ela não trabalha com
verdades, mas com teses. Assim, a argumentação jurídica, ao
admitir que qualquer ato pode e deve ser interpretado
diferenciadamente de modo que as versões tanto podem levar a
que o seu autor seja condenado como, a ser inocentado, diz que se
assume que os conceitos de justiça não são nem unívocos, nem
imutáveis, mas construídos na prática interativa.
A presunção do contraditório — pode-se afirmar, pois —
submete as interpretações, na prática jurídica, a um tipo de
determinação que impede que se possa propor uma lógica das
verdades: se o ritual jurídico prevê que qualquer delito ou conflito
precisa ser abordado de dois ângulos opostos para que se possa
retirar desse embate os elementos para, se não produzir a justiça
no sentido pleno, pelo menos impedir ou minimizar a injustiça, as
interpretações são orientadas não apenas por sistemas de
referência, mas fundamentalmente por interesses antagônicos. Por
isso, as versões das partes não se preocupam tanto com a
verdade, mas, sim, em garantir que uma determinada tese, na
qual sempre se encontram embutidos interesses e valores,
prepondere sobre a outra.
Embora haja, no Direito, um conjunto de normas cuja
função é orientar as interpretações, ainda assim o polêmico e o
contraditório se manifestam precisamente porque a pressão da
heterogeneidade é mais forte do que o controle.
Isso explica, em primeiro plano, pois, por que a
argumentação jurídica não é do mesmo nível da que se pratica nas
ciências matemáticas [pg. 31] e naturais — ditas lógicas e formais
— : no Direito, embora se tomem por modelo procedimentos da
lógica, o fato de não se trabalhar com verdades reveláveis e
demonstráveis, mas com teses que podem ou não ser sustentadas,
o processo de argumentação também pode ser chamado de quase-
lógico. Assim, nas ciências matemáticas e naturais buscam-se
verdades; no Direito, verossimilhanças.
O quadro abaixo pode visualizar melhor o que se disse:
Enfim, uma característica que identifica a argumentação
jurídica é a presunção de que a cada tese é possível construir uma
antítese, o que vai determinar que as escolhas dos recursos
argumentativos visem a superar ou a minimizar as fragilidades
dos sentidos da linguagem e a reforçar os procedimentos de
sustentação da tese. Em outras palavras, isso quer dizer:
1. que o sentido da palavra justiça é construído a cada
interação jurídica, o que não quer dizer que a palavra não tenha
nenhum sentido;
2. que é preciso construir um conceito genérico de justiça,
que, embora seja bastante vago e indefinido nos seus contornos,
possa servir de acordo ou ponto de início das argumentações tanto
da acusação como da defesa;
3. que há tantos conceitos singulares de justiça quantos
forem os sistemas de referência em circulação na sociedade;
4. que a imposição de um determinado conceito de justiça
como o único e o melhor é um ato ideológico que intenta submeter
segmentos sociais que se valem de conceitos diferentes. [pg. 32]
Isso posto, compreende-se que a argumentação jurídica só
se realiza porque há a possibilidade permanente da contradição,
entendida como resultado da multiplicidade de sentidos possíveis
dos fatos, da lei e da forma diferenciada de aplicação das normas.
O Direito, pois, é uma prática do questionamento: sobre o caráter
do conflito, isto é, se ele é ou não, jurídico; sobre o ato e sobre o
autor; sobre se a versão (a interpretação) do ato é aceitável ou não;
sobre como enquadrar a versão do fato na lei etc.
As argumentações que constroem as partes conflitantes têm,
enfim, — como já se disse — o objetivo de fornecer elementos que,
partindo de um conceito genérico, possibilitem a produção da
justiça num plano singular: a sentença pode, por isso, incluir
sempre justificativas recolhidas das atividades tanto da acusação
como da defesa, precisamente para mostrar que ela não contém
nem arbitrariedades, nem injustiça.
Essas dificuldades ou comprometimentos apontados não
desobrigam, porém, a prática jurídica de organizar o seu raciocínio
de modo a que possa obter o convencimento desejado.
E, por isso, uma atividade que se impõe como essencial e
prioritária é o controle da heterogeneidade4, o que demanda dois
procedimentos diferentes, mas interdependentes:
4 É preciso salientar que é a heterogeneidade de sentidos que possibilita que a
argumentação jurídica adote modelos lógicos de outras ciências, além das técnicas e das estratégias para a produção e a maxi/minimização de argumentos: ela propicia que. através, Por exemplo, das paráfrases e das definições, o argumentador “fixe” os sentidos que lhe interessam para, depois, preocupar-se com o raciocínio lógico.
a) Recorre-se, em primeiro lugar, à determinação de um
ethos do discurso jurídico, explicitado na forma de
normas orientadoras (ou Hermenêutica Jurídica). E o
controle institucional do Direito que marca quem pode
falar o que, como e em que circunstâncias, ou seja, o
discurso assume formas e conteúdos específicos da
prática jurídica;
b) O segundo tipo de controle — que explicitei em páginas
anteriores — serve para que o Direito possa armar
modelos lógicos para o seu raciocínio.
No Direito, a paráfrase pode, por exemplo, ser empregada em
frases como Neste caso, importa fazer justiça, o que significa
que... etc. etc... [pg. 33]
A definição, por sua vez — já que ela se ocupa em esclarecer
não tanto uma frase, mas uma determinada palavra — pode
aparecer em exemplos como Utilizarei a palavra justiça entendida
como... etc...
Na prática jurídica, existem ainda, além dos processos da
paráfrase e da definição, outras formas5 de cuidar da construção
de uma linguagem que se aproxime do desejável em termos de
univocidade:
5 Não considerarei como interessante o recurso às expressões do latim para precisar sentidos, porquanto o processo histórico de qualquer língua altera os sentidos das palavras à medida em que se modificam as circunstâncias socioculturais.
1. Como há a dificuldade de controlar as interpretações
tanto dos fatos como do texto legal, institui-se um conjunto de
normas orientadoras. Elas fixam uma certa orientação para
qualificar, por exemplo, um ato ou como tentativa de homicídio ou
como lesão corporal.
2. Uma outra forma de contornar as dificuldades que a
heterogeneidade social cria para a prática jurídica, especialmente
diante da necessidade da produção das sentenças e das tomadas
de decisão, leva o Direito a trabalhar com o que se chama de
presunções jurídicas.
As presunções jurídicas podem ser consideradas um acordo
que, fixando orientações para a produção de sentidos de justiça,
tem a finalidade de facilitar a produção da sentença ou a tomada
de decisões. Elas não se submetem à discussão imediata, embora
não devam ser consideradas imutáveis e, por isso, semelhantes às
leis das ciências matemáticas e naturais. Melhor: as presunções
não são discutidas no momento imediato, embora se modifiquem
historicamente, adaptando-se ao instituído social. Elas dizem,
enfim, respeito a uma normalidade aceita pela sociedade e (...)
protegem o Estado de coisas existente (PERELMAN, 1996b, p. 586).
A presunção se explica, na verdade, por motivos de
segurança jurídica, em termos de cuidados e de facilitação da
promoção da justiça, o que inclui, por exemplo, postar-se contra
as possibilidades da calúnia, do abuso de poder, da destruição da
ordem familiar etc.
Por isso, essa função pode, igualmente, ser considerada um
controle dos sentidos da palavra justiça, pois a presunção jurídica
que propõe, por exemplo, que, em caso de dúvida, se decida a
favor do réu, determina que, no ritual em que atuam defesa e
acusação, somente à segunda é permitido retirar-se do debate. A
defesa sempre se cobrará a presença quer seja para que não se
condene um inocente, quer seja para que não se puna com maior
rigor do que o necessário o autor de delito, ou [pg. 34] mesmo,
para analisar as responsabilidades da sociedade no fato em
julgamento.
O Direito atua, pois, apoiado em algumas presunções entre
as quais são importantes as seguintes:
— a qualidade de um ato manifesta a da pessoa que o
praticou;
— a credulidade natural faz que nosso primeiro movimento
seja acolher como verdadeiro o que nos dizem;
— todo enunciado levado ao nosso conhecimento nos
interessa;
— todo indivíduo é inocente até prova em contrário;
— o pai legal da criança é o marido da mãe dela;
— ninguém pode alegar desconhecimento da lei;
— em caso de dúvida, decide-se a favor do réu etc.
3.1 A ESPECIFICIDADE DA LÓGICA JURÍDICA
A argumentação jurídica, embora não vise a verdade,
também precisa valer-se de determinados modelos de raciocínio:
uma vez postos em prática os dois tipos de controles da
heterogeneidade lingüística, criam-se as condições mínimas
necessárias para que se possa submeter a atividade
argumentativa do Direito a uma lógica específica.
E quando se fala de uma lógica específica, incluem-se duas
idéias:
1. que o Direito atua como um sistema lógico, ou seja, que
os enunciados do sistema jurídico podem ser organizados segundo
os princípios e as regras do raciocínio lógico;
2. que há uma especificidade que se organiza segundo
referências e parâmetros próprios.
Ora, das duas idéias contidas na expressão lógica jurídica
cabe, no presente trabalho, aprofundar a segunda, já que a
questão de haver ou não, um sistema jurídico lógico pode ser
remetida a outro tipo de reflexão.
Assim, consentida a idéia de que há um sistema lógico,
pode-se considerar que ele se constrói tendo como suportes dois
tipos de referências: [pg. 35]
1. as de ordem prescritiva que se compõem dos modais
deônticos, é obrigatório — é permitido — é proibido, que dão lugar a
um conjunto de normas que pode ou não estar materializado na
forma de lei;
2. as de ordem descritiva que dizem respeito às normas que
fixam as conseqüências que pode gerar a infração das prescrições.
A especificidade, pois, duma lógica jurídica se constrói, em
termos gerais, pela adoção dos princípios e das regras do
raciocínio lógico, e, segundo, pela adaptação dos modelos às
referências prescritivas e descritivas que sustentam a prática
jurídica. Há, pois, diferenças na lógica jurídica e que se refletem
no modo de verbalizar as teses, tanto que as ciências em geral
valem-se do verbo ser, e o Direito, da locução dever ser: a
orientação do que é proibido, é permitido e é obrigatório impõe que
uma tese de julgamento — que sempre é discutível — afirme que
fulano deve ser considerado inocente ou culpado porque o seu ato
deve ser condenado como prejudicial à sociedade. E é essa
característica de linguagem do raciocínio que pode servir para
entender melhor a especificidade da lógica jurídica, ou seja, a
argumentação, no Direito, adota os modelos lógico-formais, mas
atua sob a orientação das três referências modalizadoras cuja
operacionalização, como se pode observar, depende de acordos
sociais, ao contrário das ciências que buscam verdades
independentes do que a sociedade pensa sobre elas.
Os deônticos, pois, são as referências à luz das quais se
regularão as relações sociais. Elas dão forma e conteúdo às
normas legais e àquelas que não assumem a forma de lei.
Entende-se, pois, assim, que essa característica de submeter
a argumentação jurídica a modelos lógicos, assumindo o prestígio
do rigor lógico, leva à observância obrigatória de três condições: a
coerência, a coesão e a congruência.
A coerência diz respeito à relação de compatibilidade (ou
verossimilhança) entre um ponto de referência que pode ser um
texto (por exemplo, a lei), um dito ou uma concepção da realidade:
a referência impõe que entre ela e a versão de um fato não haja
uma imagem de contradição, o que estabelece a verossimilhança
ou a plausibilidade da tese jurídica. A referência se faz, pois,
necessária como se fosse um foco que iluminasse e orientasse o
que se diz: não contradizer essa referência significa ter coerência
(e credibilidade), contradizê-la representa o descrédito.
Por coesão entende-se o conjunto de relações que organizam
e sustentam os conceitos e as idéias de uma argumentação em
termos de [pg. 36] não construírem contradições e vácuos
semânticos que conduzam à negação umas das outras ou à falta
de conexão entre elas. A coesão — ao contrário da coerência que
se refere às não-contradições com o exterior de uma
argumentação — significa a “amarra” lógica interna das partes de
um texto. Ela depende, porém, da coerência, pois, num texto em
que se contradiz a referência, implode-se a coesão.
A congruência — que depende da coesão e da coerência —
por sua vez, diz respeito à condução e ao direcionamento do
processo argumentativo: ele deve partir de um determinado espaço
significativo e caminhar com segurança e clareza em direção a um
outro. O argumentador, quando dá importância à congruência,
segue uma linha ou um traçado — na busca de uma conclusão —
que deve ficar tão perceptível que não crie dificuldades
desnecessárias para que o auditório acompanhe o raciocínio.
No Direito, portanto, a coerência, em geral, se constitui
tomando como referência e apoio o que dizem a lei, a
jurisprudência e as presunções, o que, entretanto, não é suficiente
para oferecer garantias de que a argumentação tenha sucesso,
pois, para estabelecer a coerência, pode o argumentador também
valer-se de conceitos que não estão contidos nestes textos, como,
por exemplo, os que se referem a valores novos que a sociedade
adotou como balizadores das condutas etc. Esses conceitos
devem, por conseguinte, fazer parte do instituído social em termos
de não contradizerem os deônticos adotados pela sociedade.
Enfim, a coerência da argumentação jurídica se constrói na
observância do primeiro tipo de controle da heterogeneidade
lingüística, o institucional: a referência que orienta a
argumentação jurídica é sempre um sentido genérico submetido à
tríade deôntica institucionalmente garantida.
A coesão e a congruência — diferentemente da coerência —
são conseqüências dos efeitos do segundo tipo de controle da
heterogeneidade: as paráfrases e as definições devem impedir que
haja contradição entre os sentidos que sustentam e que dão rumo
ao raciocínio. Por isso, somente após serem controlados e
delimitados os sentidos da linguagem, pode a argumentação
jurídica dedicar-se à construção de sua lógica que, em geral, adota
a forma de um silogismo, precisamente porque ele se faz
orientação para que se preencham as condições básicas da
argumentação:
1. Estabelece uma referência orientadora do raciocínio;
2. Garante a coesão interna; [pg. 37]
3. Fixa uma orientação segura para o raciocínio linear e
congruente;
4. Vale-se de uma operação lógica eficiente com os pares
ora.. logo ou se... então.
Essa importância do silogismo, como orientador da
argumentação jurídica, pode ser observada em:
Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser
condenado.
Ora, João matou em legítima defesa.
Logo, João não deve ser condenado 6.
6 Não me ocuparei com outras formas de silogismo, mas apenas com o que considero um exemplo clássico, tendo em vista que os objetivos do meu trabalho estão voltados mais às questões que dizem respeito à relação da linguagem com a argumentação jurídica.
Neste modelo de silogismo, o primeiro enunciado —
recortado do texto da lei — constitui-se como referência para o
raciocínio e deve, observada a correta disposição e conexão das
partes, garantir a coerência da sustentação.
A coesão do raciocínio fica garantida pela presença e disposi-
ção correta dos termos dos três enunciados, em que o predicado
da tese é também o predicado do primeiro enunciado (premissa
maior — PM), o sujeito da tese é o sujeito do segundo enunciado
(premissa menor — Pm) e o sujeito do primeiro enunciado cobre
semanticamente o sujeito do segundo enunciado e fornece os
elementos para o predicado do segundo.
Os pares de operadores argumentativos “ora...logo” ou
“se...então” determinam a congruência do raciocínio.
A argumentação jurídica, porém, embora adote os modelos
das ciências matemáticas e naturais, apresenta uma diferença
fundamental: a relação que constrói entre dois sentidos (ou dados)
não leva em conta a descoberta e a demonstração de uma
verdade, mas, um comprometimento com a noção de justiça. É
uma relação de imputação, ao contrário do que ocorre nos
silogismos das ciências matemáticas e naturais, onde o objetivo
não é imputar, mas: [pg. 38]
1. descobrir uma verdade ou um valor, pois
se x + y = 10
e x = 3
então y = 7
ou
2. demonstrar a irrefutabilidade da hipótese em
Todos os homens são mortais.
Ora, João é homem.
Logo, João é mortal.
A atividade argumentativa, nos dois exemplos acima, vale-se
da relação que se pode estabelecer entre as duas primeiras
afirmações para descobrir ou demonstrar uma terceira.
O silogismo jurídico também se vale da relação entre os dois
primeiros enunciados, mas tem outro objetivo como se pode ver no
exemplo dado. Ele não visa à descoberta ou à demonstração de
uma verdade na relação entre “matar em legítima defesa” e “não
deve ser condenado”: o objetivo não é nem demonstrar, nem
descobrir, mas sustentar uma tese de aplicação de um valor, o
que também quer dizer imputar e justificar um julgamento.
As diferenças, assim, entre os exemplos de argumentação
dizem respeito aos objetivos dos raciocínios que trabalham com
sentidos que ou vão ser denominados de verdades científicas ou
de teses, isto é, as primeiras buscam a irrefutabilidade, as
segundas, a verossimilhança.
Outrossim, cabe lembrar que a atividade argumentativa —
agora apoiada no silogismo — parte da tese cujo teor está
comprometido com interesses bem específicos e precisa se apoiar
sempre numa versão (que é resultado de uma interpretação), ou
seja, a defesa dos interesses envolvidos na argumentação jurídica
tem, como ponto de partida, a produção duma versão que,
também comprometida, deve ser verossímil o suficiente Para
sustentar a tese. Depois dessa etapa, a estruturação do raciocínio
— sob a orientação de um silogismo — parte para a formulação ou
a escolha dos outros enunciados (ou premissas).
A tese, pois, corresponde ao terceiro enunciado do silogismo,
e a versão que a sustentará está contida no predicado do segundo
enunciado. [pg. 39]
A estruturação, então, deste modelo de silogismo, adotando
como exemplo a tese jurídica João não deve ser condenado,
cumpre os seguintes passos:
1. O predicado da tese (não deve ser condenado) fará parte
do predicado da PM; 2. O sujeito da tese (João) será o sujeito da
Pm; 3. A tarefa mais difícil, em geral, mesmo quando se busca
apoio na lei, é construir o sujeito da PM (Todo aquele que mata em
legítima defesa...) que deve ter um caráter o mais abrangente
possível de maneira que possa ser continente do sujeito da tese,
ou seja, a generalidade (ou universalidade) deve ter condições de
cobrir a singularidade, além de acolher — porque, no Direito, uma
presunção relaciona a qualidade do ato com a do autor — a versão
que os deônticos permitirem construir e que corresponde ao
predicado da Pm (legítima defesa). Compõe-se, pois, o sujeito da
PM de duas partes (o continente do sujeito da tese e o predicado
da Pm ou versão da tese). A PM pode apresentar quantificadores
como todos, ninguém, tudo, nada etc. Não pode, porém,
apresentar quantificadores como alguns, a maioria, apenas etc.,
pois essas escolhas negariam o caráter generalizante e impositivo
dos deônticos.
Como se pode observar, a estruturação do silogismo jurídico
parte da tese que se ocupa dum fato singular para, seguindo
etapas e preenchendo espaços, formalizar a premissa maior. Esse
processo é, pois, eminentemente indutivo.
3.2 A INDUÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DO SILOGISMO
A construção da tese é a primeira etapa da estruturação do
silogismo jurídico, cujos limites serão fixados por um objetivo
inicial: a tese vai se postar a favor ou contra uma outra tese, e
deverá, por isso, submeter a sua atividade interpretativa a esses
objetivos fixados pelo ritual jurídico. Essa afirmação implica dizer,
por exemplo, que as interpretações do inquérito policial, da versão
do autor do fato, das versões das testemunhas eventuais, dos
dados da perícia etc. produzem sentidos que podem ser diferentes
e que, por isso, uma vez, garantem as atividades de defesa e de
acusação e, segundo, requerem que a argumentação aloque
procedimentos de controle e delimitação de sentidos para, em
seguida, poder operar com modelos lógicos.
O que deverá sustentar, pois, a tese é um conjunto de
interpretações que deve conduzir à produção de uma versão
verossímil porque ela é condição fundamental para o sucesso da
argumentação, [pg. 40] principalmente porque a tese é, em
resumo, uma versão submetida a um julgamento.
Enfim, a produção da tese comporta dois momentos
distintos, mas inseparáveis:
a) a produção do sentido de atos e fatos.7 É uma
interpretação já comprometida ou com a defesa ou com a
acusação que produz esse sentido, o que requer
delimitações e controles que atendam os objetivos
próprios da parte e que possibilitem o rigor do raciocínio.
7 O ato é, aqui. entendido como uma atividade desenvolvida por um indivíduo, sendo que a contextualização desse ato produz o que se denomina de fato que pode ou não, ser jurídico. Assim, João matou uma pessoa é um ato, mas não necessariamente um tato jurídico porque pode, por exemplo, o ato ter ocorrido na gueixa ou numa batida Policial etc.
