argumentação e filosofia

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IV 1 O Conhecimento e a Racionalidade Científico-Tecnológica ___________________________________________________________________________ 1 Descrição e interpretação da actividade cognoscitiva 1.1 A estrutura do acto de conhecer 1. Que é Conhecer? 1.1 Sentido Comum Texto nº01 «A origem da nossa noção de conhecimento Apanhei esta explicação na rua ao ouvir um homem do povo dizer-me: “Ele reconheceu-me”; perante estas palavras, perguntei- me o que é que o povo entende no fundo por conhecimento, o que procura ele no fundo quando o pede? Apenas isto: reduzir qualquer coisa de estranho a qualquer coisa de conhecido. Nós filósofos, que pomos mais nesta palavra? O conhecido, que dizer, as coisas a que nos habituámos, de tal modo que já deixamos de nos espantar; aí incluímos o nosso movimento quotidiano, uma regra qualquer que nos conduz, tudo o que nos é familiar… Pois quê? A nossa necessidade de conhecer não é justamente a nossa necessidade familiar? O de encontrar, no meio de tudo o que nos é estranho, inabitual, enigmático, alguma coisa que nos deixe de inquietar? Não será o instinto do medo que nos força a conhecer? O encanto que acompanha a aquisição do conhecimento não será a volúpia da segurança recuperada?...» (Nietzsche, A Gaia Ciência, Ed. Guimarães, p.241)

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retorica e verdade

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Page 1: argumentação e filosofia

IV – 1 – O Conhecimento e a Racionalidade Científico-Tecnológica

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1 – Descrição e interpretação da actividade cognoscitiva 1.1 – A estrutura do acto de conhecer

1. Que é Conhecer? 1.1 Sentido Comum Texto nº01 «A origem da nossa noção de conhecimento – Apanhei esta explicação na rua ao ouvir um homem do povo dizer-me: “Ele reconheceu-me”; perante estas palavras, perguntei-me o que é que o povo entende no fundo por conhecimento, o que procura ele no fundo quando o pede? Apenas isto: reduzir qualquer coisa de estranho a qualquer coisa de conhecido. Nós filósofos, que pomos mais nesta palavra? O conhecido, que dizer, as coisas a que nos habituámos, de tal modo que já deixamos de nos espantar; aí incluímos o nosso movimento quotidiano, uma regra qualquer que nos conduz, tudo o que nos é familiar… Pois quê? A nossa necessidade de conhecer não é justamente a nossa necessidade familiar? O de encontrar, no meio de tudo o que nos é estranho, inabitual, enigmático, alguma coisa que nos deixe de inquietar? Não será o instinto do medo que nos força a conhecer? O encanto que acompanha a aquisição do conhecimento não será a volúpia da segurança recuperada?...»

(Nietzsche, A Gaia Ciência, Ed. Guimarães, p.241)

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1.2 Vários tipos de Conhecimento: Saber por Contacto; Saber Fazer e Saber Que (Proposicional). A essência Filosófica da Questão do Conhecimento.

Texto nº02 «Sócrates: Diz então, bem e com nobreza: o que te parece que seja o saber? Teeteto: É pois necessário fazê-lo, Sócrates, visto que me exortam. De qualquer

maneira, se eu errar, vocês corrigem-me. Sócrates: Naturalmente, se formos capazes. Teeteto: Pois então parece-me que os assuntos que se aprendem com Teodoro são

saberes – geometria e as que tu ainda agora enunciaste –; por outro lado, também as artes do sapateiro e dos outros artesãos, todas e cada uma delas não são outra coisa, a não ser saber.

Sócrates: É-te pedida apenas uma coisa, e tu, meu amigo, com nobreza e generosidade, dás muitas e variadas, em vez de uma simples. Teeteto: Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates: Talvez nada. Mas vou dizer o que penso. Quando te referes à arte do sapateiro, estás a falar de outra coisa que não seja o saber do ofício de fazer sapatos?

Teeteto: Não. Sócrates: E, quando te referes à arte da carpintaria? Queres dizer outra coisa que não

seja um saber do trabalho em objectos de madeira? Teeteto: Também não. Sócrates: Portanto, em ambas as situações, defines do que é cada saber. Teeteto: Sim. Sócrates: Mas o que tinha sido perguntado, Teeteto, não era isso, um saber “de quê”,

nem a sua quantidade; pois não queremos enumerá-los, já que estávamos a querer conhecer o que é o saber em si. Ou será que não estou a dizer nada?