A versão de um ato pode ter ou não, concordância das partes
que se enfrentam no debate. Quando, porém, houver
concordância, pode-se falar em verdade fáctica. Essa
concordância em torno de uma versão não impede, entretanto —
porque a interpretação sempre levará em consideração os
interesses das partes — que as argumentações tanto da acusação
como da defesa apresentem elementos diferenciados daquilo que
envolve imediata ou mediatamente o ato, ou seja, o contexto do
ato será utilizado para a produção da versão do fato de acordo
com os interesses de cada parte envolvida, e, por isso, as versões
(e as teses) obrigatoriamente serão diferentes.
Isso significa, em outros termos, que, na construção da
versão que lhe interessa, o argumentador recorrerá às provas e
aos indícios que julgar importantes na construção da
verossimilhança e convenientes à sustentação da tese, além de,
evidentemente, pensar na referência — por exemplo, a lei — à luz
da qual atuará no enquadramento da versão.
O seguinte exemplo pode esclarecer isso melhor: João matou
uma pessoa. O ato de João (ter matado uma pessoa) pode ser uma
evidência ou verdade fáctica. Os recortes e as interpretações
daquilo que circunscreve, porém, o ato, ou seja, o contexto, vão
compor o fato e produzir versões diferenciadas porquanto têm
orientações de interesses antagônicos. Assim, uma
contextualização menos abrangente do ato pode produzir uma
versão que condene o autor da morte. Construindo, porém, um
contexto mais amplo, o ato de João pode até inocentá-lo: basta
aprovar a tese da legitima defesa ou da do cumprimento de função
(militar, por exemplo) etc. [pg. 41]
Isso mostra que a contextualização de um ato participa da
interpretação dele e é de tal forma importante que pode condenar
ou absolver o autor de uma morte — ou pode até fazer com que
seja considerado um herói.
b) a produção de um julgamento. É a avaliação da versão do
fato produzida pela interpretação, tomando como
referência que pode ser ou a lei vigente, ou a
jurisprudência formada, ou os valores sociais instituídos.
Esse julgamento se estende ao autor envolvido no fato,
baseado na presunção de que a qualidade do ato revela a
qualidade de seu autor, isto é, uma versão que implica
uma condenação do ato, condena o autor, ou o contrário,
quando o ato não é condenável, o autor é absolvido.
A seleção de indícios e provas é o momento da
argumentação jurídica em que o objetivo é colher e apresentar os
elementos contextualizadores do ato e que se incluem como
elementos que participam da produção da versão do fato, ou seja,
o que, direta ou indiretamente, envolve o ato representa um apoio
importante à interpretação do acontecimento e, por isso, à
sustentação da tese.
As provas mais comuns são as versões de atos e fatos
precedentes e subseqüentes, ou seja, os depoimentos das partes e
das testemunhas, além do laudo pericial. Elas só interessam,
contudo, quando se submetem aos objetivos ou da defesa ou da
acusação e contribuem para a construção da verossimilhança.
É preciso, aqui, diferenciar os efeitos que podem produzir as
provas e os indícios: enquanto aquelas têm por objetivo construir
uma imagem de certeza, estes têm a finalidade de sugerir, levantar
hipóteses ou conduzir a suspeitas, o que, quando bem trabalhado,
pode ter — quase ao nível das provas — um forte efeito na
construção da verossimilhança.
A possibilidade, contudo, de o argumentador ou levantar
suspeitas ou criar a imagem da certeza, também depende dos
sistemas de referência do auditório: toda e qualquer informação
vai ser interpretada e avaliada pelo referencial que os indivíduos
receptores do raciocínio trazem da história que viveram dentro de
determinados segmentos sociais. Quer dizer que tanto os indícios
como as provas, no Direito, também se submetem aos efeitos da
heterogeneidade social e referencial, porquanto podem ser
interpretados diferenciadamente. E isso torna a argumentação
jurídica, uma vez, mais complexa — porque mais frágil do ponto
de vista lógico e formal, e, por outra, mais democrática — porque
não se furta a acolher o resultado da diversidade social. [pg. 42]
Apesar (ou exatamente por isso) da importância das provas
na produção da versão, também elas se submetem a normas e
presunções, porquanto precisam ser avaliadas quanto a sua
qualidade e aos efeitos legais que podem produzir, conforme se
pode depreender do que explica Perelman quando diz que
A prova dos fatos é às vezes livre, às vezes regulamentada. (...)
Assim é que a prova de certos fatos é inadmissível. O juiz pode
recusar-se a admitir a prova dos fatos irrelevantes, cuja
materialidade em nada influencia o desfecho do processo, assim
como dos fatos cuja prova não é permitida, por exemplo daqueles
que uma difamação aventa, e isto com o intuito de proteger a
reputação das pessoas privadas. E inadmissível igualmente, a
prova dos fatos aos quais se opõe uma presunção legal
irrefragável, tal como a autoridade da coisa julgada. O juiz.
tampouco admitirá a prova de certos fatos cobertos pela prescrição.
(PERELMAN, 1996b, p. 494-495)
E acrescenta: “A prova judiciária é livre quando as partes
podem recorrer a todos os meios suscetíveis de formar a convicção
do juiz. Contudo, o mais da vezes, a prova é regulamentada: os
meios de prova admitidos são limitados e legalmente
hierarquizados.” (Op. cit., p. 587).
O juiz pode, pois, manifestar-se sobre o valor das provas,
sobre a propriedade ou a adequação de produzi-las, ao perguntar-
se sobre o que é preciso provar e o que pode ser provado através
de quê. Mais uma vez, a argumentação jurídica depende dum
processo de interpretação, ou seja, dependerá do que produzirá o
sistema de referência do juiz.
Outrossim, o ritual jurídico impõe, como conseqüência de
algumas presunções, que cabe ao acusador oferecer a versão e as
provas por primeiro, cabendo à defesa a tarefa de contestar e
fragilizá-las.
E, por fim, é preciso lembrar que as provas, ou as
informações — tendo em vista novamente a presunção jurídica —
podem dizer respeito tanto ao ato como a seu autor, pois
Duas são as categorias do componente informativo: a) evidencial
— informações diretamente relacionadas com o crime; e b) não
evidencial — informações constituídas pelas características
pessoais do réu. Estas, ao contrário do que se possa imaginar, são
de grande peso nas decisões judiciais. (CORACINI, 1991, p. 52)
[pg. 43]
Aqui é preciso considerar que as informações evidenciais
podem contextualizar e esclarecer mais ou menos o ato,
dependendo da interpretação e da avaliação de quem as apresenta
como importantes.
Isso, por sua vez, permite concluir que uma evidência nem
sempre é tão evidente assim, ou, em outros termos, são poucas as
evidências que podem ser sustentadas como tais devido,
precisamente, às diferenciadas formas de interpretação a que
conduz a heterogeneidade referencial.
Coracini provavelmente quis distinguir entre o que, em
termos de provas (ou evidências) pode ser sustentado com maior
ou menor êxito: dizer que é evidente que João matou é mais fácil
— dependendo dos elementos informativos — de ser aceito do que
dizer que é evidente que João, por isso, deve ser considerado um
elemento perigoso à sociedade.
De qualquer forma, é possível verificar que a evidenciação
pode tanto ser a produção de uma verdade fática como, uma
estratégia que busca passar por evidente o que necessariamente
não é.
Outrossim, é importante lembrar que as provas e os indícios
são um tipo de argumento, mas não, o único: no caso de o apoio
em provas e indícios ser frágil ou, mesmo, inexistente, a
argumentação jurídica deverá recorrer a determinadas e
apropriadas técnicas, entendidas como produtoras de argumentos
a partir de propriedades de certas relações lógicas, e de
circunstâncias pessoais, temporais, situacionais, sociais etc., o
que, contudo, não tem relação direta com o fato em julgamento.
Além disso, quando as provas e os indícios forem
considerados frágeis ou inexistentes, ganham importância as
estratégias à medida que, o modo de atuação — que envolve
processos de contextualização, verbalização e disposição dos
argumentos — produz efeitos surpreendentes e que influenciam as
reações do auditório, precisamente porque a argumentação não
deve ser considerada apenas um exercício lógico mas também, um
processo de interação.
A argumentação jurídica vale-se, enfim, de dois tipos de
argumentos: os que se ligam diretamente ao ato e os que são
produtos de técnicas argumentativas. Ambos visam à construção
da verossimilhança da versão do fato, o que, em última instância,
significa estruturar as condições de sustentabilidade da tese.
Em resumo:
1. As provas e os indícios também são resultado de
interpretações, o que aumenta as dificuldades de uma lógica
jurídica; [pg. 44]
2. Os procedimentos de alocação de indícios e de provas se
submetem, sempre, à presunção do contraditório, ou seja, as
escolhas e as intervenções ocorrem a partir do objetivo de
sustentar uma tese a favor ou contra o autor de um ato, o que
torna compreensível que o argumentador, no Direito, não pode ser
considerado, nunca, um elemento neutro e que as decisões que
produzem efeitos de justiça e se constroem no processo da
interação verbal, que é a argumentação, dificilmente alcançarão o
que se poderia entender por justiça plena;
3. Na ausência ou no caso de serem frágeis as provas e os
indícios, o argumentador pode recorrer a determinadas técnicas
para produzir os argumentos de que necessita para a produção da
versão que sustentará a tese.
O enquadramento na referência prescritiva corresponde a
uma proposta de julgamento da versão produzida, ou seja, a
sustentação da tese jurídica precisa, obrigatoriamente, levar em
consideração os modais deônticos e as normas que eles geram, e
que são encontradas, em geral, sob a forma de lei.
O enquadramento da versão do fato jurídico é, obviamente,
orientado pelos objetivos que o argumentador persegue, e requer
uma competência para, apoiado em normas interpretativas (de
que se ocupa a Hermenêutica Jurídica) escolher a referência
prescritiva que melhor se ajusta aos interesses em jogo. Isso quer
dizer, de outra forma, que nem sempre a lei é a melhor escolha, ou
seja, o texto legal, por si só, não garante a promoção da justiça,
mesmo porque
Dizer que as leis — científicas e jurídicas — constituem a base da
tão desejada ‘verdade objetiva’, equivaleria a afirmar o caráter
estável (regular) e imutável das mesmas. Sabe-se, porém, que as
leis jurídicas, baseadas nos valores morais, culturais (e até mesmo
no regime político de uma sociedade), variam segundo a cultura, o
país, o grupo social. (CORACINI, 1991, p. 48)8
8 A lei só pode ser invocada como reguladora das relações sociais se ela for aplicada indistintamente a todos os indivíduos da sociedade. Estou me referindo, aqui, ao problema da impunidade de que se privilegiam os indivíduos pertencentes a determinados segmentos sociais: é neste momento que o Direito falha eticamente e deixa de preencher satisfatoriamente as suas funções sociais. Além disso, é importante considerar que, se a lei é (ou deveria ser) um acordo social cuja função é orientar a atuação sobre o conflito social, ela também é um produto da atividade do segmento social hegemônico e, por isso, existe a possibilidade de se levantar o questionamento sobre se ela con-templa a defesa daqueles que não pertencem a este segmento, o que Heller (1987) aborda como um conflito entre concepções de justiça, ou seja, “(...) a declaração ‘essas normas e regras são injustas’ expressa uma convicção social e política. Os que reivindicam ‘essas normas e regras são injustas’ e os que dizem das mesmas normas e regras ‘essas normas e regras são justas’ param em um conflito social (ou político) um com o outro”. (p. 193) [pg. 45]
O que se diz acima é que, apesar da resistência à
flexibilidade e à mutabilidade, a lei com a qual atua o Direito se
modifica, e é isso que a distingue da das ciências físicas e
naturais. Em outros termos, a presunção do contraditório que
acolhe a heterogeneidade referencial que se origina do tecido
social dimensiona a fragilidade lógica da prática jurídica,
precisamente porque as referências também são frágeis, o que
implica dizer que a interpretação, a argumentação e a produção
da sentença são atividades determinadas, em maior ou menor
escala — como as de qualquer outra prática social — pelo que
ocorre no tecido social, de modo que
Os textos jurídicos, trate-se de leis ou de precedentes judiciários,
são habitualmente suscetíveis de interpretações variadas, seja
extensivas, por via de analogia, por exemplo, seja restritivas, mercê
das distinções que o intérprete poderia neles introduzir. As
diversas interpretações favorecem um ou outro interesse, um ou
outro valor, que estão em conflito em cada caso específico.
(PERELMAN, 1996b, p. 453)
Constata-se, pois, que, por mais incômodo que seja para a
prática jurídica, a linguagem que serve às interpretações é
comprometida com interesses sociais, de modo que se poderia
dizer que o instrumento destinado a intervir no conflito já está, na
sua origem e natureza, perpassado pelo problema.
Além do que
sabemos que, ao lado de regras de direito que ninguém cogita em
contestar, nem em interpretar à sua maneira, todo sistema de
direito comporta bastantes elementos de incerteza, dá ao juiz
bastante liberdade e depende tanto da convicção íntima do juiz (...)
que a personalidade do juiz sempre cumpre um papel, às vezes
limitado, mas às vezes decisivo, no desenrolar do processo e em
seu desfecho. (PERELMAN, 1996b, p. 493-494)
Quando Perelman fala da importância da personalidade do
juiz, na verdade, aborda o problema da heterogeneidade dos
sistemas de [pg. 46] referência, e que precisa ser controlado no
processo de produção de sentidos: é esse “nem em interpretar à
sua maneira” em confronto com “bastante liberdade” e “convicção
íntima” que configuram a complexidade, o que explica a
importância da Hermenêutica, entendida na sua especificidade,
conforme o faz Bastos (1997):
Faz sentido aqui a diferença posto que hermenêutica e
interpretação levam a atitudes intelectuais muito distintas. Num
primeiro momento, está-se tratando de regras sobre regras
jurídicas, de seu alcance, sua validade, investigando sua origem,
seu desenvolvimento etc. (...) Já a interpretação não permite este
caráter teórico-jurídico, mas há de ter uma vertente pragmática,
consistente em trazer para o campo de estudo o caso sobre o qual
vai se aplicar a norma. (BASTOS, 1997, p. 21)
Em resumo, os motivos por que a lei pode ser interpretada
diferentemente e, em conseqüência, ser também objeto polêmico e
espaço de argumentação são vários, dentre os quais:
a) A lei é um acordo verbalizado, produto do trabalho dos
homens de alguns (mas não de todos) segmentos sociais,
cuja atividade é conduzida sob as pressões históricas e
sociais, ou seja, sob a pressão dos conflitos sociais.
E — porque é linguagem — a lei, necessariamente, reflete
essa realidade e, como conseqüência, assume um caráter
o mais genérico possível: apresenta, pois, espaços vazios e
incompletudes de sentidos que as diferentes
interpretações e argumentações deverão tomar como
objeto de trabalho;
b) Embora a interpretação da lei seja orientada por um
conjunto de normas jurídicas, as dificuldades não
desaparecem, pois as normas também são linguagem, ou
seja, também são interpretáveis de forma diferenciada
pelos diversos sistemas de referência ligados a diferentes
segmentos sociais. Por isso, o poder do juiz pode — e deve
— ser questionado permanentemente pela sociedade,
precisamente, porque as suas decisões submetem-se, sem
dúvida nenhuma, a interesses de segmentos sociais aos
quais ele está vinculado histórica e culturalmente.
c) O objetivo que orienta a atividade do advogado, visando à
acusação ou à defesa, i.é, as diferenças de objetivos, leva
a [pg. 47] diferentes recortes da lei, o que mostra que o
enquadramento pode ser diferenciado;
d) A lei, por função, tem um caráter mais conservador ou
estático, o que impede que acompanhe as transformações
sociais que, pela sua dinamicidade, caminham sempre à
frente dos acordos legais.
Desse modo, percebe-se a importância do processo de
interpretação na prática jurídica, o que acarreta uma série de
dificuldades que se originam da heterogeneidade social e
referencial. São, pois, questões de linguagem que levam a que
O raciocínio jurídico, mesmo sendo sujeito a regras e a prescrições
que limitam o poder de apreciação do juiz na busca da verdade e
na determinação do que é justo — pois o juiz deve amoldar-se à lei
—, não é uma mera dedução que se ateria a aplicar regras gerais a
casos particulares. (PERELMAN, 1996b, p. 489)
Observa-se, portanto, que, na sustentação da tese, há uma
nítida diferença entre produzir uma versão e justificar um
julgamento: é preciso lembrar que há um procedimento
comprometido com interesses sob cuja pressão se interpreta o
fato, e outro que busca justificar uma decisão ou uma sentença
em relação ao resultado dessa interpretação. É essa fragilidade
que faz Perelman (1996a) considerar a argumentação jurídica
como uma atividade “quase-lógica”.
A justificação, pois, se, de um lado, configura o objetivo mais
importante da argumentação jurídica, de outro, revela que a
atividade que se desenvolve na prática — porque ela aciona a todo
o momento os procedimentos de interpretação — é uma atividade
essencialmente lingüística. E, por isso — para que o raciocínio
jurídico possa se apoiar em modelos lógico-formais — precisa
recorrer, como uma atividade obrigatoriamente precedente, a
determinados processos de controle da heterogeneidade de
sentidos para poder obter sucesso na consecução de interesses
específicos, ou seja, recorre-se, primeiro, à Hermenêutica jurídica
e, depois, à paráfrase e à definição, processos que, mais uma vez,
justificam o estudo da linguagem no Direito, porquanto são
processos que se originam do que ela é devido a suas relações com
a realidade social. Em outros termos, poder-se-ia dizer que a
prática jurídica é uma atividade que tem a sua especificidade
determinada pelo modo como se vale da linguagem para poder
interferir na complexidade das relações sociais: [pg. 48] os efeitos
de justiça podem, pois, também ser entendidos como efeitos de
linguagem.
3.3 A DEDUÇÃO NA EXECUÇÃO DO SILOGISMO
Se a estruturação do silogismo jurídico sempre inicia pela
tese que resulta dos interesses que se opõem no julgamento dum
fato, a argumentação — uma vez concluído o modelo lógico que
orientará o raciocínio — obedecerá, de maneira geral, a um
processo dedutivo, mesmo que se possa aventar que, pela
ausência do caráter de irrefutabilidade da PM, a dedução não seja
semelhante à que se verifica na lógica das ciências matemáticas e
naturais: a precariedade do apoio que oferece a PM não impede
que o silogismo oriente e estabeleça uma linha de raciocínio.
A eficiência do silogismo depende, em primeiro plano, do que
diz a PM: o seu caráter genérico garantirá, enquanto referência, a
coerência, desde que se possa promover a inserção do singular da
Pm no geral da PM.
Convém, ainda, lembrar que a PM só faz referência
importante quando se submete aos limites que a sociedade
estabelece com base nos deônticos é permitido, é proibido e é
obrigatório, isto é, a PM deve respeitar o instituído socialmente,
conste ele ou não no texto da lei.
Uma PM, todavia, que não toma a lei como referência, mas
um valor instituído que não consta no texto legal apresenta, em
geral, grandes dificuldades para a sustentação da tese, conforme
se pode observar nos dois seguintes exemplos:
1. PM: Todo aquele que age sob pressão das determinações
sociais não deve ser condenado.
Pm: Ora, João agiu sob pressão das determinações sociais.
Tese: Logo, João não deve ser condenado.
Neste tipo de silogismo, o argumentador terá duas tarefas,
ambas difíceis: convencer o auditório de que a PM é uma
referência aceita pela sociedade e de que João agiu sob pressão
das determinações sociais.
O apelo à lei, à jurisprudência ou às presunções pode, pois,
facilitar a sustentação da tese, porquanto é um instituto social
que, de certa forma, não se discute. Não garante, porém, o
sucesso: apenas garante a construção mais tranqüila da coerência
do raciocínio. [pg. 49]
2. PM: Todo político é corrupto e deve ser condenado.9
PM: Ora, João é político.
Tese: Logo, João deve ser condenado.
9 O enunciado de cunho ideológico sempre revela uma generalização falsa, porquanto “Todo político é corrupto” deveria — para não ser ideológico — tomar a forma de “Todo político que é corrupto’”.
Observe-se que, quando a PM é de cunho ideológico (como,
por exemplo, em outros enunciados, tais como Todo homem é infiel
por natureza, A mulher é inferior ao homem, O branco é superior ao
negro etc.), as dificuldades de sustentação da tese se localizam em
fazer passar por verossímil a PM, o que, em determinadas
circunstâncias históricas e culturais, pode ser mais ou menos
difícil.
A escolha de uma presunção jurídica como PM também pode
orientar a argumentação, como nos casos em que é importante
reforçar a relação entre qualidade do ato e qualidade do caráter do
autor, ou quando o argumentador que, atuando na defesa, busca
valer-se das vantagens da dúvida para beneficiar o acusado.
Na argumentação jurídica, realizam-se, pois, após a
estruturação do silogismo — e que inclui a escolha das referências
— que servirá de apoio, várias atividades (especialmente de
parafrasagem e de definição) que podem ser mais insistentes e
trabalhosas ora num, ora em outra parte do raciocínio,
compreendendo ora a construção de uma versão verossímil, (para
o que se recorre a provas, indícios e técnicas argumentativas), ora
a utilização de técnicas argumentativas apropriadas, além da
alocação de estratégias cujos efeitos intervirão no estabelecimento
das melhores condições de sucesso.
Enfim, resumindo: o silogismo orienta a estruturação lógica
do raciocínio, fixando uma combinação de lugares e relações entre
as partes de modo que haja coerência, coesão e congruência, ou
seja, o modelo lógico é orientação para a sustentação de uma
justificativa, para o que é fundamental ter argumentos que
produzam os efeitos desejados.
Quando, porém, as provas e os indícios que se referem ao
fato em julgamento forem insuficientes para a construção da
versão desejada, como se pode alocar os argumentos necessários à
sustentação duma tese? [pg. 50]
4
TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS
Entende-se por técnica argumentativa a produção de
argumentos que tomam como orientação não o que é pertinente ao
fato em avaliação, mas, relações lógicas, circunstâncias e
situações de outras esferas das atividades humanas e que, por
pressuposição, têm condições para exercer força de
convencimento: é quase como se as técnicas argumentativas
representassem um recurso que empresta prestígio e valores
duma determinada prática para transformá-los em argumentos —
no caso do Direito — jurídicos.
Assim, por exemplo, considera-se como verdadeiro, dentro
da lógica, que, se a = b, então também é verdade que b = a; ou,
então, se a = b e b = c, então, a = c. Os efeitos que produzem os
dois tipos de relações lógicas (reciprocidade e transitividade) serão
aproveitados, devido ao prestígio que tem o saber lógico, pela
argumentação jurídica, especialmente no caso de fragilidade de
provas e indícios: a construção de uma versão que interesse à
sustentação da tese requer a substituição das incógnitas a, b e c
por valores que serão trabalhados como se pudessem estabelecer
as mesmas relações lógicas. Mais: as inferências e as deduções
que resultam das propriedades que têm as relações lógicas serão
utilizadas e aplicadas aos valores sociais e aceitas como
argumentos importantes no julgamento jurídico.
Outras técnicas para produzir argumentos, e que podem
servir de exemplo ilustrativo para explicar o processo, são as que
buscam apoio, quer seja no pressuposto de que o ponto de vista
da pessoa de prestígio social é importante, quer seja na concepção
de que a comparação de fatos Pode ajudar a interpretar e julgá-los
melhor, quer seja, ainda, na definição [pg. 51] da importância da
história, da educação e das emoções na conduta dos indivíduos
etc.
As técnicas podem, pois, ser consideradas recursos que se
justificam a partir de pressuposições que devem ter aceitação
acadêmica e/ou social, o que, no Direito, se torna por demais
importante e sublinha o cuidado que o argumentador deve ter na
escolha da técnica e das estratégias interativas que visam a
estabelecer um acordo acerca das pressuposições subentendidas
nos argumentos produzidos e utilizados.
Em outras palavras, a construção da versão de um fato
jurídico pode, quando apoiada em provas e indícios frágeis, valer-
se de técnicas argumentativas, o que, na verdade, não envolve,
num primeiro plano, o que está sendo julgado e permite dizer que
provas e indícios são argumentos produzidos através da pesquisa
e da interpretação do fato, ao contrário dos argumentos que são
resultado das técnicas argumentativas e que apenas são aceitos
como tais devido à pressuposição de que os “empréstimos” são
possíveis e úteis.
A argumentação jurídica, embora difira dos conteúdos dos
raciocínios formais, busca pois, aproximar-se ou orientar-se por
eles porque se pressupõe que a coerência, a coesão e a
congruência possam contribuir com o poder de convencimento, de
forma que, por exemplo, na argumentação jurídica, “Quem critica
um argumento tenderá a pretender que o que tem à sua frente
depende da lógica; a acusação de cometer uma falta de lógica é, em
geral, por sua vez, uma argumentação quase-lógica. A pessoa se
prevalece, com essa acusação, do prestígio do raciocínio rigoroso”.
(PERELMAN, 1996 a, p. 220)
No presente trabalho, a distinção entre argumentos lógicos e
quase-lógicos que faz Perelman não receberá, porém,
considerações mais demoradas, porquanto se entende que, na
prática jurídica, especialmente quando se trata de valores, isso se
torna bastante complexo, precisamente porque a argumentação
jurídica, onde o objetivo não é nem demonstrar, nem descobrir
verdades ou testar hipóteses, mas justificar teses, pode ser
caracterizada, em grandes traços, sempre como quase-lógica.
O que importa, todavia, é observar que um raciocínio
jurídico, para poder usufruir do prestígio do rigor lógico, precisa
adotar procedimentos que deverão dar consistência e credibilidade
à prática, e que podem ser de diferentes níveis:
1. realizar interpretações que sejam aceitáveis e defensáveis,
o que exige do argumentador um sistema de referência
competente e abrangente; [pg. 52]
2. procurar controlar a heterogeneidade lingüística, o que
exige, por sua vez, habilidades do argumentador para definições e
delimitações dos sentidos das palavras;
3. adotar um modelo lógico como orientação.
O estudo, pois, de diferentes técnicas argumentativas que
podem ser úteis à prática jurídica enfatizará sempre os aspectos
relacionados à atividade lingüística e à orientação lógica, e destaca
os seguintes:
4.1 O ARGUMENTO DA COERÊNCIA
Esse primeiro tipo de técnica vale-se do prestígio do rigor
lógico e requer, por isso, uma atividade intensa com e sobre a
linguagem — mais precisamente, de controle e de delimitação dos
sentidos — para, assim, utilizar a coerência como argumento.
A coerência — como já se enfatizou — é uma qualidade
considerada imprescindível a qualquer argumentação, pois não se
aceita a contradição dentro de um raciocínio, ou seja, não se deve
afirmar algo e depois assumir uma outra idéia que negue a
primeira afirmação. Para manter a coerência e utilizá-la como
argumento, é preciso que se assuma um comprometimento com
uma referência socialmente aceita e tomá-la como orientação
rigorosa para a produção de sentidos que não apresentem
contradições.
E isso tem seus motivos: o prestígio do rigor lógico leva a que
a contradição possa ser interpretada, uma vez, como falta de
convicções claras e incapacidade para escolher com segurança a
referência que orienta a atividade, e, por outro lado, como um
desrespeito com o auditório em termos de não lhe facilitar a
compreensão dos objetivos da argumentação, precisamente por
não haver uma organização lógica correta e rigorosa das relações
entre referência e sentidos verbalizados.
Entende-se, por isso, que a falta de coerência, uma vez
denunciada, expõe o argumentador à condenação e ao insucesso:
a frouxidão referencial e a contradição denunciam a incapacidade
de produzir boas interpretações dos fatos, vale dizer, de construir
boas teses. Perde, pois, o argumentador uma das qualidades — se
não a mais importante — que a interação cobra dos participantes,
ou seja, a da credibilidade.
Ser coerente diz, desse modo, respeito à competência tanto
para escolher os conceitos que serão referência para o raciocínio,
como para organizar os argumentos sem que haja contradição
com a referência escolhida. [pg. 53]
Na argumentação jurídica, a referência quase obrigatória é a
lei. Pode, porém, também ser uma jurisprudência ou um conceito
que tenha aceitação social ou uma presunção jurídica, — desde,
porém, que se enquadre nos limites dos modais deônticos. De
qualquer modo, o importante é considerar que a coerência só
poderá ser invocada como argumento quando determinada
referência tem — ou poderá vir a ter — prestígio junto ao
auditório, ou seja, ao invocar a coerência como argumento, o
argumentador se vê diante de duas importantes tarefas:
1. fazer com que a referência escolhida seja aceita pelo
auditório, o que implica saber fazer avaliações preliminares
corretas quanto ao universo referencial aceito pela sociedade e
determinar com competência o sentido desta referência, tendo em
vista o que interessa à argumentação;
2. conduzir o raciocínio de modo a que não haja contradições
em relação à referência, o que representa dominar os processos de
manutenção da coerência, da coesão e da congruência.
Enfim, a técnica que produz o argumento da coerência é
essencialmente uma atividade lingüística que visa à utilização do
prestígio do rigor lógico, ou seja, um recurso em que o
argumentador se ocupa ou em observar o rigor da relação não-
contraditória entre uma referência e as interpretações e
justificativas que por ela se orientam, ou em denunciar a falta
dessa condição na argumentação adversária.
4.2 O ARGUMENTO DA RECIPROCIDADE
Essa técnica argumentativa apóia-se também no prestígio do
rigor lógico, especificamente na propriedade das relações para
construir uma aproximação ou simetria entre dois fatos ou idéias
(ou mesmo valores) de modo a que a semelhança de
características implique que se possa aplicar o mesmo tratamento
ou julgamento a ambos, mesmo se houver uma inversão de
situações ou de posições da simetria inicial.
A atividade do argumentador, nessa técnica de raciocínio,
exige, principalmente, saber interpretar e construir o contexto das
situações, ou seja, é preciso que a aproximação de dois fatos
diferentes se faça pelo que se pode localizar de semelhante neles e
nos elementos contextualizadores. Isso requer, sobremodo, saber
produzir interpretações apropriadas, o que, mais uma vez, enfatiza
a importância de um sistema de referência produtivo e
competente, e, por isso, da linguagem: [pg. 54] para poder
aproveitar uma correlação lógica como se a = b, então b = na
argumentação jurídica, a primeira atividade refere-se à
delimitação conceitual que deverá dar condições para que o
raciocínio se beneficie da relação lógica.
Assim, por exemplo, adotando essa técnica, o argumento
sustentará que, se cabe aos pais dar proteção e abrigo aos filhos
enquanto estes puderem ser considerados dependentes, da
mesma forma caberá aos filhos a responsabilidade de prover as
condições de sobrevivência dos pais quando estes, eventualmente,
atravessarem uma situação em que se puder considerá-los
dependentes. O raciocínio precisa definir, obrigatoriamente, o que
se entende por dependência para que o caráter de reciprocidade
da relação entre pais e filhos possa ser sustentado com apoio no
modelo lógico.
4.3 O ARGUMENTO DA TRANSITIVIDADE
A técnica que permite à argumentação jurídica produzir
determinados argumentos que mantém uma relação de
transitividade, toma como motivação, segundo Perelman (1996),
“(...) uma propriedade formal de certas relações que permite passar
da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos a e b e
entre os termos b e c, à conclusão de que ela existe entre os termos
a e c: as relações de igualdade, de superioridade, de inclusão, de
ascendência são relações transitivas”. (p. 257)
Isso significa que a argumentação jurídica pode buscar como
apoio relações formais de transitividade, desde que se controle a
heterogeneidade lingüística: o objetivo de construir uma relação de
transitividade que não deixe de apresentar o rigor lógico exige
interpretar e demarcar com a precisão possível os sentidos que
substituirão as incógnitas a, b e c.
Por exemplo, embora seja discutível sustentar que “Os
amigos de nossos amigos são nossos amigos”, a idéia pode ser
trabalhada, insistindo que a verdadeira amizade deveria ser
assim. O enunciado pode servir de referência a um raciocínio, o
que quer dizer que este tem fundamento no modelo que sustenta a
transitividade, pois a implicação é uma das mais importantes
relações transitivas e pode ser avaliada socialmente em diferentes
áreas ou práticas sociais.
Assim, o seguinte silogismo se constrói pela relação de
transitividade: [pg. 55]
Não deve ser condenado (= a) aquele que mata em legítima
defesa (= b); ora, João (= c) matou em legítima defesa (= b); logo,
João (= c) não deve ser condenado (= a).
A dificuldade de ordem lingüística reside, em primeiro lugar,
na delimitação do sentido da expressão legítima defesa e, segundo,
adotar a referência para interpretar o ato de João.
4.4 O ARGUMENTO DA COMPARAÇÃO
A técnica que faz da comparação um argumento tem o
objetivo de comparar enquadrando uma imagem (do réu ou da
vítima, por exemplo) ou a versão de um fato (um delito, por
exemplo) dentro duma seqüência hierarquizadora que inclui
outras imagens ou versões.
Cabe ao argumentador a tarefa de fazer as escolhas das
imagens ou versões com as quais organizará a seqüência escalar
que servirá de parâmetro de avaliação, o que, de certa forma,
corresponde à escolha das referências com as quais ele
estruturará o raciocínio. A comparação passa, portanto, a
produzir argumentos, quer seja a favor, quer seja contra o que
está sendo julgado: se se quiser condenar, a escolha, para fazer o
cotejo, deverá privilegiar aquelas imagens (referências) que têm
um conceito elogiável no instituído social. E o inverso ocorrerá
quando o objetivo for o de defender: o cotejo do que está sendo
julgado será feito com o que houver de condenável no imaginário
do auditório.
4.5 O ARGUMENTO DA INCLUSÃO DA PARTE NO TODO
Uma outra técnica de argumentação consiste em apoiar-se
na presunção de que o que vale para o todo também vale para as
partes, o que significa, mais uma vez, a utilização do modelo
lógico-formal (se... então) e o trabalho com o sentido das palavras,
i. é, a técnica, inclui o controle da heterogeneidade de sentidos.
A técnica exige, pois, além da orientação da estrutura “se...
então”, uma intensa atividade de produção de sentidos (ou
controle de sentidos) para a sustentação do “se” porque é preciso
conseguir a adesão à idéia de que a inclusão da parte num todo
em que as partes mantêm um determinado tipo de relações faz
com que cada uma se submeta ao que vale para o todo. [pg. 56]
A produção ou o controle de sentidos refere-se, pois, a
definir o que é o todo, quais são as suas partes e quais são as
relações que elas mantêm entre si de modo a que se submetam ao
todo.
Por exemplo, na argumentação jurídica, é freqüente
encontrar a tese de que, se a lei vale (ou não) para o todo, também
vale (ou não) para cada parte. Parte-se do pressuposto de que o
todo se compõe de partes que têm entre si uma relação de
igualdade, o que, especialmente no Direito, necessita de uma série
de procedimentos interpretativos dos fatos, de modo a que se
convença o auditório de que essa relação lógica é sustentável.
Qualquer deslize ou impropriedade interpretativa fragilizará a
argumentação.
4.6 O ARGUMENTO DA DIVISÃO DO TODO EM PARTES
Trata-se, agora, ao contrário da técnica anterior, não de
tentar demonstrar a inclusão e o submetimento da parte ao todo,
mas de que o todo é a soma das partes: o argumentador busca,
aqui, quando constrói o sentido do todo, apoio no sentido da parte
e no pressuposto de que a soma é a relação que sustenta o todo.
O recurso da definição e da delimitação conceitual ocupa-se, em
primeiro lugar, da parte, para, num segundo momento, baseado
no resultado da atividade inicial, ocupar-se do todo como, por
exemplo, ocorre na relação entre gênero e espécie em que,
segundo Perelman (1996), “Para poder afirmar algo do gênero,
cumpre que esse algo se confirme numa das espécies: o que não faz
parte de nenhuma espécie não faz parte do gênero.” (p. 265).
Essa técnica pode, por isso, produzir argumentos positivos,
valendo-se de todos os efeitos que se pode tirar, primeiro, das
interpretações realizadas, e, depois, das operações de soma, de
subtração e de suas combinações como, por exemplo, tentar
sustentar que uma comunidade está à mercê das drogas (ou de
bandidos etc.), alistando e quantificando exaustivamente os
bairros que acusam o fato, ou que alguém apresenta uma boa (ou
má) conduta social produzindo versões boas (ou más) de atos
isolados seus.
É evidente que, neste tipo de técnica, o argumentador tende
a valer-se especialmente do tratamento estatístico e da formulação
de tabelas, o que significa, novamente, que, após a atividade que
produz e fixa sentidos, atua-se sobre uma pressuposição, ou seja,
a de que a soma, o tratamento estatístico e as tabelas — pelo
prestígio de que desfrutam — podem dar à versão a imagem da
verdade. [pg. 57]
4.7 O ARGUMENTO AD IGNORANTIUM
O argumentador pode, numa situação em que as condições
para uma ampla e demorada discussão estejam prejudicadas,
valer-se da técnica que consiste em formular os argumentos
convenientes à tese, ao mesmo tempo em que desafia — devido ou
à exigüidade de tempo ou a dificuldades momentâneas — o
auditório a apresentar os que se possam contrapor a eles.
No Direito, particularmente, o uso dessa técnica pode ser
muito eficaz, porquanto há, em momentos de análise e intervenção
nos conflitos, situações de impasse ou de dificuldades que
entravam o avanço do julgamento no exato momento em que elas
requerem uma decisão urgente.
4.8 OS ARGUMENTOS A PARI E A CONTRARIO
A concepção de relações ou de inclusão ou de exclusão
orienta essa técnica argumentativa: parte-se, mais uma vez, de
uma característica das ciências lógico-formais onde um elemento
pode, a depender de suas características, ser ou não incluído num
conjunto mais amplo, do que se retira a pressuposição de que
essa inclusão (ou exclusão) que permite hierarquizações e
classificações contribui para uma aproximação do que é do nível
do verdadeiro. Essa técnica que constitui os argumentos a pari e a
contrario é muito utilizada na prática jurídica, como, por exemplo,
no caso em que a lei fala dos direitos dos filhos herdeiros: pelo
argumento a pari tenta-se estender os mesmos às filhas,
precisamente porque a interpretação de filhos diz que a palavra
não se refere, neste caso, somente aos indivíduos do sexo
masculino, mas que o sentido deve ser considerado genérico e, por
isso, inclui os indivíduos de ambos os sexos, o que quer dizer que
a interpretação produziu uma relação de inclusão.10
10 No Brasil, o exemplo dado pode até causar estranheza porque os direitos de herança estão garantidos tanto para filhos como para filhas. Em algumas comunidades da Ásia, porém, esse a pari não ocorre: prevalece o a contrario.
Pelo argumento a contrario, porém, pode-se contestar uma
inclusão ou igualdade, a depender da interpretação da lei, e que
permitirá, então, construir uma relação de exclusão.
Novamente, nos dois tipos de argumentos, a atividade
lingüística é fundamental: a sustentação de uma relação de
inclusão ou de [pg. 58] exclusão só pode ser feita uma vez
determinado um campo semântico onde se cotejam dois (ou mais)
conceitos. A atividade interpretativa — sempre orientada por
interesses bem específicos no caso do Direito — visa a incluir ou
excluir um conceito menos amplo num de maior amplitude,
atendendo ao prestígio que se confere ao processo de
sistematização e de classificação.
Uma conseqüência, pois, interessante (e absurda) é o que
pode acontecer, por exemplo, no julgamento dum estuprador: caso
o seu defensor conseguir definir o conceito de sexualidade
humana como sendo igual (o que significa inclusão) ao de
sexualidade dos animais em geral, é bem possível que — se a
acusação não for competente para desarmar a inclusão — o
estuprador seja absolvido e a vítima passe por culpada por ter
estimulado a que o macho (como na natureza) se tornasse
agressivo e incontrolável na conduta sexual.
4.9 O ARGUMENTO DA ANALOGIA
Uma das relações de igualdade da lógica formal é a analogia
em termos de a = b assim como c = d, o que pode servir como um
recurso para a argumentação jurídica sobre o que Perelman se
manifesta como segue:
Ninguém negou a importância da analogia na conduta da
inteligência. Todavia, reconhecida por todos como um fator
essencial de invenção, foi olhada com desconfiança assim que se
queria transformá-la num meio de prova. (...) Longe de nós a idéia
de que uma analogia não possa servir de ponto de partida para
verificações posteriores; mas nisso ela não se distingue de nenhum
outro raciocínio, pois as conclusões de todos eles sempre podem ser
submetidas a uma nova prova. (...) Todo estudo global da
argumentação deve, pois, incluí-la enquanto elemento de prova.
(PERELMAN, 1996a, p. 423-24)
Na verdade, a analogia é uma comparação que não visa a
diferenciar, mas a estabelecer as semelhanças, o que, de certa
forma, na prática jurídica, aponta para uma igualdade de relações
entre os indivíduos.
Assim, se o argumentador escolher um enunciado como, por
exemplo, “Agredir a mulher é como agredir o membro central da
família e, por isso, a célula da sociedade”, estará construindo uma
relação de [pg. 59] semelhança que, ao fazer a valorização do
instituído social, cria condições de valorizar a família e a mulher,
ao mesmo tempo que reforça a acusação contra um eventual
agressor.
Outro efeito interessante da analogia se dá quando o
argumentador quer desqualificar alguém Comparando-o com o
que é desprezível aos olhos do auditório: cria-se uma associação
entre o indivíduo e o que é desqualificante — efeito da relação de
igualdade que a técnica cultiva como pressuposição.