Teeteto: Estás a falar até muito correctamente. Sócrates: Repara, então. Se alguém nos interrogasse sobre coisas simples que estão

à mão, tal como o que é o barro, e lhe respondêssemos – o barro dos oleiros, o barro dos ceramistas e o barro dos fabricantes de tijolos –, não estaríamos a ser ridículos?

Teeteto: Talvez. Sócrates: Posto que, suponho, em primeiro lugar, se pensa que quem pergunta

percebe a nossa resposta, quando falamos de barro, quer acrescentemos “do modelista” ou de qualquer outro artesão. Ou pensas que alguém compreende o nome de uma coisa que não sabe o que é?

Teeteto: De modo nenhum. Sócrates: Portanto, não compreende “o saber dos sapatos” quem não sabe o que seja

“saber”. Teeteto: Pois não. Sócrates: Então quem ignora o que é o saber não compreende o que é arte do

sapateiro ou qualquer outra arte. Teeteto: É isso mesmo. Sócrates: Então a resposta à pergunta “o que é o saber?” é ridícula, quando se

responde com o nome de uma arte, pois se está a responder “o saber de alguma coisa”, não sendo isso que se questiona.

Teeteto: Assim parece.» (Platão, Teeteto, Cotas 146c-147c, Ed. FCG, pp.195-196)

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1.3 O Conhecimento como Representação Texto nº03

Sócrates: Tenta definir o que possa ser o saber: do que não fores capaz, não digas nada. Mas decerto serás, se o deus quiser e te fizer homem.

Teeteto: Bem, Sócrates, exortado de tal maneira por ti, seria uma vergonha alguém não pôr todo o empenho neste assunto, para dizer o que tem dentro de si. De facto parece-me que o que sabe algo apercebe aquilo que sabe e, tal como agora parece, saber não é outra coisa que não percepção.

Sócrates: Respondeste bem e com nobreza, meu jovem, pois é necessário que as opiniões sejam ditas assim claramente. Mas vamos analisar a resposta em conjunto, se é, na realidade, fecunda ou vazia. Percepção, dizes, é saber?

Teeteto: Sim. Sócrates: Contudo, arriscas-te a não ter emitido uma definição trivial sobre o saber, mas sim aquela que diz também Protágoras. O modo é algo diferente, mas diz a mesma coisa, pois afirma que “a medida de todas as coisas” é o homem, “das que são enquanto que são, das que não são enquanto não são”. Leste isto em algum lado?

Teeteto: Li, e muitas vezes. Sócrates: De certa maneira, o que diz é isto: que cada coisa é para mim do modo que

a mim me parece; por outro lado, é para ti do modo que a ti te parece. E tu e eu somos homens, não é assim?

Teeteto: É de facto assim que ele diz. Sócrates: No entanto, é provável que um homem sábio não fale ao acaso: sigamo-lo,

então. Não acontece, por vezes, um de nós sentir um mesmo sopro de vento frio e outro não? E um sentir pouco frio e outro muito?

Teeteto: Muitas vezes. Sócrates: Então, como dizemos que é o sopro de vento em si mesmo? Que é frio ou

que não é frio? Ou, persuadidos por Protágoras, diremos que é frio, para quem sente frio, e não é frio, para quem não sente frio?

Teeteto: Assim parece. Sócrates: Então aparece assim a cada um? Teeteto: Sim. Sócrates: E este “aparece” é aperceber-se? Teeteto: É, pois. Sócrates: Então aparência e percepção são o mesmo, no que respeita ao calor e em

todos os outros casos, pois tal como cada um se apercebe, assim é provável que seja para cada um.

Teeteto: Parece. Sócrates: Então a percepção é sempre daquilo que é e não pode ser falsa, sendo

saber. Teeteto: Assim parece.»

(Platão, Teeteto, Cotas 151d-152c, Ed. FCG, pp.204-206)