Ainda um outro aspecto da técnica diz respeito ao cuidado
na construção da analogia, pois
A escolha dos termos de comparação adaptados ao auditório pode
ser um elemento essencial da eficácia de um argumento, mesmo
quando se trata da comparação numericamente especificável:
haverá vantagem, em certos casos, em descrever um país como
tendo nove vezes o tamanho da França em vez de descrevê-lo como
tendo a metade do Brasil. (PERELMAN, 1996a, p. 278)
A escolha dos termos (por exemplo, dos números) é
importante porque cada alteração produz diferentes efeitos de
convencimento, podendo inclusive criar — especialmente no caso
das estatísticas — uma imagem de credibilidade que, como se
sabe, nem sempre se justifica, mas se torna decisiva para o
argumentador conseguir a adesão do auditório.
De qualquer forma, a construção de uma analogia, apesar de
todos os cuidados do argumentador na avaliação do auditório,
sempre revela um caráter de instabilidade ou de fragilidade,
precisamente porque basta alguém não aceitar uma semelhança
estabelecida para que todas as conclusões que dela se retiraram
sejam também rejeitadas.
4.10 O ARGUMENTO DA FIXAÇÃO DE UM GRAU
O recurso a esse argumento permite, através do processo de
comparação, um cotejo entre vários objetos para avaliá-los um em
relação ao outro e estabelecer as diferenças de grau de qualidades
ou de características. A técnica difere do argumento de
identificação como o da analogia porque atua ou com uma
oposição (justo x injusto) ou de ordenamento (mais justo que etc.),
mas mantém a pressuposição de que o ordenamento hierárquico
pode facilitar o acesso ao que é verdadeiro. [pg. 60]
A atividade é essencialmente lingüística, o que pode ser
observado tomando, como exemplo, a disposição bipolar das
cores, onde num extremo da escala se suponha estar o azul e
noutro o amarelo: a mistura das cores pode ser feita partindo de
um ou outro ponto da escala e faz com que, querendo nomear as
cores intermediárias, e partindo do amarelo em direção ao azul,
possam ser utilizadas indistintamente as expressões verde mais
amarelado e verde menos azulado. Tomando como referência o
outro extremo, as expressões que designarão as aproximações
deverão ser verde mais azulado e verde menos amarelado.
Isso quer dizer que as escolhas parecem equivalentes, mas,
na verdade, produzem efeitos diferenciados: o verde é classificado
a partir ou do amarelo ou do azul, o que quer dizer que a escolha
do ex-tremo definidor corresponde, na verdade, à escolha da
referência interpretativa.
Ora, isso leva a que se constate que a argumentação, ao
valer-se dessa técnica, atua, em primeiro lugar, com linguagem
porque, substituindo as cores por outros pares de expressões
como correto e incorreto, justo e injusto, bom e mau, social e anti-
social etc., é necessário definir e delimitar as referências para,
depois, proceder às classificações que, embora contenham os
quantificadores mais e menos, se fazem pela expressão utilizada,
ou seja, correto ou incorreto, justo ou injusto etc.
Os efeitos que os qualificadores produzem são,
evidentemente, diferenciados e explicam tanto a sutileza como a
força do argumento, ainda mais quando o argumentador, ao
trabalhar a escala de mais e menos, se valer da situação e
demarcar o lugar de um superlativo em termos de o verde mais
amarelado ou o verde menos azulado, o verde mais azulado e o
verde menos amarelado, ou, no caso do Direito, o mais justo etc.: o
uso do superlativo produzirá um argumento bastante agressivo
que pode, em determinadas circunstâncias, causar efeitos mais
eficientes do que a simples comparação.
4.11 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO DE MEIOS E FINS
Essa técnica pode ser considerada como um processo que,
de certo modo, também — como as técnicas anteriores — utiliza a
comparação, pois realiza o cotejo entre duas realidades, não
visando, porém, a estabelecer semelhanças ou, a hierarquizar
qualidades, mas, a avaliar os sacrifícios ou meios que a obtenção
de um resultado estaria exigindo. [pg. 61]
Um exemplo típico de argumento que é resultado do
acolhimento da relação entre meio e fim é o contrato de compra e
venda: a proposta de aquisição de um bem requer um
determinado sacrifício (pagamento etc.), ou seja, o fim explica (ou
justifica) a alocação de determinados meios.
Na argumentação jurídica, a invocação de meios necessários
pode tanto servir à acusação como, à defesa, e produz efeitos
importantes como, por exemplo, ocorre com frases como só
acredito em quem sabe respeitar as leis, só acredito em quem sabe
perdoar, só acredito em justiça quando houver rigor na aplicação da
lei, só acredito em diminuição da violência com a implantação da
pena de morte, o que quer dizer que, para conseguir credibilidade,
os meios necessários são saber respeitar as leis, saber perdoar, ser
rigoroso na aplicação lei ou implantar a pena de morte: o
argumentador toma como referência um fim — credibilidade, por
exemplo — que mereça a aprovação do auditório e que, por isso,
deve dar condições a que os meios propostos também sejam
aprovados.
Observa-se, pois, nesta técnica, também a necessidade de
intensa atividade lingüística — interpretar, delimitar, definir etc.
—, o que destaca a sua importância para a argumentação jurídica,
principalmente quando se sabe que a técnica pode gerar
argumentos como Os fins sempre justificam os meios e que, na
tentativa de promover a justiça, criarão, com certeza, empecilhos
indesejáveis e desastrosos, porquanto a pressuposição contida no
enunciado constitui, dentro da heterogeneidade social e da
desigualdade de forças e poderes, a possibilidade de implantação
do autoritarismo e do abuso de poder.
4.12 O ARGUMENTO DA PROBABILIDADE
Uma técnica de argumentação muito usada, mesmo (ou
especialmente) para realidades não-quantificáveis, é a que busca o
modelo lógico-formal para valer-se das estatísticas e do cálculo de
probabilidades que, se nas ciências matemáticas e naturais, têm
sua importância, no Direito, só devem a sua utilização ao status
do procedimento, pois a realidade a ser abordada dificilmente
permite quantificações e cálculos probabilísticos.
Assim, por exemplo, num julgamento, o uso da estatística
em relação ao comportamento humano para determinar a
probabilidade do percentual de responsabilidade ou do indivíduo
ou da sociedade na ocorrência do delito, pode facilitar a tarefa do
argumentador, especialmente [pg. 62] pela imagem de
credibilidade que os números constroem. Trata-se, porém, da
instituição de um tratamento uniforme para uma realidade que é
heterogênea, o que indica os múltiplos usos (e abusos) a que essa
técnica pode servir.
Além disso, não se deve esquecer que qualquer fato —
jurídico ou não — pode ser abordado a partir de diferentes
variáveis ou conceitos operacionais, ou seja, os números e as
estatísticas vão dar “credibilidade” àquilo a que o argumentador
quiser dar, mas não são capazes de produzir, no Direito, as
“verdades” que aparentam produzir, ou seja, a realidade analisada
nos tratamentos estatísticos nunca é uma totalidade, mas um
recorte produzido pela intervenção do analista ao se valer de
categorias operacionais escolhidas por ele: conceitos e sentidos
adotados e produzidos podem e devem, pois, no caso de um
debate — especialmente no Direito — ser relativizados, embora
sejam eficientes como argumentos, desde que a pressuposição de
que a técnica seja válida tenha acolhida pelo auditório.
4.13 O ARGUMENTO DO VÍNCULO CAUSAL
Uma argumentação pode escolher por estabelecer um
vínculo causal entre:
a) dois acontecimentos sucessivos;
b) um acontecimento e uma causa determinante;
c) um acontecimento e seus efeitos prováveis;
No primeiro caso, a argumentação visará à sustentação da
tese de que um acontecimento que sucede imediatamente a outro
tem com este um vínculo causal, ou seja, é conseqüência: se não
houvesse o primeiro, não haveria o segundo.
Já é diferente a relação causal que se pretende sustentar no
segundo caso: um fato ocorrido não tem necessariamente a sua
origem num outro imediatamente anterior, mas num ponto
qualquer que depende da escolha do argumentador. Por isso,
determinar uma causa de um ato permite que o argumentador,
valendo-se da riqueza de seu sistema de referência, construa
argumentos extremamente fortes como, por exemplo, no Direito, o
da necessidade ou inexigibilidade de conduta diferente. [pg. 63]
Pode, porém, como no último caso, o argumentador
construir uma relação causal entre o fato ocorrido e uma situação
futura.
No caso da argumentação jurídica, a técnica que se vale de
determinados procedimentos das ciências lógico-formais, precisa
— como todas as demais técnicas — cuidar da atividade
lingüística, pois fica evidente que um vínculo causal, qualquer que
seja, necessita de interpretações que produzam sentidos que
possam suportar essa relação de causalidade, especialmente,
tomando em consideração que se atua com valorações
diferenciadas que se originam da heterogeneidade referencial.
4.14 O ARGUMENTO PRAGMÁTICO
O argumento pragmático aprecia um acontecimento pelas
conseqüências favoráveis ou desfavoráveis que poderá provocar
nos acontecimentos e na vida prática. Na verdade, “Esse
argumento desempenha um papel a tal ponto essencial na
argumentação que certos autores quiseram ver nele o esquema
único da lógica dos juízos de valor”. (PERELMAN, 1996a, p. 303)
A técnica, pois, através da qual se tomam elementos do nível
pragmático como argumentos é valorizada sobremodo na prática
jurídica porque as atividades referem-se a questões que dizem
respeito quase sempre a problemas das relações sociais e que
envolvem valores.
Por isso, por exemplo, a condenação (ou a absolvição) do réu
pode ser construída, sustentando o que a sentença poderá
significar para o bem-estar da sociedade. Ao propor o sucesso (ou
a felicidade, bem-estar etc.) como critério de avaliação, o
argumentador vale-se da técnica para apoiar-se em determinada
hierarquia de valores que, obviamente, não precisa ser
considerada a única e a melhor, mas que é sempre produto de
uma atividade interpretativa que visa à defesa de interesses
específicos e atua sobre a heterogeneidade referencial.
A força do argumento pragmático está, pois, no fato de ele
dizer respeito aos sentidos da vida, do cotidiano das pessoas, dos
projetos pessoais etc., elementos que pertencem ao nível imediato
do contexto do fato em julgamento e que, às vezes, podem, tendo
em vista os sistemas de referência do auditório, produzir maiores
efeitos do que aquilo que se coloca num horizonte mais distante
como, por exemplo, concepções ideológicas. [pg. 64]
4.15 O ARGUMENTO DO DESPERDÍCIO
A técnica em dizer que uma vez que já se começou a fazer
algo (obra etc.) seria um desperdício não continuá-la, na prática
jurídica, pode significar, por exemplo, que não se deve perder uma
oportunidade de condenar ou de absolver alguém porque já
existem meios para atender os efeitos da decisão/sentença.
Haveria, pois, um desperdício de meios produzidos pela sociedade
e seria inaceitável, por isso, não aplicá-los ou utilizá-los, o que
possibilita que a criação e a manutenção da polícia, do exército,
do sistema carcerário etc. possam ser invocadas como argumentos
para sustentar a idéia de que é um desperdício de custos querer,
num dado momento, por razões diversas, desativar ou
desconsiderar o emprego do que já foi criado.
4.16 O ARGUMENTO DA DIREÇÃO
Basear-se na concepção que pressupõe que os fatos e a
realidade se constituem por etapas que mantêm entre si uma
relação de causa e efeito, refere-se à técnica da qual resultam,
como argumentos, as considerações contra ou a favor da sucessão
de etapas (prováveis) que um fato poderá gerar: é o que orienta o
argumento da direção.
Por exemplo, no Direito, quando estiver em discussão o
controle da violência, o argumento pode dizer que, se nós vamos
ceder desta vez, deveremos ceder um pouco mais na próxima, e
sabe Deus onde vamos parar.
Enfim, o argumento da direção concebe a História como uma
linearidade que se sustenta por relações lógicas e desconsidera a
possibilidade de que, fora da seqüência de etapas, possa existir
algo que explique melhor um determinado acontecimento.
4.17 O ARGUMENTO QUE RELACIONA ATO E PESSOA
Esse tipo de argumento tem especial importância no Direito,
porque caracteriza uma presunção jurídica que diz que o valor de
um ato revela o valor da pessoa (diferente da presunção religiosa,
por exemplo, que considera que cada pessoa vale mais do que o
pior de seus atos). [pg. 65]
A dificuldade da invocação ou da sustentação dessa relação
entre ato e pessoa diz respeito à questão da subjetividade, isto é,
saber o que é social e o que é de ordem pessoal nas motivações e
determinações dos atos que os indivíduos realizam.
Por exemplo, se o valor do ato determina apenas o valor da
pessoa quer-se dizer que a responsabilidade do ato é inteiramente
de seu autor. A sociedade, nessa concepção, não exerce nenhuma
pressão sobre as condutas, o que, evidentemente, é questionável.
A concepção inversa igualmente deve ser considerada um equívoco
porque significa afirmar que o indivíduo não tem nenhuma
responsabilidade por seus atos.
A complexidade reside, evidentemente, em conseguir
demonstrar ou quantificar o grau de responsabilidade do
indivíduo e da sociedade, o que representa, contudo, a condição
para que a técnica possa ser utilizada para a produção de
argumentos tanto para a defesa como para a acusação do réu.
4.18 O ARGUMENTO DA AUTORIDADE
O instituído social prevê, entre os valores que protege, um
destaque especial para as falas de autoridade, ou seja, valoriza as
falas de acordo com o prestígio do lugar social que os indivíduos
ocupam.
Esse prestígio pode estar ligado não só à força e poder de
determinados segmentos sociais, mas também, à importância que
se dá a certas atividades acadêmicas e profissionais.
O argumento da autoridade parte, assim, do pressuposto de
que a citação de outrem possibilita usar o prestígio e a autoridade
do enunciante citado, valorizando o citado como argumento. Para
conseguir a adesão a uma tese, o argumentador busca, pois, dar à
própria fala o prestígio e a autoridade de outrem, citando o que
entende como conveniente à sustentação que está fazendo.
Para Perelman, “...existe uma série de argumentos cujo
alcance é totalmente condicionado pelo prestígio. A palavra de
honra, dada por alguém como única prova de uma asserção,
dependerá da opinião que se tem dessa pessoa como homem de
honra...”. (1996a, p. 347)
Por isso, investir no prestígio ou na autoridade da fala de
outrem pode até ser criticado como procedimento que busca
sustentar uma tese, [pg. 66] mas isso leva Perelman, quando se
refere à estratégia muito utilizada no Direito, a afirmar:
Mas não é uma ilusão deplorável crer que os juristas se ocupam
unicamente com a verdade, e não com justiça nem com paz social?
Ora, a busca da justiça, a manutenção de uma ordem eqüitativa,
da confiança social, não podem deixar de lado as considerações
fundamentadas na existência de uma tradição jurídica, a qual se
manifesta tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Para atestar
a existência de semelhante tradição, o recurso ao argumento de
autoridade é inevitável. (Op. cit., p. 349)
A citação, contudo, não serve apenas para valer-se do
prestígio de outrem mas também pode ter por objetivo
desautorizar e desvalorizar determinados argumentos de alguém a
quem se busque imputar uma falta de autoridade: a técnica pode,
pois, tanto servir para reforçar como desvalorizar uma atividade
argumentativa e requer, por isso, que o indivíduo citante saiba
não só interpretar mas também avaliar corretamente as
valorizações sociais das falas ou linguagens, fazer os recortes
convenientes e integrá-los de modo a que eles produzam os
melhores efeitos.
Para Maingueneau (1989), “Aí reside toda a ambigüidade do
distanciamento: o locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o
não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como
‘autoridade’ que protege a asserção. Pode-se tanto dizer que ‘o que
enuncio é verdade porque não sou eu que o digo’, quanto o
contrário”, (p. 86)11.
11 Além dos trabalhos de Maingueneau, existem inúmeros outros estudos interessantes (BAKHTIN, 1986, por exemplo) que se ocupam dessa relação entre uma fala citante e outra citada, o que deve ser entendido como sinal de que as formas e os efeitos são variados e ricos.
O recurso da citação, no Direito, busca — quase sempre —
trabalhar com a exemplificação: toma-se um julgamento já
ocorrido como orientação para a interpretação e avaliação duma
nova situação. Isso pode ser interessante até o limite em que se
puder sustentar que a distância histórica não torna imprópria a
comparação dos dois momentos e, por isso, será problemático, por
exemplo, considerar uma jurisprudência sempre atualizada, em
especial, quando se sabe que houve época em que a defesa de
alguns tipos de crimes acolhia a justificativa de crime contra a
honra masculina. Ou seja, as interpretações e os julgamentos dos
fatos não são [pg. 67] estáticos e, por isso, nem sempre a citação
auxilia o argumentador na produção da versão e na sustentação
da tese.
4.19 O ARGUMENTO DA RELAÇÃO ENTRE ATO E ESSÊNCIA
Um modo de explicar (ou de interpretar) a realidade busca
associar e explicar fatos particulares como manifestações de uma
essência, como se determinados acontecimentos pudessem ser
agrupados a partir de uma semelhança ou um ponto comum. Isso
pode servir de base, especialmente na argumentação jurídica —
onde a essência equivale ao que é considerado normal e legal —
para construir, por exemplo, a noção de que o delito se opõe a
uma essência, ou é um abuso que se faz contra ela: o que é
normal é de acordo com a essência, e o delito é um abuso porque
coloca-se contra o normal.
Na verdade, a pressuposição que dá lugar a essa técnica
argumentativa pode também servir à utilização duma estratégia
mistificadora, como se poderá observar no próximo capítulo.
4.20 O ARGUMENTO DO EXEMPLO
O exemplo é um argumento, mas não uma prova: é um
recurso para sustentar uma tese, especialmente na construção de
uma generalização e, “Seja qual for a maneira pela qual o exemplo
é apresentado, em qualquer área que se desenvolva a
argumentação, o exemplo invocado deverá, para ser tomado como
tal, usufruir estatuto de fato, pelo menos provisoriamente; a grande
vantagem de sua utilização é dirigir a atenção a esse estatuto”.
(PERELMAN, 1996a, p. 402)
O estatuto, pois, do argumento do exemplo deve-se a uma
pressuposição, ou seja, a que diz que, para os exemplos
conduzirem a uma generalização convincente, é preciso que eles
suportem, além de uma vinculação estreita entre si, a idéia de que
da generalização que eles possibilitam se pode extrair uma
verdade.
A generalização é, pois, um processo em que o
argumentador, valendo-se de versões (sentidos) de fatos e
situações particulares, constrói uma idéia geral, como se, através
desse processo, pudesse alcançar uma verdade irrefutável. Em
outros termos, ela é o processo que agrupa várias [pg. 68]
singularidades numa categoria mais ampla e geral, para o que
elimina, por abstração, os traços singularizantes e mantém
apenas os traços genéricos.
Embora no raciocínio formal isso até possa ser admitido, na
prática jurídica a generalização assume enormes riscos, pois ela
se realiza em função da heterogeneidade social: como superar o
conflito dos inúmeros sistemas de referência sem incorrer num
processo de hierarquização e valoração dos segmentos sociais —
vale dizer, acionar o processo ideológico?
Como recurso, numa disputa jurídica, pode, contudo, a
generalização apresentar — especialmente se o argumentador fizer
corretas avaliações do auditório — efeitos favoráveis porque,
Em direito, notadamente, enquanto se reserva às vezes o nome de
precedente à primeira decisão tomada segundo certa interpretação
à lei, o alcance desse julgamento pode só ser depreendido aos pou-
cos, depois de decisões posteriores. Assim, o fato de contentar-se
com um único exemplo na argumentação parece indicar que não se
percebe nenhuma dúvida quanto ao modo de generalizar. (Op. cit.,
p. 404)
Isso quer dizer que a maior dificuldade da exemplificação diz
respeito ao trabalho com a linguagem: os sentidos extraídos dos
exemplos devem servir à aprovação da generalização proposta, o
que, em qualquer raciocínio e, sobremodo no Direito, é
fundamental.
4.21 O ARGUMENTO DA ILUSTRAÇÃO
Diferente do argumento do exemplo, onde se busca agrupar
diferentes versões de fatos de modo a construir uma regra, a
técnica da ilustração tem a função de reforçar a adesão a uma
regra conhecida e já aceita — escolhida como referência para a
sustentação duma tese.
A atividade consiste em enriquecer o que resultou dum
processo de generalização com a exposição de fotos, filmes,
gravações, quadros etc. que não só esclarecem a regra mas
também demonstram a sua aplicabilidade, o que leva a que se
considere a ilustração um tipo de argumento. [pg. 69]
O argumento da ilustração pode até ser duvidoso, mas, ao
impressionar a imaginação, provoca efeitos de convencimento
muito fortes, porquanto oferece singularidades ilustrativas, isto é,
elementos de reforço a concepções ou regras que já pertencem ao
instituto social.