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Texto nº04 «O mundo é a minha representação. – Esta proposição é uma verdade para todo o ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstracto e reflectido. A partir do momento em que é capaz de a levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que vêem este sol, mais, que tocam esta terra; numa palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem. (…) Tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objecto em relação ao sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe, nume palavra, é pura representação. Esta lei aplica-se naturalmente a todo o presente, a todo o passado e a todo o futuro, àquilo que está longe, tal como àquilo que está perto de nós visto que ela é verdadeira para todo o tempo e o próprio espaço, graças aos quais as representações particulares se distinguem umas das outras. Tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária frente ao sujeito, e apenas existe para o sujeito. O mundo é pois representação. […] O mundo, considerado como representação, único ponto de vista que aqui nos ocupa, compreende duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. A primeira é o objecto, que tem por forma o espaço e o tempo, e por conseguinte, a pluralidade; a segunda, é o sujeito, que escapa à dupla lei do tempo e do espaço, sendo sempre uno e indivisível em cada ser que percebe. (…) se este único sujeito que percebe desaparecer, ao mesmo tempo, o mundo concebido como representação desaparecerá também. Estas duas metades são, pois, inseparáveis, mesmo em pensamento; cada uma delas apenas é real e inteligível pela outra e para a outra; elas existem e deixam de existir em conjunto. Elas limitam-se reciprocamente: o sujeito acaba onde começa o objecto.»

(Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, Ed. Rés, pp.7-8/10-11)

1.4 Realismo Ingénuo

Texto nº05 «Como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com as coisas que

existem em si, de as “atingir”? Qual a preocupação das coisas em si pelos movimentos do nosso pensamento e pelas leis lógicas que os regem?

Ao reflectir-se naturalmente sobre o conhecimento e ao ordená-lo justamente com a sua afectação, no sistema do pensamento natural das coisas, cai-se logo em teorias atractivas que, no entanto, terminam sempre em contradição ou no contra-senso.»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, p.21) 1.5 Redução Fenomenológica

Texto nº06 «Se a teoria do conhecimento quiser concentrar-se na possibilidade do conhecimento,

tem de ter conhecimentos sobre possibilidades cognitivas que, como tais, são indubitáveis e, claro está, conhecimentos no sentido mais estrito, a que cabe a apreensibilidade, e acerca da sua própria possibilidade cognitiva, cuja apreensibilidade é absolutamente indubitável. Se se tornou pouco claro e duvidoso como é possível a apreensibilidade do conhecimento, e se nos inclinarmos a duvidar de que isso seja possível, devemos então, em primeiro lugar, ter diante dos olhos casos indubitáveis de conhecimento ou de conhecimentos possíveis, que atingem ou atingiram realmente os seus objectos. De início, não nos é permitido admitir conhecimento algum como conhecimento; de outro modo, não teríamos nenhuma outra meta possível ou, o que é a mesma coisa, uma meta com sentido.»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, pp.22-23)

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Texto nº07 «(…) o olhar em si indescritível e indiferenciado, mostra-se, porém, que efectivamente

não tem sentido falar de coisas que simplesmente existem e apenas precisam de ser vistas; mas que esse “meramente existir” são certas vivências da estrutura específica mutável; que existem a percepção, a fantasia, a recordação, a predicação, etc., e que as coisas não estão nelas como num invólucro ou num recipiente, mas se constituem nelas as coisas, as quais não podem de modo algum encontrar-se como ingredientes naquelas vivências. O “entre dado das coisas” é exibir-se (ser representadas) de tal e tal modo em tais fenómenos. E aí as coisas não existem para si mesmas e “enviam para dentro da consciência” os seus representantes. Algo deste género não nos pode ocorrer no interior da esfera da redução Fenomenológica, mas as coisas são e estão dadas em si mesmas no fenómeno e em virtude do fenómeno. São dele inseparáveis.»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, p.32-33) Texto nº08 «O conhecimento é, em todas as suas configurações, uma vivência psíquica: é

conhecimento do sujeito que conhece. Perante ele estão os objectos conhecidos. Mas, como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com os objectos conhecidos, como pode ir além de si e atingir fidedignamente os objectos? O dado dos objectos cognitivos no conhecimento, óbvio para o pensamento natural, torna-se um enigma. Na percepção, a coisa percebida deve ser imediatamente dada. Aí está a coisa diante dos meus olhos que a percepcionam; vejo-a, agarro-a. Mas a percepção é simples vivência do meu sujeito, do sujeito que percepciona. Igualmente são vivências subjectivas a recordação e a expectativa, todos os actos intelectuais sobre eles edificados em virtude dos quais se chega à posição mediata de um ser real e ao estabelecimento de quaisquer verdades sobre o ser. De onde sei eu, o cognoscente, e como posso eu saber confiadamente que não só existem as minhas vivências, estes actos cognitivos, mas também que existem o que elas conhecem, mais ainda, que, em geral, existe algo que haveria que pôr frente ao conhecimento como seu objecto?»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, pp.42-43)