Para finalizar, é preciso ter claro que, apesar da força e da
diversidade de argumentos, só eles não garantem a adesão do
auditório a teses e o acolhimento de justificativas que as decisões
e as sentenças exigem no Direito: há, ainda, um outro conjunto de
atividades que o argumentador precisa realizar, e que dizem
respeito a preencher as condições necessárias para que a
argumentação possa realizar-se enquanto interação, e, assim,
possam ser produzidos os efeitos desejados. É preciso, abordar,
neste momento, as estratégias de argumentação entendidas
como estratégias de interação. [pg. 70]
5
ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS
Todo ato de fala — e, por isso, também a argumentação —
pode ser entendido como uma atividade interativa porque envolve
ações diferenciadas, mas interdependentes, de um enunciante e
de um auditório. Em outros termos, na interação, a cada ação
corresponde uma reação, o que implica dizer que, em grande
parte, as ações de quem fala são determinadas pelas reações
efetivas ou prováveis do auditório, embora não se deva
desconsiderar os privilégios de delimitação dos sentidos de que
usufrui o enunciante: ele dispõe de espaço e tempo para alocar
inúmeros recursos, sejam eles lingüísticos, discursivos ou lógicos,
para orientar e influir na produção dos sentidos que lhe interessa
fixar como válidos. E como há objetivos e/ou interesses envolvidos
na argumentação, cabe imaginar disputas e confrontos, o que
implica falar em estratégias argumentativas, entendidas como
procedimentos que podem facilitar o convencimento e a adesão.
Nestes termos, a crítica que Sampaio Ferraz Jr. (1997) faz a
Perelman, dizendo que a argumentação jurídica, assim como é
abordada por ele, dá a falsa impressão de que todos os efeitos do
ato argumentativo parecem se originar da atividade do
enunciante, é pertinente: é preciso considerar a argumentação
jurídica um processo que, embora mantenha semelhanças com
outros processos interativos, tem peculiaridades que a diferenciam
dos demais tipos de interações.
Conceber a argumentação jurídica como interação resulta
numa compreensão mais ampla não só do processo em si, mas
também, da especificidade da atividade, porquanto o enunciante
obrigatoriamente devera dar atenção especial não ao interlocutor
com quem faz as alternâncias de atividade, mas a um terceiro
elemento a quem caberá recolher das [pg. 71] atividades dos
primeiros dois atores os elementos necessários para a formulação
da sentença.
Assim, em primeiro lugar, é preciso considerar que o
enunciante atua orientado por um sistema de referência que tem
dimensões sociais, sim, mas também individuais, motivo por que é
único. Através dele produzir-se-ão, pois, sentidos que, embora
tenham marcas das determinações sociais, têm dimensões
pessoais e singulares.
O auditório, por sua vez, no momento em que se apropria do
que é enunciado, processa os enunciados com sistemas de
referência próprios e únicos, o que implica retomar o que se disse
sobre a heterogeneidade lingüística: em qualquer tipo de interação
discursiva é preciso atuar sobre a diversidade para que haja uma
aproximação dos sistemas de referência e, com isso, o ato obtenha
sucesso.
Outrossim, é imprescindível lembrar o que se disse sobre a
importância do contexto na determinação das interpretações
possíveis: qualquer tipo de interação requer dos participantes
produção e/ou conhecimento do contexto em que se dará o ato.
Ora, como os sistemas de referência apresentam sempre
dimensões sociais e individuais, a argumentação precisa, em
todas as suas etapas, considerar também os dois níveis do
contexto em que se vai dar a interação: no plano imediato tornar-
se-á em consideração o auditório, e no mediato, o universo social,
o que quer dizer que as estratégias argumentativas deverão atuar
não apenas sobre a diversidade individual mas também sobre o
horizonte mais amplo em que se inscrevem as ideologias que têm,
como vertente, os conflitos sociais.
Em outros termos, o que se disse implica incluir também os
valores sociais no contexto em que se dão as interações, o que leva
a que tanto o enunciante como o auditório realizem suas ações
sempre valorizadas dentro do que determinado segmento social
considera aceitável e verossímil.
Por isso, não só nas verbalizações da interação
argumentativa instalam-se, manifestações ou sinais de
posicionamentos ideológicos e de julgamento, mas também nas
interpretações do auditório, conforme se pode encontrar no texto
de Bakhtin que diz: “Toda a essência da apreensão apreciativa da
enunciação de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente
significativo tem sua expressão do discurso interior. Aquele que
apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado de
palavra, mas, ao contrário, um ser cheio de palavras interiores”.
(BAKHTIN, 1986, p. 147) [pg. 72]
Compreende-se, pois, baseado em Bakhtin, que o sistema de
referência do indivíduo também se apropria do contexto mais
amplo — o ideológico, por exemplo — dentro de cujos limites
orientadores se realizam as interpretações e as avaliações que, por
sua vez, destacam a importância de determinadas estratégias de
atuação no processo interativo: elas. diante do conflito de sistemas
de referência, precisam desobstruir obstáculos e construir pontes
onde os indivíduos se encontram e precisam conviver com as suas
diferenças.
Desse modo, se se considerar a heterogeneidade de sentidos
como uma das vertentes dos conflitos sociais, compreende-se por
que tudo que se diz implica, de certa forma, a obrigação de ter
credibilidade ou de ser possível de ser provado, o que, na
argumentação jurídica, é fundamental porquanto se tem como
objetivo a adesão do auditório.
Quando se trata da argumentação jurídica, pois, a questão
da heterogeneidade de sentidos e a necessidade de provar criam
para o processo interativo dimensões bem específicas, já que o
ritual prevê a oposição de versões, na presunção de que, dessa
oposição, se possam retirar os elementos suficientes para formular
uma sentença que promova a justiça, o que, evidentemente,
representa maiores complexidades — pelos efeitos que produz —
do que ocorre em qualquer outro tipo de interação.
Aliás, a própria expressão promover a justiça, pela heteroge-
neidade de sentidos que comporta, dimensiona as complexidades:
se, nas situações comunicativas em geral, há uma espécie de
negociação de sentidos, na interação jurídica os sentidos se opõem
por determinação do ritual e as diferenças que apresentam entre
si não devem ser minimizadas, mas garantidas para que o
distanciamento possa abrir um leque de alternativas e, assim,
melhores condições da promoção de justiça.
Sampaio Ferraz Jr. (1997) qualifica toda a questão que
acolhe alternativas como um dubium, dizendo:
Qualificar uma questão como dubium significa, pois, concebê-la
como complexidade, isto é, possibilidades em alternativa, variação,
ausência de consenso. Essa complexidade, entretanto, ocorre
apenas em relação a uma conexão compreensiva já existente, mas
que, dada a participação do ouvinte, não mediatiza uma certeza,
ao contrário, abre um leque de soluções. (p. 17)
Isso quer dizer que as alternativas, na produção da sentença
que resulta da interação argumentativa, não são em número
infinito: as teses [pg. 73] não só podem ser questionadas como
também podem ser consideradas inadequadas, impróprias,
improcedentes, fora do imaginário social etc., o que permite
entender que tudo isso,
(...) faz da situação comunicativa jurídica uma relação insegura e
instável. Essa insegurança e instabilidade é incômoda e tende a
ser reduzida. O discurso jurídico revela-se, assim, como um
instrumento básico dessa redução. Por meio dele são estabelecidas
as regras do tipo ‘se você puxar da espada eu também puxo’, que
vão, então, regular os comportamentos permitidos. Essas regras
permitem que as partes estabeleçam entre si modalidades diversas
de ação e reação em termos de que toda ação lingüística é
questionável, mas, ao mesmo tempo, garantem que isso possa
ocorrei: (FERRAZ JR., 1997, p. 62)
O Direito, pois, promove e garante o contraditório, ou seja, a
diversidade de sentidos não é um obstáculo, no processo
interativo, mas uma condição de promoção da justiça. E isso é
peculiar da interação jurídica: as partes que representam o
conflito não atuam uma para a outra, mas têm sua atenção
voltada, enquanto atuam, para um terceiro elemento — aquele a
quem caberá a produção da sentença.
O que se diz aqui é que, diferente do que ocorre nas
interações discursivas que visam à informação e à comunicação,
na argumentação jurídica, as regras prevêem alternância nos
turnos de atuação das partes, onde as ações e as reações têm
objetivos bem precisos e peculiares: ao enunciante não interessa
conseguir a adesão de seu interlocutor direto (o defensor da outra
parte envolvida no conflito), mas da parte do auditório que não
participa na alternância dos turnos de argumentação. É esse
auditório — que não manifesta, no primeiro momento do ritual, as
suas reações — que requer a atenção especial e cuidadosa,
precisamente porque é ele quase que só escuta, pois o resultado
de suas reações apenas se manifesta no ato da produção da
sentença.
Em outros termos, o recurso aos modelos lógicos, se pode
ser considerado imprescindível à estruturação do raciocínio
jurídico, não e, contudo, suficiente para garantir o sucesso da
argumentação: porque o ato argumentativo é interação discursiva,
faz-se necessário destacar a importância de alguns procedimentos
— entre os quais se incluem a avaliação, a adaptação, a persuasão
e a sedução — que uma interação requer para ser bem-sucedida.
Interessa, pois, considerar, como parte mais importante da
interação jurídica, o auditório, esse terceiro elemento, embora não
se deva, [pg. 74] evidentemente, perder de vista o adversário, pois
é dele que partem os atos que visam a fragilizar as teses e os
argumentos apresentados.
Ora, isso representa a necessidade de se considerar como
estratégias uma série de atividades que antecedem a
argumentação propriamente dita, pois o enunciante não pode
desconhecer
(...) uma constelação de relacionamentos em que as táticas do
discurso configuram estratégias por meio das quais cada parte
está obrigada não só a levar em conta a estratégia da outra mas
também a planejar o seu comportamento, não apenas em função de
cada procedimento singular, mas, sobretudo, em função de
procedimentos futuros. (FERRAZ JR.. 1997, p. 66)
Enfim, parece útil para o estudioso, pelos motivos expostos,
abordar a argumentação jurídica também como interação,
mormente, conforme Sampaio Ferraz Jr.
Quando nos perguntamos em que sentido, de que modo e em que li-
mites a participação dos diversos interessados na discussão
jurídica ocorre, parece-nos inadmissível que, em referência a
qualquer deles, trate-se de juizes, advogados, funcionários
administrativos, cidadãos em geral etc., aquela participação seja,
em princípio, a de um ouvinte passivo. Concepções dessa espécie,
se é que são ainda radicalmente defendidas, constituem uma
constante ilusão. (1997, p. 68)
Em resumo:
A atividade argumentativa só é possível porque há, como
conseqüência da heterogeneidade social, múltiplos sistemas de
referência que podem conduzir a diferentes interpretações que
geram as diferenças de sentido.
Considerando que há diferenças de interpretação e, por isso,
de sentidos, tanto de ordem pessoal como de, social, que, por um
lado, constituem o conflito e, por outro, abrem as possibilidades
de se argumentar, é Preciso também levar em conta que,
forçosamente, existirão atividades que antecedem a argumentação
e cujo objetivo é afastar ou minimizar o que poderia,
eventualmente, dificultar o sucesso do ato. Melhor: se o uso da
linguagem tem uma relação muito consistente com o exercício de
um poder, é preciso não só falar em conflito de sentidos mas
também em disputa [pg. 75] pelos procedimentos e lugares sociais
que fixam os sentidos e, por isso, em avaliações preliminares da
situação e das circunstâncias da disputa.
Conseguir a adesão dos indivíduos e dos grupos sociais a
uma determinada idéia ou tese representa, pois, também a
possibilidade de intervenção na hierarquização de sistemas de
referência, na distribuição de poderes e na valorização
diferenciada de lugares sociais. Argumentar, pois, é uma interação
cuja motivação são as diferenças que resultam de diferentes
sistemas de referência e requer, além de uma atividade lógica,
concebê-la como uma disputa, o que significa que as dificuldades
de convencimento aumentam ou diminuem de acordo com as
proporções do conflito de sistemas de referência.
Assim, diante do que representa a interação, o
argumentador deve dominar estratégias que não se resumem
apenas a conseguir a atenção do auditório mas que também dizem
respeito à criação duma imagem positiva de si mesmo e à
produção de efeitos que atuem sobre a força dos argumentos
selecionados para a sua atividade.
Todo esse cuidado com as estratégias argumentativas
depende, porém, de avaliações preliminares que resultam de
perguntas como as seguintes:
— quem sou eu para atuar assim?
— quem é meu auditório para que eu atue assim?
— que pensará o meu auditório de mim quando eu atuar
assim?
— que argumentos e artimanhas poderá usar meu
adversário para eu atuar assim?
— quais são as circunstâncias sociais, históricas, culturais
etc. que me levam a atuar assim?
As perguntas, conforme se pode verificar, dizem respeito à
necessidade de se dominar — porque se visa ao sucesso da
atividade — não só aquilo que se diz mas também as estratégias
argumentativas e que correspondem ao “assim” das perguntas, o
que quer dizer que, além dos argumentos, a argumentação faz do
modo como se atua um outro recurso para produzir os efeitos
desejados: são as estratégias argumentativas.
Além disso, as perguntas apontam para a necessidade de o
argumentador conhecer também os sistemas de referência do
auditório, tendo em vista que a sua atividade deve levar em conta
as possíveis diferenças e considerá-las obstáculos a serem
superados. [pg. 76]
Como, porém, descobrir um sistema de referência se ele não
é verbalizado ou denunciado explicitamente?
Se o que se disse em termos de pressão das determinações
sociais sobre o sistema que orienta as interpretações (e
julgamentos) do indivíduo é sustentável, então a atividade de
reconhecimento do auditório obrigatoriamente deve contemplar
uma pesquisa sobre os lugares sociais que os indivíduos
freqüentam e ocupam. Isso deve — se o argumentador tiver
conhecimentos suficientes sobre como são as condutas sociais
nestes espaços — fornecer elementos para construir os contornos
dos sistemas de referência do auditório.
A avaliação ficará enriquecida se houver condições de se
apropriar, eventualmente, dos textos — orais e/ou escritos — que
o auditório produziu, porque a linguagem — pela presença de
determinados conceitos e valores — revela o sistema de referência
do enunciante.
Em outros termos, o argumentador precisa:
— conhecer-se a si próprio, não só no que diz respeito às
capacidades como também, em relação às deficiências.
Outrossim, o argumentador precisa, além de ter os
argumentos apropriados à situação, saber onde e como
atua melhor na atividade de convencer o seu auditório, o
que implica conhecer a sua competência para, valendo-se
da linguagem, produzir os efeitos que interessam à
sustentação;
— fazer uma avaliação correta dos sistemas de referência
dos que compõem o auditório, o que, no caso do Direito,
significa saber avaliar condutas e procedimentos do juiz,
do adversário e dos jurados. Essa avaliação requer, em
especial, ter conhecimentos sobre as orientações ou as
referências dos diferentes segmentos sociais e que se
configuram a partir de profissão, gênero, raça, religião,
idade, costumes, imaginário social etc.;
— ter capacidade para, feitas as avaliações preliminares,
desobstruir eventuais bloqueios ou obstáculos do
auditório. Em outros termos, o argumentador precisa
dominar procedimentos que possam levar à aproximação
ou à convivência de diferentes sistemas de referência;
— ter capacidade de prever — até onde for possível — os
argumentos (e também os truques e as artimanhas) de
que poderá se valer o adversário. No caso do Direito, por
exemplo, seria [pg. 77] recomendável — já que não é
possível fazer uma previsão exata de como o adversário
atuará — que o argumentador estivesse preparado para
utilizar diferentes estratégias, de acordo com o que o
embate viesse a exigir em termos de maior ou menor grau
de agressividade ou ponderação etc.;
— dominar conhecimentos sobre a situação, tanto imediata
como mediata, em que ocorre a argumentação,
precisamente porque as determinações históricas, sociais
e culturais valorizam ora uma, ora outra estratégia.
O resultado dessas avaliações preliminares — que também
são resultado de processos interpretativos — é, pois,
extremamente importante porque orientará a atividade do
indivíduo em termos de como atuar, contra quem, sobre o que,
para quem e em que circunstâncias.
E isso diz respeito à escolha de estratégias para uma
atuação mais ou menos radicalizadora, mais ou menos
agressiva/concessiva, mais ou menos formal, mais ou menos
emocional etc., na interação.
Essas estratégias, embora todas se valham de recursos
lingüísticos, se diferenciam a partir das avaliações e podem ser
agrupadas como segue:
1. estratégias de contextualização que dizem respeito à
atuação sobre os contextos imediato e mediato que envolvem a
interação;
2. estratégias discursivas que se organizam a partir de
escolhas lingüísticas (itens lexicais, modalizadores e operadores
argumentativos) e de estruturação do discurso para produzir
determinados (e desejados) efeitos de sentido.
5.1 ESTRATÉGIAS (DES)CONTEXTUALIZADORAS
As atividades de contextualização são estratégias que visam
a observar e a construir ou adaptar o contexto que influenciará a
interpretação que fará o auditório do fato em julgamento. Por isso,
a contextualização deverá ser considerada fundamental à
sustentação duma tese, já que, num primeiro momento, exige-se
do argumentador uma atuação voltada sobre si mesmo, em termos
de avaliação das escolhas da versão do fato, dos argumentos e das
estratégias, em relação ao universo referencial em que se inserirá
a argumentação: é a adaptação do enunciante ao contexto, de
modo a que sua atuação tenha aceitação junto ao auditório. [pg.
78]
A segunda atividade de contextualização ocupa-se com a
preparação do auditório com o propósito de desobstruir e afastar
dificuldades para o sucesso da argumentação.
Outrossim, ao contrário da contextualização, há
procedimentos que propositadamente procuram afastar elementos
do contexto, ou seja, há também estratégias de
descontextualização.
Considerando-se que toda e qualquer versão implica, além
da interpretação do ato, alocar elementos contextualizadores,
existem procedimentos estratégicos que minimizam os efeitos de
versões contrárias aos interesses que defende o argumentador,
contextualizando ou descontextualizando essas versões, o que se
observa freqüentemente nas reportagens jornalísticas: os recortes
e as omissões de elementos do contexto redesenham o fato e
interferem na produção dos sentidos e seus efeitos.
Na prática jurídica, por exemplo, contextualizar ou
descontextualizar a afirmação de que “João matou uma pessoa”
representa produzir efeitos de sentido absolutamente diferentes
junto ao auditório, isto é, a contextualização pode levar à
interpretação de que o ato foi de legítima defesa e desarmar o que
o enunciado, descontextualizado, produz de efeitos negativos.
Para compreender, porém, melhor as dimensões do que se
entende por contexto, e, por conseguinte, as estratégias de
contextualização, é preciso lembrar, mais uma vez, que os
sistemas de referência têm determinações que se põem em dois
planos distintos e interdependentes: um, diz do contexto histórico,
social e cultural, e o outro, das dimensões pessoais e singulares.
Tal concepção leva a entender que as atividades
contextualizadoras que realiza o enunciante em função do
auditório também obedecerá a essa dupla dimensão: no plano
imediato, o sistema de referência do argumentador fará as
concessões estratégicas possíveis e, no contexto mediato, a partir
do conhecimento das determinações históricas, sociais e culturais
— e que pressupõe conhecimento da gênese dos conflitos e das
ideologias — demarcará os limites dos universos possíveis em que
poderá se dar a argumentação.
5.1.1 A adaptação do enunciante ao auditório
A primeira estratégia contextualizadora se constrói tomando
como referência a avaliação feita pelo argumentador sobre como a
sua atuação deverá se dar em relação ao contexto que diz
respeito ao universo histórico, social e referencial do auditório, e
visa a, através de uma [pg. 79] série de procedimentos
adaptativos, construir um clima de confiabilidade e de
espontaneidade, ou seja, o argumentador atuará,
preliminarmente, de modo a que a versão do fato e os argumentos
que utilizará na sustentação da tese, encontrem um contexto
favorável em termos de condições de aceitabilidade e de
credibilidade, o que quer dizer que a concretização dos objetivos
do ato interativo só ocorrerá se se conseguir inspirar
credibilidade12 junto ao auditório.
12 A credibilidade de um discurso é uma qualidade desejada e que resulta, primeiro, da coerência entre o que o indivíduo diz e os outros atos seus. Em segundo lugar, a credibilidade do argumentador também depende da clareza e da coerência das referências que orientam todos os seus atos, incluído o uso da linguagem.
O que se quer enfatizar é que a verossimilhança que deve
dar força à versão que apoiará a tese depende, em grande parte,
da competência do argumentador para construir, orientando-se
pelo referencial que compõe o instituído social de que o auditório é
representante, uma imagem de si que sugira confiança e
seriedade. Em outros termos, o sucesso da interação
argumentativa depende, fundamentalmente, do clima de
confiabilidade em que se realizam as atividades dos
participantes.13
13 A importância do clima de credibilidade que gera uma imagem pode-se observar com mais clareza no processo de sedução, onde o sedutor só consegue aproximar-se de quem deve ser seduzido, se se apresentar como pessoa em que se pode depositar a maior confiança. Os artifícios do sedutor constroem, contudo, uma credibilidade precária, pois, consumada a sedução, acaba o jogo de se fazer passar por merecedor de confiança.