1.6 Conhecimento e Saber Texto nº09

«Sócrates: Sabes, Teodoro, o que me espanta no teu amigo Protágoras? Teodoro: O que é? Sócrates: Por um lado, agrada-me o que disse, que aquilo que parece a cada um,

também é; mas admirei-me com o princípio do argumento, pois não disse no início de A Verdade, que “o porco é a medida de todas as coisas” ou “o babuíno” ou qualquer outro animal mais estranho, de entre os que têm percepção, para que começasse a falar-nos em grande estilo e com arrogância, demonstrando que o admirávamos como a um deus pela sua sabedoria, enquanto ele estava, quanto a inteligência, não melhor que um girino, ou qualquer outro ser humano. Ou como devemos falar, Teodoro? Pois, se a verdade é para cada um o que opina através da percepção e ninguém pode julgar a experiência de outro melhor do que ele, nem ninguém será melhor a examinar a opinião de um outro, se é correcta ou falsa. E, se o que muitos dizem é que cada um, sozinho, terá as suas próprias opiniões, correctas e verdadeiras, então, meu amigo, como é que Protágoras é sábio, a ponto de também ser considerado mestre de outros, justamente, com um grande salário, enquanto nós somos muito ignorantes e devemos ser seus alunos, se cada um é a medida da sua própria sabedoria? Como não diremos que Protágoras procura o favor popular, ao dizer estas coisas? No que se refere a mim e à minha arte de ajudar aos partos, calo-me, na medida em que estamos condenados ao ridículo, tal como também, penso eu, toda a prática dialéctica. Pois, examinar e tentar refutar as aparências e as opiniões uns dos outros, correctas, porque pertença de cada um, não anda longe de uma imensa frivolidade, se A Verdade de Protágoras é verdadeira e não uma brincadeira fabricada a partir daquele livro, como que sagrado?»

(Platão, Teeteto, Cotas 161c-162a, Ed. FCG, pp.224-225)

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Texto nº10

«Sócrates: Então que nome dás àquilo: ao ver, ao ouvir, ao cheirar, a ter frio e a ter calor?

Teeteto: Chamo ter uma percepção. Que outra coisa poderia ser? Sócrates: Chamas ao conjunto percepção? Teeteto: Necessariamente. Sócrates: À qual, dissemos, não corresponde alcançar a verdade, nem a entidade. Teeteto: Pois não. Sócrates: Nem o saber. Teeteto: Também não. Sócrates: Portanto, Teeteto, percepção e saber não seriam o mesmo. Teeteto: Parece que não, Sócrates. Agora parece bastante evidente que saber é algo

diferente de percepção. Sócrates: Todavia, não há dúvida de que não começámos a nossa conversa para

descobrir o que não é o saber, mas para descobrir o que é. Mesmo assim, avançámos o bastante para o não buscar de modo algum na sensação, mas naquilo – chame-se-lhe como se quiser – em que a alma em si e por si se ocupa das coisas que são.

Teeteto: Sócrates, por mim desde logo creio que a isso se chama opinar. Sócrates: Sim, querido amigo, sem dúvida tens razão. Apaga da tua memória tudo o

que dissemos atrás e considera melhor a questão, de novo agora e desde o princípio, já que chegaste a este ponto. Torna a dizer-me o que é saber.

Teeteto: Sócrates, é impossível chamar saber a toda a opinião, porque também há a opinião falsa. Contudo parece que a opinião verdadeira é saber; essa é a minha resposta. Decerto que, se, ao avançarmos, não nos parece que é como agora digo, procuraremos responder de outra maneira.

(Platão, Teeteto, Cotas 186d-187b, Ed. FCG, pp.271-272)

Texto nº11

«Sócrates: Ora bem, meu rapaz, será que este nosso argumento faz bem em castigar-nos, mostrando-nos que estamos a investigar incorrectamente a opinião falsa antes do saber, tendo-o deixado de lado? É impossível conhecê-la antes de termos aprendido adequadamente o que é o saber.

Teeteto: Sócrates, neste momento há que pensar como dizes. Sócrates: Então, se retomarmos o assunto desde o começo, que haverá que dizer

que é o saber? Pois não vamos render-nos agora, não? Teeteto: De modo nenhum, a menos que estejamos a pensar em renunciar… Sócrates: Diz-me, então, que mais poderemos propor, para nos contradizermos o

menos possível? Teeteto: Precisamente aquilo que estávamos a tentar dizer na resposta anterior. Eu

pelo menos não posso pensar mais nada. Sócrates: O quê? Teeteto: Que saber é a opinião verdadeira; pelo menos, opinar a verdade não tem

erro e tudo o que ocorre em consequência torna-se nobre e bom. Sócrates: Teeteto, aquele que ajuda a atravessar o curso do rio dizia: ”ele mesmo há-

de mostrá-lo”. E, se avançarmos nesta direcção e seguirmos com a nossa indagação, provavelmente o próprio objecto da investigação se nos tornará claro debaixo dos pés, mas, se o não fizermos, nada se há-de aclarar.