A atividade interativa preparatória visa, enfim, através de
uma série de estratégias, à construção da garantia de que a
proposta das delimitações conceituais das referências escolhidas
pelo enunciante podem ser aceitas porque ele parece ser confiável
e capaz de apresentar provas ou argumentos convincentes.
Em outros termos, o argumentador deve partir do
pressuposto de que não são quaisquer tipos de interpretação e de
julgamento que serão acolhidos como verossímeis e aceitáveis,
mesmo que os argumentos e a estruturação lógica do raciocínio
sejam irretocáveis do ponto de vista técnico: trata-se, na
argumentação jurídica, de valores gerados pelos deônticos que
fixam o proibido, o permitido e o obrigatório, o que explica os
cuidados iniciais que deve ter o argumentador tanto com o
horizonte histórico e social como, com o auditório imediato onde,
necessariamente se reflete o contexto mediato.
Na verdade, a inobservância dos dois planos de contexto
criará riscos enormes para o argumentador porque poderá
destruir a imagem de [pg. 80] credibilidade e criar bloqueios de
difícil transposição, ou mesmo a rejeição do auditório.
Por exemplo, se, no plano mediato do contexto, o
argumentador não souber avaliar o tipo e as dimensões do
horizonte ideológico que envolve o fato em julgamento, também
não saberá entender as razões por que seus argumentos não têm
acolhida junto ao auditório.
É importante, aqui, lembrar a postura de Bakhtin (1986)
quando afirma que a palavra é “marcada pelo horizonte social de
uma época e de um grupo social determinados” (p. 44), motivo por
que não se pode “separar a ideologia da realidade material do
signo” (p. 44), ou seja, “o sentido da palavra é totalmente
determinado por seu contexto” (p. 106).
Assim, essas estratégias de contextualização que têm por
objetivo principal fazer com que o argumentador tenha
credibilidade comportam, sempre, cuidados de adaptação aos dois
níveis do contexto, mesmo porque a confiança representa um
crédito para a aceitação também de outras estratégias, além dos
argumentos, evidentemente.
Ora, como o modo de argumentação é importante para
maximizar ou minimizar os efeitos dos argumentos apresentados,
entende-se por que se exige competência do argumentador para a
execução das diferentes estratégias de contextualização: quanto ao
contexto mediato, é importante construir um horizonte conceitual
e avaliativo que não se oponha ao que envolve e determina os
sistemas de referência do auditório — atividade que deverá
conduzir-se de modo a que, por exemplo, as determinações
ideológicas que (Cf. BAKHTIN, 1986) se fazem presentes em
qualquer tipo de discurso, sejam minimizadas ao máximo como
obstáculo.
Já no plano imediato, uma das estratégias diz que, para
criar a imagem de credibilidade e seriedade, deve, no Direito,
haver o cuidado com a apresentação pessoal: a roupa deve ser
formal e discreta e a aparência geral não deve sugerir desleixo ou
falta de cuidados — aliás, essa é uma orientação fundamental que
faz parte do ethos da prática jurídica.
Além disso, é preferível trabalhar com uma linguagem não
muito agressiva, e onde estejam presentes mais a insinuação, a
reticência, o eufemismo, a moderação etc., porque uma postura
radical e extremada sempre pode dar a entender que o enunciante
é arrogante ou inseguro, e, por isso, suas avaliações e
interpretações não merecem crédito, ou seja, a agressividade
exagerada pode sugerir que ela resulta da incapacidade de provar.
[pg. 81]
É evidente que haverá auditórios, fatos e circunstâncias que
poderão exigir uma imagem de revolta e de radicalização, quando
então é recomendável trabalhar com uma linguagem recheada de
hipérboles.
Outra adaptação que o argumentador deve fazer em relação
ao auditório é a da linguagem, em termos de escolha do grau de
(in)formalidade e registro: não adianta dirigir-se a alguém se o
repertório lingüístico escolhido exige um esforço demasiado
grande, pois poderá haver não só dificuldades de compreensão
como também prejudicará a atenção desejada pelo enunciante.
E há, ainda, outros aspectos, muitas vezes desconsiderados
e menosprezados, a que o argumentador precisa dar atenção
como, por exemplo, no caso do texto escrito, a distribuição formal
das idéias na folha, a correção ortográfica e, inclusive, o tipo e a
cor do papel, e, na argumentação oral, a postura corporal
tranqüila e firme, a voz que não seja nem muito baixa, nem tão
forte, mas adequada ao ambiente.
É preciso, enfim, lembrar que, na argumentação oral, os
argumentos terão melhor acolhida quando a sua verbalização vier
acompanhada de uma linguagem corporal que não revele
insegurança ou arrogância, descontrole emocional ou
insensibilidade, ansiedade ou frieza, radicalidade ou indiferença,
timidez ou menosprezo.
Esse cuidado é tão importante que Coelho (1997) considera a
imagem um recurso retórico quando afirma que
É claro que a aparência, por si só, não é garantia de nada, mas
não pode ser ignorada, porque é fator que interfere em diferentes
graus no processo de convencimento jurídico. Um corpo retórico,
que mobilize as emoções do interlocutor no sentido de fazê-lo
assumir pelo menos uma atitude receptiva, simpática, em relação
ao orador: o profissional do direito que descuida desse aspecto,
deixa de manusear importante recurso retórico. (p. 113)
E, por fim, uma vez afastadas as possíveis rejeições à
imagem do enunciante e ao que ele vai apresentar, uma última —
e importante — condição deve ser, ainda, preenchida: não exigir
do(s) interlocutor(es) mais esforço do que o necessário para
acompanhar e entender o que está sendo exposto. É preciso, por
isso, cuidar da coerência, da coesão e da congruência do
raciocínio.
Esses três aspectos do raciocínio dizem que o argumentador
precisa respeitar o auditório no que se refere à clareza da
argumentação, [pg. 82] para o que, em primeiro lugar, deve ter
convicções claras, oriundas de referências aceitáveis e de
atividades interpretativas apropriadas e bem conduzidas (do fato,
das provas etc.) Em outros termos, é muito difícil alguém receber
a atenção do auditório sem ser e parecer confiável e sem ele
próprio estar convicto do que está afirmando, o que também quer
dizer que, se a primeira estratégia for bem executada, a que busca
preparar o auditório fica bastante facilitada.
5.1.2 A preparação do auditório
Outro tipo de contextualização refere-se aos procedimentos
que têm por objetivo preparar o auditório e que precisam traduzir
uma competência para desconstruir bloqueios e dificuldades que
as diferenças referenciais poderiam produzir.
Isso quer dizer que deverão ser utilizadas diferentes
estratégias para aproximar os sistemas de referência — incluída a
ideologia — do argumentador e do auditório, ou então, quando
essa aproximação for impossível, para construir um acordo sobre
os limites conceituais do universo referencial. O argumentador
pode controlar, dessa forma, eventuais reações negativas em
relação tanto ao raciocínio e aos argumentos escolhidos, como ao
modo de apresentá-los, precisamente porque as diferenças
referenciais foram trabalhadas.
Cabe, então, ao argumentador, em primeiro lugar, a
dificílima tarefa de, se não desideologizar o problema, ao menos
minimizar os bloqueios dessa ordem. Isso se refere à atuação
sobre o contexto mediato (ou circunstâncias sociais, históricas e
culturais), e envolve, necessariamente, abordar questões
polêmicas como racismo, machismo, radicalismos religiosos,
relações entre capital e trabalho etc.
Já que se trata, aqui, de temas polêmicos, origem de grande
parte dos conflitos sociais, é recomendável uma estratégia que não
exacerbe os antagonismos que se geram no confronto ideológico,
mas, pelo contrário, que promova, através da verbalização e da
configuração conceitual dos universos mediatos que se opõem, a
compreensão da complexidade e dos prejuízos que o conflito —
ideologizado — traz para ambas as partes.
Cabe, aqui, lembrar, novamente, a palavra de Coelho (1997)
quando aborda a questão da ideologia:
O profissional do direito não deve renunciar aos seus valores,
adulterar sua ideologia, para tentar convencer o seu interlocutor.
Deve, isto [pg. 83] sim, sopesar o quanto a falta de identificação
ideológica no caso em questão, poderá influir negativamente no
convencimento do interlocutor, para, então, procurar compensar
esse desequilíbrio com outros recursos retóricos. Em todo caso, é
conveniente saber em que terreno se trava o embate
argumentativa. (p. 109)
É preciso, quando o contexto ideológico apresentar
diferenças acentuadas, escolher a melhor estratégia, assim que,
“quando não for possível a identidade ideológica com o interlocutor,
o orador pode procurar neutralizar a ideologização da discussão. Ao
contrário, se há condições da identidade ideológica, o orador deve
acentuá-la”. (Op. cit., p. 109)
A atuação sobre as referências do contexto imediato do
auditório faz parte de uma atividade posterior à que se ocupa com
o plano mediato, e vale-se de estratégias que podem recorrer, por
exemplo, ao elogio ou à crítica do instituído, ao uso da noção de
utopia ou o apelo ao pragmático etc., como procedimentos
preparatórios, sempre entendidos como uma atividade que resulta
das avaliações preliminares.
Se se pensar em termos de construção do silogismo jurídico,
os procedimentos de preparação do auditório conduzem, de certa
forma, à construção e à aceitação da referência — que será
premissa maior do silogismo — sob cujas coordenadas semânticas
se conduzirá o raciocínio.
Na verdade, a preparação do auditório corresponde a
estratégias que são interações preliminares onde, embora também
se argumente, o ato a ser julgado propositadamente não é
abordado, pois, sem a contextualização, com certeza, as versões
dele que produziria o auditório seriam tão diversificadas que,
conclusas, representariam dificuldades quase insuperáveis e
irremovíveis.
A atividade que visa à aproximação das referências do
enunciante e do auditório deve, igualmente, ser entendida como
um controle da heterogeneidade referencial e dos sentidos, pois, é
fundamental, para o sucesso da argumentação, que a
parafrasagem e a definição, aliadas a determinadas estratégias
interativas, reduzam as distâncias semânticas.
Há, portanto, atividades interativas preliminares a que o tipo
de interação que é a argumentação jurídica deve dar atenção, e
dentre as quais são interessantes:
1. O elogio ou a crítica ao instituído é uma atividade
indicada, especialmente, para aproximar sistemas de referência e
conseguir a adesão do auditório. [pg. 84]
Antes, porém, de escolher entre o elogio ou a crítica ao
instituído, o argumentador deve conhecer as características do
auditório para, ao elogiar ou criticar, possa dar ênfase às
referências que serão úteis à sua argumentação: as referências,
uma vez trabalhadas de tal forma que passam a ser aceitas pelo
auditório, garantem a coerência da atividade de sustentação.
Assim, por exemplo, abordando o tema da impunidade, é
possível construir os limites conceituais de justiça, que interessa
ao argumentador precisamente porque, no desenvolvimento do
raciocínio, determinada concepção de justiça poderá facilitar a
defesa dos interesses em questão.
2. Uma outra atividade interativa preliminar que pode
facilitar o processo é a abordagem de temas que tenham relação
com o imaginário social em termos de desejos e interesses:
novamente pode haver uma aproximação de sistemas de
referência e a possibilidade de enfatizar aquelas referências que
são consideradas importantes.
A dificuldade reside, contudo, em saber, com uma certa
margem de segurança, que tipo de utopia acolherá o auditório, já
que a heterogeneidade social também conduz à heterogeneidade
de desejos e interesses. Na verdade, o enunciante, quando recorre
à construção duma utopia, trabalha, de certa forma, ao nível da
sedução: primeiro, é necessário conhecer (ouvir, auscultar,
pesquisar) o que diz respeito aos desejos e interesses do(s)
outro(s), para, então, iniciar o processo de conquista.
Embora se verifique essa dificuldade, no Direito, há um tema
sempre interessante que movimenta desejos e interesses: é o da
promoção de relações sociais justas que possibilitem uma vida
melhor e mais feliz etc. Há, aqui, condições muito boas para
preparar e aproximar diferentes sistemas de referência.
3. A opção por abordar o que é da ordem do pragmático —
com o objetivo de preparar o auditório — é outra estratégia que
requer que o enunciante se ocupe com questões que dizem
respeito ao cotidiano das pessoas, como as que falam de sucesso,
de felicidade e de bem-estar.
Por exemplo, em um julgamento em que a argumentação se
apoiará nas contradições encontradas nos depoimentos, pode-se
discorrer sobre o que significam, no cotidiano das pessoas as falas
contraditórias: deverão ser elas entendidas como indícios de
mentiras, e, por conseguinte, como indícios de confissão de culpa?
[pg. 85]
O que estará em julgamento será, pois, abordado a partir do
resultado da interação que teve o cotidiano como tema, e que
deverá facilitar a argumentação porquanto o argumentador
construiu um acordo referencial com o auditório.
A importância do apelo ao pragmático resulta,
principalmente do interesse e da facilidade com que qualquer
auditório discute temas como sucesso, felicidade, honestidade etc.
4. A dramatização — porque pode estabelecer um vínculo
emocional com o fato que está sendo analisado — é um processo
interativo de preparação do auditório que, embora eficiente, requer
qualidades do enunciante que envolvem a capacidade de criação
de expectativas, de “suspense”, de teatralização etc.
Esse recurso tem sua importância porque pode criar
estímulos emocionais e, por isso, condições psicológicas que
favoreçam a interação argumentativa pois,
... parece comprovada a hipótese segundo a qual os jurados
elaboram o seu veredicto não apenas com base nos fatos mas
também (e, por vezes, sobretudo) com base na impressão causada
pelo texto pronunciado por ambas as partes (acusação e defesa),
que funciona como importante estímulo psicológico ao lado dos
demais componentes situacionais como: questionamento das
testemunhas, desempenho dos advogados. (CORACIN1, 1991, p.
51)
5.2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS
A estratégia discursiva é a que diz respeito à escolha
cuidadosa — pelos efeitos de sentido que produz — tanto dos
elementos da língua, como de determinadas formas de
estruturação do discurso, para que os argumentos selecionados
possam, na interação, ser otimizados, e os contrários,
minimizados.
A língua — porque nela se reflete a heterogeneidade social —
apresenta uma particularidade interessante: as palavras agregam
a seu significado valorações dos diferentes segmentos sociais, o
que vai determinar que elas se organizem em hierarquias ou
escalas de força argumentativa. Ou seja, as palavras agregam os
heterogêneos interesses sociais a seus sentidos e, por isso, têm a
força de produzir efeitos de [pg. 86] sentido que atuam sobre o
auditório de modo a facilitar ou a dificultar a sua adesão: à
escolha da palavra o auditório reagirá positiva ou negativamente,
dependendo dos interesses a ela ligados e que interferem na
interpretação.
Assim, por exemplo, um menino de rua pode ser nomeado
diferentemente, dependendo da pressão de diferentes sistemas de
referência, agrupando-se as palavras designativas, por exemplo,
da seguinte forma:
a) moleque, bandido, mau elemento, marginal etc.; ou
b) menor abandonado, desfavorecido, marginalizado, inocente
etc.
Da mesma forma, alguém pode ser chamado de ladrão ou
cleptomaníaco, dependendo do segmento social a que pertence e de
quem nomeia.
Verifica-se, pois, em primeiro lugar, uma oposição radical de
sistemas de referência e que tem origem no plano mediato do
contexto e diz respeito às diferenças de ordem ideológica: é uma
diferença “horizontal”.
Há, contudo, a possibilidade de organizar as palavras
também numa escala vertical, o que quer dizer que, mesmo dentro
de um mesmo universo ideológico, os sentidos das palavras têm
maior ou menor força de julgamento como se pode verificar nas
disposições seguintes:
a) bandido b) inocente
marginal marginalizado
mau elemento desfavorecido
moleque menor abandonado
A escolha, pois, que faz o enunciante, para nomear quer seja
uma pessoa, um fato ou um objeto, tem força argumentativa
porquanto os efeitos de cada item lexical são diferenciados e têm
força para intervir no convencimento do interlocutor.14
14 Evidentemente estão incluídas nessas escolhas a possibilidade de recorrer às figuras de linguagem, especialmente à metáfora, à metonímia e à sinédoque, que, contudo, não recebem uma atenção maior no presente trabalho pelo fato de ampliarem demasiadamente os limites em que se pretende abordar a argumentação jurídica. [pg. 87]
Perelman (1996) esclarece, apropriadamente que, “Os
diferentes tipos de objetos de acordo usufruem, como sabemos,
privilégios diferentes. Presume-se que alguns deles se beneficiam
do acordo do auditório universal: são os fatos, as verdades, as
presunções. Outros se beneficiam apenas do acordo de auditórios
particulares: são os valores, as hierarquias, os lugares”. (p. 203)
Os juízos de valor e, mesmo, sentimentos podem, contudo,
com a utilização de certas estratégias de escolhas lingüísticas, ser
apresentados como juízo de fato, pois
Substituindo a qualificação “mentiroso” por “pessoa com uma
disposição para induzir cientemente em erro”, ter-se-á a impressão
de haver transformado o juízo de valor, no qual aparece essa
qualificação, em juízo de fato, porque o enunciado, em sua nova
forma, parece mais preciso, pois se insiste em suas condições de
verificação. A não-utilização do termo “mentiroso” salienta, aliás, a
intenção de evitar uma apreciação desfavorável. (Op. cit., p. 204)
O que Perelman está destacando como importante diz
respeito ao que foi dito sobre as avaliações preliminares e a
criação de uma imagem de credibilidade: se o argumentador
escolher itens lexicais que se localizam nos pontos extremos das
escalas, os seus enunciados vão revelar ou uma fragilidade ou
uma agressividade que nem sempre é a indicada para
determinados tipos de auditório, o que faz entender que nem
sempre o ataque é a melhor estratégia. O que decide a adoção de
uma estratégia mais agressiva são as avaliações preliminares à
interação, pois só se pode optar por ir ao ataque de uma forma
mais contundente se há argumentos sólidos e convincentes à
disposição.
Um cuidado, pois, que é preciso ter na construção do
raciocínio jurídico refere-se à escolha das palavras, em especial,
pelo fato de escolher, numa disposição escalar, aquelas que estão
nos pontos extremos representa sempre uma radicalização que
tanto pode levar, quando resultado de uma interpretação bem
conduzida, ao sucesso, como, em função de uma atividade
interpretativa equivocada ou forçada, ao insucesso. Chamar
alguém, por exemplo, de marginal no lugar de errado ou corrupto
requer necessariamente graus diferenciados de provas, pois, a
radicalização pode levar ao descrédito e ao insucesso. Da mesma
forma, entender que alguém é um santo ou um marginalizado
exigirá uma atividade intensa de sustentação. [pg. 88]
5 2.1 A construção de dissociações e a mistificação
Essa estratégia prevê escolhas lingüísticas ou categorias que
determinam uma polarização ou dicotomização em que se propõe
reconhecer apenas os extremos conceituais e desconsiderar o que
é intermediário, como se isso não existisse ou não fosse
importante, ou como se, entre os dois extremos, a linha divisória
fosse sempre nítida e perfeitamente perceptível.
As dissociações são, pois, pares de conceitos que se
constroem em forma de oposição como, por exemplo, aparência x
realidade, natural x cultural, versão x fato etc., pares em que se
imagina poder encontrar elementos para abordar o par mutável x
imutável.
O objetivo, ao utilizar as valorizações de determinados
conceitos como se estivessem ligados ao que é imutável e
verdadeiro, é produzir o efeito da mistificação que consiste em
apresentar uma versão de um fato, sem, todavia, explicar as
referências e os procedimentos que a produziram. O apagamento
ou a omissão da referência protege contra a crítica, sendo, pois,
uma estratégia, e sugere que a revelação do referencial é
desnecessária, como se a versão apresentada fosse obviamente a
única possível.
Desse modo, no caso de se trabalhar a dissociação natural x
cultural, o caráter de imutabilidade — e, por isso, de verdadeiro —
está ligado à natural, e o de transitoriedade, à cultural: o emprego
de qualquer uma das duas categorias, sem explicar e justificar a
escolha, via de regra, caracteriza um processo de mistificação, ou
seja, conseguir fazer passar por natural um traço ou uma
característica humana num julgamento de um réu, produz efeitos
de convencimento muito fortes como, por exemplo, no caso de um
delito em que se analise a fidelidade do homem e da mulher,
trabalhar a idéia de que é natural o homem ser infiel/polígamo/
promíscuo etc. pode produzir efeitos que livram o réu de uma série
de acusações de conduta inconveniente.
Outros empregos mistificadores de natural podem ocorrer em
exemplos como É natural haver ricos e pobres ou O estupro é ato
da natureza humana etc.
A dissociação aparência x realidade também pode confundir
Porque se constrói sobre um terreno semântico (ou teórico) frágil,
especialmente quando se sabe que o instrumento de
conhecimento de uma realidade é a linguagem.
Assim, pode-se construir uma defesa do réu a partir da
afirmação de que só na aparência o delito é de responsabilidade do
[pg. 89] indivíduo, pois, na realidade, ele é resultado da
desestruturação da sociedade etc.
O uso da dissociação subjetivo x objetivo igualmente deve ser
considerado um recurso que pode produzir os efeitos desejados
para a sustentação duma tese, precisamente porque existem
diferentes concepções teóricas em relação a ela, inclusive a que
nega a possibilidade de dicotomização: se o auditório não domina
as reflexões teóricas que podem ser feitas em torno desse par de
conceitos, qualquer versão ou argumento pode ser classificado
como subjetivo ou como objetivo, dependendo dos efeitos benéficos
que a escolha produzirá para a argumentação.
Além dessas dissociações, é fundamental, no Direito, a
dissociação pessoal x social, pelos efeitos que gera no julgamento
de um delito: as responsabilidades do ato cabem a quem? Em que
termos o indivíduo deve ser responsabilizado a partir de que tipo
de concepção de determinação social? Ou melhor: quanto de um
delito é de responsabilidade individual e quanto cabe à sociedade
assumir?15
15 Essa dissociação gera, pois, pela oposição de sistemas de referência, qualificações como “marginal” x ‘“marginalizado”.
Sabendo-se, porém, que nem sempre é fácil distinguir os
limites entre os conceitos que compõem a dissociação, podem,
dependendo da maior ou menor competência do argumentador,
conduzir tanto à adesão a argumentos não necessariamente
verdadeiros (desde que a dissociação consiga produzir o efeito de
confundir o interlocutor) como a bloqueios intransponíveis
(quando a versão é desmistificada).
Outras dissociações são pares como meio x fim, individual x
universal, particular x geral, singular x genérico, linguagem x
realidade — todas potencialmente mistificadoras porque ligadas às
idéias de verdadeiro ou falso.
5.2.2 A mistificação
Outra estratégia interessante — diferente da mistificação —
vale-se da escolha de determinadas expressões cristalizadas pela
repetição insistente, pois, esses enunciados, precisamente porque
estão cristalizados, são aceitos como verdadeiros.
É dessa maneira que expressões como A justiça tarda, mas
não falha, A justiça é cega, O juiz é neutro etc. podem passar por
verdadeiras [pg. 90] porque, pela repetição, se consolidaram e, por
isso, tornaram-se quase imunes à crítica. São, pois, mitificações
que, pelas relações que a linguagem tem com o exercício de certos
poderes, estão ligadas aos interesses de determinados segmentos
sociais e devem ser consideradas como parte do instituto social.
5.2.3 A implicitação
A estratégia da implicitação configura uma atividade que,
com a escolha de determinadas palavras e estruturações do
discurso, consegue produzir efeitos como, por exemplo, de
ridicularizar e de condenar o sentido (uma tese) ou uma conduta
especialmente quando elas ferem o que está instituído ou o
imaginário social.
O importante a observar é que a implicitação cria um tipo de
cumplicidade entre o argumentador e o auditório, o que pode
representar que uma contrapalavra se veja constrangida a não
poder dar a réplica, porquanto teria que se dirigir não apenas
contra o enunciante mas também contra aqueles que já tenham
estabelecido uma cumplicidade com ele.
1. No caso da ironização, por exemplo, a estratégia consiste
em escolher, para determinado fato, pessoa, circunstância ou
situação, uma palavra cujo sentido é inadequado. Ao mesmo
tempo, porém, que constrói o inadequado, o enunciante oferece
pistas ou sinais de que isso foi proposital, e o que quis dizer é o
oposto.
Serve como exemplo de ironia, classificar alguém como
extremamente honesto ou exemplo de honestidade quando os
termos mais adequados à sua conduta seriam corrupto, ladrão etc.
A ironização, enfim, envolve a crítica e a ridicularização e,
pelo fato de implicitar e convidar à cumplicidade, é uma estratégia
que agride e, ao mesmo tempo, protege o autor da agressão (ele
sempre pode negar que tenha querido agredir).
2. A pressuposição pode ser considerada uma estratégia
argumentativa porque caracteriza um sentido implícito obrigatório
que certas expressões lingüísticas agregam, ou seja, para que
determinadas Palavras possam ser empregadas devem estar
preenchidas condições sem as quais se criam confusões e mal-
entendidos. Essas condições são chamadas de pressuposições
cujo alcance para produzir efeitos pode ser observado,
especialmente, quando, num interrogatório (num inquérito, por
exemplo), forem exigidas respostas em termos de sim ou [pg. 91]
não16: à pergunta Você deixou de bater na mulher! está
pressuposto de que o interrogado bateu em algum momento e, por
isso, tanto o sim como o não confirmam a pressuposição, mesmo
que a agressão sugerida nunca tenha ocorrido.
16 Na verdade, a limitação das respostas a “sim” ou “não” deve ser considerada uma intervenção redutora do contexto, ou seja, a descontextualização do fato
significa um controle da produção dos sentidos e interfere profundamente nas condições de julgamento.
São, pois, certos verbos, como deixar, parar, continuar etc.
que implicitam sentidos obrigatórios que o argumentador pode
utilizar para produzir os efeitos de sentido que ajudam a sustentar
a sua tese.
Segundo Koch (1992), os verbos que indicam pressuposição
podem ser organizados em 3 grupos:
1. “verbos que indicam mudança ou permanência de estado,
como ficar, começar, deixar de, continuar, permanecer etc.”.
Assim, João deixou de bater na mulher pressupõe que ele
batia, assim como João começou a bater na mulher pressupõe que
antes ele não batia.
2. “Verbos denominados ‘factivos’, isto é, que são
complementados pela enunciação de um fato (...) como lamentar,
lastimar, sentir etc.”.
Assim, Lamento que João tenha batido na mulher pressupõe
que João bateu na mulher e em Sabia que João bate na mulher
pressupõe que seja verdadeira a informação de que João bate na
mulher.
3. A implicação é uma forma diferente da ironia e da
pressuposição, embora também possa agredir e, por isso, atingir e
(de)formar a imagem de alguém ou o dito de outrem através de um
conjunto de palavras que não poderão ser — como nos dois outros
tipos — consideradas inadequadas ou condições necessárias, mas
que, pela manipulação hábil podem produzir efeitos devastadores.
É, pois, uma estratégia que não se apóia em sentidos
subentendidos, mas na armação de uma lógica de conseqüências
possíveis que o emprego de determinada palavra ou expressão
pode gerar.
Assim, um enunciado como João é um sábio implica que a
sua conduta não deverá apresentar nada que negue o sentido de
sábio, o que, na prática jurídica, pode ocorrer com enunciados
como João é uma pessoa de conduta ilibada etc. [pg. 92]
4. A insinuação deve ser entendida como uma outra
importante forma de deformar sentidos sem que o argumentador
se exponha à contrapalavra, pois, de forma ardilosa escolhe
sentidos que não são nem inadequados, nem pressupostos, nem
implicações, mas que funcionam como sugestões ou suspeitas, e
até como indícios, como se pode ver em Voese (1998):
Um exemplo de como, aparentando manter o compromisso com a
informação verdadeira, a imprensa não deixa de incluir um
julgamento nos seus textos (mesmo nos de aparência mais
inocente) é uma nota publicada em uma coluna de um jornal
brasileiro, na época em que P. C. Farias (personagem do processo
de cassação do mandato do presidente Fernando Collor) estava
foragido no exterior e a polícia brasileira tinha dificuldades em
localizá-lo. Dizia a nota:
(O SOL QUE NOS PROTEGE. PC EVITE O CARIBE. O chefe da
Interpol no Brasil, Edson Oliveira, e o vice-presidente mundial da
Interpol, Romeu Tuma, participam de um congresso do órgão em
Aruba. Estão no Hotel América. Aquele que tem um cassino.)
Aparentemente, o texto poderia remeter à idéia de tentar construir
algo como uma brincadeira, (...) a seleção e a disposição das
informações em relação aos personagens citados cria [porém] um
efeito que não tem nada de inocente. (p. 25)
A insinuação é como que construída por acaso, e, por isso,
permite uma certa proteção para quem a formulou, pois quem
explicita os sentidos que produzirão efeitos argumentativos é o
auditório.
5. A implicitação oral e a escrita dizem respeito não à
escolha de elementos lingüísticos ou discursivos, mas à alocação
de recursos ou da oralidade ou da escrita, e que interferem na
produção de sentidos e seus efeitos.
Na fala, os enunciados apresentam entoações ou seqüências
de entoações que são padronizadas e correspondem a uma certa
tipologia. A quebra, porém, desses padrões entonacionais das
frases pode introduzir sentidos implícitos que se tornam
importantes na argumentação como se pode verificar em Ele disse
que não é corrupto.
No padrão de frase conclusiva, observa-se um aclive de tom,
seguido de queda onde ele tem tom baixo. Modificando a entoação
e pronunciando ele com tom alto, pode-se estar dizendo que a
afirmação de inocência é só do personagem e não é acolhida por
quem diz “Ele disse que...”. [pg. 93]
Outrossim, escolhendo, alternadamente, o tom alto (que
produz o destaque) para as outras palavras, o sentido que se
implícita varia a cada vez.
A escrita, para poder produzir tais efeitos de implicitação,
vale-se de recursos gráficos como o negrito, as aspas, o itálico, o
sublinhar, as maiúsculas etc.
5.2.4 A impessoalização
A impessoalização é uma estratégia argumentativa que
procede à escolha de itens lexicais indefinidos ou genéricos para
referir-se a determinados indivíduos, e pode produzir efeitos de
sentido capazes de levar a duas conseqüências distintas:
a) quando o enunciante se esconde sob o uso da terceira
pessoa, cria-se a idéia de impessoalização e, por isso, um
efeito de indefinição e de neutralidade que protege contra
uma réplica;
b) quando o enunciante se refere a um oponente através de
expressões como ele, essa gente, certos indivíduos etc.,
produz-se um outro tipo de efeito — o de desvalorização
do interlocutor: se o indivíduo não é identificado é porque
não o merece.
Dois exemplos podem explicar a força da estratégia da
impessoalização:
a. Dizem que João foi visto cometendo o crime.
b. A sociedade sempre soube lidar com essa gente.
5.2.5 A vaguezização (ou a ambigüização)
A estratégia que visa a dar um caráter de vaguidade,
ambigüidade ou de indefinição (ou seja, explorar e exacerbar uma
característica da linguagem) a um enunciado pode criar fortes
efeitos, em termos de suspeição e de desconfiança em relação a
fatos e pessoas, ou se prestar à defesa de interesses específicos. A
estratégia pode consolidar a posição do enunciante e conduzir à
adesão do auditório, como se pode observar, por exemplo, quando
se cita de forma vaga a origem dos recursos que sustentam o
movimento dos sem-terra: O MST... recebe contribuições do Brasil e
do exterior. [pg. 94]
Ora, Brasil e exterior não são itens lexicais que fornecem
uma localização precisa quanto à origem das contribuições, pois,
com certeza, não é o Estado brasileiro, nem nações estrangeiras
que sustentam o movimento: a afirmação sugere, assim, que as
fontes não são bem conhecidas porque não há intenção de revelá-
las etc.
A vaguidade da informação quanto à origem dos recursos
financeiros que mantêm o MST pode, pois, levantar suspeitas até
mesmo de ilegalidade a depender do contexto histórico e social em
que o enunciado é produzido.
Da mesma forma, com enunciados como Todos têm direito à
propriedade, o argumentador pode valer-se da ambigüidade para
manipular os efeitos de vaguidade em defesa de interesses de
grupos sociais que ou já têm propriedade ou pretendem ter.
5.2.6 A generalização
O processo de generalização ocorre tanto nos limites das
atividades corriqueiras do cotidiano como nos procedimentos
científicos, e tem o objetivo de fixar, através do processo de
abstração, o que é de caráter geral nas individualidades, ou seja, a
generalização desconsidera o que é singular e leva em conta
apenas o que é comum ou geral.
A generalização permite o estabelecimento de regras e
normas de conduta ou de leis de funcionamento da realidade em
que vive o homem, de modo que encontrar os traços gerais que as
individualidades têm em comum representa uma possibilidade de
conhecimento e de organização social.
Nas ciências naturais e matemáticas há controles rígidos dos
procedimentos de generalização, o que não ocorre, contudo, no
cotidiano e é difícil de estabelecer em práticas que não se ocupam
com a demonstração de verdades, como é o caso, por exemplo, do
Direito.
Por esse motivo, a generalização, pelos efeitos de verdade
que produz junto ao auditório, é uma estratégia que precisa ser
observada com atenção, pois, se no Direito não se visa à
demonstração de verdades, mas, à produção de justificativas e de
sentenças, encontrar generalidades torna-se uma tarefa
extremamente complexa.
E, devido a essa complexidade de se garantir como
verdadeira uma generalização, ela se presta a funcionar como
recurso para produzir efeitos de adesão e, se objetiva pela
presença de palavras como todos, [pg. 95] tudo, ninguém, nada
etc. Isso faz que, especialmente no silogismo, o raciocínio se apóie
em enunciados como Todos são iguais perante a lei, Todos os
políticos são corruptos, Todos os homens são infiéis, Nada
recomenda o réu etc.
Quando se trata, pois, de generalizações de valores, a
atividade se dá no plano ideológico e não, lógico, porquanto se
sabe que os sistemas de referência que circulam na sociedade
produzem a diversidade de valores que os segmentos sociais
buscam homogeneizar através das ideologias.
E, nesse caso, o que determina a aceitação das
generalizações é a credibilidade ou a autoridade do argumentador.
Isso reforça a importância das estratégias interativas e, por outro,
mostra a complexidade da prática jurídica em promover a justiça
quando atua sempre no limite das determinações ideológicas.
5.2.7 A higienização
A heterogeneidade de sistemas de referência se reflete na
estrutura da língua de modo que a realidade sempre pode ser
nomeada de diversas maneiras, nenhuma das quais deve ser
considerada neutra, mas sempre comprometida com um
julgamento positivo ou negativo.
É essa característica da língua que se presta a que
determinadas escolhas possam produzir uma versão mais amena
ou higienizada de um fato.
Um enunciado, como, por exemplo, Cumprir ordens, pode,
aparentemente, não ter nenhum poder de influenciar uma posição
ou um ponto de vista de alguém. Produzido, porém, em função de
minimizar a responsabilidade de alguém que matou em
determinadas circunstâncias, o enunciado higieniza o fato e, por
isso, não deve ser desconsiderado como uma importante estratégia
argumentativa.
A escolha de enunciados como cumprir ordens ou agir em
nome da lei pode, em determinadas circunstâncias, silenciar
outras, como, por exemplo, assassinar, violentar, torturar, abusar
de autoridade etc.
5.2.8 A inclusão do ponto de vista do argumentador
Há, ainda, na língua, recursos que permitem a inclusão sutil
do julgamento do argumentador, o que pode não parecer
importante, [pg. 96] mas, considerando que o enunciante usufrua
de uma imagem de credibilidade, o conhecimento de seu ponto de
vista influenciará a adesão do auditório.
É preciso lembrar, aqui, que, quando alguém inspira
confiança ou se reveste de autoridade, a exposição de seus pontos
de vista atua ao nível de uma produção de argumentos como se
pode verificar no capítulo das técnicas argumentativas.
Manifesta-se, pois, assim, em algumas escolhas lingüísticas,
a posição do argumentador, ou seja, a certeza, a probabilidade ou
a dúvida do enunciante, uma vez verbalizadas, podem direcionar
ou influenciar o julgamento do auditório.
Os exemplos seguintes revelam posições diversas do
enunciante a respeito da inocência de João:
a) É necessário considerar João inocente.
b) É possível considerar João inocente.
c) É certo que João é inocente.
d) É provável que João seja inocente.
Um caso interessante ocorre com o verbo dever, cujo
emprego tanto pode remeter a é necessário como a é provável em:
a) João deve ser considerado inocente.
Também com o verbo poder ocorre uma orientação ambígua,
como, por exemplo, em João pode ser considerado inocente. O
enunciado tanto acolhe a idéia de é possível como a de é
facultativo.
Uma outra forma de produzir efeitos que sugerem o ponto de
vista do argumentador diz respeito à escolha do tempo dos verbos:
o presente e o futuro do presente sugerem que o enunciante se
compromete com o que diz, ou seja, tem segurança para assumir
como verdadeiro o enunciado produzido. O efeito que o uso do
presente (ou do futuro do presente) produz pode ser observado
confrontando João deve(rá) ser considerado inocente com João
deveria ser considerado inocente ou Se João devesse ser
considerado inocente...: no primeiro exemplo, perpassa a idéia de
certeza do enunciante e, nos outros, a de dúvida.
A escolha, pois, de verbos e tempo/modo é importantíssima
por vários motivos: a) os verbos ser e estar, no presente e no
futuro, dão uma [pg. 97] idéia de inquestionabilidade ao
enunciado. Conduzem, pois, a uma argumentação agressiva e
contundente. Utilizados, porém, em afirmações questionáveis e
discutíveis, produzem um efeito contrário: a argumentação, devido
à radicalização da modalização, torna-se frágil; b) a escolha de
uma modalização menos extremada ou mais concessiva — por
exemplo, com o verbo poder ou outro tempo/modo para ser e estar
— pode significar uma argumentação não tão contundente, mas
ampliará as possibilidades de negociação como poderia requerer
um caso como o da fixação de atenuantes para um delito, por
exemplo.
Se a inclusão do ponto de vista do argumentador — com
uma imagem de credibilidade, convém lembrar — é uma estratégia
importante, maiores efeitos podem realizar as escolhas que, além
dum julgamento, apontam para sentimentos e emoções.
A estratégia, então, se situa no plano emocional ou
psicológico quando se fazem presentes palavras como
lamentavelmente, (in)felizmente, incrivelmente e semelhantes.
5.2.9 A (des)focalização de argumentos
Focalizar, através da alocação de recursos lingüísticos e
discursivos, os argumentos que interessam à sustentação duma
tese é uma outra estratégia que deve merecer toda a atenção,
mesmo porque, segundo Perelman,
Quando dispomos de certo número de dados, oferecem-se-nos
amplas possibilidades quanto aos vínculos que estabeleceremos
entre eles. O problema da coordenação ou da subordinação dos
elementos se prende em geral à hierarquia dos valores aceitos;
todavia, no âmbito dessas hierarquias de valores, podemos
formular ligações entre os elementos do discurso que modificarão
consideravelmente as premissas: operamos entre esses vínculos
possíveis uma escolha tão importante como a que operamos pela
classificação ou pela qualificação. (PERELMAN, 1996a, p.176)
Efetivamente há determinados elementos da gramática da
língua que têm a capacidade de indicar o argumento que deverá
ter predominância sobre outros, ou, então, auxiliar o
argumentador na condução da sua atividade de construção e
sustentação de uma tese: é o que ocorre com o efeito da
(des)focalização que corresponde à estratégia de [pg. 98]
maximizar um argumento e, ao mesmo tempo, minimizar um
outro. Neste caso, atua-se com operadores que contrapõem
argumentos orientados para conclusões contrárias: mas
(porém, contudo, todavia etc.)
Exemplo: João matou, mas foi em legítima defesa. No
enunciado, o mas opera minimizando a força de João matou e
maximiza foi em legítima defesa. Da mesma forma, em João agiu
em legítima defesa, mas matou, o argumento que soma mais força,
em oposição a um contrário, é matou.
A (des)focalização é um procedimento do enunciante que visa
a desviar a atenção do interlocutor daquilo que não lhe interessa,
ou seja, trata-se de uma estratégia para deslocar a atenção de um
determinado foco a outro, de tal forma que os efeitos de sentido
facilitem a adesão em relação ao que é de interesse de quem
enuncia.
Na prática jurídica, a (des)focalização torna-se sobremodo
interessante porque permite que o argumentador consiga não só
minimizar os efeitos dos argumentos do adversário, mas também,
desqualificar (v. o argumento da coerência) o sistema de referência
que ilumina os focos indesejáveis. Assim, além da (des)focalização,
cria-se o efeito de desconfiança sobre a argumentação contrária.
5.2.10 A (des)valorização de argumentos
Com o operador embora, a orientação argumentativa difere
em relação a mas no que se refere à estratégia: em Embora João
tenha matado, foi em legítima defesa, há uma antecipação de
argumentos contrários, ou seja, verbaliza-se o que deve ser
desconsiderado ou minimizado (podem ser os argumentos reais ou
prováveis do adversário). Se com o mas se cria uma expectativa e
um espaço possível para o silêncio que motiva a atenção, com
embora ocorre, concomitantemente, uma aceitação dos eventuais
argumentos contrários, e há uma desvalorização de sua
importância: o fato de estarem sendo citados pode dar a entender
que isso não representa um risco para os próprios argumentos.
5.2.11 A armação duma lógica
Há, na língua, operadores que conduzem a uma conclusão
relativa a argumentos de enunciados anteriores, tais como
portanto, logo, pois etc.; ou pares como se...então, ora...logo. [pg.