Teeteto: Tens razão. Sigamos adiante e examinemo-lo. Sócrates: Por certo que a questão requer um breve exame, pois há toda uma arte que

te indica que o saber não é o que estás a dizer que é. Teeteto: Qual? Que arte é? Sócrates: A maior, no que concerne à sabedoria. E aos que a praticam chamam-lhes,

não duvides, “oradores” e “litigantes”. Pois estes, embora não ensinem, com a sua própria arte persuadem e levam a gente a opinar o que querem. Ou crês tu que há alguns mestres tão hábeis que, no breve tempo que lhes permite a clepsidra, são capazes de ensinar adequadamente a verdade do sucedido a pessoas cujo dinheiro foi roubado, ou que de alguma maneira foram violentadas, sem haver testemunhas?

Teeteto: Não, creio apenas que persuadem.

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Sócrates: Estás então a dizer que persuadir é fazer com que alguém opine? Teeteto: Sem dúvida. Sócrates: Então quando os juízes foram justamente persuadidos acerca de assuntos

dos quais apenas pode saber aquele que viu e não outro, nesse momento, ao decidir sobre esses assuntos por ouvir dizer e ao adquirir uma opinião verdadeira, ainda que tenham sido correctamente persuadidos, tomaram a sua decisão, sem saber se na realidade julgaram bem, não?

Teeteto: Certamente. Sócrates: Se a opinião verdadeira e o saber fossem o mesmo, nem sequer o juiz mais

competente poderia emitir uma opinião correcta sem saber. E, contudo, neste momento cada uma delas parece ser diferente.

Teeteto: Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e que ouvi alguém dizer: que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião carente de explicação se encontra à margem do saber. E aquilo de que não há explicação não é susceptível de se saber – é assim que se referia a isto –, sendo, pelo contrário, cognoscível aquilo de que há explicação.

Sócrates: Sem dúvida, dizes bem. Mas diz-me como distinguir cognoscíveis de não cognoscíveis e se tu e eu ouvimos falar deles da mesma maneira?

Teeteto: Não sei se poderei averiguá-lo, mas se outra pessoa o dissesse, seria capaz de a seguir.

Sócrates: Escuta então um sonho em troca de outro. Com efeito, pareceu-me escutar de alguns que os elementos primeiros, por assim dizer, a partir dos quais somos compostos, nós e as demais coisas, não teriam explicação, pois cada um deles somente poderia ser nomeado, em si e por si, não sendo possível dizer nada mais deles, nem que são, nem que não são. Pois haveria que agregar-lhes o ser e o não ser, mas não que acrescentar nada, se é que vamos acrescentar algo em si mesmo. Pois nem sequer há que acrescentar expressões como “o mesmo”, “aquilo mesmo”, “cada um”, “só”, “isto”, nem muitas outras destas. Estas expressões correm por aí, juntando-se a tudo, embora sejam diferentes das coisas a que se acrescentam. Se fosse possível designar o elemento e este ter uma explicação própria em si mesmo, teria de ser nomeado independentemente de tudo o mais. Mas, de facto, é impossível que qualquer deles seja dito com uma explicação, pois não há que dar-lhes mais que um nome apenas. Por sua vez, os compostos que deles derivam, tanto por se encontrarem entrelaçados, como por os seus nomes também se terem entrelaçado, deram lugar à explicação. Pois o entrelaçamento dos nomes é aquilo que a explicação é. É por isso que os elementos carecem de explicação e são incognoscíveis, embora sejam sensíveis. Por sua vez, as sílabas são cognoscíveis, podem nomear-se e são opináveis por opinião verdadeira. Ora bem, quando alguém chega à opinião verdadeira sobre alguma coisa, sem explicação, a sua alma encontra-se na verdade a respeito disso, mas não a conhece. Com efeito, aquele que não for capaz de dar e receber uma explicação sobre algo ignora-o. Por sua vez, se chegou a uma explicação, não só tudo isto lhe veio a ser possível, como além disso tem completamente o saber. Ouviste o sonho assim ou de outro modo?

Teeteto: Assim mesmo, exactamente.» (Platão, Teeteto, Cotas 200d-202d, Ed. FCG, pp.300-304)