99]
Os exemplos dos seguintes silogismos podem esclarecer a
força diferenciada dos operadores:
1. Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser
condenado.
Ora, João agiu em legítima defesa.
Logo, João não deve ser condenado.
No silogismo acima o par de operadores ora...logo conduz
rapidamente a uma tese: a chegada a uma conclusão é linear e
não admite negociações. Já com o outro par — se... então — ,
embora também oriente para uma congruência, apresenta uma
alteração de estratégia argumentativa conforme se pode ver em:
2. Todo aquele que mata em legítima defesa não deve ser
condenado.
Se João agiu em legítima defesa.
Então João não deve ser condenado.
É interessante observar que, nesse silogismo, parece residir
uma fragilidade de convicção do argumentador, enquanto que em
ora... logo se dá o contrário, porque ora impõe como que uma
evidência, enquanto se permite a dúvida.
Em termos de estratégia argumentativa, porém, o par
se...então pode produzir excelentes resultados, especialmente
quando o argumentador tem convicção e finge que tem dúvidas,
porque, ao apresentar a sua versão dos fatos e as provas da forma
como lhe interessa, convida o(s) interlocutor(es) a dirimir(em) a
dúvida sugerida e confirmar(em) a tese. O convite à negociação
que faz o argumentador em se...então se dá porque ele finge abrir
mão da atividade de construção da tese, o que pode desarmar o
interlocutor e ampliar as possibilidades de sua adesão.
5.2.12 A indicação de um extremo da escala
A língua, precisamente por pressão da heterogeneidade
social, permite que as coisas, os fatos etc. possam ser verbalizados
de diferentes [pg. 100] maneiras, o que abre a possibilidade para
a valoração escalar. A estratégia com operadores que apontam o
argumento que, numa escala de forcas, fica no ponto extremo
como até, inclusive etc., visam, ao indicar o argumento a ser
considerado de maior impacto, levar o auditório a aderir à tese.
Se, por exemplo, numa escala de argumentos, temos
cometeu diversos assassinatos, cometeu outros delitos, teve
problemas de conduta social, o operador até aponta para aquele
que tem mais força. Assim, João deve ser condenado — até porque
(inclusive) já cometeu diversos assassinatos — ...
5.2.13 A soma de argumentos
Há, ainda, outro tipo de operador que possibilita uma
estratégia argumentativa: é o que possibilita a cooptação dos
argumentos do adversário, ou seja, a construção permite que o
argumentador possa atuar sobre o dito de quem o antecedeu no
debate, assumindo os argumentos contrários, mas acrescentando
a eles outros que deverão fazer a diferença.
Trata-se de operadores argumentativos que somam
argumentos à tese, tais como, e, também, não só... mas também
etc.
Assim, por exemplo, quando se avalia se alguém tem ou não,
direito à pensão alimentícia, pode a discussão centrar-se em torno
do argumento que sustenta ou nega a capacidade para trabalhar
do requerente.
Ora, se entender capacidade para trabalhar como condições
físicas para trabalhar, é possível construir a contraposição,
recorrendo ao operador argumentativo de forma a incluir
condições físicas e acrescentar-lhe outros argumentos:
“capacidade para trabalhar não deve significar não só condições
físicas, mas também...”. [pg. 101]
6
A ARGUMENTAÇÃO E O ATO RESPONSÁVEL
Os estudos que tomam a linguagem como objeto só
recentemente passaram a incluir como referência teórica os textos
do filósofo russo Mikhail Bakhtin. E, embora as suas principais
formulações sobre o discurso tenham sido feitas no início do
século passado, ainda se prestam a operacionalizações
interessantes e ricas.
A argumentação jurídica, por operar sobre valores, tem no
texto Para uma filosofia do ato (Bakhtin, s.d.) um excelente
ponto de ancoragem para alimentar a reflexão sobre não só sua
natureza, mas, e especialmente, quanto a seu caráter de mediação
das relações sociais.
Para Bakhtin, todo ato deve ser analisado como ação
responsável que emerge da oposição entre o ato realmente
ocorrido e o sentido que lhe confere uma interpretação. Isto é:
todo e qualquer ato pode receber diferentes interpretações que
produzem diferentes sentidos. Os sentidos, por sua vez,
multiplicam-se e libertam-se de seus autores, passando a produzir
efeitos que, se, em parte, são circunscritos, também podem fugir,
devido à heterogeneidade social e referencial, a uma
previsibilidade. Por isso, o sentido dado a um ato orienta novas
interpretações de novos atos, ou seja, é responsável pelos sentidos
que humanizam ou não, as relações sociais.
Essa dimensão do ato descreve o discurso — também ato
enquanto mediação — como permanentemente centrado em
valores, pois as interpretações da realidade dependem das
categorias (ou referências) colocadas em cena e que, por sua vez,
resultam de escolhas orientadas por [pg. 103] valores-guia, ou
seja, “[...] toda categoria orientadora de valor tem um uso
adequado ao objeto, um adequado ao sujeito e um adequado à
situação. Tais categorias podem ser usadas, portanto, ‘em
conformidade com a coisa, com a tarefa’, ‘em conformidade com a
situação’ e ‘em conformidade com a pessoa’”. (HELLER, 1983, p.
60)
É, por isso, que todo ato humano contém uma dose de
responsabilidade pessoal e que condiciona a produção do discurso
a se comprometer com uma coerência entre um dizer e um fazer,
entre o dito e a coisa. O indivíduo, ao agir, emancipa-se
responsavelmente.
O discurso jurídico, particularmente no que se refere à
argumentação, deve, portanto, chamar a si, quer seja no plano
institucional, quer seja no pessoal, a responsabilidade tanto como
ato enunciativo materializado, como pelos efeitos que o ato pode
produzir.
Assim, institucionalmente, a responsabilidade da prática
jurídica lembra, entre outras referências, que:
1. A preservação institucional do contraditório na
argumentação jurídica é garantia da manifestação de
diferentes interpretações possíveis para um determinado
ato.
2. A escolha de valores-guia que orientam os procedimentos
e os rituais jurídicos, por serem linguagem, são
discutíveis.
3. A avaliação permanente da relação entre os valores-guia
adotados e os valores sociais vigentes requer um
profundo envolvimento e conhecimento social.
4. O zelo pelos acordos sociais construídos historicamente
implica uma vigilância e uma competência para atuar
sobre direitos e deveres.
Quanto ao comprometimento pessoal, é possível — apesar da
distribuição dos lugares “contraditórios” de argumentação —
responsabilizar o indivíduo por motivos tais como:
1. As escolhas das técnicas e estratégias argumentativas
resultam de uma interpretação do fato.
2. A interpretação do fato aciona sempre categorias
operacionais específicas comprometidas com valores
sociais. (Exemplo: liberdade).
3. Os valores, por serem linguagem, são polissêmicos e
dependem de outros atos interpretativos. (Que é
liberdade?) [pg. 104]
4. Os atos interpretativos encontram-se irremediavelmente
ancorados em vozes de lugares sociais que, por serem
diferenciados, instalam um conflito de sentidos.
5. Os conflitos de sentidos podem gerar condutas sociais
conflitantes que, potencialmente, implicam o risco de
ruptura social.
6. A argumentação jurídica tem como objetivo fundamental
operar sobre esse risco social. E, por isso, pode assumir
um caráter paradoxal de (des)humanização.
7. O indivíduo que atua na argumentação jurídica, pela
liberdade de que faz uso ao realizar as escolhas, pela
singularização da interpretação do fato, pelo poder de fala
que exerce e pelos efeitos que disso resultam, é também
responsável.
A argumentação jurídica é, pois, discurso responsável que
avalia e avaliza responsabilidades tanto pessoais como sociais.
Isto é: o fato de o enunciante poder, apesar da distribuição dos
papéis a partir da observação do contraditório, fazer escolhas não
o exime da responsabilidade como participante responsável do
ritual que busca promover a justiça.
O presente estudo da argumentação jurídica — desenvolvido
com o propósito de ser introdutório — várias vezes também
abordou a relação da linguagem, ou da argumentação mais
especificamente, com o exercício do poder.
Para a argumentação jurídica esse tema se reveste de
particular importância, porque ela se propõe, como objetivo final,
promover a justiça, o que envolve também a discussão das
relações de força que mantêm entre si os diferentes segmentos
sociais e a análise dos conflitos que se originam dessas relações. E
isso implica falar de ideologia.
A ideologia pode ser definida como um projeto de
socialidade, ou seja, um sistema de sentidos que correspondem a
ideais de sociedade. Esses ideais, obviamente, na medida em que
orientam condutas, valorizam as referências que se ligam a
interesses específicos de grupo.
Desse modo, no embate das forças sociais, a ideologia, além
de orientar e consolidar um determinado segmento, pode, através
de recursos lingüísticos e discursivos, fazer circular, de forma
não-explícita, a idéia de que o sistema de referência de um
determinado grupo é o melhor e o mais indicado, não só para o
próprio grupo, mas também, para toda a sociedade. E, ao executar
a sua função, a ideologia — porque precisa [pg. 105] construir
uma hierarquia de sistemas de referências em cujo extremo se
localiza o que abriga os interesses do grupo que a ela se liga —
homogeneiza fazendo passar por verdadeiros apenas os sentidos
gerados pelo sistema de referência hegemônico, mascarando,
dessa forma, os objetivos de dominação.
Em outros termos, a ideologia não é, por natureza, um meio
de dominação, mas de organização social. Quando, porém, se
instalar, no meio social, a disputa de poderes, a ação ideológica
produzirá hierarquizações dos enunciados dos sistemas de
referência dos diferentes segmentos sociais. E, só então, quando
anula tudo que se lhe opõe, o sistema de referência hegemônico,
enquanto ideologia, é também instrumento de luta.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com as comunidades de
descendentes de imigrantes alemães no Brasil: evidentemente,
organizaram suas atividades produtivas tendo como orientação
um determinado sistema de referência. No momento, em que,
durante a 2a Guerra Mundial, o Brasil se pronunciou a favor dos
aliados e contra a Alemanha, as comunidades de língua alemã no
País passaram a ser hostilizadas como se fossem inimigos. Isso
produziu efeitos ideológicos tais que os sistemas de referência
produziram verdades ou axiomas como Todo alemão é
nazista/inimigo ou Todos os que não são ou falam o alemão são
inferiores/negros etc.
Do mesmo modo, enunciados como E natural que haja ricos e
pobres. O homem é, por natureza, infiel. É óbvio que mulher (o
negro, o índio, o jovem etc.) é inferior ao homem (o branco, o adulto
etc.). Dinheiro não traz felicidade. O catolicismo é a única religião
cristã. Deus castiga quem não respeitar os mandamentos. Todos
são iguais perante a lei etc. podem, de um ponto de vista lógico,
ser considerados discutíveis. No entanto, enquanto enunciados
nos quais os indivíduos passam a crer como se fossem verdades
irrefutáveis, eles produzem efeitos de poder que vão determinar
resultados que, numa disputa de forças, podem levar à
dominação. O enunciado ideológico, pois, sempre esconde
interesses de grupos: não é, pois, de ordem do indivíduo, embora
ninguém — precisamente porque todos se submetem às
determinações sociais que se originam do conflito — consiga
livrar-se inteiramente de uma orientação ideológica.
Ora, a argumentação também atua em função da
heterogeneidade referencial e social, mas nela se exercita
primordialmente o raciocínio lógico e se questionam insistente e
rigorosamente os sentidos das palavras, as teses, os axiomas, as
afirmações e os procedimentos que podem [pg. 106] conduzir à
produção de novos enunciados/sentidos. A diferença entre a
atividade ideológica e a argumentativa, no sentido restrito, diz
respeito à forma como se pretende alcançar a prevalência de um
sistema de referência: na primeira, busca-se conseguir o domínio
(ou a dominação) pela instalação da crença, isto é, no universo
ideológico, o processo interativo não oferece acolhida à réplica, à
crítica e ao exame lógico; na interação jurídica, quer-se a adesão
que deve se realizar como conseqüência de um raciocínio que visa
a sustentar e justificar uma tese.17
17 Por isso, a relação entre meios e fim, no Direito, é diferente dos da Política: se nessa — por força da ideologia — se pode até permitir a idéia de que o fim justifica os meios, na prática jurídica, isso é inadmissível.
A ação ideológica, na verdade, quando se faz meio de luta, é
a negação da dimensão democratizante, porquanto busca silenciar
os outros sistemas de referência da sociedade, e a argumentação
— entendida como interação — ao contrário, preestabelece
condições de alternância de turnos para a manifestação dos
diferentes argumentos.
A constatação de que a interpretação sempre implica
também orientar-se por categorias ideológicas, revela, pois, para a
argumentação jurídica, a importância de um acordo que defenda a
possibilidade da manifestação da discordância, não só no que diz
respeito ao contexto imediato do que está sendo julgado, mas
também ao mediato — e que se refere ao universo ideológico —
porque, se assim não se fizer, a interpretação do fato pode ser
prejudicada, já que o universo mais amplo — e que é determinante
do imediato — não foi considerado.
Os argumentos, pois, tanto quanto for possível, deveriam
trazer à discussão elementos dos dois contextos, principalmente
para permitir a desconstrução ideológica das referências.
Por outro ângulo, entender a argumentação como interação
implica dizer que há a necessidade de se prestar especial atenção
também ao ato de ouvir, em termos de dever e de poder ouvir,
mormente na prática jurídica porque, aí, conforme Perelman,
Mesmo no plano da deliberação íntima, existem condições prévias
para a argumentação: a pessoa deve, notadamente, conceber-se
como dividida em pelo menos dois interlocutores que participam da
deliberação. E nada nos autoriza a considerar essa divisão
necessária. Ela parece constituída com base no modelo da
deliberação com outrem. (PERELMAN, 1966a, p. 16) [pg. 107]
E continua:
Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido. Não
é pouco ter a atenção de alguém, ter larga audiência, ser admitido
a tomar a palavra em certas circunstâncias, em certas
assembléias, em certos meios. Não esqueçamos que ouvir alguém é
mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista.
(Op. cit. p. 19)
Desconstrói-se, pois, a idéia de que, na argumentação, o
enunciante tem a sua tarefa comprometida apenas com a
formulação e a organização de argumentos que sirvam à acusação
ou à defesa: ele precisa submeter-se a um acordo que garante aos
interlocutores a alternância das atividades de ambos, sem o que
não adiantam os argumentos mais brilhantes e o raciocínio mais
bem estruturado. E preciso, enfim, que o acordo gerencie o
confronto argumentativo porque, na verdade, são sistemas de
referência diferenciados que se batem pela construção de um
sentido possível de justiça. E esse embate é de ordem ideológica.
O ato de ouvir, por essa razão, não significa apenas uma
necessidade para saber o que se constrói na oposição, mas parte
de um acordo que propõe o silêncio e a fala em processos
alternados entre interlocutores, sem que a correlação signifique a
hierarquização de sistemas de referência e a imposição ideológica.
Parece, pois, à primeira vista, que o Direito, pelo fato de
acolher a presunção do contraditório, estaria, ao garantir as
diferenças de interpretação, inibindo a ação ideológica e, com isso,
a manipulação, o jogo de poderes. Na verdade, porém, o
contraditório, na prática jurídica, refere-se, em geral, ao que
constitui o contexto imediato do ato em julgamento. O fato
jurídico, pois, na grande maioria dos casos, não inclui dimensões
que fazem parte do contexto mediato e, por isso, as diferenças que
sustentam a acusação e a defesa podem estar fazendo parte dum
mesmo universo ideológico.
O fato, contudo, de os enunciados se submeterem à
avaliação e à crítica, permite que, na interação argumentativa, se
possa localizar e desconstruir aquilo que assume uma nítida
função ideológica que desconsidera e anula as diferenças de
sentidos produzidos pela heterogeneidade social. E por que os
múltiplos segmentos sociais mantêm uma relação conflitante, todo
o sentido produzido pelo processo de interpretação abriga a
possibilidade de se tornar um instrumento de dominação
ideológica — [pg. 108] basta que os processos sociais conduzam
a uma hierarquização das diferenças de sentido que gera a
heterogeneidade referencial.
O ponto de vista valorativo ou o julgamento, portanto, em
termos de bom ou mau, útil ou inútil, correto ou incorreto, que pode
se agregar a qualquer sentido, embora revele uma adesão pessoal,
está profundamente comprometido com o que é de nível social
porque a hierarquização valorativa dos atos pode, em função dos
conflitos sociais, ter como referência a ideologia de um
determinado segmento social.
Ora, toda vez que se escolhe e insiste que os atos dos
indivíduos e as relações que sustentam a sociedade devem ser
avaliados pelo sistema de referência de um dos segmentos
envolvidos no conflito, configura-se uma intervenção ideológica, o
que também quer dizer — porque a imposição e o cerceamento
reconduzem ao conflito — que se realizou uma pseudojustiça: faz-
se necessário, para intervir no conflito, encontrar uma referência
que, em termos gerais, seja aceita por todas as partes envolvidas.
É, por isso, que se pode afirmar que a argumentação —
sobremodo, a jurídica — ao zelar pela alternância das
manifestações das partes conflitantes, tem uma responsabilidade
ética: só pode o Direito fugir das armadilhas de se ver reduzido a
instrumento ideológico de um segmento social — em geral, do
hegemônico — garantindo os turnos de argumentação no ritual
interativo.
O que se quer dizer é que, embora toda e qualquer
interpretação esteja comprometida com determinado sistema de
referência, a prática jurídica — porque se constrói sobre a
possibilidade do contraditório — encontra no ritual argumentativo
a melhor forma para não acolhê-la como a única ou a melhor. O
problema, pois, que diz respeito à ideologia situa-se no nível de
condução das interpretações em termos de realizá-las, apoiadas
em referências sabidamente comprometidas com um ou outro
segmento social.
Vê-se, pois, que a argumentação jurídica comporta uma
dimensão ética que diz respeito à correlação entre o direito e dever
de falar e o direito e o dever de ouvir18: se cada indivíduo pode (e
deve) invocar o direito de expor e defender a tese que entende ser
válida para uma determinada situação, ele também assume, neste
preciso momento, o compromisso de que seu interlocutor terá o
mesmo direito, além de fixar, para [pg. 109] ambos, o dever de
ouvir. Ou, então, ao invocar o direito de poder ouvir ou apropriar-
se do que é exposto, o indivíduo constrói também a noção de dever
de enunciação para ambos: sem o acordo ético não há o direito,
precisamente porque lhe falta apoio no seu correlato, o dever, o
que, forçosamente, leva o Direito a perder força na atuação sobre
os conflitos sociais.
18 Isso quer dizer que artimanhas e recursos que visem a obstaculizar ou prejudicar a atividade argumentativa, especialmente no Direito, devem receber a condenação como atividade antiética.
A dimensão ética da argumentação jurídica tem, enfim,
relação com o que diz Perelman:
Pode-se, de fato, tentar obter um mesmo resultado seja pelo recurso
à violência, seja pelo discurso que visa à adesão dos espíritos. É
em função dessa alternativa que se concebe com mais clareza a
oposição entre liberdade espiritual e coação. O uso da
argumentação implica que se tenha renunciado a recorrer
unicamente à força, que se dê apreço à adesão do interlocutor,
obtida graças a uma persuasão racional, que este não seja tratado
como um objeto, mas que se apele à sua liberdade de juízo. O
recurso à argumentação supõe o estabelecimento de uma
comunidade dos espíritos que, enquanto dura, exclui o uso da
violência. (1996a, p. 61)
A argumentação jurídica, portanto, como discurso que
realiza a mediação dos conflitos sociais, leva o Direito a
posicionar-se frente ao desafio permanente de avaliar-se como
prática responsável, tendo em vista que “A responsabilidade do ato
realmente desempenhado é o levar-em-conta nele todos os fatores
— um levar-em-conta tanto a sua validade de sentido como a sua
realização em toda a sua concreta historicidade e individualidade”.
(BAKHTIN, s.d., p. 46)
E o indivíduo, alçado a um lugar social, ao mesmo tempo,
privilegiado e comprometido, mesmo atuando ao amparo da
instituição, não pode ser desresponsabilizado pois “[...] um ser
humano não tem direito a um álibi — a uma evasão dessa
responsabilidade única que é constituída pela sua atualização de
seu “lugar” único, irrepetível no Ser”. (Op. cit., p. 16).
Assim, o ensino e o domínio de técnicas e estratégias de
argumentação jurídica abrem o paradoxal — mas vivificante —
processo dialógico entre uma liberdade e um compromisso, entre
uma fragilidade do fazer-justiça e uma competência lógica e
interativa, entre um direito e um dever. [pg. 110]
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Esta obra foi impressa em oficinas próprias, utilizando um moderno sistema digital de impressão por demanda. Ela é fruto do trabalho das seguintes pessoas:
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“Se desejas desfrutar do arco-íris, primeiro deves
suportar a chuva.” (Dolly Parton)
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